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Processo n.º 337/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1.Por acórdão de 20 de Janeiro de 2005, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu
negar provimento ao recurso interposto por A. do acórdão do 2.º Juízo Criminal
do Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira que, no âmbito do processo comum
colectivo n.º 871/99.1GBVFX, o condenou, entre outros, pela prática, em
co-autoria material, de um crime de falsificação, previsto e punido pelo artigo
256.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, do Código Penal, e, em autoria material, pela
prática de seis crimes de falsificação, previstos e punidos pelo artigo 256.º,
n.º 1, al. a), e n.º 3, do Código Penal, na pena de dezasseis meses de prisão,
cada um, e pela prática, em autoria material, de quatro crimes de burla
qualificada, previstos e punidos pelo artigo 218.º, n.º 1, do Código Penal, nas
penas de catorze, dez, nove e nove meses, respectivamente, e, em cúmulo
jurídico, na pena única de seis anos de prisão, bem como, no tocante ao pedido
cível formulado pelo demandante B., a pagar a este a quantia de € 10.973,55, a
título de danos patrimoniais, e a quantia de € 250, a título de danos morais,
tudo acrescido de juros de mora desde Dezembro de 2000 até integral pagamento.
Pode ler-se neste acórdão:
«(...)
II. É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso
se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem
prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
As questões levantadas no presente recurso são:
- falta de fundamentação por ausência do exame crítico das provas;
- erro de julgamento quanto à matéria de facto descrita sob os n.ºs 7,
33, 34, 44, 50, 55, 56, 60, 61, 65, 66;
- violação do princípio in dubio pro reo;
- erro na aplicação do direito no tocante à existência de mais que um
crime ou crime continuado, concurso entre os crimes de falsificação e de burla e
relativamente à medida da pena.
(...)
1. Como primeira questão posta no recurso em apreço, o recorrente invoca, sem
expressamente apontar o vício, a nulidade da sentença por ausência de exame
crítico das provas.
Nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, é nula a sentença que não
contiver as menções referidas no art.º 374.°, n.ºs 2 e 3, al. b), do CPP.
Por sua vez, o n.º 2 deste último preceito impõe, de entre outras menções
obrigatórias de qualquer sentença, que ao relatório (com as indicações
constantes do n.º 1 do preceito) seguir-se-á a fundamentação, a qual consiste na
“(...) enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição
tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de
direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que
serviram para formar a convicção do tribunal” (destaque nosso).
Conforme é jurisprudência corrente, da qual destacamos o acórdão do Tribunal da
Relação de Lisboa, de 21.04.2004, proferido no P.º 4775/2003, in www.dgsi.pt, “A
motivação da decisão de facto, seja qual for o conteúdo mais ou menos exigente
que se lhe dê, não pode ser um substituto do princípio da oralidade e da
imediação no que tange à actividade de produção da prova, transformando-a em
documentação da oralidade da audiência, nem se propõe reflectir nela
exaustivamente todos os factores probatórios, argumentos, intuições, etc., que
fundamentam a convicção ou resultado probatório”.
Sem embargo, no nosso sistema processual as decisões de facto não assentam
puramente no íntimo convencimento do julgador, num mero intuicionismo, antes se
exigindo um convencimento racional, devendo, pois, o juiz pesar com justo
critério lógico o valor das provas produzidas, o que está em conexão com o
também neste aspecto chamado “princípio da publicidade”, definido por Castro
Mendes, “Do Conceito de Prova”, pág. 302, como sendo “aquele segundo o qual o
processo - e portanto a actividade probatória e demonstrativa - deve ser
conduzido de modo a permitir que qualquer pessoa siga o juízo e presumivelmente
se convença como o julgador (...)”, o que, no entanto, não exclui a intuição ou
conhecimento por outros sentidos, em si insusceptíveis de serem demonstrados
exteriormente.
Ademais, diga-se, na motivação a que se vem aludindo, tanto no aspecto da
indicação das provas como da sua crítica, avultando neste último aspecto a
explicitação da credibilidade dos meios probatórios, trata-se de publicitar por
forma suficiente o processo probatório, não podendo esquecer-se, como vem notado
por Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, pág. 205, que para a convicção do
juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas
também elementos racionalmente não explicáveis (v.g., a credibilidade que se
concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais. No dizer
impressivo e incontornável do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de
14-5-2003 (Proc. 3108/02 – 3.ª Secção), in www.stj.pt”.
Da transcrição acima feita do teor da sentença, neste particular, é mencionado
que o tribunal se socorreu fundamentalmente dos depoimentos prestados pelos
arguidos (esclarecendo o que de mais relevante cada um deles entendeu por
mencionar), os depoimentos das testemunhas de acusação e dos pedidos cíveis (“as
quais tiveram, no essencial, um depoimento isento e credível.” “(...)
designadamente, as que venderam os salvados aos arguidos e compraram os veículos
já alterados aos arguidos, ou posteriormente a terceiros, confirmaram os
elementos essenciais desses negócios (datas, preços), bem como reconheceram os
arguidos como sendo as pessoas com quem contrataram. Também os proprietários dos
veículos subtraídos confirmaram essas ocorrências complementando com as datas e
locais das mesmas, que aliás, estão suportadas nas participações respectivas”),
prova documental, (junta aos autos) e pericial (Exames e avaliação das viaturas
de fls. 81, 146, 138, 247, 322, 420, 513, 969, 885, 1060, 1281, 1248, 1598 e
869).
Conclui-se que na sentença em recurso foram mencionadas as provas em que o
tribunal se baseou com a indicação (muito resumida) da respectiva intervenção e
objecto do depoimento.
Mencionou ainda o tribunal colectivo, contrariamente ao alegado pelo
arguido/recorrente, qual a razão porque optou por uma ou outra das versões
apresentadas e onde encontra âncora para essa opção (vejam-se a menção à não
consideração da versão apresentada pelo recorrente quando menciona: “As suas
declarações não mereceram acolhimento na parte em que justifica a posse dos
veículos furtados, já alterados nos seus elementos, pelas razões que abaixo
melhor explanamos.”) e, mais à frente, adiantou as razões da não conformidade
dessa versão com os demais elementos existentes nos autos.
Não tem, pois, razão o recorrente neste aspecto, pois a decisão está devidamente
fundamentada, com obediência ao falado art.º 374.º, n.º 2, sendo até de louvar a
minúcia que o tribunal colocou na fundamentação. Efectivamente, “os motivos de
facto que fundamentam a decisão não são nem factos provados nem meios de prova
mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos
constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se
formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos
meios de prova apresentados em audiência” (Maia Gonçalves em anotação ao art.º
374.°, n.º 2, do C. P. Penal, C. P. Penal Anotado, 1998, 9.ª Edição).
De resto, é sabido que esse normativo não exige a explicitação e valoração de
cada meio de prova perante cada facto, mas tão só uma exposição concisa dos
motivos de facto (e os motivos de facto não têm o significado que o recorrente
pretende atribuir-lhes) e de direito que fundamentam a decisão, com indicação (e
só esta) das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, não
impondo a lei a menção das inferências indutivas levadas a cabo pelo tribunal ou
dos critérios de valoração das provas e contraprovas. Note-se que o art.º 374.º,
n.º 2, praticamente traduzido da al. e) do n.º 1 do art.º 546.º do Código de
Processo Penal italiano, é omisso quanto à última parte deste normativo, onde
precisamente se manda que o juiz enuncie “as razões pelas quais considera não
atendíveis as provas contrárias”, omissão que não pode resultar de distracção do
legislador português, mas de vontade inequívoca de excluir esse dispositivo (Ac.
do S.T.J., de 9/1/97, in C.J. – Acs. do S.T.J., V, Tomo 1, 172).
Extrai-se do acima mencionado que o tribunal colectivo explicou quais as razões
por que optou pela versão dos factos dados como provados e onde se baseou para
chegar à prova, pela positiva e pela negativa, da matéria de facto.
Inexiste, deste modo, a apontada nulidade de falta de fundamentação não
assistindo qualquer razão ao recorrente nesse tocante.
***
2. No que tange ao invocado erro na apreciação da prova, previsto no art.º
410.º, n.º 2, al. c), do C. P. Penal, relativamente aos pontos da matéria de
facto respeitantes à execução das adulterações com auxilio de terceiros, é óbvio
não resultar ele do próprio texto da decisão recorrida por si só ou conjugada
com as regras da experiência comum.
É que, como se escreveu no Ac. do STJ de 19.12.90, proc. 413271/3.ª Secção: “I -
Como resulta expressis verbis do art.º 410.º do C. P. Penal, os vícios nele
referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas
sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente
declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a
instrução ou até mesmo no julgamento (...). IV - É portanto inoperante alegar o
que os declarantes afirmaram no inquérito, na instrução ou no julgamento em
motivação de recursos interpostos”.
Ora, a matéria de facto dada como provada e não provada no acórdão recorrido é
clara e incontroversa, sendo irrelevante a tese perseguida pelo recorrente,
inicialmente, em sede de julgamento quando prestou as respectivas declarações (e
como muito bem notou o tribunal só se dispôs a tal depois de ouvidas as
testemunhas arroladas), e, agora, em sede de motivações de recurso.
O que o recorrente está a pôr em crise é o princípio da investigação oficiosa do
processo penal e o princípio da livre apreciação da prova.
Porém, a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre
apreciação da prova pelo juiz.
Vejamos então.
O princípio da livre apreciação da prova está consagrado no art.º 127.º do
C.P.P. e, aí, se diz que “... a prova é apreciada segundo as regras da
experiência e a livre convicção da entidade competente”.
E embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspectos
fácticos, e que são os referidos no art.º 410.º, n.ºs 2 e 3, do C. P. P., não
pode sindicar a valoração das provas feitas pelo colectivo em termos de o
criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra.
A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá
envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global
de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção
de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo
sobre pontos determinados da matéria de facto.
Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente
demonstráveis, referindo-se a relevância que têm para a formação da convicção do
julgador “elementos intraduzíveis e subtis”, tais como “a mímica e todo o
aspecto exterior do depoente” e “as próprias reacções, quase reacções, quase
imperceptíveis, do auditório” que vão agitando o espírito de quem julga (no
mesmo sentido Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211,
para acrescentar depois, a págs. 271, que “existem aspectos comportamentais ou
reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, interiorizados ou
valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou
registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o
modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores”).
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção,
o tribunal indique “os fundamentos suficientes para que, através das regras da
ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela
convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.
E convém referir que tendo o juiz formado a sua convicção com provas não
proibidas por lei prevalece a convicção que da prova teve àquela que formulou o
Recorrente. Esta é irrelevante.
***
3. Quanto à pretensa violação do princípio “in dubio pro reo”, dir-se-á, em
síntese que, o que resulta do princípio citado é que quando o Tribunal fica na
dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência
jurídica que mais beneficie o arguido.
Ora, no acórdão recorrido, não decorre nem da matéria de facto dada como
provada, nem da sua fundamentação, qualquer dúvida no tocante a esta última. O
Tribunal não teve qualquer hesitação quanto à valoração dos depoimentos, tendo
fixado o tribunal unicamente no tocante aos factos não provados, em função da
dúvida decorrente das provas, os relativos à apropriação dos veículos bem como
aos demais falsificados, sendo então mencionado: “quanto à autoria da subtracção
dos veículos, pese embora tenham sido detectados os veículos em causa na posse
dos arguidos, não se apurou a que título lhes advieram”.
Ou seja, sendo de admitir-se que os veículos viciados possam ter sido subtraídos
pelos arguidos, o certo é que sempre ficaria por determinar, qual deles,
concretamente, o teria feito, ou se o não fizeram em conjunto. Por outro lado,
também não poderia deixar de hipotetizar-se que os arguidos poderão ter recebido
de terceiros tais veículos, situação nem sequer suposta na acusação.
Em conclusão: as dúvidas colocadas não foram e não poderiam ser resolvidas com a
prova produzida em julgamento, até porque nenhum dos ofendidos pela subtracção
das viaturas indicou qualquer facto que permitisse solucionar aquelas.
Relativamente aos demais factos integrativos dos crimes de burla e falsificação
dados como não provados, não foi concludente a prova no sentido de apurar a
autoria destes factos, surgindo dúvidas ao Colectivo de Juízes que não foram
ultrapassadas pela prova avançada em audiência (sublinhado nosso).
Para além deste grupo de factos, o Tribunal retirou para os factos provados
directamente tais conclusões da prova produzida em audiência. Não
deveria/poderia, em consequência, fazer uso de tal princípio, para além da
situação em que fez e que acima se mencionou.
***
4. Impugna ainda o recorrente o enquadramento jurídico-criminal dos factos dados
como provados numa dupla vertente: a primeira, relativa à impossibilidade de se
verificar a condenação pelos crimes de falsificação e de burla, por no seu
entendimento se verificar concurso aparente de normas, e a segunda, por estarmos
perante crime continuado. Não existem dúvidas que os factos dados como provados,
no tocante ao recorrente, preenchem os elementos típicos dos crimes de
falsificação e de burla pelos quais foi condenado.
Como se menciona na decisão recorrida, “a conduta apurada integra a modalidade
de falsificação naquilo que é designado por falsificação material - acto de
falsificar ou alterar documento, ou seja, os arguidos alteraram o documento
trocando os elementos identificativos de um(s) veículo(s) (chapa de matrícula e
n.º de chassis) por outro(s).
Estes elementos são para efeitos do art.º 255.° do Cód. Penal documentos, na
medida em que são um suporte material que expressa/incorpora com eficácia
probatória e jurídica.
Revestem a natureza de documentos autênticos ou equiparados - cf. art.º 363.° do
Cód. Civil -, a chapa de matrícula porque atribuída pela Direcção Geral de
Viação (autoridade pública) e o n.º de chassis porque ainda que oriundo de
entidade particular, este elemento é transcrito como elemento identificador do
respectivo veículo nos registos oficiais e é a expressão visível e obrigatória
de elementos identificadores constantes desses registos.
Ao nível subjectivo resultou assente que os arguidos actuaram com o propósito
conseguido de modificar os elementos modificativos dos referidos veículos
(matrícula e n.º de chassis), que sabiam apenas poderem ser atribuídos por
entidade oficial competente, e que gozavam de credibilidade e fé pública perante
a generalidade das pessoas e das autoridades, enquanto elementos idóneos a
identificar os veículos, querendo e conseguindo pôr em causa a credibilidade de
tais elementos, prejudicando, desta forma, o Estado e terceiros.
Actuou da forma apontada o arguido A., nos circunstancialismos dados por
assentes, quanto aos veículos matrículas (falsificadas) 77-45-xx, 13-06-yy,
78-97-ww, 97-89-kk, 26-12-xy, 73-94-yx e 64-05-kw, sendo que, quanto ao
primeiro, em co-autoria com o seu irmão C..
Assim, por cada veículo que viciou, praticou um crime de falsificação nos termos
acima apontados, incorrendo na prática de sete crimes de falsificação, um dos
quais em co-autoria com o arguido C., previstos e punidos pelo art.º 256.°, n.º
1, al. a), e n.º 3 do Cód. Penal”.
Quanto aos crimes de burla ali é descrito: “No caso concreto, os arguidos, com
intuito de obter benefícios patrimoniais e, ocultando a falsificação dos
elementos identificativos de veículos furtados, procederam à venda dos mesmos a
terceiros, os quais apenas por desconhecerem tal facto os adquiriram. Pagaram os
preços respectivos daí lhes advindo o prejuízo patrimonial, porquanto, sendo
tais veículos furtados, e estando viciados nos seus elementos identificativos,
foram apreendidos pelas entidades policiais.
Ao nível subjectivo resulta que os arguidos actuaram com o propósito conseguido
de obter um enriquecimento patrimonial ilegítimo à custa de terceiros que
ludibriaram da forma acima referida, cientes que tais veículos não lhes
pertenciam, que se encontravam alterados nos seus elementos identificativos.
Pelo exposto, o arguido A., que actuou desta forma quanto aos veículos
matrículas (falsificadas) 13-06-yy, 26-12-xy, 73-94-yx e 64-05-kw, incorreu na
prática de quatro crimes de burla agravada, dado o valor do prejuízo sofrido
pelos adquirentes (sujeitos passivos da infracção) ter sido superior a
700.000$00 - art.º 202.° do Cód. Penal.”
No tocante à existência de concurso aparente entre as normas do tipo de crime de
falsificação e de burla remetemos o recorrente para o teor do Assento do STJ n.º
8/2000 in DR, I-A, n.º 119, de 23-05-2000, que fixou a seguinte jurisprudência
obrigatória: “No caso de a conduta do agente preencher as previsões de
falsificação e de burla do artigo 256.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 217.º,
n.º 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de
15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes.”
Insurge-se ainda o recorrente contra a decisão por entender que a sua conduta
integra a prática de um crime continuado de falsificação e um crime continuado
de burla, nos termos do art.º 30°, n.º 2, do CP.
Nos termos deste preceito “Constitui um só crime continuado a realização plúrima
do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam
o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro
da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a
culpa do agente”.
São deste modo requisitos do crime continuado:
- realização plúrima do mesmo tipo de crime, estando em causa o mesmo bem
jurídico;
- homogeneidade da forma de execução;
- lesão do mesmo bem jurídico;
- unidade do dolo, em que as diversas resoluções se conservam dentro de uma
linha psicológica continuada;
- persistência de uma mesma “situação exterior” que facilita a execução do crime
e que diminui consideravelmente a culpa do agente.
Da factualidade provada não existem dúvidas quanto à possibilidade de
verificação dos primeiros quatro elementos indicados. Porém, não se vislumbra,
dentre os factos provados, a verificação da “situação exterior diminuidora
considerável da culpa do arguido” bem como a possibilidade de persistência da
mesma durante o tempo decorrido entre Abril de 1999 e Dezembro de 2002 em que os
factos delituosos foram cometidos.
Arredada se mostra, pois, a possibilidade da integração das condutas ilícitas em
sede de crime continuado.
***
5. Relativamente à medida da pena de prisão que foi aplicada pelo Colectivo, não
merece o acórdão recorrido qualquer censura.
Tendo o arguido praticado facto típico, ilícito e culposo e não se encontrando
reunidos os pressupostos da dispensa de pena, impõe-se a aplicação de uma pena,
como consequência jurídica da prática do crime.
A determinação da medida da pena continua compreendida dentro da faculdade
discricionária do juiz (Cavaleiro Ferreira, “Boletim dos Institutos de
Criminologia”, 64) após a subsunção dos factos aos preceitos penais e
respeitando os pressupostos a que se refere o artigo 71.º do Código Penal.
E um dos princípios basilares do Direito Penal reside na compreensão de que toda
a pena tem como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta.
A medida da pena não é pura matemática, antes uma operação complexa desenrolada
em três fases:
- escolhem-se os fins das penas, pois só a partir deles se podem ajuizar os
factos do caso concreto relevantes para a determinação da pena e a valoração que
lhes deve ser dada (o n.º 1 indica a culpa do agente em primeiro lugar, mas no
mesmo nível situa as exigências de prevenção), lembrando que agora dispõe o art.
40.º, n.º 1, sobre as finalidades da punição - protecção dos bens jurídicos e
reintegração do agente na sociedade;
- fixam-se os factores que influem no doseamento da pena, as circunstâncias
concorrentes no caso concreto que, em relação com os fins das penas, têm
importância para a determinação do tipo e gravidade da pena (indicados,
exemplificativamente, no n.º 2);
- tecem-se os considerandos que fundamentam a determinação efectuada (de acordo
com o n.º 3).
Sendo finalidades das penas a protecção de bens e valores jurídicos e a
reintegração do agente delituoso na sociedade (prevenção geral e prevenção
especial, respectivamente), há que buscar um ajustado equilíbrio entre elas,
equilíbrio esse que não inibe que, perante o caso concreto, uma dessas
finalidades possa e deva prevalecer sobre a outra.
E assim foi efectivamente feito pelo tribunal “a quo” que, ao fixar as penas
concretas, usou de moderação e cuidado.
Efectivamente, contra o arguido recorrente há a considerar a gravidade objectiva
e subjectiva dos factos; a ilicitude é acentuada como o é o grau de culpa, pois
os agentes deste tipo de crimes ponderam bem o perigo que constitui lidar com
este tipo de actividades delituosas e, apesar disso, arriscam-se a fazê-lo, bem
conhecendo e pretendendo os lucros de tal actividade.
As necessidades de prevenção especial são prementes, como o são as necessidades
de prevenção geral.
Por fim, sendo finalidades das penas a protecção de bens e valores jurídicos e a
reintegração do agente delituoso na sociedade (prevenção geral e prevenção
especial, respectivamente), há que buscar um ajustado equilíbrio entre elas,
equilíbrio esse que não inibe que, perante o caso concreto, uma dessas
finalidades possa e deva prevalecer sobre a outra.
Ora, os bens e valores jurídicos protegidos e tutelados nos preceitos
incriminadores são indiscutivelmente muito valiosos - o que explica a relativa
severidade das sanções e a amplitude do horizonte típico -, pelo que não podem
ficar indefesos por via de uma eventual supremacia (ou prevalência) do escopo da
ressocialização sobre o da sua eficaz salvaguarda: quando assim suceda ou seja,
quando a prevenção especial deva ceder o lugar à prevenção geral, competirá ao
arguido, na fase da execução penal, demonstrar que o desiderato reintegrador
venha ou possa vir a ser assegurado.
Diga-se em adjuvância terminal e em complemento do que foi explanado que, face
às finalidades das penas, em caso algum pode a pena ultrapassar a medida da
culpa (art.º 40.º, n.º 2, do C. Penal). Só assim se atingirá uma das finalidade
das penas - a criação de um sentimento de segurança, de utilidade, de punidade e
de justiça.
E a verdade é que a pena que recaiu sobre o recorrente não ultrapassou a medida
da sua culpa e também não extravasou dos limites dentro dos quais a justiça
relativa tinha de ser procurada, uma vez que foi ponderada e convenientemente
tida em conta a actividade criminosa, as molduras penais abstractas dos
preceitos incriminadores, a natureza das infracções, a intensidade do dolo, a
personalidade do delinquente, os antecedentes criminais do arguido e as
exigências de prevenção de futuras infracções idênticas - o enquadramento social
e familiar do recorrente bem como a sua integração no mundo laboral, contudo,
não diminui a responsabilidade criminal do arguido, antes e na sequência do
atrás mencionado a agrava já que, exercendo o arguido uma actividade remunerada,
através da qual poderia auferir os rendimentos necessários ao seu sustento e de
sua família, maiores responsabilidades tinha para se afastar da delinquência.
E como se refere na decisão recorrida, depois de afastada a possibilidade de
aplicação ao caso de pena não privativa de liberdade: “No tocante à medida
concreta da pena e tendo em atenção que o critério da sua determinação terá como
limite mínimo as necessidades de prevenção geral e especial e como limite máximo
a culpa do agente (art.º 71.° do Cód. Penal), há que ponderar:
a) a ilicitude, que se revela elevada;
b) o dolo, que é directo e de grau elevado;
c) o modo de execução - quanto à falsificação, bastante elaborada e de difícil
detecção, donde decorre que o crime de burla assume um ardil altamente
sofisticado e também indetectável;
e) a gravidade das consequências do facto no próprio momento, designadamente, o
prejuízo patrimonial provocado aos lesados nos crimes de burla e, quanto ao
crime de falsificação - o bem jurídico protegido aqui protegido que é a fé
pública, traduzido no sentimento geral de confiança nos actos públicos - sendo
lesado o Estado.
d) os antecedentes criminais dos arguidos;
e) as necessidades de prevenção geral que, quanto aos crimes de burla e
falsificação, assumem algum relevo na nossa sociedade;
*
Abre-se aqui um parêntesis para aflorar as razões da não aplicação ao arguido A.
do regime especial para jovens, previsto no Dec.-Lei n.º 401/82, de 23 de
Setembro.
Com efeito, [embora] à data da prática de dois dos crime de falsificação e burla
(em 1999 e 2000) tivesse 19/20 anos, entende este Colectivo de Juízes que
atentas as circunstâncias que rodearam a prática dos factos, conduta anterior e
posterior à prática dos crimes, inexistem razões sérias para considerar que a
atenuação resultaria em vantagens reais para a sua reinserção social”.
Ponderando em conjunto os factos e a personalidade do arguido, bem como as
exigências de prevenção geral e especial, a gravidade da sua conduta, e enfim a
segurança da sociedade em geral, e tendo em atenção a que a medida da concreta
da pena, assenta na “moldura de prevenção”, moldura cujo máximo é constituído
pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do
quantum da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens
jurídicos e das “expectativas comunitárias”, dentro das molduras penais
abstractas previstas para os crimes de falsificação e de burla qualificada, p. e
p. pelos, respectivamente, art.º 256.°, n.ºs 1, al. a), e 3 e art.º 218.°, n.º
1, do CP, mostram-se justas, necessárias e adequadas, quer as penas parcelares
quer a pena única aplicadas ao recorrente.»
2.Notificado desta decisão, o arguido A. arguiu a sua nulidade, por entender
que:
“(...) o acórdão em crise, ao fundamentar de uma forma insuficiente e
insatisfatória a (aligeirada ou inexistente) negação que fez à impugnação da
matéria de facto pelo recorrente no seu recurso, bem como da negação do
enquadramento jurídico-criminal dos factos dados como provados que o recorrente
pugnou, relativa à impossibilidade de se verificar a condenação em concurso
efectivo entre falsificação e a burla e relativa à questão de estarmos perante
um crime continuado, vicia o acórdão agora em crise de nulidade por falta de
exame crítico e omissão de pronúncia (art.ºs 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, e
425.º, n.º 4, todos do CPP).
Do que resulta o douto acórdão ser nulo porquanto não se pronunciou sobre
questões que devia apreciar.
É esta a melhor interpretação a dar aos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, do
CPP, pois, a dar-se outra interpretação, a mesma contende com o estatuído nos
artigos 32.º e 205.º da CRP.”
Por acórdão tirado em conferência em 10 de Março de 2005, o Tribunal da Relação
de Lisboa decidiu indeferir a arguição de nulidade, nos seguintes termos:
«(...)
Como se referiu no acórdão deste tribunal de que agora se invoca a nulidade, é
pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se
define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem
prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso. (...)
Conheceu-se do recurso interposto, debruçando-se este tribunal ad quem sobre as
seguintes as questões:
A - Nulidade da sentença recorrida por ausência de exame crítico das provas;
B - Erro notório na apreciação da prova;
C - Erro notório na apreciação da prova;
D - Violação do principio in dubio pro reo;
E - Incorrecto enquadramento legal da matéria de facto dada como provada;
F - Da medida concreta da pena.
Tudo o mais que se pretendesse fazer investigado ou vertido no acórdão, era
acessório ao thema.
Não se devem confundir questões suscitadas com os próprios argumentos produzidos
pelo recorrente na defesa das suas posições.
“É a nulidade mais frequentemente invocada nos tribunais, pela confusão que
constantemente se faz entre ‘questões a decidir’ e ‘argumentos’ produzidos na
defesa das teses em presença. Deve evitar-se este erro. Também não integra o
apontado vício a omissão de pronúncia sobre questões efectivamente suscitadas
pelas partes quando a sua apreciação se encontre prejudicada pela solução
encontrada para alguma ou algumas delas.”
Toda a matéria pertinente ao recurso foi tratada e decidida. A emissão do juízo
jurídico-substantivo plasmado no acórdão “reclamado” surge como plenamente
clarividente ao concluir pelo entendimento de que - contra o que o reclamante
alega, se não justifica, no caso concreto, a alteração da sentença recorrida -
explicando cristalinamente as razões de tal conclusão.
Ademais, todas essas premissas e dados factuais e jurídicos, bem como o discurso
lógico-discursivo e decisório correspondente, se encontram inequivocamente
enunciados e descritos no aresto reclamando.
E o raciocínio no mesmo plasmado revela-se perfeitamente cristalino e
clarividente para qualquer destinatário normal e médio, que é o suposto ser
querido pela ordem jurídica.
Nem mesma a pretensa omissão quanto a resposta à questão do concurso aparente
servirá para ilustrar a razão do recorrente.
O tribunal não tem que rebater argumento por argumento, de entre todos os
invocados pelo recorrente, quando já dispõe de um argumento mais forte que, só
por si, rebate todos os invocados.
E não existindo qualquer dúvida quanto à não obrigação por parte dos outros
tribunais portugueses de seguirem a jurisprudência fixada nos assentos do STJ,
existe um dever de fundamentação em caso de divergência relativamente a tal
jurisprudência, a qual, de resto, determina a obrigatoriedade de recurso para o
M.º P.º - art.ºs 445.º, n.º 3, e 446.º, n.º 1, do CPP. Inexistindo, na nossa
perspectiva e da nossa parte, razões para divergir dessa jurisprudência fixada,
limitámo-nos a remeter, como remetemos, o recorrente para o teor do Assento
identificado.
No fundo, o que o reclamante pretende é, agora de uma só penada, reiterar a sua
discordância com o julgado em primeira instância, com a posição do Ministério
Público em primeira instância e com o acórdão proferido por este tribunal ad
quem, procurando demonstrar a comissão de um hipotético “erro de julgamento”,
quem sabe obter tempo para descortinar uma eventual “inconstitucionalidade”; não
pretende, realmente, que seja esclarecida qualquer omissão/nulidade, pretensão
que este Tribunal não pode evidentemente legitimar.»
3.O recorrente interpôs então o presente recurso de constitucionalidade ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento
e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), dizendo
no requerimento de recurso:
«1 - O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.° da
Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei n.º 85/89, de 7 de
Setembro, e pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro;
1.ª Questão
2 - Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos
374.°, n.° 2, e 379.º, n.° 1, do CPP com a interpretação com que foram aplicadas
na decisão recorrida, nomeadamente a interpretação segundo a qual o tribunal de
recurso não tem que reapreciar (ponto por ponto) as provas que o recorrente
indica quanto aos pontos concretos que tem como mal julgados.
3 - Tais normas, daquela forma interpretadas, violam os artigos 32.°, n.º 1, e
205.°, n.° 1, da Constituição da Republica Portuguesa.
4 – A questão da inconstitucionalidade foi suscitada quando o recorrente arguiu
a nulidade do Douto Acórdão de Relação (fls..), porquanto só aí verificou que
aquele acórdão não se pronunciou sobre as questões de facto que o recorrente
pretendia ver apreciadas, liquidando em termos práticos o efeito útil do
recurso.
2.ª Questão
5 – Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos
256.° e 217.° do CP, com a interpretação com que foram aplicadas no douto
acórdão recorrido (fls. 51 do douto acórdão), nomeadamente a interpretação dada
pelo Assento do STJ n.º 8/2000, de 23/05/2000, o qual conclui que “no caso de a
conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do art.º
256.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 217.º, n.º 1, respectivamente, do Código
Penal, revisto pelo Dec-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real
ou efectivo e de crimes”.
6 – Tais normas, daquela forma interpretadas, violam o artigo 29.°, n.º 5, da
Constituição da Republica Portuguesa.
7 – A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos autos, no recurso de
fls. ..., que o recorrente interpôs do acórdão da 1.ª instância.»
No Tribunal Constitucional foi proferido pelo relator o seguinte despacho:
“Para alegações, fixando-se para tal um prazo de 15 (quinze) dias, nos termos do
artigo 79.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, e ficando o recorrente
informado, para os devidos efeitos, da eventualidade de se não vir a poder tomar
conhecimento do recurso de constitucionalidade, no todo ou em parte, por falta
de suscitação, durante o processo, da inconstitucionalidade das normas
impugnadas, bem como, quanto à dimensão normativa reportada aos artigos 374.º,
n.º 2, e 379.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por esta não ter constituído
ratio decidendi para o tribunal recorrido.”
O recorrente alegou nos seguintes termos:
«i) Quanto à primeira questão (apreciação da inconstitucionalidade dos art.ºs
374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, do CPP):
A questão da inconstitucionalidade da norma ser suscitada “durante o processo”
impõe que nesta sede façamos algumas considerações.
Arguir a questão de inconstitucionalidade “durante o processo” significa, em
regra, que ela tenha de ser levantada enquanto a causa se encontrar pendente, ou
seja, antes do tribunal recorrido ter proferido a decisão final.
A 1.ª questão de inconstitucionalidade levantada pelo recorrente não foi nem
nunca poderia ter sido suscitada durante o processo, caindo indiscutivelmente,
salvo melhor opinião, na excepção que comporta a regra acima enunciada.
Com efeito, não vislumbramos outro momento se não aquele em que se levantou a
questão, ou seja, aquando da arguição de nulidade por omissão de pronúncia do
Douto Acórdão da Relação de Lisboa.
Trata-se, pois, de uma questão “nova”, sobre a qual o Tribunal recorrido não se
pronunciou, nem tal lhe era possível, pela própria natureza da questão, e,
portanto, para a qual o Tribunal da Relação de Lisboa ainda dispunha de poder
jurisdicional.
E que o recorrente não podia “adivinhar”, quando elaborou o recurso para aquele
Tribunal e impugnou a matéria de facto da forma como a lei prescreve, que aquele
Tribunal Superior não ia cumprir a Lei Adjectiva, violando os mais elementares
direitos com dignidade constitucional, nomeadamente o direito de recurso e de
ver as questões de facto que suscitou concretamente respondidas.
Recorde-se que o Tribunal da Relação de Lisboa não responde ponto por ponto,
conforme é obrigado, às questões de facto levantadas pelo recorrente.
É que esta exigência de a questão dever ser suscitada antes de se ter esgotado o
poder jurisdicional da instância recorrida visa a obtenção de uma decisão
susceptível de ser impugnada perante o Tribunal Constitucional, de forma a
evitar que este, ao conhecer da questão sem a certeza de a mesma ter sido pelo
menos implicitamente ponderada, se substitua à instância recorrida, desta forma
ultrapassando os seus poderes de cognição e desvirtuando o próprio sentido de
recurso.
Salvo o devido respeito, e face ao exposto, estamos perante um caso em que o
poder jurisdicional não se esgota com a prolação da decisão recorrida e em que o
interessado não dispõe de oportunidade processual para levantar a questão da
inconstitucionalidade antes de proferida a decisão, caso em que lhe deve ser
reconhecido o direito de recurso (vide acs. n.ºs 318/89, 329/95, 521/95, 364/00
e 374/00).
No caso concreto não faria nenhum sentido a defesa, no recurso que fez do
acórdão de 1.ª instância, arguir a inconstitucionalidade dos artigos 374.°, n.º
2, e 379.°, n.º 1, do CPP caso o Tribunal da Relação não respondesse ponto por
ponto às questões de facto correctamente levantadas pelo recorrente.
Objectivamente seria estar a presumir que o Tribunal iria violar a lei de forma
clara.
O que ninguém pode negar ao Recorrente A. é o direito a ver reapreciada, em
segunda instância, a matéria de facto nos pontos que indica, e tem como
erradamente julgados, sendo de considerar que o fez com obediência a todos os
requisitos formais estabelecidos na lei, de tal forma que o tribunal ora
recorrido acabou por decidir sobre a questão, ainda que de forma genérica e
imprecisa.
O que se trata, efectivamente, é de factos que poderiam e deveriam ter sido
averiguados pelo Colectivo e que não o foram. Essa omissão é patente pela
simples leitura do Acórdão recorrido e sem fazer apelo a outros elementos.
Tal significa que o tribunal a quo deixou “de pronunciar-se sobre questões que
devia apreciar”, incorrendo assim em nulidade (vide artigo 379.°, n.° 1, alínea
c), do Código de Processo Penal), sendo que a interpretação que este faz dos
referidos preceitos legais é manifestamente inconstitucional.
Veja-se a fls. 4 do douto acórdão que decide sobre a nulidade e
inconstitucionalidade invocada pelo recorrente:
“O Tribunal não tem que rebater argumento por argumento, de entre todos os
invocados pelo recorrente (...).”
Com efeito, pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos
artigos 374.°, n.° 2, e 379.°, n.° 1, do CPP, com a interpretação com que foram
aplicadas na decisão recorrida, nomeadamente a interpretação segundo a qual o
tribunal de recurso não tem que reapreciar (ponto por ponto) as provas que o
recorrente indica quanto aos pontos concretos que tem como mal julgados.
Tais normas, daquela forma interpretadas, violam os artigos 32.°, n.º 1, e
205.°, n.º 1, da Constituição da Republica Portuguesa.
ii) Quanto à segunda questão (apreciação da inconstitucionalidade dos art.ºs
217.º e 256.º do CP):
O recorrente tanto na motivação como nas conclusões do recurso que interpôs do
acórdão condenatório da primeira instância levantou devidamente a questão da
inconstitucionalidade dos art.ºs 256.° e 217.° do CP.
A esta questão o acórdão recorrido responde com o acórdão uniformizador de
jurisprudência n.º 8/2000, de 4/05/2002, conforme se alcança a fls. 51.
Consideramos não poder ser acolhida a doutrina deste acórdão, uma vez que viola
o princípio constitucional ne bis in idem.
No caso dos autos dúvidas não há de que a falsificação dos veículos não passou
de um meio para cometer o crime de burla, aliás resulta inequivocamente do
acórdão recorrido.
Sendo o erro (no crime de burla) provocado ou realizado através de um meio
engenhoso, parece-nos que a “falsificação dos veículos” será exactamente esse
meio engenhoso. Na verdade o crime de burla constitui uma unidade de infracções
estabelecida pela própria lei, pelo que o crime de burla incorpora não só a
actividade burlosa mas também todas as outras actividades ilícitas que
constituam um meio para a realização daquele enriquecimento ilegítimo, obtido
através de erro ou engano astuciosamente provocado. In casu, a decisão do
recorrente de proceder à colocação da chapa de matrícula da viatura acidentada
noutra viatura e depois, com o veículo alterado nos seus elementos, ocultando
esse facto, o vender a terceiros, é manifestamente uma única decisão.
O que o recorrente pretendia era tão-só o enriquecimento ilegítimo, utilizando
como meio enganoso a adulteração dos veículos.
Punir, neste caso concreto, as duas condutas – a da falsificação e de burla –
corresponde à punição dupla do recorrente pelo mesmo facto, o que consubstancia
a violação de um princípio constitucional, consagrado no art.º 29.°, n.º 5, da
CRP “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
Com efeito, a interpretação do acórdão recorrido, alicerçada exclusivamente no
acórdão uniformizador acima indicado, segundo a qual há concurso real de crimes,
no caso de a conduta de o agente preencher as previsões do crime de falsificação
(art.º 256.° do CP) e do crime de burla (art.º 217.° do CP) é materialmente
inconstitucional porquanto contende com o estatuído no art.º 29.°, n.º 5, da
CRP, se, conforme se verifica nos autos, a falsificação é realizada como meio e
artifício para atingir um crime de burla e havendo unidade da resolução
criminosa (cfr. se verifica no acórdão recorrido, nomeadamente a fls. 52), isto
é, o agente falsificar para burlar.
Nestes termos se requer a V.Ex.ª que se digne a conhecer do recurso de
constitucionalidade apresentado a fls. ..., julgando materialmente
inconstitucionais as normas supra indicadas.»
Contra-alegando, concluiu o Ministério Público:
«1 – O arguido não suscitou, durante o processo e em termos processualmente
adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa quanto às regras
legais atinentes ao exercício pela Relação do duplo grau de jurisdição quanto à
matéria de facto – podendo perfeitamente tê-lo feito na peça processual em que
invocava precisamente a nulidade “por omissão de pronúncia” do acórdão
inicialmente proferido pela Relação.
2 – Assente que – dada a radical diversidade de natureza dos bens jurídicos
tutelados por dois tipos penais diferenciados – o concurso entre ambos é “real”,
é manifesto que tal conclusão em nada ofende o princípio constitucional da
proibição do duplo julgamento pelo mesmo crime.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
4.Como resulta do requerimento de recurso, o recorrente traz a este Tribunal
duas diferentes questões de constitucionalidade: uma relativa a normas
adjectivas – as dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, do Código de Processo
Penal, que o Tribunal da Relação de Lisboa teria aplicado com a interpretação de
que “o tribunal de recurso não tem de reapreciar (ponto por ponto) as provas que
o recorrente indica quanto aos pontos concretos que tem como mal julgados”;
outra referente a normas substantivas – as dos artigos 256.º e 217.º do Código
Penal, “com a interpretação com que foram aplicadas no douto acórdão recorrido
(…) nomeadamente a interpretação dada pelo Assento do STJ n.º 8/2000 de
23/05/2000”, o qual concluiu que “no caso de a conduta do agente preencher as
previsões de falsificação e de burla do art.º 256.º, n.º 1, alínea a), e do
artigo 217.º, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Dec.-Lei n.º
48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes”.
Ora, consultando os autos, verifica-se que a questão de constitucionalidade
relativa às normas processuais penais referidas não foi adequadamente suscitada
durante o processo.
Na verdade, das duas disposições processuais penais indicadas, uma diz respeito
aos requisitos da sentença (o artigo 374.º, n.º 2) e a outra tanto trata das
consequências da omissão desses requisitos (artigo 379.º, n.º 1, alínea a)) como
das consequências do excesso (artigo 379.º, n.º 1, alínea b)) ou omissão (artigo
379.º, n.º 1, alínea c)) de pronúncia. Vindo impugnadas ambas as normas
conjuntamente (artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, do Código de Processo
Penal), dir-se-ia estar em causa a falta das menções referidas no artigo 374.º,
n.º 2, do Código de Processo Penal – e, portanto, a nulidade prevista na alínea
a) do n.º 1 do seu artigo 379.º. As referências à omissão de pronúncia, por
outro lado, levam antes a identificar a nulidade da alínea c) do n.º 1 do mesmo
artigo 379.º, tendo sido esse o sentido a que se referiu o Procurador-Geral
Adjunto em funções neste Tribunal nas suas contra-alegações (“o recorrente não
curou de enunciar qualquer questão de inconstitucionalidade normativa no
requerimento em que arguiu, perante a Relação, o vício de nulidade por omissão
de pronúncia”). É verdade que no requerimento de arguição de nulidade do acórdão
do Tribunal da Relação de Lisboa foram invocadas ambas as causas de nulidade, e
que se deve ter em conta que a impugnação da decisão da 1.ª instância já se
estribava numa alegada deficiente aplicação do disposto no artigo 374.º, n.º 2,
do Código de Processo Penal. Poderá, pois, não ter sido inteiramente claro em
que medida é que se impugnou a confirmação, pelo Tribunal da Relação de Lisboa,
da fundamentação da decisão da 1.ª instância, e em que se impugnou,
autonomamente, a própria fundamentação da decisão da 2.ª instância. Certo,
porém, é que o que se sustentou não foi qualquer vício de constitucionalidade
das normas que prevêem a nulidade de certas insuficiências da sentença (sendo,
ainda, que é por remissão do n.º 4 do artigo 425.º do Código de Processo Penal
que tais normas são aplicáveis às decisões proferidas em recurso), mas sim a sua
não aplicação ao caso – isto é, à decisão reclamada.
De todo o modo, tendo presente que o recorrente, na arguição de nulidade da
decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, afirmou que “outra interpretação” dos
artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, do Código de Processo Penal contenderia
“com o estatuído nos artigos 32.º e 205.º da CRP”, determinou-se a produção de
alegações. Nestas, porém, o recorrente manteve o sentido impugnado para ambas as
normas no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade: o de
que “o tribunal de recurso não tem que reapreciar (ponto por ponto) as provas
que o recorrente indica quanto aos pontos concretos que tem como mal julgados”.
Note-se que esta interpretação dissocia as duas normas que são impugnadas: da
leitura do artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal à luz do texto
constitucional faz o recorrente derivar a necessidade de cumprimento de certos
requisitos; do artigo 379º, n.º 1, deriva a consequência do seu não cumprimento.
Ora, como este Tribunal já notou no acórdão n.º 674/99, publicado em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 45.º vol., pp. 559-640, a propósito da articulação do
dito artigo 379.º, n.º 1, com outras normas que não o referido artigo 374.º, n.º
2, mas com idêntico fundamento:
«Igualmente irrelevante é a apreciação da questão de inconstitucionalidade da
norma do artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do mesmo CPP, na medida em que a mesma
carece de qualquer autonomia na economia da pretensão processual do recorrente.
É que, sendo indiscutível que a norma em causa sanciona com a nulidade o
incumprimento dos ritualismos previstos nos artigos 358.º e 359.º, o que importa
saber é se estes – ou, antes, um deles – deveriam ter sido desencadeados, por a
respectiva interpretação impor a verificação da existência de uma “alteração dos
factos”.
Aliás, também esta norma não foi objecto de aplicação pelo acórdão sob recurso,
nem mesmo na perspectiva da determinação do âmbito negativo de aplicação da
mesma norma, uma vez que o STJ não considerou verificado aquele que, segundo o
próprio recorrente, seria o seu pressuposto de aplicação no caso vertente - a
alteração dos factos constantes da pronúncia. Só assim não aconteceria no caso
de se haver concluído pela existência de uma tal alteração, mas se considerasse
que o não cumprimento dos procedimentos estabelecidos na lei para tais situações
não acarretaria uma nulidade.
Nesta conformidade, também não há que conhecer da questão de
inconstitucionalidade da norma em causa.»
Por outro lado, a referência ao tribunal de recurso situa muito claramente a
dimensão supostamente inconstitucional da norma na actuação do Tribunal da
Relação de Lisboa, representando a clara autonomização da impugnação da decisão
da 2.ª instância. Tal agrava a inadequação das normas invocadas como suporte de
tal interpretação, por dizerem respeito a um tribunal de 1.ª instância (só pela
mediação do já referido artigo 425.º do Código de Processo Penal sendo
aplicáveis a um tribunal de recurso).
De qualquer modo, e mesmo deixando de lado a norma do artigo 379.º, n.º 2 – por
a sua aplicação depender de o Tribunal da Relação decidir que tinha havido
omissão de pronúncia (ou falta de “exame crítico das provas que serviram para
formar a convicção do tribunal”) e ser, portanto, consequência directa do
entendimento professado quando a outras normas –, não pode dizer-se que a
interpretação impugnada tenha estado presente na actuação do Tribunal da Relação
de Lisboa: perante o requerimento de arguição de nulidade este refere-se, sim, à
desnecessidade de “rebater argumento por argumento, dentre todos os invocados
pelo recorrente, quando já dispõe de um argumento mais forte que, só por si,
rebate todos os invocados”, o que é diferente da interpretação impugnada,
referente à dispensa de “reapreciar (ponto por ponto) as provas que o recorrente
indica quanto aos pontos concretos que tem como mal julgados” (itálicos
aditados).
Acresce que a decisão recorrida não se baseou, decisivamente, sequer na citada
afirmação. Antes ao decidir sobre o alegado “erro de julgamento quanto à matéria
de facto descrita sob os n.ºs 7, 33, 34, 44, 50, 56, 60, 61, 65 e 66”, o acórdão
ora recorrido invocou o disposto nos artigos 410.º, n.ºs 2 e 3, e 127.º do
Código de Processo Penal, concluindo que o “erro na apreciação da prova” não
resultava “do próprio texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as
regras da experiência comum”. Quer dizer que, a admitir-se que o tribunal a quo
adoptou o sentido impugnado pelo recorrente, tal não ficou a dever-se a uma
qualquer interpretação do disposto nos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, do
Código de Processo Penal, mas sim ao que considerou serem os limites aos seus
poderes, resultantes do disposto no artigo 410.º do Código de Processo Penal. É,
pois, a questão relativa a este artigo, sobre os limites dos poderes do tribunal
recorrido, que constituiu a ratio decidendi, no que toca à amplitude da
actividade do Tribunal da Relação em matéria de reapreciação da decisão de
facto: ainda que assim se não entendesse, e se admitisse que do artigo 374.º,
n.º 2, já resultaria o que o recorrente pretende, da invocada norma do artigo
410.º do mesmo código sempre decorre um outro fundamento para a decisão do
tribunal a quo, que, por não ter sido impugnado, tornaria inútil a apreciação da
questão de constitucionalidade que lhe foi colocada, já que a decisão recorrida
sempre subsistiria com base nesse outro fundamento.
Não deve, pois, conhecer-se da questão de constitucionalidade com o sentido
definido pelo recorrente e referido às normas dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º,
n.º 1, do Código de Processo Penal.
5.Resta a questão de constitucionalidade referente aos artigos 256.º e 217.º do
Código Penal. Ora, o que em cada uma destas disposições se contém é a definição
do tipo legal de crime correspondente: burla no artigo 217.º, falsificação de
documentos no artigo 256.º. E o que vem impugnado é a norma que prevê o seu
concurso real, que é a que se contém no “Assento” n.º 8/2000, publicado no
Diário da República [DR], I Série A, de 23 de Maio de 2000, aliás na sequência
do que o Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça já
estabelecera, face à versão inicial do Código Penal, em 17 de Fevereiro de 1992
(DR, I Série, de 9 de Abril de 1992). Esta última norma, no entanto, não foi
impugnada, sub species constitutionis, durante o processo, muito embora o
recorrente a tenha referido na sua motivação do recurso para o Tribunal da
Relação de Lisboa. O que implica que esteja apenas em causa o concurso entre as
situações sujeitas às normas (rectius: a possibilidade de se aplicarem em
concurso essas duas normas, já que não cabe ao Tribunal Constitucional aferir a
aplicação do direito infra-constitucional), mas não possa estar em causa
directamente a previsão resultante do citado “Assento”.
Assim, e porque às normas do artigo 217.º e 256.º do Código Penal foi imputada,
durante o processo, a interpretação de que “há concurso real de crimes, no caso
de a conduta do agente preencher as previsões do crime de falsificação (art.º
256.º do CP) e do crime de burla (art.º 217.º do CP)”, admitiu-se o recurso,
embora no seu requerimento de interposição tal questão já fosse referida ao
“Assento do STJ n.º 8/2000” – cujo sentido, como se disse, por não ter sido
impugnado durante o processo, escapa à apreciação deste Tribunal.
6.Sobre a substância da questão de constitucionalidade, disse o Ministério
Público que “a definição de quais são os bens jurídicos tutelados pelos vários
tipos legais de crime é matéria ligada exclusivamente à interpretação e
aplicação do direito penal, excluída das competências do Tribunal
Constitucional”. E acrescentou que “sendo radicalmente diferentes os bens
jurídicos tutelados pela burla e pela falsificação, é óbvio que o concurso entre
tais tipos penais é real – e não meramente aparente – não se vendo em que medida
é que tal conclusão pode violar normas ou princípios da Lei Fundamental: carece,
na verdade, de sentido a invocação do princípio ne bis in idem na medida em que
a determinação do tipo de conexão que existe entre dois tipos penais nada tem
que ver com a proibição do duplo julgamento pela prática do mesmo crime (cfr.
Acórdão n.º 303/05).”
Estas considerações são, no essencial, de acompanhar, quanto à inexistência de
violação do princípio ne bis in idem: por um lado, não compete ao Tribunal
Constitucional determinar, com independência da questão de conformidade
constitucional que tem para decidir, quais são exactamente os bens jurídicos
tutelados pelo vários tipos legais de crime, ou se existe uma situação de
concurso de crimes; por outro lado, tendo-se entendido na decisão recorrida – e
não se vendo que tal conclusão viole preceitos constitucionais – que são
inteiramente diversos, também na sua função e na sua relevância valorativa, os
bens jurídicos protegidos pela incriminação da burla (o património em geral, ou
a liberdade de disposição deste) e da falsificação de documentos (“a verdade
intrínseca do documento enquanto tal”), não se vê como pode a existência de um
concurso de crimes não meramente aparente violar normas ou princípios
constitucionais. Isto, designadamente, quando a factualidade que os integra não
é inteiramente coincidente e esses crimes assumem relevância autónoma. Este
concurso de crimes não viola a proibição de julgamento, mais do que uma vez,
pela prática do mesmo crime (ne bis in idem), constante do artigo 29.º, n.º 5,
da Constituição, e isto mesmo entendendo-se que esta proibição é igualmente
aplicável aos casos de concurso meramente “aparente”. Conclusão, esta, que,
partindo também da diferença dos bens jurídicos tutelados, e a propósito dos
mesmos tipos penais ora em causa, foi, recentemente, reiterada pelo acórdão n.º
303/2005 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Pode ler-se aí que:
«o Tribunal Constitucional não tem recusado perspectivar pelo ângulo da violação
do princípio “ne bis in idem” situações (…) de punição em concurso efectivo de
ilícitos criminais, pelo mesmo acto de julgamento, no âmbito do mesmo processo.
Mas sempre concluiu que não era violado o referido princípio, assentando,
precisamente, a sua argumentação na circunstância de os bens jurídicos tutelados
serem distintos nos crimes em presença, como sucedeu nos acórdãos. n.ºs 102/99
(publicado no Diário da República, II Série, de 1 de Abril de 1999) e 566/2004
(este inédito, mas disponível em
http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm)».
E mais à frente escreveu-se:
«Ora, não cabe ao Tribunal dizer qual é a melhor interpretação do direito
ordinário quanto aos elementos integradores de cada tipo, por forma a concluir
que se verifica uma situação de concurso aparente e não de concurso efectivo.
Não estando em causa a vertente processual do princípio, que poderia exigir
outro critério ou indagações complementares para determinação do que é “o mesmo
crime” (designadamente, com recurso aos institutos relativos ao objecto do
processo), nada impede que o legislador configure o sistema sancionatório penal
quanto ao concurso de infracções em matéria criminal segundo um critério de
índole normativa e não naturalística, de modo que ao “mesmo pedaço da vida”
corresponda a punição por tantos crimes quantos os tipos legais que preenche,
desde que ordenados à protecção de distintos bens jurídicos, como é seguramente
o caso dos que prevêem a burla e a falsificação de documentos. Não ficando a
protecção de lesão ou perigo de lesão de bens jurídicos merecedores de tutela
penal esgotada ou consumida por um dos tipos que a conduta do agente preenche,
não viola o princípio da necessidade das penas e, consequentemente, o ne bis in
idem material, a punição em concurso efectivo (concurso ideal heterogéneo),
mediante esse critério teleológico, do crime-meio e do crime-fim, porque cada
uma das punições sanciona uma típica negação de valores pelo agente.»
É também isto o que se passa no presente caso, pelo que – mesmo admitindo tomar
conhecimento da questão de constitucionalidade relativa ao eventual concurso
efectivo entre crimes de falsificação e de burla – há que negar provimento ao
recurso.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
a) Não tomar conhecimento do presente recurso na parte relativa aos artigos
374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, do Código de Processo Penal;
b) Não julgar inconstitucional a norma extraída das disposições conjugadas dos
artigos 256.º, n.º 1, alínea a), e artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal, segundo
a qual no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e
de burla se verifica concurso real de crimes;
c) Confirmar, em consequência, a decisão recorrida, no que diz respeito às
questões de constitucionalidade, e condenar o recorrente em custas e fixando a
taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 7 de Julho de 2005
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma (com declaração de voto)
Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Tendo votado a decisão de não inconstitucionalidade do presente acórdão, não
posso subscrever na íntegra a sua fundamentação pelas seguintes razões:
1ª - Em primeiro lugar, afigura-se-me incongruente começar por afirmar que a
definição dos bens jurídicos tutelados pelas normas é matéria subtraída à
competência do Tribunal Constitucional, para depois identificar os bens
jurídicos protegidos nas incriminações da falsificação e da burla (artigos 256º
e 217º do Código Penal, respectivamente) e concluir que há concurso efectivo de
crimes precisamente por serem diversos esses bens jurídicos. Não me parecendo um
mero obiter dictum, esta laboriosa demonstração é contraditória com o primeiro –
e presumivelmente decisivo – argumento utilizado.
2ª - Em segundo lugar, estou longe de concordar com a singela tese de que a
identificação do bem jurídico tutelado numa norma incriminadora constitui
questão forçosamente alheia à fiscalização da constitucionalidade. Na verdade, o
princípio da necessidade das penas e medidas de segurança, que a doutrina e a
jurisprudência deduzem, pacificamente, do nº 2 do artigo 18º da Constituição, só
pode servir de parâmetro ao juízo de constitucionalidade de normas
incriminadoras mediante a identificação dos bens jurídicos protegidos nessas
normas – isto é, dos direitos ou interesses que fundamentam a compressão de
direitos implicada na aplicação de penas e medidas de segurança ou, recorrendo à
linguagem do Código Penal, dos bens jurídicos a defender através da imposição de
umas e outras (artigo 40º, nº 1). Do mesmo modo, a fiscalização do cumprimento
do princípio non bis in idem (artigo 29º, nº 5, da Constituição) requer a
identificação dos bens jurídicos protegidos. Só assim se logra distinguir o
concurso ideal – modalidade de concurso verdadeiro em que o agente comete vários
crimes através de uma só acção (rectius, de um comportamento unitário) – do
concurso aparente de crimes. E esta distinção constitui um dos mais importantes
corolários do princípio non bis in idem, não podendo o Tribunal Constitucional
dispensar-se de a conhecer.
3ª - Em terceiro lugar, nem sequer estou certa de que seja correcta a
identificação que é feita dos bens jurídicos tutelados (o património em geral,
na burla; “a verdade intrínseca do documento enquanto tal”, na falsificação,
segundo uma expressão de Figueiredo Dias e Costa Andrade – Colectânea de
Jurisprudência, VIII –3, p. 21 e ss.). Com efeito, entendo que o património em
geral é o bem jurídico protegido pela incriminação da burla, tal como se infere
do elemento sistemático-formal (epígrafe do Capítulo III do Título II do Livro
II) e sobretudo da descrição típica (o crime consuma-se com o prejuízo
patrimonial). Mas já não me parece que “a verdade do documento” seja, em rigor,
o bem jurídico-penal tutelado pela incriminação da falsificação. Esta afirmação
é, aliás, corroborada por se exigir no artigo 256º um elemento subjectivo
especial da ilicitude – “a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao
Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo”. Sem tal
elemento, que justifica a afirmação de Figueiredo Dias nos termos da qual a
falsificação é um “crime a meio caminho entre os crimes contra os bens
colectivos e os crimes patrimoniais” (Código Penal, Actas e Projecto da Comissão
de Revisão, 1993, p. 297), o tipo não pode ser preenchido, nem mesmo na forma
tentada.
4ª - Em quarto lugar, e como decorrência da minha última observação, devo
sublinhar que a plena compreensão do elemento subjectivo especial da
falsificação permite aproximar, na perspectiva do bem jurídico protegido, este
crime da burla. Também a burla comporta um elemento subjectivo especial (para
além do dolo) – a intenção de enriquecimento ilegítimo –, cuja configuração tem
pontos de convergência com o da falsificação (embora o benefício almejado nesta
não tenha de ser patrimonial). Por isso, recorrendo à lapidar fórmula
preconizada por Figueiredo Dias para definir o concurso aparente, legal ou
impuro de crimes, entendo ser defensável, no caso sub judicio, que “o conteúdo
ou a substância criminosa do comportamento é esgotantemente abarcado pela
aplicação ao caso de um só dos tipos violados” (Direito Penal, Sumários e Notas
das Lições do Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias ao 1º ano do Curso
Complementar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra de 1975-1976,
1976, pp. 102-3; em sentido idêntico, cf. Gunter Stratenwerth, Srafrecht.
Allgemeiner Teil. Die Straftat, 4ª ed., 2000, pp. 442-3). Deste modo, pode
concluir-se que, em determinados casos, se verifica uma consunção, sendo o
agente punível apenas por burla.
5ª - Em quinto lugar, ao contrário da especialidade, a consunção tem uma
natureza dinâmica e deve aferir-se em concreto, não bastando invocar uma lógica
de identificação, em abstracto, dos bens jurídicos protegidos para recusar in
limine o concurso aparente de crimes (e verdadeiro de normas). De resto, já na
vigência do Código Penal de 1886 Figueiredo Dias dava como exemplo de consunção
a falsificação para a defraudação de pequeno valor, classificando-a como impura,
uma vez que a pena da falsificação excedia a da defraudação (Direito Penal...,
ob. cit., p.106). No caso dos autos, e na vigência dos Códigos Penais de 1982 e
1995, essa dificuldade até foi removida porque as penalidades da burla e da
falsificação são idênticas. Nesta perspectiva, a falsificação, se consumida pela
burla, passaria a ser ponderada como circunstância (agravante) geral na
determinação da pena concreta, à semelhança do que sucede, por exemplo, quanto
à violação de domicílio no âmbito do furto qualificado, por determinação
expressa do artigo 204º, nºs 1, alínea f), e 3, do Código Penal.
6ª - Em sexto e último lugar, penso que a qualificação e terminologia utilizadas
no acórdão recorrido e na jurisprudência invocada do próprio Tribunal
Constitucional, a propósito do concurso, apesar de corrente, não é rigorosa e
propicia equívocos conceptuais. A expressão “concurso real” refere-se apenas a
uma das modalidades do concurso verdadeiro, efectivo ou puro de crimes - que
abarca ainda o concurso ideal (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal..., ob. cit.,
p. 113 e ss.). No caso em análise, a haver concurso verdadeiro, pode até
concluir-se que esse concurso é ideal – e não real –, uma vez que todos os actos
executivos da falsificação são também (alguns dos) actos de execução da burla,
no sentido das alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 22º do Código Penal (note-se
que Eduardo Correia defendia já a equiparação do concurso ideal ao concurso real
na vigência do Código Penal de 1886 - A teoria do concurso em Direito Criminal.
I – Unidade e pluralidade de infracções. II – Caso julgado e poderes de cognição
do juiz, 1983, reimp., p. 59 e ss.; em sentido contrário, pronunciava-se
Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, Parte Geral, II, 1982, pp.
474-6). Resta saber se a autonomização do concurso ideal não é mesmo uma
imposição do princípio non bis in idem.
Apesar das considerações precedentes, não votei contra a decisão do Acórdão.
Fi-lo por uma razão decisiva – creio que é compatível com a Constituição um
entendimento que privilegie como bem jurídico protegido no crime de falsificação
de documentos a segurança dos documentos no tráfico jurídico (ver, sobre isto,
Helena Moniz, no comentário ao artigo 256º do Código Penal, em Comentário
Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo II, artigos 202º a 307º, p.
680). E admito esta solução, sobretudo, quando em concreto se verifique uma
autonomia lesiva das condutas implicadas.
Maria Fernanda Palma