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Processo nº 1071/2006
Plenário
Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
1. Na sequência da acusação dirigida contra A. pela prática de três
transgressões previstas e punidas na Base LII das Bases de Concessão aprovadas
pelo Decreto-Lei n.º 248-A/99, de 6 de Julho, com a redacção resultante do
Decreto-Lei n.º 42/2004, de 2 de Março, e do artigo 4º do Decreto-Lei n.º
130/93, de 22 de Abril, por referência aos artigos 1º a 3º, 72º, 73º e 105º a
113º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio,
na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, foi proferida
pelo Tribunal Judicial da Comarca de Vila do Conde, em 9 de Novembro de 2006, a
sentença de fls. 16, que declarou 'extinto o procedimento transgressional
instaurado', por considerar despenalizadas as condutas as causa, 'nos termos do
art. 2º, n.º 2 do C. Penal e art. 29º, n.º 4 da C.R.P.'.
Consequentemente, foi determinado o arquivamento dos autos.
Para alcançar este efeito, a sentença recusou a aplicação do disposto no n.º 1
do artigo 20º da Lei n.º 25/2006, de 30 de Junho, norma considerada
materialmente inconstitucional por violação dos n.ºs 1 e 4 do artigo 29º da
Constituição, nos seguintes termos:
«Para ser julgada em processo de transgressão, vem o(a) arguido(a), acusado(a)
da prática da(s) transgressões p. e p. na Base LII das Bases de Concessão,
aprovadas pelo Dec. Lei 248-A/89 [248-A/99], de 6/7, com a redacção introduzida
pelo Dec. Lei 42/2004, de 2/3, e do art.º4.ºdo Dec. Lei 130/93, de 22/4, por
referência aos artigos 1.º a 3.º 72.º, 73.º e 105.º a 113.º do Código da
Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3.5, na redacção dada pelo
Decreto-Lei n.º44/2005, de 23.2.
Sucede que, em 30 de Junho de 2006, foi publicada a Lei n.º 25/2006, que tem por
objecto, como resulta do seu artigo 1 .º, que “as infracções que resultam do não
pagamento ou do pagamento viciado de taxas de portagem em infra-estruturas
rodoviárias, anteriormente à sua entrada em vigor, previstas e punidas como
contravenções e transgressões, passem a assumir a natureza de
contra-ordenações.”
Como anunciou o Governo (www.gplp.mj.gov.pt e www.mj.gov.pt) a publicação desta
Lei faz parte de um programa que visou eliminar todas as transgressões e
contravenções ainda existentes no nosso ordenamento jurídico e a sua
transformação em contra-ordenações. Esta iniciativa legislativa há muito vinha
sendo defendida pela doutrina e já era propugnada há mais de 25 anos, com a
publicação do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho, que instituiu pela
primeira vez em Portugal o ilícito de mera ordenação social, e retomado pelo
Decreto-Lei n.º 433/82. É o culminar de uma processo que se vinha fazendo
paulatinamente (como sucedeu, por exemplo, com a conversão das contravenções
estradais em contra-ordenações operada pelo Dec‑Lei n.º 114/04, de 3 de Maio, ou
a reforma da legislação contra-ordenacional laboral operada pela Lei n.º 116/94,
de 4 de Agosto e concretizada pelas Leis n. 113/99 e 114/99, de 3 de Agosto e
118/99, de 11 de Agosto, que pretendeu eliminar as contravenções de âmbito
laboral), passando a existir, actualmente, apenas crimes e contra-ordenações,
absorvendo o direito contra-ordenacional o direito transgressional e
contravencional.
A par desta Lei e inserido no programa legislativo do Governo, foram ainda
publicadas no Diário da República as Leis n.ºs 28/2006, de 4 de Julho, e
30/2006, de 11 de Julho (rectificada pela Dec. de Rectificação n.º47/2006, de 7
de Agosto), assim se concluindo o programa de substituição das contravenções e
transgressões ainda em vigor no ordenamento jurídico nacional por
contra-ordenações.
A Lei n.º 28/2006, de 4 de Julho, aprovou o regime sancionatório aplicável às
infracções ocorridas em matéria de transportes colectivos de passageiros.
Em coerência com os referidos diplomas, a Lei n.º 30/2006, de 11 de Julho,
procedeu à conversão em contra-ordenações das restantes contravenções e
transgressões ainda em vigor, abrangendo, além do mais, as infracções aos
regimes jurídicos dos concursos de apostas mútuas concedidos à Santa Casa da
Misericórdia de Lisboa, das instalações eléctricas, da actividade da resinagem,
do combate às doenças contagiosas dos animais, do fomento piscícola nas águas
interiores, das actividades de espectáculos, da profissão de fogueiro para a
condução de geradores de vapor, das albufeiras de águas públicas, das actuações
na utilização dos solos e da paisagem, da exposição e venda de objectos e meios
de conteúdo pornográfico ou obsceno, da recolha e transporte de leite e dos
centros de concentração e de tratamento de leite, e dos cemitérios municipais e
paroquiais.
A Lei n.º 30/2006, de 11 de Julho, no artigo 35.º, determinou ainda que as
infracções previstas na legislação em vigor como contravenções e transgressões
que não tenham sido individualmente reguladas passam a assumir a natureza de
contra-ordenações e estabeleceu o respectivo regime.
Retomando a análise do diploma que nos interessa, dispõe o artigo 22.º que a Lei
n.º 25/2006 entra em vigor 120 dias após a sua publicação (que ocorreu em 30 de
Junho de 2006), razão pelo qual se coloca uma questão de aplicação de leis no
tempo, uma vez que o arguido praticou um ilícito transgressional ao abrigo de
uma anterior legislação, tendo, entretanto, entrado em vigor a Lei n.º 25/2006,
que transformou aquela infracção numa contra-ordenação.
Ora, as Leis n.º 25/2006, de 30 de Junho (tal como as Leis n.º 28/2006, de 4 de
Julho, e 30/2006, de 11 de Julho), consagraram um regime transitório relativo às
contravenções e transgressões praticadas antes da sua entrada em vigor, nos
termos do qual estas infracções passam a ser sancionadas como contra-ordenações,
sem prejuízo da aplicação do regime que concretamente se mostrar mais favorável
ao agente, nomeadamente quanto à medida das sanções aplicáveis (artigo 20.º,
n.º 1 da citada Lei).
Ou seja, o legislador estabeleceu como regra a aplicação retroactiva da LN, no
entanto, será aplicado o regime legal relativo às contravenções e transgressões
se este se mostrar concretamente mais favorável ao agente, nomeadamente quanto à
medida das sanções aplicáveis.
Sucede que, nesta norma, começam-se a denotar as imprecisões e incoerências em
que o legislador incorreu, uma vez que, se por um lado, assume no seu artigo 1.º
que as contravenções e transgressões têm uma natureza diferente das
contra-ordenações, neste artigo acaba por se contradizer, uma vez que não
obstante a diferente natureza dos ilícitos admite a aplicação do regime material
das contravenções e transgressões, desde logo se as sanções forem
quantitativamente mais favoráveis.
Ora, justamente por estarmos na presença de infracções de natureza diversa,
qualitativamente diferentes, em que as sanções prosseguem fins distintos (e que
também têm natureza distinta) toma-se inexequível e incompreensível a parte
final do artigo 20.º, n.º 1, simplesmente porque as contravenções e
transgressões, nesse sentido, são sempre mais gravosas do que as
contra-ordenações.
Uma vez que existe alguma confusão do legislador convém fazer uma breve incursão
histórica e legal nestes tipos distintos de infracções de modo a clarificar o
que ficou dito.
As contravenções e transgressões têm uma forte tradição histórica no nosso
ordenamento jurídico, e sempre se consideraram infracções de natureza penal.
A introdução destas categorias de infracções deveu-se a uma forte influência do
Código Penal Francês de 1810 que no seu artigo 1.º as dividia em crimes, delitos
e contravenções, sendo que os autores da época, como Levy Maria Jordão, colocam
o acento tónico das diferenças daquelas infracções no grau de gravidade (as
contravenções seriam então “crimes menores”), um pouco distinto do conceito
actual, segundo o qual o crime correspondente à violação de direitos
fundamentais que põem em causa a personalidade ética do homem ou o seu livre
desenvolvimento na sociedade, ao passo que a contravenção só de forma indirecta
ou mediata põe em causa valores jurídicos fundamentais ou atinge outros valores
menos solenes (para o que ficou dito veja-se João Soares Ribeiro,
Contra-Ordenações Laborais, Almedina, p.19 e 20.).
No entanto, cedo se foi sedimentando uma diferença entre estas infracções de
natureza penal (crimes, contravenções e transgressões) e as contra-ordenações
(que já no séc. XVII se chamava direito de polícia, depois passou a designar-se
direito penal administrativo e, por fim, direito contra-ordenacional).
Nesta matéria foi bastante importante a contribuição dos autores alemães,
designadamente no período pós 2ª Guerra Mundial, como seja GOLDSMIDT
[GOLDSCHMIDT], que vê na aplicação de penas matéria exclusiva do poder judicial,
vedada à Administração que apenas poderia aplicar sanções administrativas,
distintas qualitativamente da penas, por não terem qualquer finalidade
expiatória. Para Eberhard Schimidt [Schmidt] as proibições impostas pelas
contra-ordenações são eticamente indiferentes, o que se reflecte na culpa e no
fim da sanção, uma vez que a pena, sanção criminal, tem um fim expiatório e
ressocializador, enquanto que a sanção da contra-ordenação é uma mera medida de
coerção administrativa e disciplinar (João Soares Ribeiro, Contra-Ordenações
Laborais, Almedina, p. 21).
Tal natureza penal das contravenções e transgressões também resultava do seu
processamento, similar ao julgamento de um crime, mas de uma forma mais
simplificada. De facto, no artigo 66.º do Código de Processo Penal de 1929
falava-se de contravenções e transgressões, sendo certo que o seu processamento
está hoje regulado no DL 17/91, de 10 de Janeiro (“não só porque estão
materialmente próximas, mas ainda porque tais delitos aparecem frequentemente
regulados no mesmo diploma”). Ora, o carácter penal destas infracções
reflecte-se não só nas sanções (penas que são típicas reacções criminais), como
também pelo facto da sua aplicação ser do domínio do poder judicial, existindo
uma acusação por parte do MP, sujeitando-se o arguido a julgamento numa
audiência solene, a que se aplicam princípios do processo penal.
Sucede que o legislador nas leis supra citadas e, mais concretamente, na que
está aqui em análise, acaba não perceber a distinta natureza e qualidade de
contravenções e transgressões vs contra-ordenações, a diferente natureza e fins
das sanções aplicadas, acabando por equipará-las e colocando o cerne da
destrinça numa mera apreciação pecuniária: em suma, para o legislador será mais
favorável a que aplicar uma sanção pecuniária mais leve. Ora, afirmar isso é
confundir as infracções e equipará-las, o que não é possível.
Aliás, a desorientação do legislador quanto às noções de contravenções,
transgressões vs contra-ordenações é latente quando se propugna a eliminar todas
as contravenções e transgressões do ordenamento jurídico e transformá-las em
contra‑ordenações e depois escreve que a Lei n.º 25/2006, de 30 de Junho “Aprova
o regime sancionatório aplicável às transgressões ocorridas em matéria de infra
estruturas rodoviárias onde seja devido o pagamento de taxas de portagem”.
Só esta confusão é que justifica uma norma do teor do artigo 20.º, n.º 1 da Lei
n.º 25/2006.
Aliás, essa disposição contraria uma das ratios [sic] do diploma, de ordem
prática, que milhares de processos deixem de correr nos tribunais portugueses,
com o objectivo de descongestionar os tribunais e melhorar o seu funcionamento
(www.gov.mj.pt). Ora, o legislador ao invés de prosseguir os seus intentos acaba
por impor a análise dos regimes contravencionais e transgressionais e do regime
contra-ordencional... Para além de que se, como entende o legislador, o regime
contravencional e transgressional fosse mais favorável, tal benefício estaria
dependente do momento da instauração do processado, numa clamorosa violação da
igualdade material. Ou seja, lendo o artigo 22º [20º], n.º 2 e 3 constata-se que
para factos praticados antes da LN e cujo processamento contravencional e
transgressional já teve início é possível a aplicação do regime das
contravenções e transgressões (se mais favorável?!), mas se o processo ainda não
estiver instaurado, correrá o processamento nas autoridades administrativas,
sendo que neste caso a aplicação terá que ser necessariamente uma
contra-ordenação (mesmo que o regime contravencional ou transgressional for mais
favorável), já que aquelas não podem aplicar multas..., sendo que o
processamento das contravenções e transgressões está adstrito ao poder
judicial...
Assim sendo, ou entendemos que o legislador, de todo, não se soube exprimir,
fruto de alguma confusão entre as infracções e então teremos que eliminar do
ordenamento jurídico aquela parte do preceito, por não ser possível a sua
aplicação, fazendo uma interpretação abrogante (no sentido da admissibilidade
deste tipo de interpretação no domínio do processo penal David Catana,
Apontamentos de Direito Processual Penal, AAFDL, 1993, p.80), ou admitimos que o
legislador se exprimiu da melhor maneira e então teremos uma violação do
principio constitucional da aplicação retroactiva da lei mais favorável ao
arguido, previsto no artigo 29.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa,
principio esse que, “no essencial, vale por analogia para todos os domínios
sancionatórios, designadamente o ilícito de mera ordenação social”(Gomes
Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, I, 2ª edição, página 208).
Debruçando-nos justamente no caso concreto que analisamos a escolha será entre a
aplicação de uma transgressão ou de uma contra-ordenação e das respectivas
sanções.
Ora, como ficou dito a transgressão é sempre mais gravosa que a
contra‑ordenação, por revestir uma natureza penal, cuja sanção é uma “verdadeira
pena” de multa (reacção esta de natureza criminal que visa fins de prevenção e
protecção e bens jurídicos), ao contrário da contra-ordenação cuja sanção é uma
coima que são sanções meramente pecuniárias, despidas de qualquer pathos ético,
que traduzem uma advertência ou admoestação social (João Soares Ribeiro, in obra
cit. p. 33), para além de que as transgressões implicam sempre um julgamento
solene (decerto que de efeitos secundários mais gravosos para o arguido).
Aliás, é esta a posição de TAIPA DE CARVALHO, in Sucessão de Leis Penais, 2ª
edição revista, Coimbra Editora, quando escreve, página 127 que “a lei, que
converte uma transgressão numa contra-ordenação é uma lei despenalizadora. Logo,
tem de aplicar-se retroactivamente (CP 1886, art. 6.º- 1.ª)”
Por força desta última consideração (reconhecendo a diversa natureza jurídica
das infracções em causa) teremos que concluir que nos termos do art. 29º, n.º4,
2º Parte da CRP e art 2º, 2 do C. Penal que a referida Lei n.º 25/2006, operou
uma verdadeira despenalização, sendo nessa medida de aplicação obrigatoriamente
retroactiva e não podendo por via da mesma sequer equacionar-se, ao contrário do
que prescreve o art. 20º, 1 da mesma Lei, qual o regime mais favorável, como se
estivesse perante uma verdadeira sucessão de leis penais no tempo “stricto
sensu” (cfr. art 2º, nº 4 do C.Penal) e não, como acontece no caso (atenta a
diversa natureza jurídica das infracções) perante uma despenalização (art 2º, nº
2 do C,Penal).
O referido art 20º, nº1 da Lei 25/2006 padece nessa medida de
inconstitucionalidade material, porquanto estatui uma excepção, abrindo as
“portas” à aplicação do regime legal transgressional.
Afastada que está a aplicação da Lei vigente à data da prática dos factos (que
punia o facto como transgressão), por despenalização, a questão que se coloca
agora é se a Lei Nova (que pune agora o facto como contra-ordenação), pode ser
aplicada retroactivamente, e como tal a conduta do arguido ser sancionada como
contra ordenação como decorre e pressupõe necessariamente o 20º, 1 da referida
Lei, já “supra” citado.
Julgamos, porém, tal não ser também admissível quer face à lei geral das contra
ordenações – vide Dec-Lei n.º 433/82, arts. 2.ºe 3.º, n.º 1, donde resulta que
só poderá ser punido como contra-ordenação o facto descrito e declarado passível
de coima por lei anterior ao momento da sua prática (princípio da legalidade),
sendo que a punição da contra-ordenação é determinada pela lei vigente no
momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que depende
(aplicação da lei no tempo) – quer face à própria Constituição da República
Portuguesa, que no seu art 29º, 1 consagra o princípio da legalidade cuja
importância é considerada indiscutida e indiscutível num Estado de Direito (e
que o referido art. 3º, 1 do DL 433/82 transpõe para a lei geral) sendo certo
que sufragamos inteiramente a posição de Gomes Canotilho e Vital Moreira in
Constituição da República Portuguesa Anotada, 1, 2º edição, pág. 208, no sentido
de que os princípios consagrados no art. 29º da CRP não se restringem apenas ao
direito criminal propriamente dito, devendo valer, no essencial, por analogia
para todos os regimes sancionatórios, designadamente o ilícito de mera ordenação
social.
Assim, resta concluir que a factualidade pela qual o arguido vem acusado deixou
de ser punível como transgressão por existir lei despenalizadora subsequente,
mas também não configura contra-ordenação, já que a Lei Nova só vale para o
futuro. Constata-se, portanto que se trata de um facto juridicamente irrelevante
e como tal, insusceptível de punição. Vide ainda Taipa de Carvalho, in loc.
cit., pag. 126, que no mesmo sentido conclui pela impunidade destas condutas,
desvantagem que desvaloriza, face à perspectiva de Estado de Direito que devemos
acolher. Vide ainda no mesmo sentido, em situação similar, Ac da RE de
11-01-2000 in CJ, Ano XXV, tomo, 1, pág 294 e segs.
Nesta sequência, retomando o raciocínio já “supra” explanado, considerando que o
legislador no referido art. 20º, nº 1 da Lei 25/2006 de 30-06, exprimiu o seu
pensamento em termos adequados (o que se presume ao abrigo do art 9º, n.º 3 do
C.Civil), teremos que concluir forçosamente que tal normativo padece de
inconstitucionalidade material por violação do art. 29º, nº1 e 4 da Constituição
da República Portuguesa, nos termos “supra” referidos.
Face ao exposto, decide-se:
Al. A) Não aplicar o art. 20º, nº 1 da Lei 25/2006 de 30-06, por considerar que
o mesmo enferma de inconstitucionalidade material, por violação do art. 29º, nº
1 e 4 da Constituição da República Portuguesa, nos termos e com os fundamentos
“supra” expostos;
Al. B) Declarar extinto o procedimento transgressional instaurado contra o/a
arguido/a, por despenalizada(s) a(s) sua(s) conduta(s), nos termos do art 2º, nº
2 do C.Penal e art 29º, nº 4 da C.R.P. e em consequência determinar o oportuno
arquivamento dos autos.
Sem custas, dada a extinção do procedimento.
Dá-se sem efeito a audiência de julgamento designada.
2. Ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal
Constitucional, «para apreciação da constitucionalidade da norma ínsita no
artigo 20º, da Lei 25/2006 de 30 de Junho, cuja aplicação foi recusada na
sentença proferida nos presentes autos, onde se decidiu 'não aplicar o artº 20º,
n.º 1, da Lei 25/2006 de 30-06, por considerar que o mesmo enferma de
inconstitucionalidade material, por violação do art. 29º, n.º 1, e 4 da
Constituição da República Portuguesa (…)', uma vez que a factualidade imputada
ao arguido 'deixou de ser punível como transgressão por existir lei
despenalizadora subsequente, mas não configura contra-ordenação, já que a Lei
Nova só vale para o futuro'».
Notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou alegações,
sustentando a não inconstitucionalidade da norma desaplicada e concluindo nos
seguintes termos:
'1. A norma do artigo 20º, n.º 1 da Lei nº 25/2006, de 30 de Junho, não viola
qualquer norma ou princípio constitucional ao desgraduar as contravenções e
transgressões aí previstas em contra-ordenações, ressalvando a aplicação do
regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, nomeadamente
quanto à medida das sanções aplicáveis.
2. Termos em que deverá proceder o presente recurso, não se confirmando o juízo
de inconstitucionalidade levado a caso pela decisão recorrida.'
Notificado, A. não alegou.
Nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 79º-A da Lei nº 28/82, foi determinado
que o julgamento deste recurso se fizesse em plenário.
3. Cumpre começar por delimitar o objecto do recurso.
Para o efeito, há que conjugar a decisão recorrida, o requerimento de
interposição de recurso para este Tribunal e a circunstância de estarem em causa
infracções resultantes de falta de pagamento de determinadas portagens devidas,
uma vez que o âmbito de aplicação da Lei n.º 25/2006 é definido, pelo seu artigo
1º, nos seguintes termos:
Artigo 1º
(Objecto)
A presente lei determina que as infracções que resultam do não pagamento ou do
pagamento viciado de taxas de portagem em infra-estruturas rodoviárias,
anteriormente à sua entrada em vigor, previstas e punidas como contravenções e
transgressões, passem a assumir a natureza de contra-ordenações.
Assim, o objecto do presente recurso consiste na norma constante do n.º 1 do
artigo 20º da Lei n.º 25/2006, de 30 de Junho, segundo a qual são sancionadas
como contra-ordenações infracções resultantes de falta de pagamento de taxas de
portagem previstas na Base LII das Bases de Concessão aprovadas pelo Decreto-Lei
n.º 248-A/99, de 6 de Julho, praticadas antes da entrada em vigor da Lei n.º
25/2006, sem prejuízo da aplicação do regime que concretamente se mostrar mais
favorável ao agente, nomeadamente quanto à medida das sanções aplicáveis.
4. Pelo Decreto-Lei n.° 248-A/99, de 6 de Julho (rectificado pela declaração de
rectificação n.° 10-BD/99 de 23 de Julho de 1999, Diário da República, I Série
A, de 31 de Julho de 99, e posteriormente alterado pelos Decretos-Leis n.°s
127/2003, de 24 de Junho, 42/2004, de 2 de Março, 39/95, de 17 de Fevereiro e
204-B/2005, de 28 de Fevereiro), foram aprovadas as bases da concessão ao
consórcio B., SA, mediante contrato a celebrar “nos termos do presente diploma e
das bases que dele fazem parte integrante', da “concessão da concepção,
projecto, construção, financiamento, exploração e conservação de lanços de
auto-estrada e conjuntos vários associados na zona norte de Portugal” (artigos
1º e 2° do referido Decreto-Lei n.° 248-A/99).
Para o que agora releva, foram fixadas as taxas de portagem a pagar pelas
diversas classes de veículos correspondentes à utilização das vias abrangidas,
bem como os casos de isenção de pagamento (cfr. Bases XLVIII e segs.); e, na
Base LII das Bases da Concessão (entretanto alterada pelo Decreto-Lei n.°
42/2004), foi definido o regime sancionatório aplicável em caso de não pagamento
ou pagamento viciado das referidas portagens [que, segundo a Base LI, pode ser
feito por “sistema manual, automático (através de Via Verde) e por cartão de
débito ou de crédito”]:
Base LII
(Não pagamento de portagens)
1 – As sanções pelo não pagamento ou pagamento viciado de portagens são
aplicadas aos utentes prevaricadores nos termos de legislação em vigor.
2 – A falta de pagamento de qualquer taxa de portagem é punida com multa, cujo
montante mínimo é igual a 10 vezes o valor da respectiva taxa de portagem, mas
nunca inferior a € 25, e o máximo igual ao quíntuplo do montante mínimo.
3 – Para efeitos do disposto no número anterior, sempre que for variável a
determinação da taxa de portagem em função do percurso percorrido e não for
possível no caso concreto a sua determinação, deve considerar-se o valor máximo
cobrável na respectiva barreira de portagem.
4 – Sempre que um utente se apresente numa barreira de portagem não sendo
portador do respectivo título de trânsito, considerar-se-á o dobro do valor
máximo cobrado na respectiva barreira de portagem, não havendo lugar ao
pagamento de qualquer multa.
5 – Sempre que um utente passe uma barreira de portagem sem proceder ao
pagamento da taxa devida será levantado auto de notícia.
6 – Além das entidades com competência para a fiscalização do trânsito, poderão
os portageiros da Concessionária levantar os autos referidos no número anterior,
considerando-se, para esse efeito, equiparados a funcionários públicos.
7 – A detecção das infracções previstas no n.° 1 poderá ser efectuada através de
equipamentos técnicos que registem a imagem do veículo com a qual a infracção
foi praticada.
8 – Os aparelhos a utilizar para o fim mencionado no número anterior devem ser
previamente aprovados pela Direcção-Geral de Viação, nos termos e para os
efeitos previstos no Código da Estrada.
9 – A Concessionária poderá, a partir da matrícula dos veículos, solicitar
directamente à Direcção-Geral dos Registos e do Notariado ou à Guarda Nacional
Republicana a identificação do respectivo proprietário, adquirente, usufrutuário
ou locatário em regime de locação financeira, com base no terminal informático
da Conservatória do registo Automóvel.
10 – O produto das multas reverte em 40% para a concessionária e os restantes
60% revertem para o Estado e para o IEP – Instituto das Estradas de Portugal,
respectivamente, na proporção de 60% e de 40%.
11 – A concessionária faz entrega mensal, nos cofres do Tesouro, dos
quantitativos das multas cobradas que constituem receita do Estado e do IEP,
mediante transferência para conta daquele organismo junto da Direcção-Geral do
Tesouro.
Por sua vez, o artigo 4° do Decreto-Lei n.° 130/93, de 22 de Abril (entretanto
revogado pelo n.° 1 do artigo 21° da Lei n.° 25/2006, de 30 de Junho),
estabelecia o regime aplicável “sempre que não for possível identificar os
condutores dos veículos que passarem a portagem sem procederem ao pagamento da
respectiva taxa (...)“ (n.° 1).
5. Entretanto, veio a ser aprovada a Lei n.º 25/2006, resultante da Proposta de
Lei n.º 42/X (Diário da Assembleia da República, I Série-A, n.º 125, de 30 de
Junho de 2006), diploma de onde consta a norma em apreciação neste recurso.
Conforme se pode ler na respectiva 'Exposição de Motivos', ali também publicada,
«A aplicação prática do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho, que instituiu o
ilícito de mera ordenação social, encontrou dificuldades de execução pela
Administração Pública, uma vez que esta não dispunha de meios que lhe
permitissem um cumprimento eficaz dos respectivos comandos normativos.
Com a aprovação do Decreto-Lei n.º 411-A/79, de 1 de Outubro, ter-se-á tentado
responder a essa dificuldade, revogando as normas do anterior diploma
determinantes das alterações em causa.
O legislador veio, entretanto, designadamente através do Decreto-Lei n.º 433/82,
de 27 de Outubro, manifestar a vontade de se avançar no sentido da constituição
de um ilícito de mera ordenação social e dar conta da urgência em concretizar o
direito das contra-ordenações, preocupação que tem vindo a demonstrar-se
perfeitamente justificada pela experiência, tornando conveniente a submissão ao
regime das contra-ordenações dos ilícitos ainda hoje previstos sob a forma de
contravenções e transgressões na legislação em vigor.
Este movimento reflecte uma tendência para proceder à conversão em
contra-ordenações de contravenções e transgressões em vigor no ordenamento
jurídico nacional, propósito assumido pelo XVII Governo Constitucional no seu
Programa de Governo e reafirmado na Resolução do Conselho de Ministros n.º
100/2005, de 30 de Maio, nos termos da qual foi reiterada a intenção de se
proceder à descriminalização de um conjunto de condutas.
Na matéria específica da utilização das infra-estruturas rodoviárias em que seja
devido o pagamento de taxas de portagem, pretende-se simultaneamente prevenir a
respectiva utilização fraudulenta e aliviar os tribunais do peso dos processos
correspondentes. Assim, passa a ser a Direcção-Geral de Viação a entidade
responsável pela instrução e decisão final do procedimento, sem prejuízo da
possibilidade de recurso judicial, nos termos gerais.
Por outro lado, a disponibilização de meios de fiscalização e de tramitação dos
processos de contra-ordenação justifica a afectação parcial do produto das
coimas às entidades que exercem a fiscalização e às entidades que asseguram a
instrução dos processos.
Por último, importa salientar a salvaguarda dos processos por contravenções e
transgressões praticadas antes da data da entrada em vigor da presente lei.
Foram promovidas as diligências necessárias à audição do Conselho Superior da
Magistratura, do Conselho Superior do Ministério Público, do Conselho Superior
dos Tribunais Administrativos e Fiscais, da Ordem dos Advogados, da Câmara dos
Solicitadores e do Conselho dos Oficiais de Justiça.'
Assim, no artigo 1º da Lei n.° 25/2006 foi determinado, como se viu, que “as
infracções que resultam do não pagamento ou do pagamento viciado de taxas de
portagem em infra-estruturas rodoviárias anteriormente à sua entrada em vigor,
previstas e punidas como contravenções e transgressões, passem a assumir a
natureza de contra-ordenações “.
Para o efeito, a Lei definiu o regime que passou a ser-lhes aplicável em
diversos pontos (fiscalização, regime contra-ordenacional para o caso de
contra-ordenações praticadas no âmbito de cobrança electrónica e manual de
portagens, determinação da coima aplicável, responsabilidade pelo pagamento,
competência para a instauração e instrução dos processos de contra-ordenação,
processo, etc.), mandou aplicar, a título subsidiário, “as disposições do regime
geral do ilícito de mera ordenação social e respectivo processo” (artigo 18°),
e, para o que agora especialmente interessa, dispôs o seguinte no seu artigo
20°:
Artigo 20°
(Regime transitório)
1 – As contravenções e transgressões praticadas antes da data da entrada em
vigor da presente lei são sancionadas como contra-ordenações, sem prejuízo da
aplicação do regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente,
nomeadamente quanto à medida das sanções aplicáveis.
2 – Os processos por factos praticados antes da data da entrada em vigor da
presente lei pendentes em tribunal nessa data continuam a correr os seus termos
perante os tribunais em que se encontrem, sendo-lhes aplicável, até ao trânsito
em julgado da decisão que lhes ponha termo, a legislação processual relativa às
contravenções e transgressões.
3 – Os processos por factos praticados antes da data da entrada em vigor da
presente lei cuja instauração seja efectuada em momento posterior correm os seus
termos perante as autoridades administrativas competentes.
4 – Das decisões proferidas pelas entidades administrativas, nos termos do
número anterior, cabe recurso nos termos gerais.
Ora foi justamente a aplicação do disposto no n.° 1 do artigo 20º da Lei n.°
25/2006, acabado de transcrever, que a sentença recorrida recusou, com
fundamento em inconstitucionalidade material, por considerar que viola os n.°s 1
(“Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior
que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos
pressupostos não estejam fixados em lei anterior”) e 4 (“Ninguém pode sofrer
pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da
correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos,
aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao
arguido”) do artigo 29° da Constituição.
Em síntese, a inconstitucionalidade resultaria do seguinte:
– Com a entrada em vigor da Lei n.º 25/2006, foi transformado em
contra-ordenação um ilícito que, nos termos da lei vigente à data da sua
prática, constituía um 'ilícito transgressional';
– A mesma Lei n.º 25/2006 contém um regime transitório segundo o qual 'as
transgressões e contravenções praticadas antes da sua entrada em vigor (…)
passam a ser sancionadas como contra-ordenações, sem prejuízo da aplicação do
regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, nomeadamente
quanto à medida das sanções aplicáveis (artigo 20, n.º 1, da citada Lei)';
– Ora é contraditório admitir que, relativamente a 'infracções de natureza
diversa, qualitativamente diferentes', sendo, por esse motivo, umas sempre mais
gravosas que as outras, se possa fazer uma apreciação da qual venha a
concluir-se que as sanções aplicáveis de uma ou de outra perspectiva sejam
quantitativamente mais ou menos favoráveis;
– As transgressões e as contravenções têm sempre natureza penal, sendo portanto
necessariamente de aplicação judicial e mediante processamento 'similar ao
julgamento de um crime', e são sempre mais gravosas que as contra-ordenações,
desde logo porque umas e outras prosseguem fins diferentes;
– Assim, sob pena de se entender 'que o legislador, de todo, não se soube
exprimir', o que nos levaria a 'eliminar do ordenamento jurídico' o n.º 1 do
artigo 20º da Lei n.º 25/2006, 'por não ser possível a sua aplicação (…), ou
admitimos que o legislador se exprimiu da melhor maneira e então temos uma
violação do princípio constitucional da aplicação retroactiva da lei mais
favorável ao arguido, previsto no artigo 29º, n.º 4 da Constituição da República
Portuguesa, princípio esse que, 'no essencial, vale por analogia para todos os
domínios sancionatórios, designadamente o ilícito de mera ordenação social'
(Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, I, 2ª edição, página 208)';
– Portanto, na realidade, não se coloca um problema de sucessão de leis no
tempo. Uma lei que converte uma transgressão numa contra-ordenação é sempre uma
lei despenalizadora. Da sua aplicação decorre, por um lado, a despenalização das
condutas anteriormente havidas como ilícitos contravencionais ou
transgressionais, como impõe o n.º 2 do artigo 2º do Código Penal e o n.º 4, 2ª
parte, do artigo 29º da Constituição; e, por outro, a impossibilidade de as
sancionar como contra-ordenações, por ser posterior à sua prática, sob pena de
violação, quer dos artigos 2º e 3º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, quer do
n.º 1 do artigo 29º da Constituição, também aplicável no âmbito do direito de
mera ordenação social.
6. Pelo acórdão n.º 61/99 (Diário da República, II série, de 31 de Março de
1999), posteriormente transcrito e acolhido em diversos acórdãos (acórdãos n.ºs
226/2006, 227/2006, 230/2006, 273/2006, 281/2006 e 419/2006, o primeiro
publicado no Diário da República, II série, de 22 de Maio de 2006 e todos
disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) e inúmeras decisões sumárias deste
Tribunal (cfr. decisões n.ºs 101/2006, 147/2006, 192/2006, 194/2006, 197/2006,
198/2006, 205/2006, 215/2006, 216/2006, 221/2006, 237/2006, 240/2006, 293/2006,
294/2006, 333/2006, 338/2006, 341/2006, 349/2006, 370/2006, 378/2006, 514/2006 e
515/2006, todas disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), no qual estava em
causa a apreciação de normas de teor semelhante à que consta da Base LII das
Bases de Concessão aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 248-A/99, na parte que agora
releva – ou seja, na punição com multa de infracção consistente na falta de
pagamento ou de pagamento viciado de portagens devidas em estruturas rodoviárias
–, o Tribunal Constitucional pronunciou-se da seguinte forma:
«3.1. Efectivamente, haverá, em primeira linha, que
acentuar que, independentemente da questão de saber se, após a revisão
constitucional operada pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro, é
possível a criação, ex novo, de contravenções, o certo é que a norma em apreço
veio instituir (e para se utilizarem algumas das palavras do artigo 3º do Código
Penal de 1886) a previsão de um comportamento consubstanciado na prática de um
«facto voluntário» «punível» in casu tão só com uma pena pecuniária) e que
«consiste unicamente na violação ou na falta de observância das disposições
preventivas das leis e regulamentos, independentemente de toda a intenção
maléfica» (cf., sobre o conceito de contravenção, Eduardo Correia, Direito
Criminal, I, pp. 218 a 221 e Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, ed. da
A.A.F.D.L., I, 168).
De outro lado, atento o momento temporal em que a norma em apreço foi editada
(1992) [1999, no caso], a sanção pecuniária nela prevista não podia ser
convertível em prisão, por se ter de haver por revogado, pela entrada em vigor
do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, o
artigo 123º do Código Penal, aprovado pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886
(cf., quanto que este último aspecto, por entre outros, os Acórdãos deste
Tribunal n.ºs 188/87 e 308/94, publicados na 2ª série do Diário da República de,
respectivamente, 5 de Agosto de 1987 e 29 de Agosto de 1994).
Ora, torna-se inquestionável que o comportamento em causa (o não pagamento da
«taxa» de portagem devida pela utilização das auto-estradas) não pode ter uma
ressonância ética tal que o haja de o qualificar como um crime; e, se se
ponderar que esse comportamento foi, já em 1992, tido como integrando um ilícito
passível de ser publicamente sancionado com uma pena meramente pecuniária, então
(tal como se disse no referido Acórdão nº 308/94, embora a propósito de outra
norma) há-de concluir-se que «o tratamento que lhe deve ser conferido há-de ser
o correspondente às contra-ordenações, para as quais a Constituição não exige a
prévia definição do tipo e da punição concreta em lei parlamentar».
Neste particular, não se pode olvidar que a prática do facto punível pela norma
sub specie representa, sem que grandes dúvidas a esse respeito se possam
levantar, uma infracção no domínio estradal, cumprindo recordar que práticas
semelhantes foram sancionadas anteriormente, verbi gratia pelos Decretos-leis
números 43.705, de 22 de Maio de 1961 (punição, com pena pecuniária, pelo não
pagamento da taxa de portagem pela utilização do lanço de auto-estrada
Lisboa/Vila Franca de Xira - cfr. artº 6º), e 47.107, de 19 de Julho de 1966
[punição, com pena pecuniária, pelo não pagamento da taxa de portagem pela
utilização da Ponte sobre o Tejo - hoje denominada Ponte 25 de Abril - cfr. artº
3º, § 4 -, e a que, por intermédio do Decreto-Lei nº 199/95, de 31 de Julho,
veio a ser dada a natureza de contra-ordenação - cfr. artº 1º, alínea c)].
3.1.2. E, a este propósito, convém respigar alguns passos que se podem ler no
citado Acórdão nº 308/94.
Assim, disse-se nesse aresto, a propósito da questão de saber se era possível,
no caso ali apreciado, a criação de um novo tipo contravencional (…).
«[…]Ou seja: o Governo poderia criar aqui esta nova infracção contravencional,
uma vez que não lhe corresponde sanção restritiva de liberdade, isto a admitir
que a figura das contravenções ainda tem cobertura constitucional […].
Tradicionalmente, quer a definição de cada concreto ilícito contravencional,
quer a fixação da respectiva pena, sempre puderam ser efectuadas por
regulamento, inclusivamente por regulamentos locais, como expressamente
resultava do preceituado no artigo 486º do velho Código Penal de 1886. E o mesmo
entendimento se manteve na generalidade da doutrina e na jurisprudência, após a
entrada em vigor da Constituição de 1976.
Com a revisão constitucional de 1982, suscitou-se o problema de saber qual o
destino, em geral, da figura das contravenções. A este propósito, escrevem J.
J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3ª ed., anotação X ao artigo 168º, pág. 673):
'Ao referir o ilícito de mera ordenação social, omitindo toda a referência à
figura das contravenções (que era tradicional no direito português até ao
Código Penal de 1982), a Constituição deixa entender claramente que ela
desapareceu como tipo sancionatório autónomo, pelo que as contravenções que
subsistirem (ou que forem ex novo criadas) têm de ser tratadas de acordo com a
natureza que no caso tiverem (criminal ou de mera ordenação social).'
Ora, dúvidas não restam que, no caso vertente, não deparamos com uma infracção
com a ressonância ética suficiente para poder ser qualificada como de natureza
criminal. E, assim sendo, e também porque lhe não corresponde qualquer sanção
privativa ou restritiva da liberdade, o tratamento que lhe deve ser conferido
há-de ser o correspondente às contra‑ordenações, para as quais a Constituição
não exige a prévia definição do tipo e da punição concreta em lei parlamentar.»
Estava então em causa, no recurso em que foi proferido o acórdão n.º 61/99,
saber se cabia ou não na reserva legislativa da Assembleia da República a
aprovação do disposto no 'n.º 7 da Base XVIII anexa ao Decreto-Lei n.º 315/91,
de 20 de Agosto, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 193/92, de 8 de
Agosto (passagem de veículo na barreira denominada 'via verde' da portagem de
Carcavelos (…), sem que fosse portador de equipamento identificador'.
Todavia, pode retirar-se, com interesse para a questão agora em apreciação, que
o Tribunal Constitucional, neste acórdão n.º 61/99 e em todas as decisões atrás
referidas que reiteraram a orientação que nele fez vencimento, apenas com a
discordância revelada na declaração de voto aposta ao acórdão n.º 419/2006,
entendeu, em síntese, estarem em causa infracções que, do ponto de vista 'da
relevância constitucional específica, entenda-se' (para usar a expressão
constante do acórdão n.º 117/2007, www.tribunalconstitucional.pt), e não do
direito ordinário, deveriam ser tratadas como (ou equiparadas a)
contra-ordenações; e que, para alcançar tal conclusão, o Tribunal assumiu ser
decisivo tratar-se de infracções que correspondem a um comportamento – 'o não
pagamento da taxa de portagem devida pela utilização das auto-estradas' – que
'não pode ter uma ressonância ética tal que o haja de qualificar como crime' e
para as quais foi definida uma 'pena meramente pecuniária', insusceptível de ser
convertida em prisão.
Esta conclusão, embora alcançada a propósito de uma questão de competência
legislativa, denota um entendimento segundo o qual a infracção em causa não
contém o desvalor próprio de uma infracção de natureza penal, antes revelando
uma natureza própria dos ilícitos que, após a introdução no direito português da
categoria do ilícito de mera ordenação social, nela foram expressamente
integrados (por conversão ou por definição, ab initio, como tal). E o mesmo
entendimento, aliás, informou o acórdão n.º 308/94, no qual, como resulta do
acórdão n.º 61/99, estava em causa a questão da forma constitucionalmente
exigível para a criação de contravenções às quais não correspondesse nenhuma
sanção privativa da liberdade.
Seguindo esta orientação, não se detecta no n.º 1 do artigo 20º da Lei n.º
20/2006 qualquer das inconstitucionalidades apontadas na sentença recorrida, já
que aquele preceito apenas vem qualificar expressamente como contra-ordenação
infracções que o Tribunal Constitucional já vinha considerando como podendo
assumir, materialmente, tal natureza. Assim, sempre nesta linha, nenhum
obstáculo constitucional se encontraria que impedisse a qualificação operada
pela nova lei, tanto mais que nela se esclarece que, se o regime aplicável de
acordo com as suas regras for mais favorável ao agente do que a que resultaria
da aplicação da lei anterior, é o que se aplica (nomeadamente, se a coima
corresponder a um montante pecuniário inferior ao da anterior multa).
Note-se, aliás, que a sentença recorrida não põe em causa a adequação da
inclusão deste tipo de infracções no âmbito das contra-ordenações; apenas
entende, nos termos já apontados, que só pode implicar a respectiva punição como
contra-ordenação para infracções posteriores à entrada em vigor da Lei n.º
25/2006.
E convém lembrar – apesar de só estar em causa neste processo o n.º 1 do artigo
20º da Lei n.º 25/2006 – que a aplicação desta Lei a infracções a que
anteriormente se não aplicava o regime previsto para o ilícito de mera ordenação
social (cfr. artigo 18º, que o manda aplicar a título subsidiário, 'em tudo
quanto' nesta lei 'se não encontre expressamente regulado'), mas o regime das
'contravenções e transgressões' (cfr. artigos 1º da Lei n.º 25/2006 e o
Decreto-Lei n.º 17/91, de 10 de Janeiro) que a Lei n.º 25/2006 teve o cuidado de
distinguir, relativamente a infracções anteriores, os processos já pendentes
(n.º 2) e os ainda não instaurados (n.º 3).
Nesta perspectiva, a norma do n.º 1 do artigo 20º não implica, portanto, nem a
eliminação do mundo das infracções das condutas, sancionadas pela Base LII das
Bases da Concessão aprovada pelo Decreto-Lei n.º 284-A/84, mas praticadas antes
da entrada em vigor da Lei n.º 25/2006, nem a consideração retroactiva de tais
infracções (entretanto tornadas juridicamente irrelevantes) como
contra-ordenações; não ocorre, pois, qualquer violação, seja do n.º 1, seja do
n.º 4 do artigo 29º da Constituição (não discutindo sequer se tais princípios
constitucionais são ou não, na medida pretendida pela sentença recorrida,
aplicáveis ao domínio do direito de mera ordenação social, pelo menos com a
mesma intensidade).
7. À mesma conclusão da não inconstitucionalidade se chega, no entanto,
adoptando a perspectiva – espelhada na já referida declaração de voto aposta ao
acórdão n.º 419/2006 – de que não é só no plano do direito ordinário (como
claramente se assume na Exposição de Motivos acima transcrita, que fala em
descriminalização de condutas), mas também do ponto de vista constitucional, que
se mantém a autonomia do ilícito contravencional, nomeadamente a par do ilícito
de mera ordenação social, como veremos.
É que, em qualquer caso, a questão colocada ao Tribunal Constitucional – e
amplamente tratada na doutrina – traduz-se, no fundo, em saber se é
constitucionalmente admissível transformar um ilícito criminal num ilícito
contra-ordenacional, mantendo a punibilidade das condutas praticadas antes dessa
transformação, mas passando a sancioná-las em conformidade (com uma coima e não
com uma multa, sanção de natureza penal).
Em particular, e porque de um recurso de fiscalização concreta se trata – está
em causa a qualificação como contra-ordenação de infracção previstas na já
transcrita citada Base LII, praticadas antes da entrada em vigor da Lei n.º
25/2006 –, convém recordar que tal transformação foi acompanhada de uma norma de
direito transitório que não só procede expressamente à conversão, mas também
explicita que sempre prevalecerá em cada caso o regime mais favorável
(naturalmente por confronto com a lei anterior).
A sentença recorrida, louvando-se no ensinamento de TAIPA DE CARVALHO, como se
pode verificar da transcrição, entendeu que não.
Considerando transponíveis para o direito de mera ordenação social os princípios
constitucionalmente reconhecidos da legalidade criminal – na vertente de que
'ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que
declare punível a acção ou omissão' (n.º 1 do artigo 29º da Constituição) e da
aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao arguido (n.º 4 do mesmo
artigo 29º), a sentença entendeu não ocorrer qualquer situação de sucessão de
leis no tempo, não cabendo, portanto, determinar qual regime (o anterior ou o
posterior à entrada em vigor da Lei n.º 25/2006) seria aplicável às infracções
praticadas antes dessa entrada em vigor. Julgou, pois, extinto o procedimento
transgressional que corria termos, por entender respeitar a condutas que tinham
sido despenalizadas e que não podiam ser punidas à luz de uma lei posterior à
sua prática.
Ora a verdade, todavia, é que não seria esta a solução a que se chegaria mesmo
que se aceitasse, por princípio, a tese do citado autor.
Como se pode ler em TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 2ª edição,
Coimbra, 1997, obra citada na sentença, em especial a pág. 120 e segs., mesmo
assumindo (como ali se faz) a diferença essencial de natureza (e não meramente
de grau), entre a contra-ordenação, por um lado, e o crime ou a contravenção,
por outro, 'não pode existir a mínima dúvida de que a conversão legislativa de
uma infracção penal numa contra-ordenação constitui uma despenalização da
respectiva conduta e, necessariamente (Constituição da República Portuguesa,
art. 29º, 4-2ª parte; CP 1982/95, art. 2º, 2; CP 1886, art. 6º, 1.ª), tem
eficácia retroactiva; jamais, a partir da entrada em vigor da lei que alterou a
qualificação, poderá aplicar-se a L.A. e, tendo já sido aplicada em sentença
transitada em julgado, cessam a execução da pena e os efeitos penais da
condenação. A responsabilidade penal, derivada do facto praticado antes do
início de vigência da L. N., extingue-se plenamente.
Problema diferente – mas que já não respeita à vigência temporal da lei penal –
é o da eficácia temporal da L.N, na medida em que passou a qualificar o facto (a
hipótese legal) como contra-ordenação. Ora o princípio geral é o de que a lei
que «cria» contra-ordenações só se aplica aos factos praticados depois da sua
entrada em vigor (Dec.-Lei n.º 433/82, art. 3º, 1 – eficácia pós activa).
Todavia, não está constitucionalmente consagrada – pelo menos de forma expressa
– a proibição de retroactividade da lei sobre contra-ordenações.
Assim, se a lei que altera a qualificação do facto de crime (ou de contravenção)
para contra-ordenação, não estabelece, mediante norma transitória, a sua
aplicabilidade às acções praticadas antes do início da sua vigência, tais
acções, que, necessária e constitucionalmente, são despenalizadas, também não
podem ser julgadas como ilícitos de mera ordenação social. Tornam-se, portanto,
juridicamente irrelevantes.
(…)
Se, pelo contrário, a lei, que converte a infracção penal em contra-ordenação,
estabelecer, por disposição transitória' (em nota, o autor esclarece que, então,
haverá que respeitar o regime da competência legislativa reservada da Assembleia
da República) 'a sua eficácia retroactiva, no sentido de tornar extensivo o seu
regime e as coimas respectivas aos factos praticados na vigência da lei antiga
(evitando, assim, a impunidade geral dos factos ainda não julgados), podem não
levantar-se, mas também poderão surgir problemas de constitucionalidade da norma
transitória'. A título de exemplo, fala da hipótese de 'atribuição de eficácia
retroactiva, quando as sanções, apesar de não terem natureza penal (coima e
sanções acessórias), se traduzirem num prejuízo (sacrifício) para o infractor
maior do que aquele que lhe adviria da aplicação (constitucionalmente
impossível) da lei penal revogada por esta lei que criou ex novo a
contra-ordenação' e da eventualidade de 'supressão retroactiva da garantia
jurisdicional' para a apreciação de condutas anteriores (questão esta não
abrangida pelo objecto do presente recurso, por não respeitar ao n.º 1 do artigo
20º da Lei n.º 25/2006).
Ora da leitura da longa transcrição acabada de fazer decorre, sem necessidade de
maiores explicações, que nem segundo a perspectiva deste autor ocorreria
inconstitucionalidade da norma em apreciação neste recurso.
8. Como se sabe e se escreveu, por exemplo, no acórdão n.º 677/98 (Diário da
República, II série, de 4 de Março de 1998), «é no capítulo dedicado aos
direitos, liberdades e garantias pessoais que a Constituição consagra os
princípios básicos relativos à “aplicação da lei criminal” (artigo 29º). Entre
eles, contam-se o princípio da legalidade, o princípio da irretroactividade da
lei incriminadora, o princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais
favorável, o princípio ne bis in idem e o direito à revisão da sentença e à
indemnização em caso de condenação injusta.'
Não se torna necessário averiguar se e em que medida tais princípios são
constitucionalmente impostos no âmbito do direito de mera ordenação social, como
se sustentou na sentença, já que, em qualquer caso, não seriam ofendidos pela
norma de que nos ocupamos.
Assim, e em primeiro lugar, porque o n.º 1 do artigo 20º da Lei n.º 25/2006 não
eliminou, nem a ilicitude, nem a responsabilidade pela conduta prevista na Base
LII das Bases de Concessão aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 248-A/99 (o não
pagamento das taxas de portagem ali previstas); limitou-se a proceder à sua
'desgraduação' ou 'desvalorização' para a zona do ilícito de mera ordenação
social.
Como escreve FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal, Parte Geral, tomo I, Coimbra, 2004,
pág. 188), salientando aliás que a transformação em contra-ordenação de uma
conduta que constituía crime 'é um problema de direito contra-ordenacional e não
penal – pois, com a descriminalização, a conduta deixou de ter relevância
penal', observa que 'o que deve perguntar-se é se a protecção do cidadão perante
o poder punitivo estadual e a tutela das suas expectativas, que conferem também
razão de ser ao princípio da legalidade contra-ordenacional, são
substancialmente postas em causa com uma eventual punição contra-ordenacional
nestas circunstâncias. E a resposta não pode deixar de ser negativa, pois no
momento da prática do facto não existiam razões para que o agente pudesse
esperar ficar impune; acabando, isso sim, com a aplicação da sanção
contra-ordenacional, por beneficiar de um regime que lhe é concretamente mais
favorável'.
No mesmo sentido, MARIA FERNANDA PALMA, A aplicação da lei no tempo: a proibição
da retroactividade in peius, Jornadas sobre a revisão do Código Penal, Lisboa,
1998, pág. 413 e segs., pág. 425, sustentando tratar-se apenas da 'substituição
de uma forma mais grave de responsabilidade por uma outra menos grave e a
correspondente substituição de uma pena por uma coima', solução que se impõe
'por uma compreensão valorativa da substituição de regimes'. Para além disso, e
salientando não se lhe afigurar correcto concluir pela extinção de
responsabilidade jurídica pelos factos passados sem uma manifestação de vontade
explícita do legislador nesse sentido, chama a atenção para o aspecto
fundamental de que 'nestas situações existe, na realidade, um comportamento
humano referente essencialmente idêntico, que assegura a unidade do facto e a
continuidade normativa'.
Também RUI PEREIRA, A Descriminação do consumo da Droga, in Liber Discipulorum
Jorge de Figueiredo Dias, pág. 1159 e segs., pág.1180 e segs., em especial, que
observa 'estarem em causa dois ramos do direito público sancionatório
contíguos', sustenta que 'na sucessão de leis criminais e contra-ordenacionais
se deve aplicar sempre o regime de mera ordenação social', o que aliás respeita
'em absoluto os princípios constitucionais de direito penal que aqui estão em
causa: legalidade, necessidade das penas e das medidas de segurança e
igualdade'.
Em segundo lugar, porque, ao operar a transformação em ilícito de mera ordenação
social, a lei procedeu de acordo com o princípio da aplicação retroactiva da lei
mais favorável, mandando aplicar o regime menos gravoso para o arguido,
nomeadamente quanto 'à medida das sanções aplicáveis'.
Não podemos, pois, dizer, desde logo, que tenham sido afectados os valores que a
Constituição garante quando consagra a regra de que 'ninguém pode ser
sentenciado criminalmente' – contra-ordenacionalmente, no caso, 'senão em
virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão' (n.º 1 do
artigo 29º da Constituição).
Mas igualmente se não pode dizer que a manutenção da punição da conduta viole a
regra que manda aplicar 'retroactivamente as leis penais de conteúdo mais
favorável ao arguido' (n.º 4 do artigo 29º da Constituição). É manifestamente
contrário, quer à letra, quer ao espírito do n.º 1 do artigo 20º em especial,
quer à Lei n.º 25/2006 globalmente considerada, admitir que o legislador quis
eliminar a ilicitude – e a punição – do não pagamento das portagens devidas.
Solução eventualmente contrária levaria ao absurdo de, uma vez incriminada uma
conduta, o legislador ficar impedido de a 'desgraduar' em contra-ordenação,
restando-lhe a opção entre manter uma incriminação que considera excessiva ou
conceder (não intencionalmente, como é manifesto) uma 'amnistia' generalizada a
condutas anteriores que continua a querer considerar ilícitas. Poderia
desagravar um crime, passando a puni-lo de forma menos severa (cfr. n.º 4 do
artigo 2º do Código Penal); mas não transformá-lo em contra-ordenação.
9. Nestes termos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do n.º 1 do artigo 20º
da Lei n.º 25/2006, de 30 de Junho, segundo a qual são sancionadas como
contra-ordenações infracções resultantes de falta de pagamento de taxas de
portagem previstas na Base LII das Bases de Concessão aprovadas pelo Decreto-Lei
n.º 248-A/99, de 6 de Julho, praticadas antes da entrada em vigor da Lei n.º
25/2006, sem prejuízo da aplicação do regime que concretamente se mostrar mais
favorável ao agente, nomeadamente quanto à medida das sanções aplicáveis;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando a
reformulação da decisão recorrida em conformidade com este julgamento.
Lisboa, 28 de Março de 2007
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Rui Manuel Moura Ramos
Benjamim Rodrigues
Bravo Serra
Maria Fernanda Palma
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Paulo Mota Pinto
Maria Helena Brito
Mário José de Araújo Torres
Artur Maurício