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Processo n.º 501/05
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. reclama, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), da seguinte decisão do relator:
“1. Revelam os autos o seguinte:
a) A., arguida num processo pendente no Tribunal Judicial da Comarca de Braga,
em que foi declarada contumaz, requereu que fosse declarado extinto, por
prescrição, o respectivo procedimento criminal.
b) Essa pretensão foi objecto de despacho, proferido em 14 de Fevereiro de 2004,
do seguinte teor:
“Encontrando-se suspensos os termos do processo – art.º 335.º, n.º 3, do CPP – a
pretensão da arguida será apreciada logo que se apresente à justiça fazendo
cessar a contumácia.”
c) Por requerimento de 14 de Janeiro de 2005, a arguida interpôs recurso deste
despacho para o Tribunal da Relação de Guimarães.
d) Em 24 de Janeiro de 2005, recaiu sobre esse requerimento o seguinte despacho:
“Não estando em causa qualquer acto urgente, aguardam os autos o termo de
suspensão imposto pelo art.º 335.º do CPP.”
e) Em 4 de Fevereiro de 2005, a requerente apresentou reclamação do despacho
“que não recebeu o recurso interposto da decisão que não apreciou o pedido de
declaração de extinção do procedimento criminal, por prescrição”, para o
Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães, nos termos do artigo 405.ºdo
Código de Processo Penal.
f) A reclamação foi indeferida, por despacho do Presidente do Tribunal da
Relação de Guimarães, do seguinte teor:
“Reclama A. porquanto, tendo no processo 113/97.4 TABRG –A, interposto recurso
de despacho nele proferido – pelo qual o Mmo. Juiz não conheceu do requerimento
pedindo a declaração de extinção do procedimento criminal – o Tribunal relegou
para momento posterior a sua apreciação.
Em síntese, os factos:
a) Nos autos, a requerente foi declarada contumaz;
b) A requerente não se apresentou nem foi detida.
Requereu no processo que fosse declarado extinto, por prescrição, o procedimento
criminal.
Esta pretensão foi indeferida com o fundamento em que, encontrando-se suspensos
os termos do processo, a questão seria apreciada logo que o arguido se
apresentasse à justiça, fazendo cessar a contumácia.
Os fundamentos invocados na reclamação, em síntese são:
a) O conhecimento da prescrição é absolutamente compatível com a declaração de
contumácia; a prescrição é de conhecimento oficioso e deve ser decidida de
imediato.
b) Interpretar o n.º 3 do art.º 336.º do CPP no sentido de que a pretensão da
arguida só pode ser apreciada quando se apresentar à justiça é inconstitucional
por violação do disposto no n.ºs. 1 e 4 do art.º 20.º, n.º 1 do art.º 26.º,
art.º 32.º e n.º 2 do art.º 202.º da CRP.
c) O recurso não só deve ser admitido como ainda com subida imediata, dada a sua
inutilidade, se for retido.
A Mmª juíza sustentou o despacho.
Quid juris?
O regime da contumácia surgiu face aos inconvenientes do tradicional processo de
ausentes já que era alvo de várias críticas, nomeadamente, de beneficiar os
arguidos mais afortunados ou mais expeditos na fuga à acção da justiça.
Dispõe o art.º 336.º n.º 1 do CPP sobre os efeitos da contumácia; com esta
ocorre a suspensão dos termos ulteriores do processo, que se mantém enquanto o
arguido não for detido ou não se apresentar; ou seja, uma vez declarada a
contumácia, suspendem‑se os termos do processo, apenas se quebrando esta
suspensão no caso de actos urgentes, a que se refere o art.º 320.º do citado
Código.
Neste contexto não se insere o acto requerido pela reclamante de conhecimento da
prescrição.
Aliás, afigura-se-nos que a reclamante em nada é prejudicada pelo conhecimento
dessa questão apenas no momento em que se apresente – se esse for o caso – à
justiça.
Na verdade, havendo lugar a prescrição do procedimento criminal, certamente o
Mmº. Juiz não deixaria, nem deixará, de tomar conhecimento da pretensão, a
título de questão prévia ou incidental, como dispõe o art.º 338.º do mesmo
Código.
Não poderá fazê-lo na situação configurada de suspensão de processo, até porque
descaracterizar-se-ia o instituto da contumácia, já que esta tem como intuito a
“desincentivação da ausência, privilegiando um conjunto articulado de medidas
drásticas de compressão da actividade patrimonial e negocial do contumaz”...;
por isso, só com a caducidade da declaração de contumácia (art.º 336.º do CPP) é
que pode ser jurisdicionalmente apreciada a pretensão da reclamante.
E pelos mesmos motivos – de suspensão dos termos ulteriores do processo – se
conclui pela legalidade do despacho que relega para esse mesmo momento –
caducidade da declaração – a apreciação do requerimento de recurso.
Não se vê como, aplicando-se a lei processual nos termos rigorosamente definidos
no n.º 3 do art.º 335.º do Cód. citado, saiam violados quaisquer princípios da
CRP e, nomeadamente, os artºs. desta referidos no requerimento/reclamação.
Por isso, temos por certo que as invocadas violações se não verificam:”
g) Este despacho foi objecto de aclaração, nos seguintes termos:
“Requerimento de aclaração.
A referência ao n.º 1 do art.º 336.º do CPP na linha 23 de fls. 37 v.º ficou a
dever-se a mero lapso de escrita; queria ter-se escrito “n.º 3 do art.º 335º do
CPP.
Por isso, neste sentido se rectifica a decisão, nesta parte.
Em tudo o mais se mantém.”
h) A reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional da decisão
referida em f), mediante requerimento do seguinte teor:
“(...)porque não se conforma com a, aliás douta, decisão que indeferiu a
reclamação apresentada pela ora Recorrente que constitui o objecto do processo
identificado em epígrafe.
Dela interpõe recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto na
al. b) do n.º 1, e n.º 2 do art.º 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro
(alterada pelas Leis 143/85, de 26 de Novembro, 85/89, de 7 de Setembro e
13-A/98 de 26 de Fevereiro), para apreciação da inconstitucionalidade material
da norma contida no n.º 3 do art.º 335.º do Código de Processo Penal de 1987, na
interpretação adoptada pela douta decisão recorrida, segundo a qual a declaração
de contumácia impede a decisão e apreciação sobre a prescrição do procedimento
criminal, por violação dos princípios do poder punitivo do Estado baseado em
critérios objectivos, protecção dos arguidos contra abusos processuais e defesa
dos interesses legalmente protegidos, consagrados no n.ºs 1 e 4 do art.º 20.º,
n.º 1 do art.º 26.º, art.º 32.º e n.º 2 do art.º 202.º da CRP.
Questão de inconstitucionalidade que a Recorrente suscitou no recurso não
admitido e na subsequente reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação de
Guimarães.”
i) O recurso interposto para o Tribunal Constitucional foi admitido por despacho
de 16 de Maio de 2005.
2. O despacho que admitiu o recurso não vincula o Tribunal Constitucional
(artigo 76.º, n.º 3, da LTC). E entende-se que o recurso não deve prosseguir,
pelo que passa a proferir-se decisão sumária, nos termos do n.º 1 do artigo
78.º-A da LTC.
Com efeito, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC cabe recurso
para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
A recorrente indica o âmbito do recurso como consistindo na apreciação da
inconstitucionalidade material da norma contida no n.º 3 do artigo 335.º do
Código de Processo Penal de 1987, na interpretação adoptada pela decisão
recorrida, segundo a qual a declaração de contumácia impede a decisão e
apreciação sobre a prescrição do procedimento criminal.
Sucede que a decisão recorrida não fez aplicação, como ratio decidendi, do
sentido normativo que a recorrente indica. Embora discorrendo sobre o alcance da
suspensão do processo, por efeito da contumácia, quanto ao momento de apreciação
da prescrição, o efeito que o despacho reclamado extrai do n.º 3 do artigo
335.ºdo Código de Processo Penal não respeita à oportunidade de apreciação da
prescrição no processo pendente contra arguido contumaz, mas ao momento de
apreciação do requerimento de recurso da decisão de não apreciar a prescrição. O
discurso sobre a oportunidade de apreciação da prescrição apenas serve para
“pelo mesmos motivos – de suspensão dos termos ulteriores do processo – se
conclu[ir] pela legalidade do despacho que relega para esse mesmo momento – a
caducidade da declaração – a apreciação do requerimento de recurso”.
Em conclusão, a consequência jurídica que, em termos decisórios, o despacho
recorrido extraiu do n.º3 do artigo 335.ºdo Código de Processo Penal foi a de
que a suspensão dos termos do processo decorrente da declaração de contumácia
impede a apreciação do requerimento de interposição do recurso sobre a decisão
que não aprecia a prescrição do procedimento criminal e não a de que impede a
apreciação da prescrição do procedimento criminal. Aliás, nem outra coisa
caberia decidir numa reclamação ao abrigo do artigo 405.º do Código de Processo
Penal. São normas diferentes, aplicadas à solução de questões diferentes,
colocando problemas diferentes no plano da constitucionalidade da solução.
Assim, não tendo a decisão impugnada feito aplicação da norma com o sentido que
a recorrente quer submeter a apreciação em fiscalização concreta de
constitucionalidade, o recurso não pode prosseguir.
3. Decisão
Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se não tomar
conhecimento do objecto do recurso e condenar a recorrente nas custas, fixando a
taxa de justiça em 7 (sete) unidades de conta.”
2. São os seguintes os fundamentos da reclamação:
“Na verdade, o Ex.mo Sr. Presidente da Relação de Guimarães proferiu a decisão
de considerar legal o despacho reclamado, ou seja, decidiu que o recurso
interposto pela Reclamante para o Tribunal da Relação de Guimarães não fosse
apreciado,
uma vez que (ou apenas porque), interpretou a norma contida no n.º 3, do art.º
335.º CPP no sentido de a contumácia, porque é causa de suspensão dos ulteriores
termos do processo, impede igualmente a decisão e apreciação sobre a prescrição
do procedimento criminal.
Ora, é esta interpretação que se pretende ver fiscalizada por este Tribunal
Constitucional e não qualquer outra.
O facto de o Presidente da Relação ter decidido no sentido de que não fosse
apreciado o recurso em causa, é um mero efeito ou consequência da interpretação
que fez da norma contida no art.º 335, n.º 3 do CPP, que, repete-se, é aquela
que se pretende ver fiscalizada por este Tribunal:
a contumácia, porque é causa de suspensão dos ulteriores termos do processo,
impede igualmente a decisão e apreciação sobre a prescrição do procedimento
criminal.
Aliás, esta mesma interpretação foi já efectuada pelo Tribunal de 1ª Instância,
que dela extraiu os efeitos conhecidos:
- a decisão de não analisar o requerimento em que se pugnava pela declaração de
extinção do procedimento criminal pelo decurso do prazo prescricional; e
- a decisão de não admitir o recurso interposto deste despacho.”
O Ministério Público responde que a reclamação deve ser julgada
improcedente porque a reclamação “em nada abala os fundamentos da decisão
sumária impugnada, no que toca à precisa identificação do sentido normativo
questionado pelo recorrente e efectivamente aplicado pela decisão recorrida”.
3. Começa por recordar-se que, como constitui jurisprudência
constante do Tribunal, só cabe recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.ºda LTC, de norma que tenha sido aplicada
pelo tribunal a quo como ratio decidendi da decisão recorrida e que incumbe ao
recorrente o ónus de identificar a norma ou o preciso sentido normativo cuja
conformidade com a Constituição pretende ver apreciada [cf. alínea b) do n.º 1
do artigo 70.º e n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC].
A recorrente insiste em que o sentido da norma contida no n.º3 do
artigo 335.ºdo Código de Processo Penal que quer ver fiscalizado pelo Tribunal é
o de que “a contumácia, porque é causa de suspensão dos ulteriores termos do
processo, impede igualmente a decisão e apreciação sobre a prescrição do
procedimento criminal.” Foi, efectivamente, esse o pressuposto de que partiu a
decisão sumária.
Ora, embora seja certo que o despacho do Presidente da Relação de
Guimarães discorre sobre se a apreciação da prescrição é um dos actos que deva
ou não ter lugar, face ao n.º 3 do artigo 335.º CPP, enquanto perdure a situação
de contumácia, fá-lo, como na decisão sumária se refere, para transpor as mesmas
razões para a retenção do recurso, ou melhor, para a decisão sobre a
admissibilidade do recurso da decisão que recaiu sobre aquela primeira questão.
Dito de outro modo, o sentido normativo da expressão “a declaração de contumácia
implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou
detenção do arguido” operante na decisão recorrida foi o de que nesses “termos
ulteriores” se compreendia o despacho de admissão de recurso da recusa de
apreciar a ocorrência da prescrição. Que assim é torna-se evidente se atentarmos
em que de outro modo o que o Presidente da Relação estaria a decidir seria o
mérito do recurso (: deve ou não apreciar-se imediatamente a prescrição quando
requerida, independentemente da apresentação ou detenção do contumaz) e não o da
reclamação (: deve ou não proferir-se imediatamente despacho a admitir o recurso
da decisão que considerou que a apreciação da prescrição só teria lugar quando
cessasse a contumácia). O decidido quanto a esta questão não é mero efeito ou
consequência jurídica da interpretação que se faz do n.º 3 do artigo 335.º do
Código de Processo Penal quanto à oportunidade de apreciação da prescrição.
Existe no despacho recorrido sustentação do entendimento que a recorrente
refere, mas apenas para daí extrair argumento de identidade de razão
(Independentemente do acerto desse raciocínio, seja na sua base de argumentação,
seja na sua transposição para a questão decidenda, que aqui não cumpre
apreciar). Porém, o decidido é fruto de um sentido normativo autónomo que,
servindo-nos dos termos da reclamante, poderia enunciar-se deste modo: “a
suspensão dos ulteriores termos do processo por virtude da contumácia impede a
apreciação do requerimento de interposição do recurso da decisão de recusa de
apreciar a prescrição do procedimento criminal”
Como não é este o sentido normativo que a recorrente pretende
submeter a apreciação do Tribunal Constitucional, o presente recurso não pode
prosseguir.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar a recorrente nas
custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 26 de Setembro de 2005
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício