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Processo n.º 345/12
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. O Tribunal Judicial de Alenquer fixou a indemnização a atribuir a A. e outros (recorrentes) pela expropriação de uma parcela de terreno, por utilidade pública, a favor de B., S. A. (recorrida).
Os expropriados interpuseram recurso da sentença e de um despacho que não admitiu a junção de documentos por eles apresentados com as alegações escritas. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26 de outubro de 2010, foi negado provimento ao agravo e à apelação.
Após recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, de que não veio a tomar-se conhecimento, os recorrentes interpuseram recurso do acórdão da Relação para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. O recurso prosseguiu, apenas (cfr. despacho de fls. 1969), para apreciação da constitucionalidade da norma resultante do artigo 73.º do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 845/76, de 11 de novembro (CE76) e dos artigos 523.º, 524.º e 706.º, n.º 2, do CPC, no sentido de impedir as partes de juntarem documentos supervenientes com as alegações de recurso do acórdão arbitral.
2. Os recorrentes alegaram e concluíram nos seguintes termos:
«(…)
1ª A interpretação do art. 73º do Código das Expropriações de 1976, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 845/76, de 11 de novembro (com a mesma redação do art. 56º do Código das Expropriações de 1991 e do art. 58º do Código das Expropriações de 1999) e dos arts. 523º, 524º e 706º, nº 2, do CPC, no sentido de impedir as partes de juntarem ao processo de expropriação, com as suas alegações de recurso do Acórdão Arbitral, documentos supervenientes, é inconstitucional por violação do princípio da igualdade e dos direitos fundamentais a uma tutela jurisdicional efetiva, de propriedade privada e a uma justa indemnização (arts. 13º, 20º e 62º, nº 2, da Constituição).
2ª De facto, as instâncias recorridas interpretaram o referido regime jurídico no sentido de que nos processos expropriativos as partes só podem juntar aos autos documentos com o requerimento de interposição de recurso ou com a sua resposta ao recurso interposto pela parte contrária, o que não respeita as exigências daqueles princípios e direitos fundamentais.
3ª Para além da letra da lei, o Acórdão recorrido citou o Acórdão STJ de 01.06.2004, onde se invocaram os princípios da celeridade e da economia processual como ratio legis daqueles preceitos, e considerou inaceitável nos processos expropriativos a figura dos documentos supervenientes, pois 'A fixação do montante indemnizatório devido ao expropriado afere-se pelas circunstâncias existentes aquando da declaração de utilidade pública, sendo irrelevantes, para estes efeitos, as que venham a verificar posteriormente” (cfr. pág. 28).
4ª O direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva, em particular nos processos expropriativos, onde se discute o direito fundamental a uma justa indemnização (arts. 20º e 62º, nº 2, da Constituição), assegura o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e o direito a um processo equitativo, a um processo justo, onde vão garantidos o direito à invocação dos factos que se entendam relevantes e à prova dos mesmos e proibidas situações de indefesa ou pressupostos/requisitos processuais desnecessários, não adequados e desproporcionados quanto aos meios probatórios permitidos. Em suma, o cidadão tem direito a invocar, a demonstrar e a ver julgada a realidade material controvertida.
5ª A interpretação normativa do Acórdão recorrido não respeita as exigências constitucionais referidas na Conclusão anterior, pois, para além do mais: a. impede as partes (neste caso os Expropriados), por razões puramente processuais (de oportunidade), de fazerem prova documental dos factos relevantes para o cálculo da justa indemnização que lhes é devida depois de apresentada nos autos a avaliação pericial, um elemento decisivo dos processos de expropriação relativamente ao qual as partes ficarão numa situação de indefesa probatória documental; b. impede as partes de se defenderem através de documentos posteriores (ou de conhecimento posterior) à petição de recurso do acórdão arbitral ou à resposta ao mesmo, o que constitui uma intolerável situação de indefesa, ficando totalmente desvirtuada a verdade material que se devia discutir e julgar.
6ª A interpretação do Tribunal recorrido funda-se exclusivamente em requisitos processuais desnecessários ou desviados de um sentido conforme ao direito fundamental de acesso aos tribunais e de aí juntar documentos para suportar a posição defendida, não valendo aqui o apelo do Acórdão recorrido aos princípios da celeridade e da economia processuais. Na verdade, para além desses princípios relevarem em todos os processos judiciais e não só nos processos expropriativos, esses princípios tutelam essencialmente os interesses dos expropriados em receber o mais cedo possível a justa indemnização, pelo que não faz sentido utilizar contra os expropriados princípios estabelecidos, essencialmente, no seu interesse. Por outro lado, a admissão da junção de documentos nas alegações dos expropriados não perturba o normal andamento do processo judicial, pois o processo sempre terá que aguardar as contra-alegações da parte contrária, sendo aí que a mesma se poderá pronunciar sobre os mesmos. Assim, bem vistas as coisas, a junção destes documentos em nada perturba a economia ou celeridade processuais.
Este direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais, a um processo justo e à tutela jurisdicional efetiva é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (GOMES CANOTILHO-VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., pág. 142), o que implica, desde logo, a sua submissão ao regime desta categoria constitucional (art. 17º da Constituição) e a eficácia assegurada no art. 18 da Lei fundamental. A solução adotada pelo Acórdão recorrido não respeita esta eficácia constitucional de um direito fundamental de natureza análoga, pois, (i) pretendendo os Expropriados que os documentos sub judice fazem prova da expansão urbanística que caracterizava toda a zona envolvente da parcela expropriada, o que condiciona, portanto, o valor de mercado do bem expropriado, (ii) sendo esse precisamente o objetivo deste processo (fixar a justa indemnização aos Expropriados, isto é, o valor de mercado do bem expropriado) e (iii) não existindo outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que impeçam a admissão nos autos desses documentos e a descoberta da verdade material, nada impede e tudo aconselha uma interpretação do regime normativo em causa no sentido de admitir a junção de documentos depois da petição de recurso ou da resposta ao mesmo, em particular quando falamos de documentos supervenientes.
8ª Em qualquer caso, para além desta força jurídica, direta e imediata, pode ainda retirar-se do quadro constitucional português a seguinte dimensão essencial na abordagem e interpretação das normas legais: interpretação conforme à Constituição (e interpretação integrativa da lei com a Constituição), no sentido de que, 'em caso de dúvida, deve prevalecer a interpretação que, conforme os casos, restrinja menos o direito fundamental, lhe dê maior proteção, amplie mais o seu âmbito, o satisfaça em maior grau'. Deste modo, os princípios e direitos fundamentais aqui envolvidos determinam que, na dúvida, perante dois cenários possíveis na interpretação do regime consagrado no Código das Expropriações, se considere a solução que melhor sirva a tutela constitucional, ou seja, o efetivo acesso aos Tribunais, a justiça processual e uma tutela jurisdicional efetiva; em suma, a junção destes documentos supervenientes.
9ª Este tópico é aqui particularmente relevante. De facto, o que os preceitos dos Códigos das Expropriações em causa dispõem é que com o requerimento de interposição de recurso da decisão arbitral as partes juntem desde logo todos os documentos, isto é, naturalmente, todos os documentos de que a parte disponha nessa data. Este preceito não se refere (nem podia) a documentos de que a parte não disponha e que só no futuro virá a dispor (documentos supervenientes). Assim, a interpretação dos preceitos em causa em conformidade com as exigências constitucionais há de ser a de que os documentos aí referidos são os documentos que a parte dispõe ao tempo dessa interposição de recurso. A aplicação dos arts. 524º e 523º, nº 2, do CPC à junção destes documentos não pode suscitar especiais dúvidas nem é afastada pelo regime de junção de documentos estabelecido nos Códigos de Expropriações, pois estes Códigos só regulam a oportunidade normal para a junção de documentos nos processos de expropriação, não se referindo, naturalmente, ao regime da juncão de documentos supervenientes. Na verdade, no processo de expropriação a junção de documentos não é apenas admitida na petição de recurso do acórdão e arbitral e na resposta à mesma. Estes preceitos têm, no processo expropriativo, a mesma função do art. 523º, nº 1, do CPC: esclarecer o momento normal da apresentação de documentos que já existam ou de que a parte disponha à data das respetivas peças processuais: nem o art. 523º, nº 1, do CPC, nem os arts. 56º e 58º, nº 2, do Código das Expropriações regulam a apresentação de documentos supervenientes. O regime da junção de documentos supervenientes vem consagrado nos arts. 524º e 523º, nº 2, do CPC: é esta a sede legal da matéria relativamente à qual o Código das Expropriações é totalmente omisso. Nesta omissão, tem plena aplicação o regime geral e subsidiário do CPC, isto é, os referidos arts. 524º e 523º, nº 2 (cfr. Jurisprudência citada no n. 18 das Alegações).
10ª Valem aqui, do mesmo modo, os princípios estruturantes do processo civil - a prevalência do fundo sobre a forma e a verdade material - que, revestindo a natureza de princípios materialmente constitucionais, impedem a interpretação que se questiona do Acórdão recorrido (cfr. Preambulo do Decreto-Lei n.º 329-N95: 'Procura, por outro lado, obviar-se a que regras rígidas, de natureza estritamente procedimental, possam impedir a efetivação em juízo dos direitos e a plena discussão acerca da matéria relevante para propiciar a justa composição do litígio (...). Dentro da mesma ideia base de evitar que regras de índole estritamente procedimental possam obstar ou criar dificuldades insuperáveis à plena realização dos fins do processo - flexibilizando ou eliminando rígidos espartilhos, de natureza formal ou adjetiva, suscetíveis de dificultarem, em termos excessivos e desproporcionados, a efetivação em juízo dos direitos ... '; 'Ter-se-á de perspetivar o processo civil como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo').
11ª Neste contexto, pode afirmar-se o seguinte quanto ao entendimento adotado no Acórdão recorrido: a. não garante, antes prejudica, a prevalência do fundo sobre a forma, rectius faz prevalecer a forma sobre o fundo - prefere que não se conheça a realidade que os documentos sub judice demonstram de pleno, por razões puramente formais e processuais; b. contrariando as referidas determinações legais e constitucionais, deturpa de uma forma rígida e desadequada regras de natureza estritamente processual para impedir a junção destes documentos e, desse modo, a efetivação em juízo dos direitos que os Expropriados se arrogam e a plena discussão acerca da verdade material relevante para propiciar a justa composição do litígio; c. cria dificuldades (de natureza puramente formal e processual) insuperáveis à plena realização dos fins do processo; d. pelo que não encara o processo como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, mas sim como um estereótipo puramente formal que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça material, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão ajuízo.
12ª Sufragando de pleno a posição que defendemos e ultrapassando algumas hesitações da jurisprudência num passado recente, v. A jurisprudência que ficou citada no n. 20 das Alegações.
13ª A jurisprudência que ficou citada deve manter-se na ordem jurídica, por ser a única que faz uma interpretação conforme com a Constituição e, assim, ser a única que serve os princípios de ordem material e processual a considerar, designadamente (i) a verdade material que se pretende julgar, (ii) as exigências do due pracess of law constitucionalmente tuteladas e (iii) a inexistência de razões específicas dos processos indemnizatórios das expropriações face a outros processos com créditos indemnizatórios envolvidos que determinem o afastamento do regime do processo ordinário.
14ª A interpretação normativa adotada pelas instâncias recorridas viola ainda o princípio da igualdade, em particular na comparação da situação processual dos expropriados com a situação processual dos titulares de outros créditos indemnizatórios (art. 13º da Constituição), pois em qualquer ação judicial em que se reclame um crédito indemnizatório (nos tribunais comuns ou nos tribunais administrativos), o autor poderá juntar aos autos documentos supervenientes ao abrigo dos arts. 524º e 523º, nº 2, do CPC, sendo certo que nos processos expropriativos o expropriado também é titular e também pretende fazer valer um crédito indemnizatório, a condenação das entidades expropriantes no respetivo pagamento, sem que haja qualquer fator material relevante que diferencie o crédito indemnizatório dos expropriados de outros créditos indemnizatórios (responsabilidade civil extracontratual por atos lícitos ou ilícitos) ou o processo expropriativo dos demais processos em que se pretende a determinação de outros créditos indemnizatórios.
15ª O direito fundamental de acesso ao Direito, aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva (art. 20º da Constituição) também obriga a que sejam admissíveis nos processos expropriativos documentos posteriores à declaração de utilidade pública expropriativa, pois esses documentos podem revelar-se essenciais para demonstrar a realidade à data dessa declaração: um documento superveniente pode ser utilizado para caracterizar a situação que se verificava à data da declaração de utilidade pública expropriativa, pelo que também esta questão invocada no Acórdão recorrido não pode proceder.
16ª Por último, uma constatação referenciada ao processo que nos ocupa: depois de os documentos sub judice terem sido juntos aos autos o Tribunal de 1ª instância, com a prolação do Despacho de 08.11.2006, fez o processo regressar à fase de instrução, para que fossem realizadas diligências de prova, tendo inclusive a Entidade Expropriante sido notificada para indicar novo Perito.
A recorrida não contra-alegou.
II. Fundamentos
3. Dispunha o n.º 1 do artigo 73.º do CE76, iniciando a secção respeitante ao recurso da decisão arbitral, o seguinte:
“1. No requerimento de interposição de recurso, o recorrente exporá logo as razões da discordância com a decisão arbitral, oferecendo todos os documentos, requerendo as demais provas e designado o seu perito.
2. [ .... ].”
Esta regra foi reproduzida, no que ao oferecimento de documentos e requerimento de produção de prova respeita, nos códigos subsequentes, designadamente no artigo 56.º do CE91 (No requerimento da interposição do recurso da decisão arbitral, o recorrente exporá logo as razões da discordância, oferecendo todos os documentos, requerendo as demais provas e designando o seu perito) e artigo 58.º do CE99 (No requerimento da interposição do recurso da decisão arbitral, o recorrente deve expor logo as razões da discordância, oferecer todos os documentos, requerer as demais provas, incluindo a prova testemunhal, requerer a intervenção do tribunal coletivo, designar o seu perito e dar cumprimento ao disposto no artigo 577.º do Código de Processo Civil).
Trata-se de disciplina legal que tem sido objeto de interpretações e aplicações jurisprudenciais divergentes. Para parte da jurisprudência – a posição seguida na decisão recorrida –, a lei estabelece uma regra de preclusão (para as partes): toda a prova tem de ser apresentada ou requerida com a petição de recurso da decisão arbitral (por parte do expropriante, com a respetiva resposta), ainda que consista em prova documental objetiva ou subjetivamente superveniente ou tornada necessária pelo evoluir do processo. Porém, outra corrente jurisprudencial entende que nesse preceito do Código se contém o regime normal de indicação de prova pelas partes no processo de expropriações, sem prejuízo da aplicação subsidiária do regime comum do processo civil, designadamente quanto à apresentação posterior de documentos.
No sentido por que enveredou a decisão recorrida, argumenta-se que a aplicação subsidiária de normas comuns do processo civil ao processo de expropriação, por força do artigo 463.º, nº 1, do Código de Processo Civil (CPC), pressuporia que se revelasse necessário recorrer a essa via para regular uma determinada situação para a qual não haja previsão legal no Código das Expropriações, (i.e., que exista uma lacuna), e também que a solução não conflitue com as especialidades do processo de expropriação. Ora, diz-se, não só há norma expressa, justificada pela especial celeridade que a lei impõe a este tipo de processos, como a abertura processual para apresentação de prova superveniente se revela desnecessária, tendo presente que o circunstancialismo fáctico relevante é o verificado no momento da declaração de utilidade pública.
Em sentido contrário (aquele para que se inclinou o recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 10 de julho de 2012, no processo n.º 157/1999. L2.S1, disponível em www.dgsi.pt/jstj), defende-se que é admissível, por aplicação subsidiária das regras do processo ordinário (artigo 463.º, n.º 1, do C.P.C.), mesmo depois da interposição do recurso da decisão arbitral e da apresentação da resposta, juntar documentos, nas circunstâncias permitidas pelos artigos 523.º, n.º 2 e 524.º do CPC. O legislador não teria a pretensão de esgotar no Código das Expropriações a regulamentação do processo expropriativo, justamente por saber que tudo o mais ficava automaticamente abrangido pela remissão feita para o artigo 463.º, n.º 1, do CPC. Argumenta-se que, perante duas opções ainda possíveis, deve acolher-se a solução que melhor sirva os princípios estruturantes do processo civil e a tutela constitucional do acesso ao direito e aos tribunais. Diz o Supremo Tribunal de Justiça que, em caso de dúvida, “deve prevalecer a interpretação que, conforme os casos, restrinja menos o direito fundamental, lhe dê maior proteção, amplie mais o seu âmbito e o satisfaça em maior grau”, sendo esta a solução que melhor assegura o princípio do contraditório e melhor serve a verdade material e a justa indemnização que se pretende alcançar, perante a inexistência de razões específicas do processo indemnizatório de expropriação, que determinem o afastamento do regime do processo ordinário. E o Supremo lembra que o processo de expropriação compreende duas fases: uma administrativa, em que se insere o ato essencial da expropriação e que visa o acordo das partes ou a fixação da indemnização por arbitragem; outra judicial, que tem como objetivo final a fixação, com observância do contraditório, da justa indemnização. A fase judicial inicia-se com o requerimento da interposição do recurso da decisão arbitral, abrindo-se, então, um verdadeiro processo judicial, com tramitação específica, que abrange, após o aludido requerimento, a resposta, produção de prova, avaliação, alegações escritas e sentença. O requerimento de interposição de recurso tem uma função semelhante à da petição inicial de qualquer processo, na medida em que ambos introduzem a causa em juízo. Embora o paralelismo não seja completo, porque o requerimento da interposição do recurso é já um meio de oposição à decisão arbitral, esse recurso não comunga da mesma natureza dos recursos jurisdicionais, configurando-se antes como uma fase declarativa especial que, partindo da decisão dos árbitros, se desenvolve como uma verdadeira ação declarativa, tendo em vista a discussão e apuramento da justa indemnização, com respeito pelo princípio do contraditório e com recurso a todos os meios de prova. E, acrescenta o Supremo Tribunal de Justiça, seria muito dificilmente defensável que, por exemplo, não se pudessem juntar, depois da interposição do recurso do acórdão arbitral e da pertinente resposta, documentos destinados a provar factos posteriores àquelas peças processuais ou cuja apresentação se tivesse tornado necessária por virtude de ocorrência posterior. Os princípios da celeridade e da economia processuais, não devem constituir obstáculo a que as partes produzam a sua prova, por forma a alcançar-se a justa indemnização. Daqui, o Supremo conclui que a referência que a lei faz a “todos os documentos” deve ser interpretada no sentido de documentos (e bem assim elementos probatórios de outra natureza) que tenham por objetivo justificar a discordância do recorrente quanto ao valor da indemnização estabelecido pelos árbitros. E afirma que não poderia ser de outro modo, desde logo porque é com a interposição do recurso da decisão arbitral que verdadeiramente se inicia a fase jurisdicional do processo de expropriação, no decurso da qual tem obrigatoriamente lugar a avaliação efetuada por peritos, podendo ainda realizar-se outras diligências instrutórias que “o juiz entenda úteis à boa decisão da causa”. Sob pena de se chegar a uma decisão substancialmente injusta, porque afastada da verdade material, não faria sentido que, confrontadas com o resultado da avaliação – vale por dizer, com os elementos factuais e a respetiva valoração pericial necessariamente implicada nesta diligência – as partes ficassem em absoluto impedidas de carrear para o processo meios de prova (documentais, ou outros) cuja apresentação só se tenha tornado necessária em face do conteúdo do relatório pericial.
4. Não cabe ao Tribunal Constitucional decidir qual destas interpretações deve prevalecer, no plano do direito ordinário. Têm, porém, as considerações feitas no referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, o mérito de revelarem a resposta valorativa em que as soluções em confronto se sustentam e de adiantar ponderações que, em substancial medida, refletem os parâmetros constitucionais mobilizáveis. Por isso se reproduziram.
5. Como se fez no Acórdão n.º 408/2010 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt, como a restante jurisprudência do Tribunal que for referida), deve começar por afirmar-se que o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, comporta efetivamente o direito à produção de prova. Mas que, como o Tribunal também tem sublinhado, tal não significa que decorra da Constituição a admissão necessária de todos os meios de prova permitidos em Direito, em qualquer tipo de processo e relativamente a qualquer objeto de litígio, ou que não sejam permitidas as previsões legislativas que imponham limitações quantitativas à produção dos referidos meios. A esse respeito, escreveu-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 530/08, o seguinte:
“Conforme tem sido afirmado em diversas ocasiões pelo Tribunal Constitucional, o direito à tutela jurisdicional efetiva para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, genericamente proclamado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), implica «um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder «deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e outras» (acórdão n.º 86/1988, reiterado em jurisprudência posterior e, por último, no acórdão n.º 157/2008).
No entanto, como tem sido também sublinhado, o direito à prova não implica a total postergação de determinadas limitações legais aos meios de prova utilizáveis, desde que essas limitações se mostrem materialmente justificadas e respeitadoras do princípio da proporcionalidade. Dentro desta linha de entendimento, o Tribunal Constitucional não se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade no tocante a diversas disposições legais que em relação a certos procedimentos jurisdicionalizados apenas admitem um específico tipo de prova (assim, os Acórdãos n.ºs 395/89, 209/95, 452/2003; uma recensão da jurisprudência constitucional, com sucinta referência à argumentação em cada caso aduzida, no já citado acórdão nº 157/2008).
Acresce – como esclarece Teixeira de Sousa – que as próprias normas de direito probatório constantes do Código Civil ou do Código de Processo Civil estabelecem certas limitações quanto aos meios de prova permitidos em direito, em qualquer tipo de processo e relativamente a qualquer objeto do litígio, e mesmo certas limitações quantitativas na produção de determinados meios de prova, sem que a sua constitucionalidade algo vez tenha sido posta em causa – assim, por exemplo, os artigos 353º e 354º do Código Civil, sobre a eficácia e admissibilidade da declaração confessória, os artigos 393.º e 394.º do mesmo Código sobre a admissibilidade da prova testemunhal, e, bem assim, os artigos 632º e 633º do Código de Processo Civil sobre o limite de número de testemunhas a arrolar pela parte e que podem ser inquiridas por cada facto (As partes, o objeto e a prova na ação declarativa, Lisboa, 1995, pág. 228).
A questão essencial que se coloca – tal como se expendeu no acórdão nº 646/2006, que também abordou esta temática – é, pois, a de saber se, na emissão de uma norma restritiva do uso dos meios de prova, o legislador respeitou, proporcionada e racionalmente, o direito de acesso à justiça na sua vertente de direito de o interessado produzir a demonstração dos factos que, na sua ótica, suportam o «direito» ou o «interesse» que visa defender pelo recurso aos tribunais. Uma resposta negativa a essa questão apenas pode perspetivar-se, neste contexto, quando se possa concluir que a norma em causa determina, para a generalidade de situações, que o interessado se veja constrito à impossibilidade de uma real defesa dos seus direitos ou interesses em conflito”.
Em síntese, não está vedado ao legislador ordinário restringir o uso de meios de prova em determinados processos, desde que o faça com observância dos requisitos constitucionais previstos para leis restritivas, tais como a existência de uma justificação material para a restrição, i. é, a necessidade de com ela se salvaguardar outros direitos ou valores constitucionalmente protegidos, e a relação de proporcionalidade entre a medida legal restritiva e os fins por ela visados.
6. Por maioria de razão, não está vedado ao legislador disciplinar o momento ou fase processual e o modo ou requisitos da indicação da prova, ou seja, regular o exercício do direito à produção da prova, ou de determinada espécie de prova. A norma em causa é, aliás, desta natureza. Não se proíbe o meio de prova em causa no processo de expropriações. O que se faz é condicionar a admissibilidade de prova à indicação (no caso dos documentos, à apresentação) em determinado momento: o requerimento de recurso da decisão arbitral.
Todavia, a distinção categorial para que este conteúdo da norma convidaria (restrição vs condicionamento) não assume decisiva relevância prática (para a decisão jurisdicional, bem entendido) quando o que está em causa é aferir a observância do princípio da proporcionalidade pela solução legislativa considerada. No máximo, quanto a este aspeto, a distinção poderá determinar a escolha da sede específica do parâmetro, ou influir no ónus de argumentação e na intensidade do controlo jurisdicional. Relativamente às restrições a direitos, liberdades e garantias, a exigência de proporcionalidade resulta do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, mas o princípio da proporcionalidade, está ínsito, antes do mais, no princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição, sujeitando o legislador em todas as normações jusfundamentalmente relevantes.
Assim – reafirmando-se, embora, que goza de larga margem de conformação na disciplina dos atos processuais – o legislador não pode adotar “regulamentações” processuais que não resistam aos testes em que analiticamente se decompõe a ideia geral de proibição do excesso, mesmo que, em abstrato, uma dada normação não deva ser qualificada como restrição em sentido estrito ao direito à tutela jurisdicional.
É o que passa a apreciar-se.
7. A fixação de regras, com efeito preclusivo, relativamente à produção ou requerimento de produção de prova é, em si mesmo, adequada à celeridade da resolução dos litígios judiciais, à lealdade no seu desenvolvimento, à articulação e desenvolvimento ordenado dos atos processuais. O legislador não está vinculado a um modelo uniforme, podendo conformar os diversos procedimentos em função do modo como estes interesses se apresentam em cada um deles. Em princípio, a exigência de indicação da prova com o articulado em que se alega o facto respetivo é um meio apto à consecução dos fins de um processo urgente, como é o processo de expropriação por utilidade pública, e consentâneo com respetiva estrutura em que não há despacho de fixação da base instrutória, não resultando daí dificuldades ou ónus desrazoáveis para as partes. Sendo o recurso da decisão arbitral o ato no qual se alegam os factos tendentes a demonstrar que os árbitros erraram nas verificações de facto, ou nas avaliações que fizeram, ou na determinação dos critérios legais aplicáveis à determinação da “justa indemnização” é, em regra, adequado – rectius, não é desadequado, que é tipo de juízo que ao Tribunal cabe – que nesse ato, ou com esse ato, se imponha a indicação da prova.
Aliás, relativamente a prova documental, que é a espécie de prova considerada na dimensão normativa em apreciação, essa exigência coincide com a regra geral do processo civil (artigo 523.º, n.º 1, do CPC). Com a diferença de que no processo civil o legislador relativiza esta exigência de concentração admitindo a junção até ao encerramento da discussão em 1ª instância, embora com sujeição a multa (artigo 523.º, n.º 2, do CPC). Aquela exigência traduz, portanto, uma regra de boa ordenação, não de preclusão processual. E, além disso, permite-se a junção posterior de documentos objetiva ou subjetivamente supervenientes, ou tornados necessários pela evolução da lide. Designadamente, podem ser oferecidos em qualquer estado do processo os documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados, ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior (artigo 524.º, n.º2, do CPC). Importa ver se os desvios a este regime geral, que a dimensão interpretativa sob apreciação comporta, introduzem uma limitação evidentemente não reclamada pelos fins visados ou que produzam efeitos manifestamente excessivos quanto à possibilidade efetiva de prova dos factos relevantes no processo de expropriação.
Atendendo ao papel crucial desempenhado pela prova pericial no processo de expropriação e, portanto, à conveniência de que todos os elementos relevantes constem do processo no momento da avaliação pericial, concede-se que seja duvidoso que deva considerar-se medida desnecessária uma solução que não admita, como regra, o remédio que consta do n.º 2 do artigo 523.º do CPC e, consequentemente, que possa defender-se que uma tal solução ainda caberá na discricionariedade legislativa quanto à conformação dos termos do processo.
Mas é claramente excessivo que documentos objetiva ou subjetivamente supervenientes ou tornados necessários pelo desenvolvimento posterior da lide não possam – nunca possam, independentemente de juízos concretos de evidente desnecessidade ou de inaptidão probatória – ser juntos com as alegações, que é a fase de discussão escrita, perante o juiz de 1ª instância, da matéria de facto e de direito relevante para a determinação da justa indemnização. Designadamente, quando tais documentos se destinarem a demonstrar o erro da base factual ou técnica do laudo pericial que na sentença tem de ser apreciado. As verificações de facto sobre as qualidades da coisa expropriada ou sobre os fatores externos influentes na determinação do seu valor, feitas pelos peritos, podem não ser contraditáveis apenas com recurso a elementos discursivos. Nestas circunstâncias, não admitir, nessa fase, sequer a prova documental, por ser apresentada posteriormente à petição de recurso da decisão dos árbitros e a situação a considerar ser a existente à data da declaração de utilidade pública, é uma compressão excessiva do direito à produção de prova, porque o interessado fica sem meio de demonstrar factos relevantes para a decisão judicial, sem que tenha podido razoavelmente precaver-se contra esse efeito desvantajoso.
E não pode objetar-se com o caracter urgente do processo de expropriação.
Em primeiro lugar, ao menos quando os documentos são apresentados pelo expropriado, o argumento subverte a razão em que se funda a atribuição de caracter urgente ao processo nessa fase de determinação da indemnização. A urgência, destinada (nesta fase) a assegurar a tutela dos interesses do expropriado, designadamente o princípio da tendencial contemporaneidade entre a privação do bem e a indemnização, conduz a que o interessado acabe privado da faculdade de apresentar elementos relevantes para a determinação da “justa indemnização”.
E, de todo o modo, há que considerar que a produção de prova documental, salvo incidentes que têm caracter excecional (p. ex. falsidade), não é de molde a introduzir perturbação significativa no normal desenrolar da lide. Quando ocorre com as alegações escritas do recorrente, a junção de documentos nem sequer implica a prática de qualquer novo ato ou o alongamento da marcha processual, tendo o contraditório lugar com as alegações do recorrido. Em qualquer caso, a alteração da marcha processual geralmente decorrente da prova documental é pouco significativa, sendo indefensável a solução normativa em apreciação em nome de uma ideia de urgência cujos riscos de comprometimento do fim último do processo (a fixação da justa indemnização) são evidentes. Como disse o referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, a lei adjetiva deve ser concebida por forma a que os princípios da celeridade e da economia processual não entrem em rota de colisão com a finalidade precípua de todo e qualquer processo, seja ele comum ou especial, que é a obtenção da justa composição do litígio. E se é certo que esta finalidade passa pela decisão da causa num prazo razoável, num lapso de tempo proporcionado à dimensão e complexidade da causa, também é verdade que a justiça em concreto fica comprometida caso se condicione e limite para além do razoável a possibilidade de as partes provarem factos pertinentes.
Colocando o interessado na impossibilidade de provar a subsistência ou insubsistência de factos de cujo acertamento depende o reconhecimento judicial da sua pretensão no momento em que tal prova se revela necessária, a dimensão normativa em apreciação não passa o teste da proporcionalidade em sentido estrito. A proibição, com caracter geral e absoluto, de junção de documentos com as alegações escritas do processo de expropriação – anteriormente, portanto, ao momento em que o tribunal deve julgar a matéria de facto -, acarreta uma compressão do direito à produção de prova que excede desmesuradamente as vantagens de celeridade processual e de boa ordenação dos termos processuais que pode servir.
É certo que o interessado não fica privado do acesso ao tribunal ou, de modo absoluto, da possibilidade de produção de prova ou de determinada espécie de prova. Mas vê coartada a possibilidade de apresentar prova na fase em que dela tenha podido dispor, ou em que o evoluir da lide torne essa apresentação necessária, sem uma finalidade que razoavelmente o justifique. Trata-se de uma conformação do direito à tutela jurisdicional no processo de determinação da “justa indemnização” que não satisfaz a prescrição constante do n.º 4 do artigo 20.º da Constituição - depois da revisão de 1997, mas que já estava contida na garantia de efetividade da tutela jurisdicional - de que “todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão […] mediante processo equitativo” e que, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira Constituição da República Portuguesa, Anotada, Vol. I, (4ª ed.), pág. 415, se tem procurado densificar através de outros princípios: “(1) direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibição de todas as discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias; (2) o direito de defesa e o direito ao contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada umas das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas; (3) direito a prazos razoáveis de ação ou de recurso, proibindo-se prazos de caducidade exíguos do direito de ação ou de recurso (cfr. AcTC nº 148/87); (4) direito à fundamentação das decisões; (5) direito à decisão em tempo razoável; (6) direito ao conhecimento dos dados processuais; (7) direito à prova, isto é, à apresentação de provas destinadas a demonstrar e provar os factos alegados em juízo; (8) direito a um processo orientado para a justiça material sem demasiadas peias formalísticas”.
8. Alcançada esta conclusão, torna-se desnecessário proceder à apreciação dos demais fundamentos de inconstitucionalidade invocados.
Por outro lado, o n.º 2 do artigo 706.º do Código de Processo Civil não integra a base legal da dimensão normativa aplicada. Trata-se de disposição que respeita à junção de documentos na fase de recurso da decisão jurisdicional. O que agora está em apreciação é questão respeitante à junção de documentos na fase anterior do processo.
III. Decisão
Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do n.º 4 do artigo 20.º da Constituição, a norma resultante do artigo 73º do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 845/76, de 11 de novembro, e dos artigos 523.º e 524.º do Código de Processo Civil, quando interpretados no sentido de que as partes não podem juntar documentos supervenientes, ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior à interposição ou resposta ao recurso da decisão arbitral;
b) Determinar a reforma da decisão recorrida, em conformidade com o decidido quanto à questão de constitucionalidade;
c) Sem custas.
Lisboa, 27/02/2013.- Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita – Maria Lúcia Amaral.