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Processo nº 168/2007
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam, em Conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos seguintes autos foi proferida a seguinte Decisão Sumária:
1. Nos presentes autos, a Associação de Socorros Mútuos A.” interpôs recurso do
acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Dezembro de 2005 para o
Supremo Tribunal de Justiça, sustentando, entre o mais, que o tribunal recorrido
não procedeu à audição dos depoimentos, não obstante ter sido impugnada a
decisão sobre a matéria de facto, com especificação dos concretos meios
probatórios que impunham decisão diversa da recorrida.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 20 de Junho de 2006, considerou o
seguinte:
A recorrente vem arguir a nulidade do acórdão, acusando os Exmos. Juízes
Desembargadores que o subscreveram de não terem ouvido os depoimentos por si
indicados nas alegações da apelação, apesar de ter impugnado as respostas dadas
aos quesitos 5º, 6º, 13º, 15º, 18° e 19° da base instrutória e ter dado
cumprimento ao preceituado pelo art. 690°-A do CPC.
A falta de audição dos depoimentos ou da leitura da respectiva transcrição,
quando necessária para julgamento da impugnação feita pela recorrente,
constituiria nulidade do acórdão, de que este STJ pode conhecer [art°s. 690°-A
n°5, 16° n° 1 e 668°n°1 al b), do CPC].
O Tribunal da Relação de Lisboa, no seu acórdão, não refere ter ouvido a
gravação dos depoimentos indicados, mas leu naturalmente a respectiva
transcrição feita pela recorrente e junta com as alegações.
De qualquer modo, cremos que o Tribunal da Relação não tinha necessidade de
ouvir os depoimentos em causa, nem de ler a respectiva transcrição, para
decidir, correcta e fundamentadamente, a impugnação feita como se irá
demonstrar.
Desde logo a impugnação das respostas dadas aos quesitos 6° e 13° foi decidida
no sentido pretendido pela recorrente.
A resposta dada ao quesito 15° pela 1ª instância foi de “não provado” e a
eventual alteração desta resposta pretendida pela recorrente foi por esta
motivada no relatório pericial, nos esclarecimentos dos peritos dados por
escrito, nas fotos juntas e no relatório realizado pelo LNEC igualmente junto
aos autos.
Os depoimentos indicados não tinham, pois, qualquer relevo para a impugnação
feita à resposta dada ao quesito 15º.
No que toca às respostas dadas aos quesitos 18° e 19° a recorrente acusa-as de
incompletas e deficientes, pelo facto de o tribunal não ter dado como provado
que a R. abandonou o prédio locado por não se sentir segura.
A R. afirma que toda a sua prova testemunhal foi nesse sentido.
No entanto, a audição destes depoimentos era igualmente irrelevante, porque
irrelevante era a parte do quesito 19° que o Tribunal não deu como provada
Que a R. se tenha ou não sentido insegura não tem o mínimo interesse para a
decisão, pois apenas releva se a parte locada continua ou não, objectivamente, a
satisfazer os fins prosseguidos com o arrendamento.
Quanto à parte que releva, aptidão objectiva da parte locada para satisfação dos
respectivos fins, o Tribunal decidiu em função do relatório pericial para
responder restritivamente ao quesito 18º, sendo a audição dos depoimentos
inócua.
Resta-nos apreciar a impugnação da resposta ao quesito 5º, que foi do teor que
segue: ‘Provado apenas que, verbalmente e antes do abatimento referido na
resposta ao quesito anterior, os AA reclamaram junto da senhoria/ré a execução
de obras na cobertura do prédio, de modo a pôr termo às infiltrações de águas
pluviais”.
Relativamente a esta resposta diz a recorrente nas alegações da sua apelação:
“O Tribunal não pode dar como provado que os AA reclamaram verbalmente e antes
do abatimento da cobertura, a execução de obras na mesma, sem dizer quando, em
que condições e onde o fizeram. Demais, nenhuma das testemunhas o revelou
concludentemente.
A ré vai proceder, em anexo, à transcrição dos troços dos depoimentos de algumas
testemunhas arroladas por ambas as partes, a fim de justificar a impugnação, a
título de concretos meios probatórios, constantes do processo, ou de registo de
gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida”.
A recorrente impugna a resposta por deficiente, por o Tribunal ter dado como
provado um facto, sem precisar as circunstâncias de tempo e lugar em que o mesmo
ocorreu.
O Tribunal da Relação decidiu esta questão, para o que não precisava de ouvir ou
ler os troços dos depoimentos transcritos.
Aliás, a recorrente apenas refere que nenhuma das testemunhas o revelou
concludentemente e apenas transcreve troços dos depoimentos de algumas
testemunhas, curiosamente nenhuma das duas em cujos depoimentos a 1ª instância
motivou a resposta.
Não se verifica, assim, a arguida nulidade, já que a audição dos depoimentos ou
a leitura da respectiva transcrição (naturalmente feita) não se mostrava
necessária à apreciação da impugnação da matéria de facto apresentada pela
recorrente.
A recorrente parece pretender pôr em causa o sentido da decisão de facto feita
pelas instâncias, insinuando que estas não julgaram de acordo com a prova
produzida e não usaram, como podiam e deviam, presunções judiciais.
O eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da
causa não pode ser objecto do presente recurso, razão porque dele não se conhece
(art. 722° n° 2 do CPC).
A recorrente vem defender que os factos contidos nos art°s. 104° e 105° da
contestação não foram impugnados na réplica, pelo que se devem considerar
provados por acordo e levados em conta na decisão.
Trata-se dos mesmos factos que foram levados à base instrutória nos quesitos 18°
e 19º.
Para além da sua irrelevância para a decisão de mérito, que acima já
evidenciámos, a verdade é que, apesar de não impugnados expressamente, os factos
em causa estão em oposição com a réplica, no seu conjunto, pelo que não podem
considerar-se provados por acordo (art. 490° n° 2 do CPC).
Sustenta, ainda, a recorrente que a concreta decisão proferida pela Relação é
nula, uma vez que extrapola a causa de pedir do processo.
A recorrente não explicita minimamente como chega a tão absurda conclusão.
A causa de pedir da presente acção consiste na vigência de um contrato de
arrendamento para fins comerciais entre as partes e na infiltração das águas
pluviais nos locados, devida à omissão da recorrente de cumprir a obrigação
legal de realização de obras de conservação.
A decisão proferida pela Relação, condenação da recorrente a reconhecer a sua
obrigação de realizar as obras de conservação necessárias a evitar a entrada das
águas pluviais, é o corolário lógico da aludida causa de pedir, traduzindo um
“minus” relativamente aos pedidos formulados, não padecendo de qualquer nulidade
(art. 661º n° 1 do CPC).
Por último, a recorrente discorda do mérito da decisão, pois entende que o
prédio, devido à sua ruína generalizada, não satisfaz objectivamente o fim para
que foi arrendado, justificando a caducidade do contrato, nos termos do
preceituado pelo art. 1051° al. e) do CC.
Não resultaram, porém, provados os factos alegados pela recorrente e que
constituíam o sustentáculo material do pedido reconvencional, a declaração de
caducidade do contrato de arrendamento.
Na verdade, as respostas dadas aos quesitos 12º, 15° e 16° inviabilizam
inequivocamente a procedência do pedido reconvencional, como bem decidiu o
acórdão recorrido.
Não se verificando os requisitos da caducidade do contrato e devendo-se as
infiltrações das águas pluviais à não realização das obras de reparação da
cobertura do imóvel, não há qualquer censura afazer à decisão da Relação, que se
limitou a condenar a recorrente a reconhecer a obrigação de realizar tais obras
(art. 12° do RAU).
Nos termos expostos, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.
A recorrente requereu a aclaração do acórdão, aclaração indeferida por acórdão
de 28 de Setembro de 2006 (fls. 310).
A recorrente arguiu nulidades, arguição indeferida por acórdão de 19 de Dezembro
de 2006.
2. A recorrente interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:
Pretende a recorrente ver apreciada a inconstitucionalidade da norma contida no
n° 5 do artigo 690°-A, com referência ao n° 1, alínea a), 2ª parte, e n° 2, do
artigo 712° do Código de Processo Civil, na dimensão normativa que subjaz às
doutas decisões tiradas no Supremo, em 20 de Junho e 28 de Outubro de 2006,
respectivamente, representando a primeira, o Acórdão que denegou a revista, e a
segunda, o Acórdão que indeferiu o pedido de aclaração da decisão indicada em
primeiro lugar.
A questão é a seguinte: na alegação apresentada no recurso de apelação, a ré
impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos do citado
artigo 690°-A, para o que também procedeu às especificações previstas nas
alíneas a) e b), do n° 1, da mesma disposição (vd. item n° 11 da redita peça, na
pág. 36 do texto recursório).
Inclusivamente, a ré procedeu à transcrição de determinadas declarações
testemunhais que teve o cuidado de especificar, a título de concretos meios
probatórios constantes da gravação e que, a seu ver, impunham decisão diversa da
recorrida, designadamente no que à resposta ao ponto n° 5 da base instrutória
dizia respeito, a qual, no entendimento da apelante, havia sido deficiente.
Apreciando a questão, o Tribunal de apelação observou: “Não existe a deficiência
apontada. É perfeitamente compreensível que se possa dar como demonstrada a
existência de reclamações verbais sem que tenha de se especificar pormenores ou
circunstancialismos que as rodearam. A própria noção de reclamação sugere alguma
informalidade nesses contactos e comunicações” (ut pág. 14 do Acórdão proferido
pelo Tribunal da Relação, em 15 de Dezembro de 2005).
Mas a verdade é que, na esteira de quanto a apelante havia enfatizado no corpus
da alegação, nenhuma das testemunhas o havia revelado. E nesse sentido, decidiu
proceder à transcrição dos depoimentos demonstrativos do asserto.
Tudo isso em consonância, aliás, com o disposto nas duas alíneas do n° 1 do
artigo 690°-A referido, de molde a que o Tribunal de apelação pudesse proceder à
audição e leitura dos depoimentos indicados e pudesse decidir em conformidade.
Já em sede de revista, a recorrente teve oportunidade de proferir que a Relação
não havia procedido à audição dos depoimentos indicados, tendo na circunstância
requerido que os autos baixassem à instância a quo para reapreciação da matéria
de facto (vd. conclusões “I” a “III” da respectiva alegação).
E como reagiu o Supremo a tal solicitação?
Asseverou que muito embora o Tribunal da Relação não tivesse referido
expressamente, no Acórdão que emitiu, ter ouvido a gravação dos depoimentos
indicados, a verdade é que o mesmo Órgão “(...) leu naturalmente a respectiva
transcrição feita pela recorrente e junta com as alegações” (cf. pág. 7 do douto
Acórdão proferido com data de 20.06.2006).
Após o que rematou: “De qualquer modo, cremos que o Tribunal da Relação não
tinha necessidade de ouvir os depoimentos em causa, nem de ler a respectiva
transcrição, para decidir, correcta e fundadamente, a impugnação feita, como se
irá demonstrar” (idem).
O Supremo opinou ainda que os depoimentos indicados não tinham qualquer relevo
para a impugnação feita à resposta aos quesitos 15 e 19 (ibidem).
Concernentemente ao caso particular da resposta ao quesito 5, o Supremo
pronunciou-se desta forma: “O Tribunal da Relação decidiu esta questão, para o
que não precisava de ouvir ou ler os troços dos depoimentos transcritos” (cf.
pág. 8 do Acórdão, in fine).
Concluindo depois: “Não se verifica, assim, a arguida nulidade, já que a audição
dos depoimentos ou a leitura da respectiva transcrição (naturalmente feita) não
se mostrava necessária à apreciação da impugnação da matéria de facto
apresentada pela recorrente” (ut pág. 9, ao cimo).
Como disse, a recorrente suscitou, no pedido de esclarecimento que fez chegar
aos autos em 4.7.2006, a questão de constitucionalidade da norma contida no n° 5
do artigo 690°-A, na dimensão normativa com que a mesma havia sido aplicada no
Acórdão tirado em 20 de Junho do mesmo ano.
Ao que o mais alto Tribunal, no Acórdão que indeferiu o pedido de aclaração,
obtemperou: “não está provado o incumprimento da obrigação imposta pela lei
processual ao Tribunal da Relação, como verdadeira 2ª instância em matéria de
facto”; e que “o eventual incumprimento da obrigação de o Tribunal da Relação
ouvir as gravações dos depoimentos indicados (...) não constituiria, no caso
concreto, uma nulidade, na medida em que a respectiva omissão não influenciou a
decisão da causa”.
O que está conseguintemente em causa é a interpretação que o Supremo fez da
norma que determina a obrigatoriedade do Tribunal de apelação proceder à audição
dos depoimentos indicados pela parte que impugnou a decisão proferida sobre a
matéria de facto.
E quanto a esse particular, o Supremo pronunciou-se do seguinte modo: “que a
audição dos depoimentos ou a leitura da respectiva transcrição (naturalmente
feita) não se mostrava necessária à apreciação da impugnação da matéria de facto
apresentada pela recorrente” (vd. pág. 9, ao cimo, do Acórdão de 20 de Junho de
2006).
Mas como referir isso, sem se proceder à audição dos depoimentos?
E decerto que só depois de proceder à leitura dos depoimentos gravados é que a
Relação pode, se assim o entender, aderir ou não aos fundamentos da 1a instância
(vd. Ac. do STJ de 19.10.2004, in CJ (Acs. do STJ), Ano XII, T. 3°, pág. 72 e
ss.).
Por outro lado, a ter havido audição e mesmo leitura dos apontados depoimentos,
apenas a Relação (e não o Supremo) é que o poderia atestar; e só depois de o
fazer é que estaria em condições de poder concluir pela relevância ou
irrelevância dos mesmos no sentido pretendido pela recorrente (ibidem).
O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não passará de piedosa intenção,
se os tribunais de 2ª instância se quedarem por um mero controlo formal da
fundamentação efectuada na 1a instância, quando aos mesmos, o que se lhes exige,
é que procedam a uma autêntica e vera reapreciação da prova.
O Tribunal de apelação apenas referiu não existir a deficiência apontada pela
recorrente, ou seja, que a 1a instância havia dado como provado que os autores,
por diversas vezes, verbalmente e por escrito, haviam reclamado junto da
senhoria/ré/apelante, a execução das obras na cobertura do prédio, mas sem que o
tribunal tivesse revelado em que circunstâncias de tempo e de modo é que tal
teria acontecido.
Só que a ré/recorrente não ficou por aí: pediu que o Tribunal de 2ª instância
procedesse à audição de determinados depoimentos, porquanto em seu entender,
nenhuma das testemunhas o havia referenciado, nenhuma das testemunhas havia
mencionado as tais reclamações, quando, onde e de que modo haviam sido
efectuadas.
Ora, se a Relação não se pronunciou sobre esta matéria, com certeza que não
ouviu as declarações indicadas; se não ouviu as declarações, também não tinha
nada que dizer que as ouviu; e se as não ouviu, ninguém poderia vir dizer que o
fizera.
E nessa ordem de ideias, também o Supremo não podia dizer, nem muito menos
garantir que a Relação havia “naturalmente” procedido à audição dos depoimentos
e à leitura da transcrição efectuada pela recorrente.
Nem podia dizer outrossim que o Tribunal de apelação não teve necessidade de
ouvir os depoimentos nem de ler a transcrição para decidir correctamente a
impugnação.
Como decerto o Supremo não podia dizer que os depoimentos indicados não tinham
qualquer relevo para a impugnação feita ao quesito no 15, até porque se o
fizesse, estaria a entrar, contra a vontade expressa da lei, na apreciação da
matéria de facto (Cód. Proc. Civ., art°s 721°, n°2, e 729°, nºs 1 e 2).
Em suma, não tendo a Relação lido/ouvido os depoimentos (nem precisou de o
fazer...), conforme é de resto a opinião do Supremo, este Tribunal não pode
dizer que não ficou provada a arguição da nulidade da não audição dos
depoimentos, nem que não se provou o incumprimento da obrigação imposta pelo n°
5, do artigo 690°-A, com referência ao artigo 712°, n° 1, al. a), 2ª parte, e nº
2 do CPC.
Assim decidindo, é óbvio que o Supremo procedeu a uma interpretação
inconstitucional da redita norma, defendendo não ser necessário, ou nem sempre
ser necessário que a 2ª instância tenha que ir ao encontro da sua própria
convicção, ou que tenha que formular o seu próprio juízo quanto aos factos que
vêm impugnados.
A seguir a hermenêutica perfilhada pelo Supremo, as decisões proferidas pela 1a
instância muito dificilmente poderiam ser escrutinadas, o que vai contra o
pensamento da lei, previsto não apenas na disposição citada, como também no n° 2
do artigo 712°, ao referir taxativamente que “no caso a que se refere a segunda
parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que
assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações
de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer
outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento a decisão sobre os
pontos da matéria de facto impugnada”.
E não se diga que não é esse o entendimento do Supremo, apenas pelo facto de o
mesmo Órgão grafar, na decisão tirada em 28.09.2006, que o Acórdão não diverge
da doutrina que defende que o Tribunal da Relação constitui uma verdadeira 2ª
Jurisdição em matéria de facto e que deve formar a sua própria convicção sobre
os factos provados.
Se o Supremo diz que a Relação leu, quando não leu, se o Supremo diz que a
Relação não tinha necessidade de ler ou ouvir os depoimentos para decidir
correctamente, é porque para o Supremo (perdoe-se a crítica), não existe um
verdadeiro e efectivo 2° grau de jurisdição na apreciação/reapreciação da
matéria de facto, pois que segundo refere, mesmo que alguma parte haja impugnado
tal decisão, a Relação pode não necessitar de ouvir, pode não ter necessidade de
ouvir as declarações ou de ler os depoimentos para decidir correctamente.
Mas segundo se postula no mencionado Acórdão de 19.10.2004, a garantia do duplo
grau de jurisdição em matéria de facto assume a amplitude de novo julgamento na
mesma matéria (pág. 73, na col. do lado esquerdo).
Julga-se que interpretando dessa forma os citados normativos (artigos 690°-A, n°
5, com referência ao 712°, n° 1, alínea a), 2ª parte, e n° 2 do Código de
Processo Civil), o Supremo violou o preceituado no artigo 20°, n° 1 da Lei
Fundamental, visto atentar contra o direito de acesso aos tribunais, e contra o
direito de que a todos é assegurado o direito a um processo justo e equitativo,
subordinado a princípios e garantias fundamentais, como sejam os princípios do
contraditório e da igualdade, além de violar o princípio do Estado de Direito
Democrático da República Portuguesa consagrado no artigo 2° da mesma Lei, o
qual, na opinião de VITAL MOREIRA e GOMES CANOTILHO, mais do que constitutivo de
preceitos jurídicos, é sobretudo conglobador de um amplo conjunto de regras e
princípios dispersos pelo texto constitucional que densificam a ideia de
sujeição do poder a princípios e regras jurídicos, garantindo aos cidadãos
liberdade, igualdade e segurança (Constituição da República Portuguesa Anotada,
3ª ed., pág. 63).
Proferido Despacho, ao abrigo do artigo 75º‑A da Lei do Tribunal Constitucional,
convidando a recorrente a explicitar a dimensão normativa impugnada, a
recorrente respondeu o seguinte:
A ASSOCIAÇÃO DE SOCORROS MÚTUOS A.”, nos autos de recurso à margem identificado,
notificada para explicitar a ou as dimensões normativas que pretende submeter à
apreciação do Tribunal Constitucional, vem nesse sentido e mui respeitosamente
expor a V. Exa., o seguinte:
Tendo impugnado a decisão sobre a matéria de facto, de acordo com a orientação
traçada no artigo 690°-A, do Código de Processo Civil, mas não tendo o tribunal
da Relação procedido de harmonia com o disposto no n° 5 da redita disposição, a
recorrente requereu a anulação do acórdão proferido pelo tribunal de 2ª
instância.
Apreciando a questão, o Supremo Tribunal de Justiça professou o entendimento de
que muito embora tivesse procedido à leitura dos depoimentos transcritos, a
instância a quo não teve necessidade de ouvir os depoimentos indicados, nem de
ler a respectiva transcrição, de forma a poder decidir acertada e fundadamente a
impugnação efectuada.
O Supremo pôde então concluir que a Relação não cometera a arguida nulidade.
A recorrente pugnou junto do tribunal de revista pela efectiva ocorrência da
nulidade invocada, impetrando o seu suprimento, ao que o mesmo alto tribunal
acabou por propugnar e decidir no sentido de que, mesmo a ter havido
incumprimento da Relação no concernente à obrigatoriedade da leitura/audição das
transcrições indicadas, isso não constituiria uma nulidade, na medida em que, a
ter havido omissão, ela não influenciou a decisão da causa.
Qual é então a dimensão ou dimensões da norma indicada que a recorrente pretende
submeter à apreciação do Tribunal Constitucional?
Breviter, podemos dizer que o Supremo criou uma norma de direito processual
civil, que se pode enunciar do seguinte modo: havendo o recorrente impugnado a
decisão sobre a matéria de facto, com especificação dos concretos meios de prova
que, no seu critério, impunham decisão diversa da recorrida, o tribunal de
apelação, para decidir acertada e fundadamente, não tem de proceder, ou não está
obrigado a proceder à leitura das transcrições efectuadas.
Tanto é dizer que não obstante a exigência legal, prevista na norma várias vezes
citada, a Relação não está obrigada a cumpri-la. Só o faz se achar que deve
fazê-lo. Caso contrário, isto é, se achar que não é necessário proceder à
audição dos depoimentos, a 2ª instância não o faz, sem que a omissão possa
traduzir o cometimento ou a prática de qualquer nulidade, ou mesmo de qualquer
irregularidade.
O Supremo interpreta a disposição citada, não como uma obrigação por parte dos
tribunais de 2ª instância de procederem a uma autêntica e vera, como se disse,
reapreciação da prova, mas apenas como uma questão que pode ficar ao arbítrio
dos mesmos tribunais, fazer ou não. Tudo depende das circunstâncias do caso,
tudo depende do entendimento dos Senhores Juízes Desembargadores, o proceder ou
não ao reexame dos meios de prova indicados pelo recorrente, mormente a audição
dos depoimentos indicados, quando tenha havido gravação da prova, na alegação de
recurso na qual haja impugnado a decisão sobre a matéria de facto.
Ao julgar assim, é manifesto que o Supremo faz uma interpretação da norma
referida, quando conjugada com essoutra ínsita no n° 1, alínea a), 2ª parte, e
n° 2 do artigo 712° do mesmo diploma, que é inconstitucional, pois é como se na
prática estivesse a suprimir, ou pelo menos a limitar, injustificadamente, o
direito da parte vencida poder impugnar a decisão sobre a matéria de facto, de
molde a que a mesma decisão, se for esse o caso, possa ser alterada pela
Relação. Afigura-se que tal dimensão normativa não é conforme à Constituição,
pois sempre haverá que respeitar a dimensão da garantia de acesso ao direito e
aos tribunais, assegurando a possibilidade de reacção contra eventuais vícios da
decisão (cf. C.R.P., art. 20º, nºs 1, 4 e 5).
Tudo se passa como se o Supremo houvesse criado, sem que para tanto tivesse
competência, uma norma que não existia no ordenamento jurídico (por
contraposição com o preceito já existente, e que é o contido no n° 5 do citado
artigo 690°-A), qual seja (perdoe-se a repetição anafórica) a de que a 2ª
instância não tem de proceder ao reexame das provas especificadas pelo
recorrente para poder decidir, para o que também não está obrigada a proceder à
leitura dos depoimentos gravados na audiência de discussão e julgamento, quando
se lhe exige que o faça, até para poder adquirir, com autonomia, uma convicção
própria, formulando o seu próprio juízo de valoração (não mero controlo formal
da fundamentação da ia instância) que pode ser idêntico, mas que também pode ser
diverso do emitido pelo tribunal originário e natural da causa.
Como observa o Senhor Juiz Desembargador José I. M. RAINHO, “(...) a 2ª
instância tem que ir à procura da sua própria convicção, tem que formular o seu
próprio juízo quanto aos factos que vêm impugnados, sob pena de claudicar na
função que lhe vem expressamente cometida pela lei” (in Revista do CEJ, 1°
semestre 2006, n° 4, Decisão da Matéria de Facto — Exame Crítico das Provas,
pág. 173).
Cumpre apreciar e decidir.
3. Sendo o presente recurso interposto ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea
b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é
necessário, para que se possa tomar conhecimento do seu objecto, que a questão
de constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
O Tribunal Constitucional tem entendido este requisito num sentido funcional. De
acordo com tal entendimento, uma questão de constitucionalidade normativa só se
pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente
identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma
constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que
sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma
questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a
afirmar, em abstracto, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem
indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a
inconstitucionalidade a uma decisão ou a um acto administrativo.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem igualmente entendido que a questão
de constitucionalidade tem de ser suscitada antes da prolação da decisão
recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela. Não se
considera assim suscitada durante o processo a questão de constitucionalidade
normativa invocada somente no requerimento de aclaração, na arguição de nulidade
ou no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (cf., entre
muitos outros, o Acórdão nº 155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995).
Em primeiro lugar, nos presentes autos, a dimensão normativa que a recorrente
impugnou, segundo a qual o Tribunal da Relação de Lisboa não tem que ouvir as
transcrições nos casos de recurso da decisão sobre a matéria de facto não terá
sido aplicada pelo acórdão recorrido, na medida em que o Supremo Tribunal de
Justiça afirma não estar provado o incumprimento da referida obrigação imposta
pela lei processual.
Mas o que é decisivo para o Tribunal Constitucional, é o facto de a recorrente
não ter suscitado, durante o processo (nas alegações de recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça) qualquer questão de constitucionalidade normativa reportada
à norma agora impugnada, sendo certo que discutiu nesse momento a questão do
alegado incumprimento pelo Tribunal da Relação de Lisboa da obrigação de ouvir
as transcrições indicadas no âmbito de um recurso interposto da decisão sobre a
matéria de facto.
Não se verificam, pois, os pressupostos processuais do recurso interposto ao
abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional,
pelo que não se tomará conhecimento do objecto do presente recurso.
4. Em face do exposto, decide‑se não tomar conhecimento do objecto do presente
recurso.
2. A recorrente vem reclamar, ao abrigo do artigo 70º‑A, nº 3, da Lei do
Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
1. Diz-se na decisão sumária que a dimensão normativa impugnada pela recorrente
no sentido de que a Relação não tem de ouvir as transcrições nos casos de
recurso da decisão sobre a matéria de facto “(...) não terá sido aplicada pelo
acórdão recorrido, na medida em que o Supremo Tribunal de Justiça afirma não
estar provado o incumprimento da referida obrigação imposta pela lei processual”
(cf. pág. 9 da decisão, in fine).
Mas – cabe questionar – se a Relação não ouviu os depoimentos, se a Relação não
diz que os ouviu, se os autos demonstram à saciedade que aquele Tribunal não
procedeu à leitura/audição dos depoimentos indicados, serão estes os dados
objectivos que contam e relevam para efeitos de recurso de constitucionalidade,
ou será, pelo contrário, a opinião subjectiva emitida pelo Supremo no sentido de
que o mesmo Órgão Jurisdicional fez aquilo que não fez?
Ou de outro modo: se os autos (ou mais propriamente, o Acórdão proferido pelo
Tribunal da Relação) revelam que a 2ª instância não procedeu à leitura dos
depoimentos ou das transcrições indicadas pela parte que impugnou a decisão
sobre a matéria de facto, de que vale ou para que serve a declaração posterior
do Supremo no sentido de que não está provado que o mesmo Tribunal não o fez?
Não podem existir duas verdades a este propósito: ou decorre dos autos (de forma
visível e palpável, que não de forma hipotética ou conjectural) que os
depoimentos/transcrições foram lidos, ou ressalta dos mesmos o contrário, isto
é, que os mesmos não foram lidos (simul esse et non esse non potest esse).
2. Quanto ao levantamento da questão de constitucionalidade durante o processo,
afirma-se na decisão sumária que a recorrente terá tido oportunidade de o fazer
na alegação remetida ao Supremo Tribunal de Justiça (loc. cit.).
Mas a verdade é que nessa altura, não se colocava qualquer questão de
constitucionalidade, pois se a Relação não cumpriu o comando ínsito no n° 5 do
artigo 690°-A do Código de Processo Civil, o não-cumprimento apenas a fez
incorrer na nulidade processual prevista no artigo 201° do mesmo diploma.
O Tribunal da Relação não procedeu então a qualquer leitura da ajuizada norma
que fosse contrária à Constituição da República Portuguesa. O que aconteceu,
muito simplesmente, foi que a Relação não cumpriu o inciso normativo apontado.
É quanto basta para se poder dizer que a recorrente não teve, àquela altura dos
factos e alio stato degli atti, qualquer oportunidade para arguir qualquer
questão de constitucionalidade, porquanto também não existia qualquer questão de
constitucionalidade que pudesse levantar, que tivesse que levantar ou que fosse
de levantar.
Decerto que discutir a questão que se vem tratando em sede de recurso de
revista, ou até melhor, na alegação destinada ao Tribunal de revista, numa
altura em que nenhuma questão de constitucionalidade se divisava ou mostrava
patente, não implica ou determina qualquer obrigatoriedade de levantar uma
questão onde nenhuma questão existia.
E se não existia, também não parece que se deva exigir à recorrente que o
tivesse feito ou que fosse obrigada a fazê-lo.
Se a dimensão normativa inconstitucional da norma em apreço ocorreu no Supremo
ou foi processada pelo Supremo, no Acórdão que denegou a revista e, logo, já
depois de apresentadas as alegações destinadas àquele recurso, como dizer que já
nessa altura, ou seja, na referida alegação recursória, a recorrente podia e
devia ter suscitado a questão de constitucionalidade?!
Se é certo que a inconstitucionalidade se tem de suscitar antes da prolação da
decisão recorrida, não é menos certo que nenhuma questão do mesmo âmbito se pode
suscitar onde nenhuma questão dessas existe. Isto parece óbvio.
Depois, não se conhece nenhum normativo (nem parece que uma tal disposição
exista no nosso ordenamento), que determine que o limite processual para
suscitar uma questão de constitucionalidade seja determinado pelas decisões
proferidas pelos Tribunais de 2ª instância.
Podemos inclusivamente questionar: e se a questão de constitucionalidade for
cometida pelo Supremo Tribunal de Justiça?! Onde e como a suscitar?!
É por isso que o Professor GOMES CANOTILHO professa a opinião de que há que
resolver a existência de casos excepcionais em que os interessados não tiveram
oportunidade de suscitar a questão de inconstitucionalidade antes da prolação da
decisão final (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed.,
Almedina, Coimbra, pág. 986, onde o Autor alude a várias decisões proferidas
pelo Tribunal Constitucional sobre a presente temática).
Se assim é, é porque existem excepções à regra, é porque a norma admite ou
consente excepções que como tal deverão ser apreciadas e resolvidas.
Cumpre apreciar.
3. A Decisão Sumária sob reclamação, no sentido do não conhecimento do objecto
do recurso, fundamentou‑se na não aplicação pela decisão recorrida da dimensão
normativa impugnada e na não suscitação durante o processo da questão de
constitucionalidade normativa.
Quanto ao primeiro fundamento, a recorrente afirma que os autos demonstram a
aplicação da dimensão normativa impugnada, não obstante “a opinião subjectiva
emitida pelo Supremo” em sentido contrário.
Ora, a identificação da dimensão normativa aplicada pela decisão recorrida
resulta da interpretação da decisão impugnada. Não existindo qualquer elemento
objectivo que imponha necessariamente conclusão diversa daquela que resulta da
interpretação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (a recorrente, de resto,
apenas afirma que os autos demonstram a não audição dos depoimentos sem indicar
os elementos que concretamente suportam tal afirmação), há que concluir no
sentido de não estar provado o incumprimento pelo Tribunal da Relação de Lisboa
da obrigação de audição das transcrições das declarações produzidas em audiência
de julgamento.
Improcedem, portanto, os argumentos da recorrente.
4. A recorrente afirma, por outro lado, que não teve oportunidade processual
para suscitar a questão de constitucionalidade antes da prolação da decisão do
Supremo Tribunal de Justiça.
Porém, cabe salientar que a dimensão normativa impugnada tem por conteúdo a não
obrigação de audição ou leitura pelo Tribunal da Relação das transcrições da
gravação da prova nos recursos em matéria de facto. Assim, quando a recorrente
interpôs o recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça o Tribunal da Relação
já tinha, na óptica da recorrente, feito aplicação da dimensão normativa agora
impugnada. Com efeito, a instância que alegadamente incumpriu a obrigação
processual foi o Tribunal da Relação de Lisboa.
A recorrente afirma que nesse momento processual somente terá ocorrido violação
do nº 5 do artigo 690º‑A do Código de Processo Civil (preceito que determina a
audição ou visualização dos depoimentos indicados pelas partes).
Tal afirmação corrobora o fundamento da Decisão Sumária. Na verdade, se a
recorrente identificou nesse momento processual o alegado incumprimento pelo
Tribunal da obrigação processual, então dispunha de todos os elementos para
suscitar a questão de constitucionalidade, pois era‑lhe objectivamente possível
concluir que o Tribunal havia entendido não impender sobre si qualquer
obrigação.
A não suscitação da questão de constitucionalidade deve‑se, portanto, não a
impossibilidade objectiva, mas antes à estratégia processual da recorrente.
Improcede, assim, a presente reclamação.
5. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente
reclamação.
Lisboa, 28 de Março de 2007
Maria Fernanda Palma
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos