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Processo n.º 677/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
(Conselheira Maria Fernanda Palma)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Por decisão do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santo Tirso os
arguidos A. e B. foram condenados, pela prática, em co-autoria, de um crime de
introdução fraudulenta no consumo, previsto e punido pelo artigo 96.º, n.º 1,
alínea a), do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 7 (sete) meses
de prisão cada um, e de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição
de géneros alimentícios, previsto e punido pelo artigo 24.º, n.º 1, alínea a),
do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, na pena de 5 (cinco) meses de prisão
e em 110 (cento e dez) dias de multa à razão diária de € 3 (três euros), cada
um. Em cúmulo jurídico cada um dos arguidos foi condenado na pena única de 8
(oito) meses de prisão e em 110 (cento e dez) dias de multa à razão diária de €
3 (três euros), perfazendo para cada um a multa de € 330 (trezentos e trinta
euros), com 73 (setenta e três) dias de prisão subsidiária. No que concerne ao
pedido de indemnização civil, os arguidos foram solidariamente condenados a
pagarem ao Estado a quantia de € 30.007,23 (trinta mil e sete euros e vinte e
três cêntimos), acrescida dos juros contados às sucessivas taxas legais desde 14
de Março de 2003, até integral pagamento. A pena única de 8 (oito) meses de
prisão foi declarada suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, sob
condição de os arguidos procederem ao pagamento ao Estado naquele montante no
prazo de 2 (dois) anos.
Inconformados com esta decisão, os arguidos recorreram para o Tribunal da
Relação do Porto, tendo, a concluir as alegações que então apresentaram e para o
que ora releva, alegado que:
«[…]
«13.ª
Por isso, o disposto nos art.ºs 96.º, n.º 1, a) e b), 14.º, n.º 1, e 9.º do
RGIT, objectivamente, prosseguem interesses que não são os da generalidade do
Povo Português, mas do Supercapital, quanto à lógica de afastar os pequenos
produtores e comerciantes, sendo certo que nem prossegue interesses estaduais,
porque é imoral que este se financie através do maior sacrifício daqueles que já
sofrem a dureza de uma sociedade injusta, e por isso de alienam no vício.
14.ª
Por outro lado não é legítimo que o Estado tolere penalmente a conduta viciosa
para a tributar, e não tolere penalmente a infracção fiscal que apenas é
praticada pelos pobres (os ricos não bebem do “grosso”, os ricos bebem do
“fino”).
15.ª
A tributação, e muito especialmente a tipificação penal, através das normas
referidas, contendem claramente com o disposto nos art.ºs 1.º, 2.º, 9.º, 13.º,
25.º, 27.º, n.º 1, 81.º, a), c), d) e e), da C.R.P., bem como os princípios
constitucionais da justiça, da proporcionalidade e da unidade da ordem
jurídica.»
[…]
18.ª
As penas também não podiam ser suspensas com a condição do pagamento do imposto
alegadamente dito em dívida. A suspensão da pena funda-se, essencialmente, em
critérios de ressocialização do infractor, quando a simples censura do facto e a
ameaça da prisão é suficiente para “forçar” o infractor a conformar-se com os
comandos legais. A suspensão condicionada ao cumprimento de injunções, só é de
aplicar quando aquelas censura e ameaça são insuficientes, ou quando, por razões
de equidade, e de possibilidade do infractor, este deva indemnizar a vítima. Se
isto é assim no direito penal de justiça, por maioria de razão deve ser no
direito penal secundário. Assim sendo, o disposto no art.º 14.º, n.º 1, do RGIT,
mais que norma jurídica, parece uma ordem, em clara violação das normas e
princípios constitucionais invocados na conclusão 15.ª, e ainda o princípio de
separação de poderes (art.º 111.º, n.º 1, da C.R.P.), e viola também o disposto
nos art.ºs 50.º e 51.º do C.P., pelo que, nesta última perspectiva, é uma norma
ilegal.»
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 2 de Junho de 2004, negou
provimento aos recursos, afirmando, nomeadamente:
«[…]
3.4. Da violação dos artigos 1.º, 2.º, 9.º, 13.º, 25.º, 27.º, n.º 1, 81.º,
alíneas a), c), d) e e), da CRP, bem como os princípios da justiça,
proporcionalidade e da unidade da ordem jurídica, atenta a finalidade de
política legislativa prosseguida pelo Estado no mencionado artigo 96.º, n.º 1,
alíneas a) e b) para justificar a tributação da detenção, fabrico e introdução
no mercado de bebidas alcoólicas.
Elencam os recorrentes diversos preceitos do texto constitucional, cujas
epígrafes respectivas consistem em República Portuguesa; Estado de direito
democrático; Tarefas fundamentais do Estado; Princípio da igualdade; Direito à
integridade pessoal; Direito à liberdade e à segurança; Incumbências
prioritárias do Estado para questionar o ajustamento da tributação especial das
bebidas alcoólicas com esses mesmos normativos.
O próprio texto constitucional contém norma expressa sobre o sistema fiscal,
sendo que visa ele, além do mais, urna repartição justa dos rendimentos e da
riqueza (artigo 103.º, n.º 1), cabendo ao legislador determinar a respectiva
incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes (seu n.º 2).
Este texto tem reprodução no artigo 8.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária.
Desta conjugação normativa resulta a vinculação do legislador ordinário aos
invocados princípios constitucionais que, concretamente, se não mostram
questionados pela instituição de um particular regime de tributação. Aliás, a
própria prossecução do princípio da igualdade impõe, por vezes, o princípio do
tratamento discriminatório de situações desiguais: o caso dos autos, em que o
legislador, ponderada a particular natureza dos bens em causa, os submeteu a
diferente regime fiscal sem que, só por tal facto, se mostrem violados os
reclamados princípios.
Donde que não colha toda a argumentação fundada em simples considerações
genéricas sobre os fins alegadamente prosseguidos pelo legislador ao introduzir
tal tributação.
[…]
3.7. Da indevida determinação de suspensão da execução das penas
condicionadamente ao pagamento do imposto alegadamente em dívida – O artigo
14.º, n.º 1, do RGIT viola os princípios constitucionais referidos, além do da
separação de poderes plasmado no artigo 111.º, n.º 1, da CRP, bem como os
artigos 50.º e 51.º, ambos do Código Penal (CP).
Dispõe o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT que “A suspensão da execução da pena de
prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao
limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e
acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o
juiz entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a
pena de multa”.
Prescreve este artigo algumas especialidades em relação ao regime geral que
resulta do Código Penal.
Assim, estabelece o artigo 50.º, n.º 1, do CP que “O tribunal suspende a
execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se,
atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta
anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples
censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as
finalidades da punição”.
Tem tal regime na sua base um juízo de prognose social favorável em relação ao
arguido, que, em caso afirmativo, levará o tribunal a ter que – decidir se a
simples censura do facto e a ameaça de prisão serão suficientes para satisfazer
as necessidades de prevenção geral do crime. Já o artigo 14.º em causa impõe
sempre como condição para a suspensão da execução da pena de prisão o pagamento
da prestação tributária e acréscimos legais, podendo ainda o juiz impor o
pagamento de quantia até ao limite máximo da pena de multa.
Institui esta lei especial um primado que cabe acatar e uma suspensão ope legis
não discriminativa e que, só por si se não mostra mais gravosa que o regime
geral em que o julgador também podia subordinar a suspensão ao cumprimento de
injunções, um delas podendo consistir exactamente no pagamento de uma
indemnização ou numa reparação ao lesado, no caso o Estado.
A conclusão, então, de que não infringe a suspensão condicionada qualquer
normativo constitucional, e se devem elas manter no caso dos autos.
[…]
3.9. Se a condenação civil dos recorrentes padece de justo fundamento.
A síntese argumentativa essencial dos recorrentes neste aspecto é a seguinte:
aquela sua condenação civil pressupunha a transacção efectiva, mas sem pagamento
de imposto. O Estado ao apropriar-se dos líquidos deve introduzi-los no mercado.
Esta circunstância determinará o retorno do imposto devido, salvo se o produto
não tiver as virtualidades de que se reclama, mas, também, nesta hipótese, não é
devido imposto. Valendo o sentido imposto no Acórdão recorrido, o Estado
apropria-se do valor do produto, do imposto da sua colocação no mercado, e do
valor do imposto da condenação. Não pode ser este o sentido do artigo 9.º do
RGJT que, assim interpretado, se mostra violado. Mas, se for, mostra-se, então,
inconstitucional perante os princípios já invocados, a cuja luz deve ser
interpretado.
A questão assim colocada traduz-se em apurar se a tributação de uma actividade
de introdução fraudulenta no consumo de bebidas alcoólicas, é legal e
constitucionalmente, pois que se estará a tributar urna actividade que está a
laborar de forma ilícita ou ilegítima, não tendo sido declarada nem os seus
proveitos.
Estabelece o artigo 9.º do RGIT que “o cumprimento da sanção aplicada não
exonera do pagamento da prestação tributária devida e acréscimos legais”.
Respigamos, de novo, as pertinentes considerações adiantadas pelo Ministério
Público na 1.ª instância:
“Este artigo tem como antecedentes os art.ºs 17.º do RJIFNA e 9.º do RJIFA e
trata-se de urna disposição que consagra explicitamente uma solução evidente,
pois sendo a responsabilidade por tributos distinta da responsabilidade criminal
ou contra-ordenacional, a extinção destas não poderia extinguir aquela” (Jorge
Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias
Anotado, 2001, pág. 95).
O mesmo estabelece o art.º 10.º da Lei Geral Tributária ao dizer que “a
tributação é valorativamente neutra, reportando-se unicamente às circunstâncias
do facto ou do acto. Não se levam em conta imperativos jurídicos ou éticos como
pressuposto ou medida da tributação. Esta assenta, pelo contrário, no simples
resultado económico dos negócios ou dos actos jurídicos, mesmos que estes sejam
ilícitos ou contra os bons costumes” (Diogo Leite Campos e Mónica Horta Neves
Leite de Campos, Direito Tributário, 2.ª Edição, pág. 183).
Idêntica tem sido a solução a nível do direito comparado, considerando, por
exemplo, em paralelo, a Lei Geral Tributária Alemã, que os comportamentos
ilícitos não devem ser beneficiados fiscalmente e como tal têm que ser
tributados.
Como no mesmo sentido tem sido a Jurisprudência do Tribunal da Comunidade
Europeia, assentando no PRINCÍPIO DA NEUTRALIDADE TRIBUTÁRIA – 6.ª Directiva
Comunitária em matéria de imposto sobre as transacções.
E também não colhe ao argumento dos recorrentes de que sempre a indemnização
civil consistente na prestação tributária em dívida não seria devida porque os
líquidos apreendidos não foram efectivamente introduzidos no mercado.
Olvidam, contudo, que são eles os sujeitos passivos do imposto.
Na verdade, quanto aos impostos especiais sobre o consumo, dispõe o artigo 3.º
do Decreto-Lei n.º 104/93, que “São sujeitos passivos do imposto, os
depositários autorizados, os operadores registados, os operadores não
registados, os representantes fiscais e os arrematantes em hasta pública (...)
No caso de produção, detenção ou introdução no consumo irregulares, são sujeitos
passivos do imposto, as pessoas que produzam ou detenham as bebidas alcoólicas”
(neste sentido, Acórdão do Tribunal Central Administrativo, de 17/06/2003,
acessível na base de dados da DGSI, em www.dgsi.pt).
A produção ou detenção gera, desde logo, a dívida de imposto, só assim não
acontecendo com aquelas empresas que beneficiam de um estatuto de entreposto
fiscal que lhes permite suspender o pagamento dos impostos até à sua introdução
efectiva no consumo, estatuto de que os arguidos não beneficiavam urna vez que
nem sequer tinham qualquer autorização da administração tributária, laborando
completamente à margem da lei.
A conclusão final da improcedência igualmente desta conclusão dos recorrentes.»
Interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, este não foi admitido por
despacho do Desembargador Relator de fl. 503 dos autos, confirmado por decisão
do Vice-Presidente daquele Supremo Tribunal de fl. 508 dos autos, que indeferiu
a reclamação apresentada pelos recorrentes.
2.Inconformados com o decidido pela Relação do Porto, B. e A. interpuseram o
presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), “porquanto se consideram as normas constantes dos art.s
96.º 1 a) e b), 14.º 1 e 9.º do RGIT inconstitucionais por violarem o disposto
nos art.s 1.º, 2.º, 9.º, 13.º, 25.º, 27.º, 81.º a), c), d) e e) da CRP”, recurso
admitido por despacho de fl. 512 dos autos.
Notificados para alegar, os recorrentes concluíram do seguinte modo as suas
alegações de recurso:
«1.ª
Os artºs. 96°.1 e 97°. do RGIT tipificam o crime de introdução fraudulenta no
consumo e introdução fraudulenta qualificada no consumo, enquanto o artigo
109°., do mesmo diploma, consagra ordenação de introdução irregular no consumo.
A matriz de ambas as formas consta do nº. 1 do artº. 96°., enquanto o artº. 96°.
determina os elementos qualificadores, que, assim, o agravam.
2.ª
O artigo 96°.1 viola o disposto no artº. 29°.1 da CRP, que consagra o princípio
da legalidade ou estrita taxatividade dos comportamentos penalmente
sancionáveis, porque utiliza conceitos vagos, ao ponto de, em alguns casos, como
na parte final desse n°.1, pressupor elementos indeterminados e indetermináveis.
3.ª
O artº. 109°1. do RGIT qualifica as mesmas matérias dos artºs. 96°.1 e 97°. como
matéria contra‑ordenacional, de modo que, para que a matéria contraordenacional
passe para matéria criminal, basta que o valor aumente um cêntimo.
Assim, nas hipóteses em que o tipo pressupõe prestações tributárias, se o valor
da prestação tributária for de 7 500€, ou menos, o agente pratica uma
contra-ordenação; se o valor da prestação for de 7500.01€, pratica um crime.
Nas hipóteses em que está em causa o valor dos produtos, se este valor for de
25000€ ou menos, o agente pratica uma contra-ordenacão; se o valor for de
25000.01€ o agente pratica um crime.
4.ª
Pela contradição axiológica e lógica destas normas, em que a eticidade do
comportamento das pessoas se mede ao cêntimo da unidade da moeda em curso, esta
norma atenta contra o princípio supremo da dignidade da pessoa humana, e atenta
também contra os princípios de direito e de justiça, em forma absolutamente
desproporcionada. Por isso viola o disposto nos artºs. 1º. 2°. e 18°.2 da CRP.
5.ª
O disposto no artº. 14°1. concatenado com o disposto no artº. 9°., ambos do
RGIT, que permite a dupla condenação no pagamento do valor da prestação
tributária e acréscimos legais, e ainda, em conjugação com outras normas penais,
permite a condenação da perda em favor do Estado das mercadorias e outros bens
utilizados (máquinas, utensílios, viaturas), bem como a suspensão da pena de
prisão com a condição de ser pago (e perdido) tudo aquilo, com total desprezo
dos requisitos da lei penal, consagrados nos artºs. 50°. e 51º. e 40°.1 e 2 do
CP, é ilegal, porque viola estas normas, e inconstitucional porque viola o
disposto nos artºs. 1°., 2°., 29º.4, 13°.1 e 18°.2 da CRP.
6.ª
Aquela norma (artº. 14°1), é vassalagem do legislador à ideia que deifica o
Estado, relegando para segundo plano a dignidade suprema da pessoa humana, que
assim objectiva, dando mais força ao direito penal secundário em relação ao
direito penal primário ou de justiça, por intuitos estritamente economicistas,
assente na falsa crença, que assim se transforma em 'intentio' totalitária, de
que ao Estado tudo é permitido, porque o Estado tudo merece (provavelmente a bem
... do Povo).
Como a iniquidade é um desvalor em si, não é a natureza do ente que a pratica
que lhe transmuta o ser.
Termos em que devem ser declaradas inconstitucionais as normas dos artºs. 96°.,
97°. e 14°.1 do RGIT, com todas as consequências jurídicas daí decorrentes nas
decisões proferidas neste processo.»
O Ministério Público contra‑alegou, concluindo o seguinte:
«1.° – O tipo legal de crime definido na norma do artigo 96.°, n.º 1, alínea a),
do RGIT tem um grau suficiente de clareza e determinabilidade, susceptível de
orientar a actividade humana, de modo a prevenir a violação de bens jurídicos
penalmente tutelados, não ocorrendo qualquer violação do princípio da
tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade.
2.° – Não é inconstitucional a norma do artigo 14.°, n.º 1, do RGIT ao
condicionar a suspensão da execução da pena ao pagamento da prestação
tributária e legais acréscimos, em si mesma considerada, quer em conjugação com
a norma do artigo 9.° do mesmo diploma, quer perante a possibilidade legal de
ser determinada cumulativamente a perda de bens e de instrumentos do crime.
3.° – Na ausência de violação de normas e princípios constitucionais, deverá
improceder o presente recurso.»
Notificados para se pronunciarem, querendo, sobre a questão prévia suscitada
pelo Ministério Público, os recorrentes vieram dizer:
«1.
Sem que isto signifique adesão aos argumentos do Ilustre Magistrado do
Ministério Público, sempre se dirá que o Tribunal Constitucional não está
confinado à apreciação da inconstitucionalidade, ou até da ilegalidade, das
normas, nos termos alegados pelas partes.
2.
E mal seria, se fosse de outro modo, visto que os valores constitucionais, que
transcendem os valores consagrados no direito ordinário, ficassem na dependência
de meras questões processuais.»
Inscrito o processo em tabela, e após mudança de relator, cumpre apreciar e
decidir.
II. Fundamentos
A) Delimitação do objecto do recurso
3.Como salienta o Ministério Público, e não é infirmado pela resposta dos
recorrentes, o Tribunal Constitucional não pode tomar conhecimento da
inconstitucionalidade da norma do artigo 97.º do Regime Geral das Infracções
Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, mencionada nas
alegações do recurso de constitucionalidade.
Na verdade, essa norma não foi indicada pelos recorrentes no requerimento de
interposição de recurso. E é sabido que o objecto do recurso é delimitado por
aquele requerimento, conforme resulta do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo
75.º-A da LTC (cf., entre muitos, os Acórdãos deste Tribunal n.os 641/99, 205/02
e 215/02, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Estamos, pois, perante uma ampliação, não permitida por lei, do objecto do
recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade, pelo que não se
conhecerá da questão a que se refere.
O presente recurso de constitucionalidade tem, assim, por objecto, conforme os
recorrentes indicaram no respectivo requerimento de interposição, e após a
limitação na parte conclusiva das alegações, a apreciação da conformidade
constitucional de quatro normas distintas:
1) a norma do artigo 96.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, na parte em
que remete para “as formalidades legalmente exigidas”;
2) a norma do artigo 96.º, n.º 1, do RGIT, na parte em que estabelece
como condição da punição a circunstância de “o valor da prestação tributária em
falta [ser] superior a (euro) 7500”, originando os casos em que o valor é igual
ou inferior responsabilidade contraordenacional;
3) a norma do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, na parte em que condiciona a
suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido do imposto em
dívida e respectivos acréscimos legais;
4) a norma do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, conjugada com a do artigo 9.º
do mesmo diploma, na medida em que possibilita o cumprimento da sanção aplicada,
por um lado, e a condenação no pagamento do imposto em dívida e respectivos
acréscimos legais, por outro.
B) Questões de constitucionalidade
4.Dispõe aquele artigo 96.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT:
«Artigo 96.º
Introdução fraudulenta no consumo
Quem, com intenção de se subtrair ao pagamento dos impostos especiais sobre o
álcool e as bebidas alcoólicas, produtos petrolíferos ou tabaco:
a) Introduzir no consumo produtos tributáveis sem o cumprimento das formalidades
legalmente exigidas;
b) Produzir, receber, armazenar, expedir, transportar, detiver ou consumir
produtos tributáveis, em regime suspensivo, sem o cumprimento das formalidades
legalmente exigidas;
[…]
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa até 360 dias, se
o valor da prestação tributária em falta for superior a € 7500 ou, não havendo
lugar a prestação tributária, se os produtos objecto da infracção forem de valor
líquido de imposto superior a € 25000.»
Esta norma, na parte em que, nas alíneas a) e b), remete para “as formalidades
legalmente exigidas”, não viola o princípio da legalidade tributária, consagrado
no artigo 103.º da Constituição, na dimensão que exige uma lei certa, isto é,
suficientemente determinada. O preceito apresenta um grau de determinabilidade
suficiente para respeitar as exigências do princípio da legalidade, pois refere
as obrigações exigidas por lei (obrigações fiscais, de pagamento de impostos
especiais sobre o consumo) para uma actividade específica devidamente
identificada (fornecimento e comércio de bebidas alcoólicas, de produtos
petrolíferos ou de tabaco). Logo pela norma incriminatória, e independentemente
do reenvio normativo – que se cinge às “formalidades legalmente exigidas” –, o
comportamento sancionado “é objectivamente determinável, tornando-se claro o
juízo de censura penal para os cidadãos que, deste modo, podem orientar a sua
conduta de acordo com esse juízo normativo (cfr. Direito Penal – Questões
Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime – Apontamentos e materiais de estudo da
cadeira de Direito Penal segundo as lições dos Profs. Figueiredo Dias e Costa
Andrade, pág. 172)”, como se afirmou, a propósito desta vertente do princípio da
legalidade, no acórdão n.º 545/2000 (publicado no Diário da República, II Série,
de 6 de Fevereiro de 2001, e disponível disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt), em que estava igualmente em causa um reenvio
normativo na norma incriminatória.
Como se ponderou no acórdão n.º 93/2001 (publicado no Diário da República, II
Série, de 5 de Junho de 2001, e igualmente disponível em
www.tribunalconstitucional.pt):
«[...] se a norma deve ser formulada de modo ao seu conteúdo se poder impor
autónoma e suficientemente, permitindo um controlo objectivo na sua aplicação
individualizada e concreta (cfr., António Castanheira Neves, “O Princípio de
Legalidade Criminal. O seu problema jurídico e o seu critério dogmático”, in
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, Coimbra, 1984, pág.
334), nem sempre é possível alcançar uma total determinação – nem será,
porventura, desejável –, bastando que o facto punível seja definido com
suficiente certeza: a própria natureza da linguagem impede uma determinação
integral, sendo certo que pode representar-se negativamente uma enumeração
demasiado casuística, a multiplicar a eventualidade das lacunas e a dificultar a
determinação do que é essencial em cada caso.
A este respeito, escreveu um autor nunca ser o caso concreto um puro facto, “mas
uma unidade de sentidos socialmente relevante, mais ou menos complexa e
normalmente integrados por elementos culturais difíceis de definir”, de modo que
a descrição de previsão legal contém muitas vezes expressões que não se deixam
reduzir a conceitos precisos (cfr. José de Sousa e Brito, “A lei penal na
Constituição”, in Estudos sobre a Constituição, vol. 2.º, Lisboa, 1978, págs.
243/244).
A necessidade de, na definição de crimes, se usar uma linguagem precisa e
delimitadora, com repúdio de preceitos abertos ou vagos, tem vindo a ser
jurisprudencialmente reconhecida, nomeadamente na matriz
jurídico-constitucional.
Desde logo, a Comissão Constitucional reconheceu que o princípio do nullum
crimen sine lege seria inoperante se fosse dada ao legislador ordinário a
possibilidade de não determinar com um mínimo de rigor, através do tipo legal, o
facto voluntário a considerar punível, sem prejuízo de admitir a inviabilidade
de uma total determinação e a eventual contraprocedência de um demasiado
casuismo (assim, o Parecer nº 19/78, publicado in – Pareceres da Comissão
Constitucional, 6.º volume, Lisboa, 1979, pág. 89).
Em linha consonante, o parecer n.º 32/80 (in Pareceres citados, 14º volume,
1983, pág. 60), após se interrogar sobre o grau admissível de indeterminação ou
flexibilidade normativa para os efeitos em causa, reconhece que uma relativa
indeterminação dos tipos legais de crime pode mostrar-se justificada, sem que
isso signifique violação dos princípios da legalidade e da tipicidade.
De igual modo vem ponderando o Tribunal Constitucional, como são exemplo os
acórdãos n.ºs 147/99, 168/99 e 179/99, inédito o segundo, publicados os demais,
no Diário da República, II Série, de 5 e 9 de Julho de 1999, respectivamente.
Retira-se dos lugares jurisprudenciais citados que, não sendo possível a
determinação absoluta – o que a Doutrina igualmente corrobora – é
constitucionalmente compatível um certo grau de indeterminação.
No citado acórdão n.º 168/99 escreveu-se, a certo passo:
“Averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto
expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da
conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para
que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas,
prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se
revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objecto de
punição, torna-se constitucionalmente ilegítima.”
Reconhece-se a impossibilidade de uma pré-determinação integral, dada a dimensão
pragmática da linguagem jurídica, a intenção normativa das prescrições
jurídicas, a índole problemático-concreta do decisório juízo jurisdicional (A.
Castanheira Neves, loc. cit., pág. 377), para, no entanto, se concluir por se
pedir à norma penal, em síntese, “que obedeça a um grau de determinação
suficiente para não pôr em causa os fundamentos do princípio da legalidade”.
Assim, pode a modelação do tipo não dispensar o recurso a técnicas
exemplificativas que nem por isso, necessariamente, se pode considerar afrontada
a exigência constitucional da lege certa que o princípio da tipicidade implica.
Decerto, a valoração jurídico-criminal dos comportamentos há-de ser formulada de
maneira tanto quanto possível precisa, de modo a não restarem dúvidas quanto aos
valores protegidos e à clara definição dos elementos da infracção, como se
ponderou, por exemplo, nos citados acórdãos n.ºs 179/99 e 383/00 ainda inédito.
Ponto é que haja um “completamento normativo” (Maria Fernanda Palma, Direito
Penal – Parte Especial – Crimes contra as Pessoas, sumários policopiados,
Lisboa, 1983, pág. 49), de modo a que o critério decisivo para aferir do
respeito pelo princípio da legalidade [...] residirá sempre em saber se, apesar
da indeterminação inevitável resultante da utilização desses elementos
(elementos normativos, conceitos indeterminados, cláusulas e fórmulas gerais],
do conjunto da regulamentação típica deriva ou não uma área e um fim de
protecção claramente determinados”, nas palavras de Jorge Figueiredo Dias
(Direito-Penal – Questões Fundamentais – A doutrina geral do crime, apontamentos
policopiados, 1996, pág. 173).»
As considerações transcritas são aplicáveis ao presente caso. Com efeito, nem
sempre é possível uma determinação do tipo de tal modo acabada que se possa
libertar de conceitos indeterminados, ou de remissões para outras exigências
normativas, sendo certo que uma rigorosa enumeração casuística pode
apresentar-se insuficiente, dada a multiplicação de espaços lacunares que
inevitavelmente comportaria – acórdão n.º 338/2003, publicado no Diário da
República, II Série, de 22 de Outubro de 2003, e disponível também em
www.tribunalconstitucional.pt).
5. Quanto ao artigo 96.º, n.º 1, do RGIT, na parte em que estabelece como
condição da punição a circunstância de “o valor da prestação tributária em falta
[ser] superior a (euro) 7500”, originando os casos em que o valor é igual ou
inferior responsabilidade contraordenacional, entende-se que ele não viola o
princípio da proporcionalidade. Antes tal limite de valor para a incriminação
decorre do próprio carácter fragmentário do direito penal.
Com efeito, o facto é ilícito independentemente do valor. No entanto, em face do
princípio da necessidade a que está sujeita a tutela penal, isto é, do mínimo de
intervenção e da natureza fragmentária do direito penal, é consagrado um limite
de natureza económica aquém do qual o legislador considera suficiente, em função
da relevância do facto aferida pelo valor em causa, uma tutela
contraordenacional. É, pois, ainda o próprio princípio da proporcionalidade que
fundamenta a solução impugnada.
O Tribunal Constitucional tem reiteradamente reconhecido que a Constituição
acolhe, designadamente no seu artigo 18.º, n.º 2, os princípios da necessidade e
da proporcionalidade das penas, salientando, também, no entanto, que não cabe ao
Tribunal substituir-se ao legislador na determinação das opções políticas sobre
a necessidade ou a conveniência na criminalização de certos comportamentos.
Tendo em conta os interesses jurídico-constitucionais que a norma visa proteger
– visando o sistema fiscal a satisfação das necessidades financeiras do Estado e
outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza
(artigo 103.º da Constituição) –, não é de considerar manifestamente arbitrário
ou desproporcionado sancionar a subtracção ao pagamento de impostos especiais
sobre o consumo como crime ou como contra-ordenação consoante o valor da
prestação tributária em falta.
Na perspectiva do grau de desvalor relevante para a incriminação, é sustentável
que o legislador entenda que há um acréscimo de desvalor na medida em que o
montante do imposto em causa é mais significativo. É, deste modo, esse acréscimo
de desvalor que torna justificável o ponto de vista legal de uma incriminação a
partir de certo montante. Seriam, naturalmente, possíveis, escolhas de outros
valores monetários, diversos do adoptado. Todavia, a Constituição não impõe uma
única solução jurídica nesta matéria, e, como se disse, não cabe ao Tribunal
Constitucional substituir-se ao legislador na sua definição.
6. Quanto à terceira norma impugnada, o Tribunal Constitucional teve já, por
diversas vezes, oportunidade de se pronunciar sobre ela, concluindo pela
inexistência de inconstitucionalidade no artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, na parte
em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo
arguido do imposto em dívida e respectivos acréscimos legais. Fê-lo,
designadamente, nos acórdãos n.ºs 256/03, 335/03 e 500/05 (todos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt).
No primeiro dos arestos citados, para cuja fundamentação, em boa parte, remetem
os demais, ponderou o Tribunal:
«10.4. Comparando o artigo 11.º, n.º 7, do RJIFNA com o (posterior) artigo 14.º
do RGIT, verifica-se que ambos condicionam a suspensão da execução da pena de
prisão ao pagamento das quantias em dívida.
Não sendo pagas tais quantias, o primeiro preceito remetia (em parte) para o
regime do Código Penal relativo ao não cumprimento culposo das condições da
suspensão; já o segundo preceito – que englobou tal regime do Código Penal – é
mais dúbio, porque não faz referência à necessidade de culpa do condenado.
De qualquer modo, deve entender-se que a já referida aplicação subsidiária do
Código Penal, prevista no artigo 3.º, alínea a), do RGIT (cfr. os artigos 55.º e
56.º do referido Código), bem como a circunstância de só o incumprimento culposo
conduzir a um prognóstico desfavorável relativamente ao comportamento do
delinquente implicam a conclusão de que o artigo 14.º, n.º 2, do RGIT, quando se
refere à falta de pagamento das quantias, tem em vista a falta de pagamento
culposa (refira-se, a propósito, na sequência de Jorge de Figueiredo Dias,
Direito Penal Português/Parte Geral, II – As Consequências Jurídicas do Crime,
Aequitas, 1993, pp. 342-343, que pressuposto material de aplicação da suspensão
da execução da pena de prisão é a existência de um prognóstico favorável a esse
respeito).
[...]
10.7. A questão que ora nos ocupa tem algumas afinidades com uma outra que já
foi discutida no Tribunal Constitucional.
Assim, no acórdão n.º 440/87, de 4 de Novembro (publicado em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 10.º volume, 1987, p. 521), o Tribunal Constitucional
não julgou inconstitucional a norma do artigo 49.º, n.º 1, alínea a), do Código
Penal de 1982 (versão originária), na parte em que ela permite que a suspensão
da execução da pena seja subordinada à obrigação de o réu “pagar dentro de certo
prazo a indemnização devida ao lesado”. Nesse acórdão, depois de se ter
salientado que se deve considerar como princípio consagrado na Constituição a
proibição da chamada “prisão por dívidas”, entendeu-se, para o que aqui releva,
o seguinte:
“(...) nos termos do artigo 50.º, alínea d), do actual Código Penal, o tribunal
pode revogar a suspensão da pena, «se durante o período da suspensão o condenado
deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres impostos na sentença», v.g.,
o de «pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado» [artigo 49.º,
n.º 1, alínea a), primeira parte]. Nunca, porém, se poderá falar numa prisão em
resultado do não pagamento de uma dívida: – a causa primeira da prisão é a
prática de um «facto punível» (artigo 48.º do Código). Como se escreveu no
acórdão recorrido, «o que é vedado é a privação da liberdade pela única razão do
não cumprimento de uma obrigação contratual, o que é coisa diferente».
Aliás, a revogação da suspensão da pena é apenas uma das faculdades concedidas
ao tribunal pelo citado artigo 50.º para o caso de, durante o período da
suspensão, o condenado deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres
impostos na sentença: – na verdade, «conforme os casos», pode o tribunal, em vez
de revogar a suspensão, «fazer-lhe [ao réu] uma solene advertência [alínea a)],
exigir-lhe garantias do cumprimento dos deveres impostos» [alínea b)] ou
«prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas
não por menos de um ano» [alínea c)].”
Por outro lado, no acórdão n.º 596/99, de 2 de Novembro (publicado no Diário da
República, II Série, n.º 44, de 22 de Fevereiro de 2000, p. 3600), o Tribunal
Constitucional não considerou inconstitucional, designadamente por violação do
artigo 27.º, n.º 1, da Constituição, a norma constante do artigo 51.º, n.º 1,
alínea a), do Código Penal, na parte em que permite ao juiz condicionar a
suspensão da execução da pena de prisão à efectiva reparação dos danos causados
ao ofendido. Foram os seguintes os fundamentos dessa decisão:
“(...) 8. A alegada inconstitucionalidade do artigo 51.º, n.º 1, alínea a) do
Código Penal, na redacção do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março.
Dispõe o artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal que «a suspensão da
execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres
impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente pagar
dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a
indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução
idónea».
Trata-se mais uma vez, no entender do recorrente, da previsão de uma situação de
«prisão por dívidas», proibida pela Constituição.
Desde logo deve notar-se que tem inteira razão o Ministério Público quando
refere que, a proceder, a argumentação do recorrente acabaria por redundar em
seu próprio prejuízo, «na medida em que a considerar-se inconstitucional a norma
ora objecto de recurso, estaria afastada a possibilidade de suspensão da
execução da pena – que só se justifica pela ‘condição’ estabelecida naquele
preceito – restando-lhe o inexorável cumprimento da pena de prisão que a decisão
recorrida, em primeira linha, lhe impôs...».
É, no entanto, manifestamente improcedente a alegação de que a norma que se
extrai do artigo 51.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, traduz uma violação do
princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de
não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e
à segurança (artigo 27.º, n.º 1 da Constituição).
Na realidade, e mais uma vez, não se trata aqui da impossibilidade de
cumprimento como única razão da privação da liberdade, mas antes da consideração
de que, em certos casos, a suspensão da execução da pena de prisão só permite
realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição se a ela –
suspensão da execução – se associar a reparação dos danos provocados ao lesado,
traduzida no pagamento (ou prestação de garantia de pagamento) da indemnização
devida (...).”
Apesar da afinidade com a questão de que ora cumpre apreciar, nos arestos
citados não estava em causa o problema da conformidade constitucional (à luz dos
princípios da adequação e da proporcionalidade) da imposição de uma obrigação
que, no próprio momento em que é imposta, pode ser de cumprimento impossível
pelo condenado, mas um outro (que Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 353,
aliás, considerou absolutamente infundado), que era o de “saber se o
condicionamento da suspensão pelo pagamento da indemnização não configuraria,
quando aquele pagamento não viesse a ser feito, uma (inconstitucional) prisão
por dívidas”.
De qualquer modo, dos arestos citados extrai-se uma ideia importante para a
resolução da presente questão: é ela a de que não faz sentido analisá-la à luz
da proibição da prisão por dívidas. Na verdade, mesmo que se considere – e é
isso que importa determinar – desproporcionada a imposição da totalidade da
quantia em dívida como condição de suspensão da execução da pena, o certo é que
o motivo primário do cumprimento da pena de prisão não radica na falta de
pagamento de tal quantia, mas na prática de um facto punível.
10.8. A questão em análise tem também algumas afinidades com a questão da
conformidade constitucional do estabelecimento dos limites da pena de multa em
função do valor da prestação em falta, analisada pelo Tribunal Constitucional a
propósito dos artigos 24.º, n.º 1, e 23.º, n.º 4, do RJIFNA (cfr., por exemplo,
os acórdãos n.ºs 548/01, de 7 de Dezembro, e 432/02, de 22 de Outubro,
respectivamente publicados no Diário da República, II Série, n.º 161, de 15 de
Julho de 2002, p. 12639, e n.º 302, de 31 de Dezembro de 2002, p. 21183).
Neste último aresto, disse-se nomeadamente o seguinte:
“(...) Por outro lado – e sendo certo que o legislador goza de ampla margem de
liberdade na fixação dos limites mínimo e máximo das molduras penais –, não se
afigura que o critério da vantagem patrimonial pretendida pelo agente, adoptado
na norma em apreço, se revele ofensivo dos princípios da necessidade,
proporcionalidade e adequação das penas. Contrariamente ao que sustenta o
recorrente, a adopção de um tal critério não significa que a pena aplicável ao
crime de fraude fiscal prossiga o fim da retaliação ou da expiação. É que a
conduta que lhe subjaz é tanto mais grave e socialmente mais lesiva quanto mais
elevado for o montante envolvido: como tal, é ainda a protecção de um bem
jurídico o que se visa e não a mera censura do agente. (...).”
Desta passagem retira-se uma importante consideração para o problema que nos
ocupa.
É ela a de que, podendo a realização dos fins do Estado – dependente do
cumprimento do dever de pagar impostos – justificar a adopção do critério da
vantagem patrimonial no estabelecimento dos limites da pena de multa, não há
qualquer motivo para censurar, como desproporcionada, a obrigação de pagamento
da quantia em dívida como condição da suspensão da execução da pena. As razões
que, relativamente à generalidade dos crimes, subjazem ao regime constante do
artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal [...] não têm necessariamente de assumir
preponderância nos crimes tributários: no caso destes crimes, a eficácia do
sistema fiscal pode perfeitamente justificar regime diverso, que exclua a
relevância das condições pessoais do condenado no momento da imposição da
obrigação de pagamento e atenda unicamente ao montante da quantia em dívida.
[...]
10.9. As normas em apreço não se afiguram, portanto, desproporcionadas, quando
apenas encaradas na perspectiva da automática correspondência entre o montante
da quantia em dívida e o montante a pagar como condição de suspensão da execução
da pena, atendendo à justificável primazia que, no caso dos crimes fiscais,
assume o interesse em arrecadar impostos.
Cabe, todavia, questionar se não existirá desproporção quando, no momento da
imposição da obrigação, o julgador se apercebe de que o condenado muito
provavelmente não irá pagar o montante em dívida, por impossibilidade de o
fazer.
Esta impossibilidade, que não chegou a ser declarada pelo tribunal recorrido –
pois que este analisou a questão em abstracto, sem averiguar se o ora recorrente
efectivamente estava impossibilitado de cumprir [...] –, não altera, todavia, a
conclusão a que se chegou.
Em primeiro lugar, porque perante tal impossibilidade, a lei não exclui a
possibilidade de suspensão da execução da pena.
Dir-se-á que tal exclusão se encontra implícita na lei, atendendo a que não
seria razoável que a lei permitisse ao juiz condicionar a suspensão da execução
da pena de prisão ao cumprimento de um dever que ele próprio sabe ser de
cumprimento impossível.
Todavia, tal objecção não procede, pois que traz implícita a ideia de que o juiz
necessariamente elabora um prognóstico quanto à possibilidade de cumprimento da
obrigação, no momento do decretamento da suspensão da execução da pena. Ora,
nada permite supor a existência de um tal prognóstico: sucede apenas que a lei –
bem ou mal, mas este aspecto é, para a questão de constitucionalidade que nos
ocupa, irrelevante –, verificadas as condições gerais de suspensão da execução
da pena (nas quais não se inclui a possibilidade de cumprimento da obrigação de
pagamento da quantia em dívida), permite o decretamento de tal suspensão. O
juízo do julgador quanto à possibilidade de pagar é, para tal efeito,
indiferente.
Em segundo lugar, porque mesmo parecendo impossível o cumprimento no momento da
imposição da obrigação que condiciona a suspensão da execução da pena, pode
suceder que, mais tarde, se altere a fortuna do condenado e, como tal, seja
possível ao Estado arrecadar a totalidade da quantia em dívida.
A imposição de uma obrigação de cumprimento muito difícil ou de aparência
impossível teria assim esta vantagem: a de dispensar a modificação do dever
(cfr. artigo 51.º, n.º 3, do Código Penal) no caso de alteração (para melhor) da
situação económica do condenado. E, neste caso, não se vislumbra qualquer razão
para o seu tratamento de favor, nem à luz do princípio da culpa, nem à luz dos
princípios da proporcionalidade e da adequação.
Em terceiro lugar, e decisivamente, o não cumprimento não culposo da obrigação
não determina a revogação da suspensão da execução da pena. Como claramente
decorre do regime do Código Penal para o qual remetia o artigo 11.º, n.º 7, do
RJIFNA, bem como do n.º 2 do artigo 14.º do RGIT, a revogação é sempre uma
possibilidade; além disso, a revogação não dispensa a culpa do condenado (supra,
10.4.).
Não colidem, assim, com os princípios constitucionais da culpa, adequação e
proporcionalidade, as normas contidas no artigo 11.º, n.º 7, do RJIFNA, e no
artigo 14.º do RGIT. [...]».
Esta conclusão, e a fundamentação que a sustenta, além de aplicáveis ao caso que
ora nos ocupa, merecem concordância, pelo que, reiterando-a, conclui-se, uma vez
mais, pela inexistência de inconstitucionalidade do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT,
no segmento em causa.
7. Os recorrentes sustentam, por último, que da conjugação da norma do n.º 1 do
artigo 14.º do RGIT com a do artigo 9.º do mesmo diploma, que dispõe que “o
cumprimento da sanção aplicada não exonera do pagamento da prestação tributária
devida e legais acréscimos”, resulta “a dupla condenação no pagamento do valor
da prestação tributária e acréscimos legais”, interpretação que, segundo crêem,
é inconstitucional, por violação dos artigos 1.°, 2.°, 29.º, n.º 4, 13.°, n.º 1
e 18.°, n.º 2 da Constituição.
A questão de constitucionalidade assim delineada parece referir ao próprio
princípio da justiça como padrão de constitucionalidade. A este respeito,
disse-se no acórdão n.º 363/2001 (publicado no Diário da República, II Série, de
13 de Outubro de 2001, e disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
«[…]
O Tribunal Constitucional tem reconhecido, em alguns casos, a justiça como
parâmetro de constitucionalidade (cf., entre outros, o Acórdão n.º 368/97 -
D.R., II Série, de 12 de Julho de 1997 -, onde o Tribunal Constitucional
considerou inconstitucional a norma que previa um horário de trabalho para as
guardas de passagem de nível sem limite).
O Tribunal Constitucional chegou mesmo a afirmar que a justiça era parâmetro de
constitucionalidade, quando considerou que o direito à indemnização dos
trabalhadores no despedimento colectivo derivava de um princípio de justiça (cf.
Acórdão n.º 162/95 - D.R., I Série‑A, de 8 de Maio de 1995).
O princípio da justiça, como parâmetro aferidor da conformidade constitucional
das normas jurídicas, pressupõe, porém, que esteja em causa uma solução
normativa absolutamente inaceitável (como sempre aconteceu nos casos apreciados
nos arestos citados), que afecte uma dada dimensão do núcleo fundamental dos
interesses essenciais da pessoa humana e que colida com os valores estruturantes
do ordenamento jurídico (…).»
A questão de constitucionalidade ora em apreciação, tal como os recorrentes a
definem, funda-se no entendimento segundo o qual a solução impugnada
consubstancia uma afectação excessiva e desproporcionada dos seus direitos e
interesses, vedada pelos princípios resultantes dos preceitos constitucionais
que invocam.
Tal, porém, não acontece. Como refere o Ministério Público, a norma do artigo
9.º limita-se tão-só a clarificar que o pagamento do imposto devido, por um
lado, e as sanções (principais e acessórias), por outro, constituem realidades
distintas, não sendo perceptível em que medida o estabelecimento de um regime
sancionatório em matéria de infracções tributárias, em paralelo com a manutenção
da obrigação de pagamento do imposto em dívida e respectivos acréscimos legais,
afecta de modo absolutamente intolerável qualquer direito ou interesse
fundamental dos recorrentes, para que se possa afirmar a violação de um
princípio de justiça com relevância constitucional. Não existe qualquer
obrigação constitucional de dispensar o agente do pagamento da dívida tributária
em relação com a qual se verificou a infracção, apenas pelo facto de ele ter
sido condenado pela prática desta.
Há, pois, que negar provimento ao presente recurso.
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao
presente recurso e condenar os recorrentes em custas, com 20 ( vinte )
unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 17 de Janeiro de 2007
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma (vencida nos termos de
declaração de voto junta).
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Entendo que a norma do artigo 14º, nº 1, do Regime Geral das Infracções
Tributárias, na parte em que condiciona sempre a suspensão da execução da pena
de prisão ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais, é
inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade, da necessidade e da
proporcionalidade da pena, consignados nos artigos 13º e 18º, nº 2, da
Constituição, pelas razões constantes da declaração de voto aposta no Acórdão nº
376/2003, que são globalmente aplicáveis nos presentes autos.
Maria Fernanda Palma