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Processo nº 1029/2006
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Nos presentes autos, o Conselho Nacional de Delegados da Ordem dos
Arquitectos interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea a) do
nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo
Tribunal Administrativo de 12 de Julho de 2006. Nesse aresto, o Supremo Tribunal
Administrativo considerou o seguinte:
4 – A Fundação ora Recorrente solicitou à Ordem dos Arquitectos que o Curso de
Arquitectura por ela ministrado fosse reconhecido como conferindo as
habilitações mínimas de formação no domínio da arquitectura para que as pessoas
detentoras do titulo de licenciado naquele Curso pudessem ser admitidos à
prestação de provas de admissão e ao estágio.
Este pedido foi apreciado pelo Conselho Directivo Nacional em deliberação de
4-12-2002 que não reconheceu a licenciatura em Arquitectura e Urbanismo da
Universidade Fernando Pessoa.
Desta deliberação foi interposto recurso para o Conselho Nacional de Delegados
da Ordem dos Arquitectos que confirmou a deliberação do Conselho Directivo
indeferindo a pretensão.
Neste recurso jurisdicional a Fundação Recorrente, responsável pelo curso que
viu indeferida a sua pretensão de reconhecimento, sustenta que a decisão de 1ª
instância, que negou provimento ao recurso, decidiu mal por um conjunto de
razões, a primeira das quais enuncia como a falta de atribuições para a Ordem
dos Arquitectos reconhecer cursos ministrados por qualquer estabelecimento de
ensino superior oficial ou reconhecido oficialmente, poder que caberia ao
Governo e que este não transferiu para OA pelo Estatuto aprovado pelo
Decreto-Lei nº 2176/98, de 3 de Julho.
Analisando esta questão verifica-se que efectivamente é ao Governo que a lei
confere atribuições na área da aprovação e reconhecimento de cursos académicos
conferindo o grau de licenciatura.
Na verdade, de harmonia com o disposto no arts. 8º, alíneas c) e g), e 9º,
alíneas c), d) e e), do Estatuto do Ensino Superior Particular e Cooperativo,
aprovado pelo Decreto-Lei nº 16/94, de 22 de Janeiro, são atribuições do
Governo, no que concerne ao ensino superior particular e cooperativo, «garantir
o elevado nível pedagógico, científico e cultural do ensino», «avaliar a
qualidade científica, pedagógica e cultural do ensino», autorizar o
funcionamento de cursos conferentes de graus e reconhecer os graus.
Foi esta avaliação da qualidade do curso e apreciação da sua idoneidade para
conferir o grau de licenciado em arquitectura que foram efectuadas inicialmente
pela Portaria nº 811/98, de 24 de Setembro. e, depois, pela Portaria nº
624/2001, de 23 de Junho, em que se aprova planos de estudos pormenorizados, que
constam dos respectivos anexos, que contêm indicação da globalidade das unidades
curriculares e respectivas cargas horárias.
Não há qualquer disposição com carácter legislativo que atribua à Ordem dos
Arquitectos competência para avaliar a qualidade científica, pedagógica e
cultural dos cursos de arquitectura ministrados por entidades públicas ou
privadas, ou reconhecer ou não graus atribuídos por estabelecimentos de ensino
superior reconhecidos pelo Governo.
O que se inclui nas atribuições de Ordem dos Arquitectos é «admitir e certificar
a inscrição dos arquitectos, bem como conceder o respectivo título profissional»
[art. 32 alínea b), do Estatuto da Ordem dos Arquitectos, na redacção do
Decreto-Lei nº 176/98, de 3 de Julho].
Quanto ao ensino de arquitectura apenas se inclui nas atribuições de ordem dos
Arquitectos «acompanhar a situação geral do ensino da arquitectura e dar parecer
sobre todos os assuntos relacionados com esse ensino» [alínea o) do mesmo art.
3º],
É certo que, no âmbito das suas atribuições de admitir e certificar a inscrição
de arquitectos, a Ordem dos Arquitectos poderá avaliar a capacidade profissional
dos candidatos à inscrição conforme entender, pois essa actividade inclui-se
entre as suas atribuições [art. 3º, alínea b), do Estatuto]. E poderá, no
exercício desta fazer a avaliação como entender, designadamente, admitir
automaticamente, com dispensa de provas de admissão, candidatos que possuam
determinados cursos, como se prevê no art. 22º, nº 2, alínea c) do referido
Estatuto, se entender que a mera aprovação nesses cursos garante. só por si, a
idoneidade profissional exigível para inscrição.
Mas, o que não se prevê é que possa não admitir a essas provas candidatos
licenciados em arquitectura, isto é, que possa não avaliar sequer os candidatos
que possuam licenciaturas em arquitectura reconhecidas pelo Governo, o que se
compreende, pois sem uma avaliação em concreto dos conhecimentos dos candidatos
não é materialmente possível assegurar que eles não possuem os conhecimentos
necessários.
São coisas diferentes avaliar em concreto se um determinado candidato possui ou
não os conhecimentos profissionais necessários para o exercício da actividade de
arquitecto e saber se a licenciatura de que é titular é adequada a fornecer-lhe
esses conhecimentos.
Só a primeira tarefa cabe nas atribuições da Ordem dos Arquitectos; a seguida
insere-se nas atribuições do Governo.
Assim, pode um candidato titular de licenciatura em arquitectura vir a não ser
admitido como arquitecto se se vier a entender, na sequência de provas de
admissão, que não possui os conhecimentos necessários para o exercício dessa
actividade profissional. Mas, não pode, sob pena de estar a invadir-se as
atribuições do Governo, deixar de admitir um candidato à prestação de provas de
admissão, pelo facto de possuir uma licenciatura, reconhecida pelo Governo, que
a Ordem dos Arquitectos entende que não deveria ser reconhecida, pois ao fazê-la
esta está a sobrepor o seu próprio critério sobre o reconhecimento de cursos de
arquitectura ao critério do Governo.
Isto tanto é assim se a aplicação deste critério for feita abertamente, dizendo
que a Ordem não reconhece a licenciatura para efeitos de admissão, como se for
feito veladamente, sob a capa da aferição da satisfação pelo curso em causa dos
requisitos pretensamente exigidos pela Directiva nº 85/314: incluindo-se nas
atribuições do Governo a competência para reconhecer o curso, é a ele que cabe
avaliar se ele satisfaz ou não as exigências comunitárias sobre cursos de
arquitectura é o Governo e não à ordem dos Arquitectos.
Poderá, no entanto, porque isso não contende com as atribuições do Governo, a
Ordem dos Arquitectos dispensar da prestação de provas de admissão candidatos
que possuam determinadas licenciaturas, por entender que a sua titularidade. só
por si, é garantia da idoneidade profissional dos candidatos.
Aliás, é essa a única interpretação congruente, pois as Ordens Profissionais são
associações públicas que tem por finalidade, por devolução de poderes do Estado,
regular e disciplinar o exercício de determinadas actividades profissionais,
pertencendo à administração estadual indirecta, pelo que não se compreenderia
que pudesse reconhecer-se-lhe o direito de adoptar posições contraditórias em
relação às do Governo em matéria de avaliação e reconhecimento de cursos
universitários, pois este é o órgão superior da Administração Publica (art. 182º
da C.R.P.).
O Regulamento Interno de Admissão aprovado pela Ordem dos Arquitectos, como
diploma regulamentar que é, não tem validade em tudo o que contrariar diplomas
legislativos, pois, por força do disposto no art. 112º, n.° 5, da CRP (nas
redacções de 1997 e posteriores, a que corresponde o art. 115.°, nº 5, nas
redacções de 1982, 1989 e 1992), «nenhuma lei pode criar outras categorias de
actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com
eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar
qualquer dos seus preceitos». Os arts. 18º, alínea d), do Estatuto da Ordem dos
Arquitectos e 15.° do DL 14/90, de 8 de Janeiro, em que se baseou a emanação do
referido Regulamento Interno de Admissão, são materialmente inconstitucionais se
interpretados como atribuindo à Ordem o poder de elaborar normas regulamentares
que contrariem normas com valor legislativo.
Conclui-se, assim, que o acto recorrido enferma de nulidade, por ser estranho às
atribuições da Ordem dos Arquitectos [art. 133º, n.° 2, alínea b), do C.P.A.].
O recurso de constitucionalidade visa submeter à apreciação do Tribunal
Constitucional as seguintes normas:
d.1. Normas assumidamente desaplicadas pelo Tribunal:
(i) O artigo 18º, alínea d), do Estatuto da Ordem dos Arquitectos,
aprovado pelo Decreto-Lei n 176/98, de 3 de Julho;
(ii) O artigo 15º do Decreto-Lei nº 14/90, de 8 de Janeiro;
d.2. Normas implicitamente desaplicadas pelo Tribunal:
(iii) O artigo 2º, nº 8 da Lei n° 121/97, de 13 de Novembro;
(iv) Os artigos, 3º, alínea b), 5º, nº 1 e 42º, nº 2, ambos do Estatuto da
Ordem dos Arquitectos;
(v) Os artigos 3º e 7º da Directiva nº 85/384/CEE, do Conselho, de 10 de
Junho de 1985;
(vi) As normas do Regulamento Interno de Admissão aprovado pela Ordem dos
Arquitectos em 12 de Fevereiro de 2000.
O recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
A. Constitui objecto do presente recurso, um
conjunto de normas jurídicas, com natureza legal e regulamentar, que foram,
expressa e ou implicitamente, desaplicadas pelo Tribunal Recorrido com
fundamento na sua inconstitucionalidade;
B. As normas expressamente desaplicadas pelo
Tribunal Recorrido foram as seguintes: (i) o artigo 18º, alínea d), do Estatuto
da Ordem dos Arquitectos, aprovado pelo Decreto-Lei nº 176/98, de 3 de Julho, e
(ii) O artigo 15º do Decreto-Lei nº 14/90, de 8 de Janeiro;
C. As normas implicitamente desaplicadas pelo
Tribunal Recorrido foram as seguintes: (i) o artigo 2º, nº 8 da Lei nº 121/97,
de 13 de Novembro; (ii) os artigos, 3º, alínea b), 5º, nº 1 e 42º, nº 2, ambos
do Estatuto da Ordem dos Arquitectos; (iii) os artigos 3º e 7º da Directiva nº
85/384/CEE, do Conselho, de 10 de Junho de 1985; (iv) as normas do Regulamento
Interno de Admissão aprovado pela Ordem dos Arquitectos em 12 de Fevereiro de
2000;
D. A recusa implícita de aplicação das referidas
normas foi determinante da decisão tomada pelo Tribunal Recorrido.
E. Sem prejuízo do seu carácter efectivo e
manifesto, a recusa de aplicação de normas jurídicas tanto pode ser expressa
como implícita;
F. Para a resolução da questão de
constitucionalidade equacionada nos autos é indispensável proceder à
interpretação do direito infraconstitucional, sendo certo que dessa
interpretação irão certamente resultar qualificações jurídicas divergentes das
que foram formuladas pelo Tribunal Recorrido;
G. O Tribunal Constitucional tem o poder para
interpretar o direito ordinário ou infraconstitucional aplicável ao mérito da
causa, uma vez que essa interpretação é essencial para a emissão do juízo da
constitucionalidade;
H. E foi precisamente por ter considerado
inconstitucional essa atribuição é que o Tribunal Recorrido se recusou – embora
implicitamente - a aplicar as normas legais que conferem, ou de onde decorrem,
esses poderes à Ordem dos Arquitectos, a saber, (i) o artigo 2º, nº 8 da Lei nº
121/97, de 13 de Novembro; (ii) os artigos, 3º, alínea b), 5º, nº 1 e 42º, nº 2,
ambos do Estatuto da Ordem dos Arquitectos; (iii) os artigos 3º e 7º da
Directiva nº 85/384/CEE, do Conselho, de 10 de Junho de 1985; e (iv) as normas
do Regulamento Interno de Admissão aprovado pela Ordem dos Arquitectos em 12 de
Fevereiro de 2000.
I. Errou o Tribunal Recorrido nos juízos de
inconstitucionalidade formulados e, consequentemente, na decisão de recusa de
aplicação das referidas normas;
J. Errou na interpretação que fez das mencionadas
normas legais e regulamentares, uma vez que das mesmas não decorre o poder da
Ordem dos Arquitectos de elaborar normas regulamentares que contrariam normas
com valor legislativo – tendo sido respeitado o disposto no art. 112º, nº 5 da
CRP –, sendo certo que, em qualquer caso, as normas do Regulamento Interno de
Admissão não contrariam normas com valor legislativo;
K. Errou também nos pressupostos em que assentou a
referida interpretação, desconsiderando a existência de disposições legais
expressas que atribuem à Ordem dos Arquitectos poderes para efectuar o
reconhecimento de curso previsto na Directiva 85/384/CEE e confundido aprovação
de cursos e reconhecimento de graus e títulos académicos – da competência do
governo - com o reconhecimento previsto na Directiva 85/3841CEE;
L. Errou ainda quando assentou toda a sua
apreciação e decisão numa suposta inconstitucionalidade - que não demonstrou,
nem é demonstrável, por que não existe – a de que os poderes necessários ao
reconhecimento previsto na Directiva 85/384/CEE não podem ser atribuídos à Ordem
dos Arquitectos, só o podendo ser ao Governo;
M. Não existe nenhuma norma ou princípio
constitucionais dos quais resulte que só o Governo pode ter competência para
efectuar o reconhecimento dos cursos previsto na Directiva 85/384/CEE, sendo
jurídica e constitucionalmente irrelevante que o Governo seja o órgão máximo da
Administração Pública;
N. Como não existe nenhuma norma ou princípio
constitucional dos quais decorra que a Ordem dos Arquitectos não pode ter
competência para efectuar o reconhecimento previsto na Directiva 85/384/CEE;
O. Tanto o fundamento expresso como o fundamento
implícito da decisão de recusa de aplicação das referidas normas legais e
regulamentares tomada pelo Tribunal Recorrido, respectivamente a
inconstitucionalidade material por violação do art. 112º, nº 5 da CRP e a
inconstitucionalidade da atribuição de poderes de reconhecimento de cursos,
quaisquer que eles sejam, a outra entidade que não o Governo, carecem de suporte
constitucional e de suporte legal;
P. Para resolver a questão da constitucionalidade
equacionada nos autos, torna-se necessário analisar e interpretar o direito
ordinário que lhe está subjacente, com o propósito de se demonstrar que a Ordem
dos Arquitectos era, no momento em que foi proferido pelo Tribunal Recorrido o
Acórdão em apreciação nos presentes autos, a entidade com competência para
proceder ao reconhecimento dos cursos de arquitectura, nos termos e para os
efeitos do disposto na Directiva nº 85/384/CE, do Decreto-Lei nº 14/90 e do
respectivo Estatuto, aprovado pelo Decreto-Lei nº 176/98;
Q. O processo de reconhecimento instituído pela
Directiva 85/384/CEE pressupõe ou traduz‑se num duplo processo de reconhecimento
– um processo interno com e para efeitos externos e um processo externo com e
para efeitos internos –, ou se se preferir, num processo com duas fases – uma
interna e outra externa –;
R. Do processo de reconhecimento instituído pela
Directiva 85/384/CEE decorrem três obrigações essenciais para os
Estados-membros: (i) a obrigação de cada Estado-membro reconhecer os diplomas,
certificados e outros títulos de formação emitidos no seu território cuja
formação satisfaça os requisitos dos artigos 3º e 4º; (ii) obrigação de cada
Estado‑membro não reconhecer os diplomas, certificados e outros títulos de
formação emitidos no seu território cuja formação não satisfaça os requisitas
dos artigos 32 e 42; (iii) a obrigação de cada Estado-membro reconhecer os
diplomas, certificados e outros títulos obtidas mediante uma formação que
satisfaça os requisitas dos artigos 3º e 4º e emitidos aos nacionais dos
Estados-membros pelos outros Estados-membros, e de lhes atribuir no seu
território, no que se refere ao acesso às actividades referidas no artigo 1 e ao
exercício destas com o título profissional de arquitecto, nas condições
previstas no nº 1 do artigo 23, o mesmo efeito que aos diplomas, certificados e
outros títulos por ele emitidos;
S. O processo de reconhecimento instituído pela
Directiva 85/384/CEE aplica‑se a todas as formações e cursos ministrados em
todos Estados-membros e não apenas a situações de transnacionalidade
relacionadas com o exercício da profissão de um cidadão de um Estado-membro num
outro Estado-membro;
T. Os critérios e condições relativos à formação
em arquitectura referidos nos arts. 3º e 4º da Directiva são aplicáveis aos
cursos e formações ministrados em cada Estado-membro - e assim a Portugal -, na
medida em que todos e cada um dos Estados-membros têm a obrigação de comunicar a
lista dos diplomas, certificados e outros títulos de formação emitidos no seu
território que satisfaçam os referidos requisitos, bem como os estabelecimentos
ou autoridades que os emitem;
U. De acordo com a Directiva nº 85/384/CE cada
Estado-membro tem a obrigação de permanentemente verificar se os critérios
referidos nos arts. 3º e 4º da Directiva são cumpridos pelos estabelecimentos ou
autoridades que emitem, no seu território, os diplomas, certificados e outros
títulos de formação em arquitectura;
V. Constitui jurisprudência constante do Tribunal
de Justiça das Comunidades que nos casos em que as disposições de uma directiva
comunitária se apresentam, pelo seu conteúdo, como incondicionais e
suficientemente precisas, elas têm-se por directamente aplicáveis, vinculando as
autoridades públicas nacionais e podendo ser invocadas pelos particulares contra
o Estado-membro - efeito directo vertical -, quer quando este se abstém de
transpor nos prazos a directiva para o direito nacional, quer quando faz uma
transposição incorrecta;
W. O conteúdo incondicional e suficientemente
preciso da Directiva 851384/CEE torna esta Directiva imediatamente aplicável nas
ordens jurídicas nacionais e directamente vinculativa das autoridades públicas
nacionais competentes para a sua execução;
X. O Estado português, primeiro destinatário da
Directiva, delegou, no exercício legítimo dos seus poderes e competências, essas
funções na Ordem dos Arquitectos,
Y. Através do Decreto-Lei nº 14/90, de 8 de
Janeiro e do Decreto-Lei nº 176/98, de 3 de Julho, que aprovou o Estatuto da
Ordem dos Arquitectos, o Estado português transferiu para a Ordem dos
Arquitectos os poderes e competências para efectuar o processo de reconhecimento
instituído pela Directiva 85/384/CEE;
Z. De acordo com o art. 15º do DL 14/90, a Ordem
dos Arquitectos é, ao nível interno, a instituição competente para desempenhar
as funções relativas aos procedimentos a que o Estado Português se encontra
vinculado perante a Comunidade Económica Europeia (CEE), hoje União Europeia, em
matéria de direito de estabelecimento e livre prestação de serviços no domínio
da arquitectura;
AA. Entre as funções emergentes do Decreto-Lei nº
14/90 encontra-se a execução do processo de reconhecimento dos cursos existentes
em Portugal, com vista à aferição e garantia de cumprimento de todas as
condições de formação previstas na Directiva 85/384/CEE;
BB. Se porventura se entendesse, o que não se
concede, que o Decreto-Lei nº 14/90 apenas se limitou a regular o processo de
reconhecimento externo, não tendo transposto adequadamente a Directiva
85/384/CEE, o seu conteúdo incondicional e suficientemente preciso tornou-a
imediatamente aplicável na ordem jurídica nacional e directamente vinculativa
das autoridades públicas nacionais competentes para a sua execução;
CC. Ao aplicar o direito interno, o órgão
jurisdicional nacional deve interpretar o direito nacional, na medida do
possível, à luz do texto e da finalidade da directiva em causa, para atingir o
resultado por ela prosseguido e cumprir assim o artigo 249.°, terceiro
parágrafo, CE;
DD. A exigência de uma interpretação conforme do
direito nacional é inerente ao sistema do Tratado, na medida em que permite aos
órgãos jurisdicionais nacionais assegurar, no âmbito das suas competências, a
plena eficácia do direito comunitário quando decidem do litígio que lhes é
apresentado;
EE. Também através do Decreto-Lei n° 176/98, de 3 de
Julho, o Estado português, no exercício legítimo dos seus poderes e
competências, transferiu para a Ordem dos Arquitectos os poderes e competências
para efectuar o processo de reconhecimento instituído pela Directiva 85/384/CEE,
confirmando assim os poderes atribuídos no âmbito do Decreto-Lei nº 14/90;
FF. Através da Lei nº 121/97, de 13 de Novembro, foi
o Governo autorizado a legislar com o objectivo de alterar o Estatuto da
Associação dos Arquitectos Portugueses, aprovado pelo Decreto-Lei nº 465/88, de
15 de Dezembro, com o propósito, entre outros, de “Proceder às adaptações
necessárias decorrentes da transposição para a ordem jurídica interna da
Directiva nº 285/384/CEE.” (art. 2, nº 8);
GG. No uso da referida autorização legislativa foi
aprovado o Decreto-Lei nº 176/98, de 3 de Julho e assim aprovado o novo Estatuto
da agora denominada Ordem dos Arquitectos.
HH. Entre as alterações mais significativas
introduzidas no Estatuto ao tempo em vigor, encontravam-se todas as alterações
tornadas necessárias em função da transposição da Directiva nº 85/384/CEE, de 10
de Junho, relativa ao reconhecimento mútuo dos diplomas, certificados e outros
títulos do domínio da arquitectura;
II. Nos termos do Estatuto da Ordem dos
Arquitectos, em particular dos artigos, 3º, alínea b), 5º, nº 1 e 4º, nºs 1 e 2,
todos do Estatuto da Ordem dos Arquitectos: (i) só os arquitectos inscritos na
Ordem podem, no território nacional, usar o título profissional de arquitecto e
praticar os actos próprios da profissão; (ii) fora os casos expressamente
previstos no Estatuto, só podem inscrever-se como membros efectivos os titulares
de licenciatura ou diploma equivalente no domínio da arquitectura, reconhecido
nos termos legais e do presente Estatuto; (iii) para efeitos de inscrição na
Ordem devem os arquitectos demonstrar possuir as capacidades e os conhecimentos
descritos no art. 3.° da Directiva n.º 85/384/CEE, do Conselho, e respectivo
diploma de transposição;
JJ. A competência da Ordem dos Arquitectos para
proceder ao reconhecimento dos cursos ou licenciaturas de arquitectura, nos
termos e para os efeitos do disposto na Directiva nº 85/384/CE, decorria assim
não apenas do Decreto-Lei nº 14/90, e do efeito directo vertical da Directiva,
mas também dos artigos, 3º, alínea b), 5º, nº 1 e 4º, nº 2, todos do Estatuto da
Ordem dos Arquitectos;
KK. A desconsideração e desaplicação das referidas
normas legais, por parte do Tribunal Recorrido, carece de qualquer fundamento
legal e ou constitucional, tendo em atenção as normas vigentes no momento em que
foi proferido o Acórdão pelo Tribunal Recorrido;
LL. A interpretação e posição defendidas pelo
Tribunal Recorrido, para além de contrariarem expressa e inequivocamente a opção
do legislador ordinário – que, independentemente do acerto ou desacerto da
mesma, através de dois diplomas legais, atribuiu essas funções e competências à
Ordem dos Arquitectos -, assenta numa confusão entre concessão de graus
académicos e reconhecimento das licenciaturas nos termos e para os efeitos do
disposto na Directiva 85/384/CEE;
MM. Os diplomas e normas legais citados não atribuem,
nem pretenderam atribuir, aliás, poderes à Ordem dos Arquitectos para aprovar e
reconhecer cursos académicos conferindo o grau de licenciatura: essas
atribuições e competências pertencem, nos termos da legislação (ao tempo) em
vigor, em particular nos termos do Estatuto do Ensino Superior Particular e
Cooperativo, aprovado pelo Decreto-Lei nº 16/94 de 22 de Janeiro, ao Governo;
NN. O que os referidos diplomas e normas legais
fizeram foi atribuir à Ordem dos Arquitectos as necessárias competências para
levar a cabo o processo de reconhecimento das licenciaturas nos termos e para os
efeitos do disposto na Directiva 85/384/CEE, ou seja, o processo destinado a
verificar o cumprimento, por parte dos cursos em arquitectura, das condições
mínimas de formação no domínio da arquitectura exigidas pela mencionada
Directiva;
OO. O processo de reconhecimento não se destina (ou
destinava) a reconhecer ou deixar de reconhecer os cursos de arquitectura e os
graus académicos por eles conferidos, mas sim a reconhecer que eles conferem (ou
conferiam) as condições e conteúdos mínimos de formação em arquitectura exigidos
pelo artigo 3º e as condições referidas no artigo 4.° da Directiva 85/384/CEE;
PP. A atribuição à Ordem dos Arquitectos do
poder-dever de levar a cabo o processo de reconhecimento das licenciaturas, nos
termos e para os efeitos do disposto na Directiva 85/384/CEE, enquadra-se
plenamente, ao contrário do defendido pelo Tribunal Recorrido, na natureza e nas
atribuições da Ordem dos Arquitectos;
QQ. A atribuição da competência à Ordem dos
Arquitectos para proceder ao reconhecimento dos cursos ou licenciaturas de
arquitectura, nos termos e para os efeitos do disposto na Directiva nº
85/384/CE, foi feito sob a forma legal e enquadra-se no âmbito das atribuições
conferidas por lei à Ordem;
RR. Foi no exercício da sua função de regular o
acesso à profissão de arquitecto e no exercício dos seus poderes regulamentares
e decisórios que a Ordem dos Arquitectos, no âmbito das suas atribuições e
competências, e ao abrigo de disposições legais específicas, em particular o
art. 15º do Decreto-Lei nº 14/90, os arts. 3º e 4º da Directiva 85!384/CEE e os
arts. 3º, al. b), 5º, nº 1 e 42º, nº 2 do respectivo Estatuto, aprovou o
Regulamento Interno de Admissão e efectuou os reconhecimentos dos cursos de
arquitectura;
SS. De acordo com o nº 1 do Anexo IV do RIA, o
processo de Reconhecimento de Cursos consiste na verificação do cumprimento da
Directiva 85/384/CEE no que diz respeito às condições mínimas da formação para
que possa ser considerada no domínio da arquitectura;
TT. As normas regulamentares procedimentais
aplicáveis ao processo de reconhecimento de cursos instituído pela Ordem foram
aprovadas em decorrência e como exigência das normas materiais legais -
nacionais, comunitárias e estatutárias - aplicáveis, e em total conformidade com
as mesmas, e dentro do âmbito das atribuições e competências da Ordem dos
Arquitectos,
UU. O Regulamento Interno de Admissão contém-se nos
limites próprios do grau hierárquico inferior das normas regulamentares, tendo
apenas introduzido ex novo aspectos procedimentais concretos para pôr em prática
as normas materiais que as fontes normativas com valor de lei tinham
concretizado em todos os aspectos relevantes;
VV. Com a aprovação, a 12 de Setembro de 2006, e a
entrada em vigor, em 2 de Outubro de 2006, do novo Regulamento de Inscrição, a
Ordem dos Arquitectos pôs termo ao sistema de reconhecimento e acreditação de
cursos tendo igualmente posto termo à exigência de uma prova de admissão,
podendo os licenciados em arquitectura pela Universidade Fernando Pessoa
inscrever-se como membros da Ordem dos Arquitectos como quaisquer outros
licenciados em arquitectura, nos termos previstos no novo Regulamento de
Inscrição;
WW. Em face de todo o exposto, não pode deixar de se
concluir que a Ordem dos Arquitectos tinha não apenas o poder mas também o dever
de aplicar as disposições da Directiva nº 85/384/CE, do Decreto-Lei 14/90 e do
respectivo Estatuto, aprovado pelo Decreto-Lei nº 176/98, que lhe atribuíam não
só poderes, mas também deveres, em matéria do processo de reconhecimento dos
cursos de arquitectura e do acesso à profissão de arquitecto;
XX. Em suma, carecem de suporte constitucional, e
legal, os fundamentos, expressos e implícitos, da decisão de recusa de aplicação
das referidas normas legais e regulamentares tomada pelo Tribunal Recorrido.
A recorrida contra‑alegou, suscitando a questão prévia da intempestividade do
recurso e, subsidiariamente, a improcedência do mesmo.
O recorrente pronunciou‑se no sentido da improcedência da questão prévia
suscitada.
Tendo por seu turno a Relatora suscitado a questão prévia relativa à existência
de um fundamento alternativo da decisão recorrida, o recorrente respondeu no
sentido da improcedência da questão suscitada.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentação
Questão prévia
2. A recorrida invoca a intempestividade do presente recurso de
constitucionalidade, fundamentando tal entendimento no disposto nos artigos
686º, nº 1, do Código de Processo Civil.
No entanto, cabe salientar que o nº 1 do artigo 686º apenas se refere às
situações mencionadas nos artigos 667º e 669º, nº 1, porque os vícios previstos
no nº 2 do artigo 669º, quando caiba recurso ordinário da decisão, devem ser
arguidos na respectiva alegação – artigo 669º, nº 3.
Porém, no caso de não ser admissível recurso ordinário (é o caso dos autos), a
decisão só se torna definitiva após a decisão do pedido de reforma, contando‑se,
então, o prazo de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional a
partir da notificação desta decisão.
É, nessa medida, tempestivo o presente recurso.
3. A Relatora suscitou a questão prévia relativa à existência de um fundamento
alternativo.
Com efeito, a decisão recorrida desenvolveu uma argumentação no plano da
interpretação infraconstitucional, no sentido de não competir à Ordem dos
Arquitectos a competência para reconhecer cursos de instituições de ensino
superior.
No final de tal argumentação surge a afirmação, segundo a qual a dimensão
normativa, cuja aplicação foi recusada com argumentos relativos à articulação de
vários diplomas infraconstitucionais, é (sempre seria) inconstitucional.
Verifica‑se, assim, como se assinalou no Despacho de fls. 547 e ss., que a
decisão recorrida contém uma argumentação alternativa no plano estritamente
infraconstitucional, paralela ao argumento de inconstitucionalidade,
fundamentação essa que é suficiente para a subsistência do acórdão prolatado.
Assim, a decisão recorrida conclui pela nulidade do acto administrativo, nos
termos do artigo 133º, nº 2, alínea b), do Código do Procedimento
Administrativo.
A apreciação da questão de constitucionalidade seria, nessa medida, inútil.
4. Por outro lado, o recorrente afirma terem sido desaplicadas, com fundamento
em inconstitucionalidade, determinadas normas. Algumas, sustenta o recorrente,
foram desaplicadas implicitamente.
Ora, a alegada desaplicação implícita, a ter ocorrido, fundou‑se, não em
argumentos de inconstitucionalidade, mas antes em argumentos relacionados com a
interpretação do direito infraconstitucional.
Desse modo, tais normas nunca poderiam constituir objecto do recurso interposto
ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
A recorrente afirma, na resposta apresentada, que o fundamento da decisão
recorrida é o juízo de inconstitucionalidade, invocando passagens das anotações
de Gomes Canotilho e Vital Moreira à Constituição, nas quais se afirma que não
impede o conhecimento do recurso da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional a existência de um fundamento alternativo no plano
infraconstitucional na decisão recorrida.
Ora, na verdade, assim é, quando a decisão recorrida ainda é passível de recurso
ordinário. Com efeito, nesses casos, a fundamentação alternativa pode ser
alterada na sequência de um eventual recurso que possa ser interposto, já que
não constitui pressuposto de tais recursos de constitucionalidade o esgotamento
dos meios de impugnação.
Porém, nos casos em que a decisão que contém um juízo de inconstitucionalidade
já não admite recurso ordinário, a existência de uma fundamentação alternativa
torna o recurso de constitucionalidade inútil, já que qualquer juízo que o
Tribunal Constitucional vier a formular não terá a virtualidade de alterar a
decisão recorrida que sempre subsistirá com o fundamento alternativo. Como
também dizem aqueles autores no local citado pelo recorrente, “o recurso só se
justifica se a sua decisão for relevante para a decisão da questão de fundo” já
que o “recurso de constitucionalidade é um recurso instrumental”.
Não competindo ao Tribunal Constitucional emitir decisões inúteis, ou seja,
decisões insusceptíveis de alterar o sentido da decisão recorrida, há pois que
concluir pela procedência das questões prévias suscitadas, pelo que não se
tomará conhecimento do objecto do presente recurso.
III
Decisão
5. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento
do objecto do presente recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 23 de Março de 2007
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos