Imprimir acórdão
Processo nº 980/2006
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Nos autos de inquérito NUIPC3401/00.OJAPRT, a correr termos no
DIAP do Porto, o Ministério Público proferiu o seguinte despacho:
Requerimentos de fls. 986 a 996, 999 a 1001, 1003 a 1012 e 1028 a 1034:
Considerando que se mostram dirigidos ao Mmo. JIC junto do TIC deverão ser
remetidos a tal Tribunal para apreciação e decisão.
Reiteramos, contudo, nesta sede, as posições por nós tomadas sobre o assunto nos
despachos de fls. 837 a 841, 862, 876/877, 896 e 918.
*
Refutamos, por conseguinte, a posição assumida pelos arguidos que – à falta de
consentimento expresso – não é admissível a recolha de vestígios biológicos com
vista à posterior realização de perícia de biologia forense de identificação de
perfis genéticos (ADN).
Como salientamos no despacho inicial em que nos debruçamos sobre a
admissibilidade e legalidade da realização dos exames, o arguido é perspectivado
como sujeito e objecto de prova. E o que resulta – à partida – do seu estatuto
processual consagrado no Art° 61°, n° 3, al. d) do C.P.P., ou seja, no que ora
interessa, o dever de sujeitar-se a diligências de prova como é o caso presente
que consagração positivada no Art° 171°. n° 1 do mesmo diploma pelo que não faz
sentido a asserção de que ao procedermos como se mostra documentado no processo
se está perante um meio proibido de obtenção de prova.
De resto, não deixa de ser curiosa a posição assumida pelo Sr. Prof. Costa
Andrade para este processo depois de confrontada com a que assume no seu estudo
e no qual (também) nos apoiámos no despacho de fis 838 e segs., mais
propriamente, a fls. 839, “in fine”.
*
Não houve, a nosso ver, qualquer violação da lei nem de princípios fundamentais
legitimadores do processo penal razão por que não deve ser atendido o requerido
pelos arguidos.
Na sequência de tal despacho, o Juiz de Instrução Criminal decidiu a arguida
nulidade nos seguintes termos:
Fls. 986 e segs., 999 e segs., 1003 e segs., 1028 e segs. e 1045 e segs.:
Respeitam os presentes autos à investigação, entre outros, da prática de factos
susceptíveis de integrar dois crimes de homicídio qualificado p. e p. pelos
arts. 131° e 132° n°s 1 e 2 c), f) e i) do Cód. Penal.
No local onde ocorreram os homicídios foram recolhidos vestígios biológicos,
sendo eles ou alguns deles, pertencentes ao(s) autor(es) de tais crimes.
No decurso da investigação, em face da falta de testemunhas presenciais daqueles
homicídios, decidiu o M°P° ordenar a prova por meio de exames à pessoa dos
suspeitos entretanto constituídos como arguidos, com vista à colheita de
vestígios biológicos para determinação do seu perfil genético e subsequente
comparação com os dos vestígios biológicos encontrados no local dos crimes.
Verifica-se do exame dos autos que tais exames, já ordenados em Maio do corrente
ano, não lograram efectuar-se nas datas sucessivamente fixadas para o efeito
pelas mais diversas razões: ou porque os arguidos entenderam ser o despacho que
o ordenou ilegível e apesar de posteriormente dactilografado o consideram ilegal
e se recusaram submeter-se ao exame, ou porque a ele faltaram por motivo de
doença, ou porque se encontravam ausentes e não era possível a sua notificação –
cfr. fls. 638 a 640, 822, 838 a 948, 955 e 965 a 970.
*
Só em 20 de Setembro de 2005 se conseguiu efectuar o predito exame apenas ao
arguido A., o qual no acto, declarou não ser sua vontade sujeitar-se a tal
exame, pese embora a fls. 974 tivesse afirmado” estar inteiramente disposto a
submeter-se à prova de ADN”.
Em 19 de Setembro de 2005, o mesmo arguido apresentou o requerimento de fls. 986
e segs., afirmando não se disponibilizar para colaborar ou permitir a pretendida
colheita e invocando a ilegalidade da sua concretização por via coactiva.
Juntou ainda uma «opinião/consulta» subscrita pelo Exm° Sr. Prof. Manuel da
Costa Andrade sobre a legalidade ou ilegalidade da imposição coactiva do arguido
no processo penal à análise de ADN – cfr. fls. 992 a 996.
Os arguidos B: e C. no mesmo dia 19/9/2005 reiteraram o alegado pelo arguido A.
– cfr. fls. 992 a 1026.
A fls. 1028 e segs. veio o arguido A. requerer a este tribunal o reconhecimento
e declaração da violação da legalidade e consequente proibição absoluta de
valoração da prova obtida através da sujeição coactiva do arguido à colheita da
saliva através de zaragatoa realizada no I.M.L. do Porto efectuada no dia
20/9/2005.
A fls. 1000 e 1001, 1005 a 1007, vieram os arguidos B. e C., respectivamente,
requer a este tribunal o reconhecimento e declaração da violação da legalidade
do despacho do M°P° que ordenou a sujeição coactiva dos arguidos à colheita de
amostra biológica para tipificação de ADN.
*
Por último, a fls. 1045 e segs. veio o arguido A. reiterar o pedido efectuado a
fls. 1028 e segs. requerendo ainda a este Tribunal que ordene a instauração de
procedimento criminal contra todos os que ordenaram, efectuaram e colaboraram ou
de qualquer forma participaram na colheita de saliva ao arguido, por entender
ter sido praticado o crime p. e p. pelo art. 143° n° 1 do Cód. Penal.
Cumpre decidir.
Desde já começamos por adiantar que, pese embora o muito respeito que nos merece
quem perfilha de opinião contrária, entendemos não assistir qualquer razão aos
arguidos.
É consabido que o nosso processo penal é um processo de estrutura basicamente
acusatória integrada pelo princípio da investigação judicial.
O art. 320 no 5 da C.R.P. consagra como princípio fundamental enformador do
processo penal, o princípio do acusatório, estabelecendo que “o processo
criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de discussão e julgamento
e os actos que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”, ao
qual, é inerente o princípio do contraditório.
E no n° 1 do mesmo art. 320 da C.R.P. prescreve-se que “O processo criminal
assegura todas as garantias de defesa (...)”.
0 sistema de estrutura acusatória caracteriza-se ( entre outros aspectos que
para o caso dos autos não interessam chamar à colação) pela parificação do
posicionamento jurídico entre a acusação e a defesa em todos os actos
jurisdicionais, configurando-se o arguido como um sujeito processual que tem
intervenção em todas as fases do processo, inclusive na fase do inquérito,
embora nesta fase processual muito mais limitada do que na instrução e
julgamento, porquanto o inquérito tem uma estrutura predominantemente
inquisitória.
Conforme ensina o Prof. Figueiredo Dias o “(...) Afirmar-se (...) que o arguido
é sujeito e não objecto do processo significa (...) ter de assegurar àquele uma
posição jurídica que lhe permita uma participação constitutiva na declaração do
direito do caso concreto, através da concessão de autónomos direitos
processuais, legalmente definidos, que hão-de ser respeitados por todos os
intervenientes no processo penal”.
Isto significa que, se ao arguido, é imputado um conjunto de factos que podem
originar responsabilidade por uma infracção penal, certo é também que lhe é
garantido o contraditório, ou seja, a possibilidade de o arguido questionar ou
negar esses factos e seu enquadramento jurídico.
Neste sentido decidiu o Ac. do Trib. Constitucional no Acórdão n° 172/92 de 6 de
Maio dizendo: “O processo penal de um Estado de direito há-de cumprir dois
objectivos fundamentais: assegurar ao Estado a possibilidade de realização do
seu jus punendi e oferecer aos cidadãos as garantias necessárias para os
proteger contra os abusos que possam cometer-se no exercício do poder punitivo
(...).
Um tal processo há-de, por conseguinte, ser um processo equitativo (a due
process, a fair process), que tenha por preocupação dominante a busca da verdade
material, mas sempre com inteiro respeito pela pessoa do arguido, o que, entre o
mais, exige que se assegurem a este todas as garantias de defesa e que se não
admitam provas que não passem pelo crivo do contraditório (...)“
Assim, porque o direito processual penal é direito constitucional aplicado, no
C.P.P. existem normas que garantem ao arguido esta paridade de posicionamento
com o M°P°, para poder ilidir ou enfraquecer as provas recolhidas oficiosamente
pela acusação e pelos órgãos de polícia criminal, não obstante estas entidades
se orientarem apenas para a descoberta da verdade, instruindo a favor e contra o
suspeito.
Aliás, afirma o Prof. Manuel da Costa Andrade que “(...) o Ministério Público é
entre nós pacificamente encarado como um órgão da administração da justiça cuja
actuação deve subordinar-se a estritos critérios de legalidade e objectividade.
E a que, nos termos do n° 1 do art. 53° do CPP, cabe «colaborar com o Tribunal
na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as
intervenções processuais a critérios de estrita objectividade “.
E citando o Prof. Figueiredo Dias, transcreve um pequeno trecho do seu estudo
“Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in O Novo
Código do Processo Penal, CEJ, pág. 25: “Dada a condicional intenção de verdade
e justiça (...) que preside à intervenção do Ministério Público no processo
penal, torna-se claro que a sua atitude não é a de interessado na acusação,
antes obedece a critérios de estrita legalidade e objectividade”.
Dispõe o art. 272° no 1 do C.P.P.:
“Correndo inquérito contra pessoa determinada, é obrigatório interrogá-la como
arguido. Cessa a obrigatoriedade quando não for possível a notificação”. E o
art. 58° n° 1 a) do C.P.P. estabelece:
“(...) é obrigatória a constituição de arguido logo que correndo inquérito
contra pessoa determinada, esta prestar declarações perante qualquer autoridade
judiciária ou órgão de polícia criminal”.
Por sua vez o art. 610 no 1 do C.P.P. enumera (embora não exaustivamente), um
conjunto de direitos de que o arguido goza.
Ao Impor, a lei, o interrogatório do suspeito como arguido, pretende o dar-se a
este conhecimento imediato da existência do processo contra si instaurado, para
que o arguido fique em condições de, tempestiva e mais eficazmente, tomar
posição sobre os factos que lhe são imputados e requerer a realização das
diligências que se lhe afigurem necessárias – art. 61° n° 1 f) do C.P.P.
Por outro lado, e do ponto de vista do titular da acção penal, o dar-se
conhecimento ao arguido de que contra ele corre um inquérito, deve ser feito tão
cedo quanto possível, pois pode suceder que o arguido forneça elementos de prova
para o processo que facilitem o esclarecimento da notícia do crime, nomeadamente
apresentando provas que permitam excluir, desde logo, a sua eventual
responsabilidade, evitando-se dessa forma um inquérito inútil.
Neste sentido decidiu ainda o Ac. da R.P. de 12/6/2002, no proc. n° 362/02,
afirmando que “(...) Consequência da estrutura acusatória do processo penal –
art. 32° n° 5 da C.R.P. – é o princípio da igualdade de oportunidades ou
igualdade de armas. O processo deve estar estruturado em termos que permitam que
a acusação e a defesa disponham de idênticas possibilidades para intervir no
processo, para demonstrarem perante o tribunal a validade das suas alegações “.
Por isso todas as exposições, memoriais e requerimentos do arguido devem ser
sempre integrados nos autos – cfr. art. 980 n° 1 do C.P.P. – embora os
requerimentos de diligências não sejam vinculativos para o M°P°, que só ordena a
realização das que entender necessárias – art. 267° do C.P.P.
Porém, entende o arguido A. que a realização coactiva do exame para colheita de
saliva por forma a determinar o seu perfil genético a que foi sujeito, “integra
a prática do crime p. e p. pelo art. 143° n° 1 do C.P.P. por todos os que o
ordenaram, o realizaram e nele de qualquer forma participaram” e os restantes
arguidos, a declaração de nulidade do despacho do M°P° que determinou a
realização de idêntico exame a eles referente .
É certo que a C.R.P. estabelece no art. 25° n° 1 que “A Integridade moral e
física das pessoas é inviolável”.
Por sua vez o art. 32° n° 8 da Lei Fundamental prescreve que “São nulas todas as
provas obtidas mediante (...) ofensa da integridade física ou moral da pessoa
(...) “.
De acordo com tais normas, dispõe o art. 126° do C.P.P.:
1 – São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante (...)
ofensa da integridade física ou moral das pessoas”.
2 – São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas,
mesmo que com o consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de (...), ofensas
corporais (...);
c) utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei, (...)”
– realce nosso.
A partir das normas que se acabam de citar, cabe a interpretação de que a
utilização do arguido enquanto meio de prova no processo penal, está sempre
limitada pelo integral respeito pela decisão da sua vontade, ao longo de todo o
processo penal, e, no que para o caso dos autos interessa, também na fase do
Inquérito, pelo que, os arguidos ao não terem dado consentimento para a recolha
de saliva através de zaragatoa bucal, tem como consequência a proibição da
valorado como prova, do resultado obtido através da sua análise, nos termos do
art. 126° n°s 1 e 2 a) e c).
Em anotação ao estabelecido no nº 8 do art. 32° da C.R.P. dizem Jorge Miranda e
Rui Medeiros que “O que há de novo no nº 8 não é a proibição do uso de meios
proibidos na obtenção dos elementos de prova mas essencialmente a utilização das
provas obtidas por tais meios. Essas provas é que são nulas (...); seria
intolerável que para realizar a justiça no caso fossem utilizados elementos de
prova obtidos por meios vedados pela Constituição e incriminados pela lei “–
realce nosso.
Porém, com todo o respeito por quem sufraga opinião contrária, em nossa muito
modesta opinião, não é aquela a interpretação que o legislador pretendeu
fazer-se quando Incluiu no C.P.P. a norma do art. 172° n° 1 que, à primeira
vista, parece contradizer o preceituado no art. 126° n°s 1 e 2 a) e c).
De acordo com o C.P.P., o arguido para além dos direitos e deveres consagrados
de forma não exaustiva no art. 61° do C.P.P., tem, como todas as pessoas em
geral, o dever de colaboração com as autoridades judiciárias para a realizado da
justiça nomeadamente o dever de se submeter a exame – arts. 171 e segs. do
C.P.P.
0 exame tem por fim fixar documentalmente ou permitir a observação directa pelo
tribunal de factos relevantes em matéria probatória.
A perícia, por sua vez, consiste num meio de prova em que a percepção ou a
apreciação dos factos recolhidos exigem conhecimentos técnicos, científicos ou
artísticos – art. 1510 do C.P.P.
Como faz notar o Sr. Prof. Figueiredo Dias, o facto de o arguido ser considerado
um sujeito do processo penal “(...) não quer dizer que o arguido não possa, em
determinados termos demarcados pela lei por forma estrita e expressa, ser
objecto de medidas coactivas e constituir ele próprio um meio de prova. Quer
dizer sim, que as medidas coactivas e probatórias que sobre ele se exerçam não
poderão nunca dirigir-se à extorsão de declarações ou de qualquer forma de
auto-incriminação, e que, pelo contrário, todos os actos processuais do arguido
deverão ser expressão da sua livre personalidade “– realce nosso.
Mas haverá que interpretar “cum grano salis” esta afirmação do insigne
Professor.
De acordo com a sua lição, o arguido pode constituir meio de prova autónomo no
processo penal, quer em sentido material através das declarações que presta
sobre os factos, quer em sentido formal na medida em que o seu corpo e o seu
estado corporal podem ser objecto de exames.
Nesta perspectiva, os exames têm uma dupla natureza:
- por um lado, “são meio de prova, enquanto neles se faça avultar o juízo que se
emite sobre as qualidades ou características de uma pessoa, isto é, enquanto têm
primacialmente em vista a sua mais ou menos acentuada natureza de «inspecção» ou
«perícia»”;
- por outro lado, “como verdadeiro meio de coacção processual na medida em que a
entidade competente que preside à fase processual em causa, pode tornar
efectivas as suas ordens, até com o auxílio da força” – realce nosso.
No actual C.P.P., de acordo com o disposto no art. 60° do C.P.P., “Desde o
momento em que uma pessoa adquirir a qualidade de arguido é-lhe assegurado o
exercido de direitos e deveres processuais, sem prejuízo (...) da efectivação de
diligências probatórias, nos termos especificados na lei” – realce nosso.
Conforme estatui expressamente o art. 61° n° 3 do C.P.P.: “Recaem em especial
sobre o arguido os deveres de sujeitar-se a diligências de prova (...) ordenadas
e efectuadas por entidade competente”, ou seja, a todas as que se entenderam
como necessárias para a descoberta da verdade e a realização da justiça – sendo
a regra a da atipicidade das diligências da prova – desde que não estejam
proibidas por lei – cfr. art. 125° do C.P.P.
Daí que o arguido possa ter de submeter-se a exame e a perícia – arts. 151° a
171° do C.P.P. – como sucedeu no caso dos autos, ordenada pela autoridade
judiciária competente que preside à respectiva fase processual, neste caso, o
M°P°.
E tal obrigação vem expressamente prescrita e salvaguardada no art. 1720 n° 1 do
C.P.P.: “Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame (..) pode ser
compelido por decisão da autoridade judiciária competente”.
Mas esta sujeição do arguido a submeter-se a diligências de prova, só deverá ser
coactivamente imposta, tal como se verifica quanto à aplicação da medida de
coacção da prisão preventiva, quando a realização da Justiça não possa
alcançar-se através de outras diligências, por forma a não contender-se com a
decisão de vontade do arguido por ele livremente tomada e com o facto de a sua
intervenção no processo representar um meio de defesa que lhe é atribuído no
nosso processo penal.
Daí que o Sr. Prof. Figueiredo Dias, tenha considerado o exame, e para o que
interessa para o caso dos autos, mutatis mutandis também a subsequente perícia,
como “um verdadeiro meio de coacção processual pelo que se o objecto for uma
pessoa “(...) esta vê-se constrangida a sofrer ou a suportar uma actividade de
investigação sobre si mesma (...) e por isso, as normas que os permitem não
poderão de deixar de ser entendidas e aplicadas nos termos mais estritos, tal
como sucede com os restantes meios de coacção, maxime com a prisão preventiva:
em um conto ror outro caso a liberdade é a regra e a restrição daquela, a
excepção” – carregado e sublinhado nossos.
No mesmo sentido afirma Maia Gonçalves que o que no art. 172° do C.P.P. “se
dispõe sobre a possibilidade de a autoridade judiciária compelir alguém a
sujeitar-se a qualquer exame ou a facultar coisa que deva ser examinada é um
dispositivo geral, podendo portanto ser afastado pela aplicação de algum regime
especial consagrado na lei. É o caso por exemplo, do condutor que recusa
submeter-se à prova para detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por
substâncias estupefacientes ou psicotrópicas” – cfr. arts. 156° e 157° n°s 1 e 4
do Cód. da Estrada alterado pelo D.L. n° 44/2005 de 25 de Fevereiro.
Para o caso dos autos, a lei não só não afasta a citada regra imposta pelo art.
172° n° 1 do C.P.P., como pelo contrário, estatuiu no art. 43° n° 1 do D.L. n°
11/98 de 24 de Janeiro que “Ninguém pode eximir-se a ser submetido a qualquer
exame médico-legal quando este for necessário ao inquérito ou à instrução de
qualquer processo e desde que seja ordenado pela autoridade judiciária
competente nos termos da lei de processo” – realce nosso.
E no art. 44° n° 1 do mesmo diploma prescreve que “Qualquer pessoa devidamente
convocada pelo responsável do serviço do instituto (...) para a realização de
uma perícia tem o dever de comparecer no dia, hora e local designados, sob pena
das sanções previstas na lei do processo”.
Certo é, recordemos, que o recurso a tais meios de obtenção da prova só poderão
ser ordenados e sobre o arguido impende a consequente obrigação de se sujeitar a
eles, tem carácter excepcional, apenas na estrita medida em que se mostrem
ineficazes outros meios de prova, devendo observar-se quanto à sua utilização os
mesmos princípios que regem a aplicação da medida de coacção da prisão
preventiva.
No caso sub judicio, verifica-se essa situação de excepção, de necessidade e
subsidiariedade, porquanto não existem testemunhas presencias dos homicídios
qualificados em investigação, de que foram vítimas D. e E. e, consequentemente,
de meios probatórios que permitam a Identificação dos seus autores.
Por conseguinte, sem necessidade de mais fundamento ou desenvolvimento, este
Tribunal decide julgar Improcedente a invocada nulidade e consequente proibição
da valoração como prova, do resultado da análise da saliva colhida através de
zaragatoa bucal efectuada ao arguido A. e ainda a efectuar aos restantes
arguidos, e por conseguinte, ser legal o despacho proferido pelo Exm° Magistrado
do M°P° titular do inquérito, que ordenou a realização dos preditos exames à
saliva dos arguidos a colher através de zaragatoa bucal.
Notifique e oportunamente devolva o Inquérito aos competentes serviços do M°P°.
Os arguidos C. e B. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto,
concluindo do seguinte modo:
I. NO DIREITO PORTUGUÊS VIGENTE, POR FALTA DE LEI EXPRESSA, SÓ O CONSENTIMENTO
LIVRE E ESCLARECIDO DO ARGUIDO PODE LEGITIMAR A SUA SUBMISSÃO A UMA COLHEITA DE
VESTÍGIOS BIOLÓGICOS PARA ANÁLISE DE ADN;
II. UMA VEZ QUE OS RECORRENTES MANIFESTARAM A SUA EXPRESSA RECUSA EM COLABORAR
OU PERMITIR TAL COLHEITA, É MANIFESTAMENTE ILEGAL E ATÉ CRIMINALMENTE ILÍCITA A
SUA REALIZAÇÃO COACTIVA, POR MANIFESTA FALTA DO INDISPENSÁVEL SUPORTE LEGAL –
LACUNA ESSA QUE O INTÉRPRETE E APLICADOR DA LEI NÃO ESTÃO, POR SI, LEGITIMADOS A
COLMATAR QUESTÃO QUE DEVIA CONHECER, E SOBRE A QUAL O TRIBUNAL RECORRIDO NÃO SE
PRONUNCIOU SENDO PORTANTO TAL DESPACHO NULO NOS TERMOS DO ART. 379º N° 1 C) DO
C.P.P.
III. DEVER-SE-IA TER RECONHECIDO E DECLARADO A ILEGALIDADE DE TAL MANDADO E
POSTERIOR DESPACHO QUANTO À SOBREDITA COLHEITA, NOS TERMOS EM QUE ESTÁ
CONFIGURADA COM TODAS AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS, A COMEÇAR PELA PROIBIÇÃO ABSOLUTA
DE VALORAÇÃO DA(S) PROVA(S) ASSIM OBTIDA(S) POR EM MANIFESTA VIOLAÇÃO DO
DISPOSTO, ENTRE OUTROS, NO ART. 25.°, N.° 1, DA CRP;
IV. DECIDINDO DE FORMA DIVERSA, O EXMO JUIZ A QUO VIOLOU, ENTRE OUTRAS, AS
NORMAS CONTIDAS NOS ARTS. 25.°, 26.°, N.° 1, E 32°, N.° 8, TODOS DA CRP, O ART.
8.° DA CEDH, O ART. 12.° DA DUDH, O ART. 17.° DO PIDCP E OS ARTS. 126°, N.°S 1 2
– ALS. A) E C), E 3, BEM COMO O ART. 172°, N.° 1, AMBOS DO CPP;
V. DE RESTO, SEMPRE ESTARIA FERIDA DE INCONSTITUCIONALIDADE A NORMA DO ART.
172°, N.° 1, DO C.P.P., INTERPRETADA NO SENTIDO DE POSSIBILITAR AO M.° P.°
ORDENAR A COLHEITA COACTIVA DE VESTÍGIOS BIOLÓGICOS DE UM ARGUIDO PARA
DETERMINAÇÃO DO SEU PERFIL GENÉTICO, QUANDO ESTE ÚLTIMO TENHA MANIFESTADO A SUA
EXPRESSA RECUSA EM COLABORAR OU PERMITIR TAL COLHEITA;
VI. DA MESMA FORMA QUE SERIA IGUALMENTE INCONSTITUCIONAL A NORMA DO ART. 126.°,
N.°S 1, 2 – ALS. A) E C), E 3, DO C.P.P., QUANDO INTERPRETADA NO SENTIDO DE
CONSIDERAR VÁLIDA E, CONSEQUENTEMENTE, SUSCEPTÍVEL DE ULTERIOR UTILIZAÇÃO E
VALORAÇÃO, A PROVA OBTIDA ATRAVÉS DA COLHEITA EFECTUADA NOS MOLDES DESCRITOS NA
CONCLUSÃO ANTERIOR.
VII. É QUE DADA SER ESTA MATÉRIA DAS RESTRIÇÕES AOS DIREITOS, LIBERDADES E
GARANTIAS ESTÁ SUJEITA À RESERVA DE LEI FORMAL E MATERIAL,
VIII. OU SEJA OS DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS NÃO PODEM SER RESTRINGIDOS
SENÃO POR VIA DE LEI,
IX. E SÓ PODEM SER REGULADOS POR LEI DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA OU POR
DECRETO–LEI GOVERNAMENTAL AUTORIZADO POR AQUELE ÓRGÃO LEGISLATIVO , NOS TERMOS
DOS ARTIGOS 167° E 168°, N° 1, AL. B) DA CRP.
X. GARANTINDO-SE ASSIM QUE OS DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS NÃO FICAM À
DISPOSIÇÃO DO PODER REGULAMENTAR DA ADMINISTRAÇÃO E QUE O SEU REGIME HÁ-DE SER
DEFINIDO PELO PRÓPRIO ÓRGÃO REPRESENTATIVO, E NÃO PELO GOVERNO, E MUITO MENOS
PELAS ENTIDADES PÚBLICAS DOTADAS DE PODER DE AUTO‑REGULAÇÃO,
XI. OU SEJA, NESTA MATÉRIA NÃO HÁ LUGAR PARA REGULAMENTOS AUTÓNOMOS OU
INTERPRETAÇÕES EXTENSIVAS OU INVENTIVAS (ART.° 115º CRP).
XII. PORQUE SE INSEREM TAIS QUESTÕES NO ÂMBITO CONSAGRADO NOS PRECEITOS
CONSTITUCIONAIS RELATIVOS A DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS.
XIII. SÃO INCONSTITUCIONAIS AS LEIS E DESPACHOS DENTRO DO QUAL O RECORRIDO É –
QUE INFRINJAM OS DITOS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS, 18°, 19º, 29°, 168° N° 1,
282°‑3 TODOS DA C.R.P.
XIV. O QUE SE REQUER SEJA SUPERIORMENTE DECLARADO.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 13 de Setembro de 2006,
considerou o seguinte:
III – 2.) Deixando de lado aspectos colaterais ao real objecto do recurso,
traduzidos, por exemplo, numa menos correcta identificação do despacho que se
visa impugnar, a sua definição essencial incide na legalidade e
constitucionalidade da decisão do Ministério Público, em inquérito, de sujeitar
os recorrentes a “exame”, traduzido na recolha de saliva para definição do seu
perfil genético e subsequente comparação com vestígios biológicos encontrados no
local onde se verificou um determinado homicídio, a fim de assegurar o
desenvolvimento da sua investigação.
Na respectiva resposta, introduz-se, no entanto, a questão da própria
admissibilidade do recurso.
III – 2.) Vejamos no entanto, primeiro, as partes mais significativas do
despacho de que se recorre:
Respeitam os presentes autos à investigação, entre outros, da prática de factos
susceptíveis de integrar dois crimes de homicídio qualificado p. e p. pelos
arts. 1310 e 132° n°s 1 e 2 e), f) e i) do Cód. Penal.
No local onde ocorreram os homicídios foram recolhidos vestígios biológicos,
sendo eles ou alguns deles, pertencentes ao(s) autor(es) de tais crimes.
No decurso da investigação, em face da falta de testemunhas presenciais daqueles
homicídios, decidiu o M°P° ordenar a prova por meio de exames à pessoa dos
suspeitos entretanto constituídos como arguidos, com vista à colheita de
vestígios biológicos para determinação do seu perfil genético e subsequente
comparação com os dos vestígios biológicos encontrados no local dos crimes.
Verifica-se do exame dos autos que tais exames, já ordenados em Maio do corrente
ano, não lograram efectuar-se nas datas sucessivamente fixadas para o efeito
pelas mais diversas razões: ou porque os arguidos entenderam ser o despacho que
o ordenou ilegível e apesar de posteriormente dactilografado o consideram ilegal
e se recusaram submeter-se ao exame, ou porque a ele faltaram por motivo de
doença, ou porque se encontravam ausentes e não era possível a sua notificação –
cfr. fls. 638 a 640, 822, 838 a 948, 955 e 965 a 970.
Só em 20 de Setembro de 2005 se conseguiu efectuar o predito exame apenas ao
arguido A., o qual no acto, declarou não ser sua vontade sujeitar-se a tal
exame, pese embora a fls. 974 tivesse afirmado “estar inteiramente disposto a
submeter-se à prova de ADN”.
Em 19 de Setembro de 2005, o mesmo arguido apresentou o requerimento de fls. 986
e segs., afirmando não se disponibilizar para colaborar ou permitir a pretendida
colheita e invocando a ilegalidade da sua concretização por via coactiva.
Juntou ainda uma «opinião/consulta» subscrita pelo Exmo. Sr. Prof. Manuel da
Costa Andrade sobre a legalidade ou ilegalidade da imposição coactiva do arguido
no processo penal à análise de ADN – cfr. fls. 992 a 996.
Os arguidos B. e C. no mesmo dia 19/9/2005 reiteraram o alegado pelo arguido A.
– cfr. fls. 992 a 1026.
A fls. 1028 e segs. veio o arguido A. requerer a este tribunal o reconhecimento
e declaração da violação da legalidade e consequente proibição absoluta de
valoração da prova obtida através da sujeição coactiva do arguido à colheita da
saliva através de zaragatoa realizada no I.M.L. do Porto efectuada no dia
20/9/2005.
A fls. 1000 e 1001, 1005 a 1007, vieram os arguidos B. e C., respectivamente,
requer a este tribunal o reconhecimento e declaração da violação da legalidade
do despacho do MºPº que ordenou a sujeição coactiva dos arguidos à colheita de
amostra biológica para tipificação de ADN.
*
Por último, a fls. 1045 e segs. veio o arguido A. reiterar o pedido efectuado a
fls. 1028 e segs. Requerendo ainda a este Tribunal que ordene a instauração de
procedimento criminal contra todos os que ordenaram, efectuaram e colaboraram ou
de qualquer forma participaram na colheita de saliva ao arguido, por entender
ter sido praticado o crime p. e p. pelo art. 143.°, n.° 1 do Cód. Penal.
Cumpre decidir.
Desde já começamos por adiantar que, pese embora o muito respeito que nos merece
quem perfilha de opinião contrária, entendemos não assistir qualquer razão aos
arguidos.
É consabido que o nosso processo penal é um processo de estrutura basicamente
acusatória integrada pelo princípio da investigação judicial.
O art. 32° nº 5 da C.R.P. consagra como princípio fundamental enformador do
processo penal, o princípio do acusatório, estabelecendo que “o processo
criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de discussão e julgamento
e os actos que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”, ao
qual, é inerente o princípio do contraditório.
E no n° 1 do mesmo art. 32° da C.R.P. prescreve-se que “O processo criminal
assegura todas as garantias de defesa (...)”.
O sistema de estrutura acusatória caracteriza-se (entre outros aspectos que para
o caso dos autos não interessam chamar à colação) pela parificação do
posicionamento jurídico entre a acusação e a defesa em todos os actos
jurisdicionais, configurando-se o arguido como um sujeito processual que tem
intervenção em todas as fases do processo, inclusive na fase do inquérito,
embora nesta fase processual muito mais limitada do que na instrução e
julgamento, porquanto o inquérito tem uma estrutura predominantemente
inquisitória.
Conforme ensina o Prof. Figueiredo Dias o “(...) Afirmar‑se (...) que o arguido
é sujeito e não objecto do processo significa (...) ter de assegurar àquele uma
posição jurídica que lhe permita uma participação constitutiva na declaração do
direito do caso concreto, através da concessão de autónomos direitos
processuais, legalmente definidos, que hão-de ser respeitados por todos os
intervenientes no processo penal”.
Isto significa que, se ao arguido, é imputado um conjunto de factos que podem
originar responsabilidade por uma infracção penal, certo é também que lhe é
garantido o contraditório, ou seja, a possibilidade de o arguido questionar ou
negar esses factos e seu enquadramento jurídico.
Neste sentido decidiu o Ac. do Trib. Constitucional no Acórdão n° 172/92 de 6 de
Maio dizendo: “O processo penal de um Estado de direito há-de cumprir dois
objectivos fundamentais: assegurar ao Estado a possibilidade de realização do
seu jus punendi e oferecer aos cidadãos as garantias necessárias para os
proteger contra os abusos que possam cometer-se no exercício do poder punitivo
(...).
Um tal processo há-de, por conseguinte, ser um processo equitativo (a due
process, a fair process), que tenha por preocupação dominante a busca da verdade
material, mas sempre com inteiro respeito pela pessoa do arguido, o que, entre o
mais, exige que se assegurem a este todas as garantias de defesa e que se não
admitam provas que não passem pelo crivo do contraditório (...)”.
Assim, porque o direito processual penal é direito constitucional aplicado, no
C.P.P. existem normas que garantem ao arguido esta paridade de posicionamento
com o M°P°, para poder elidir ou enfraquecer as provas recolhidas oficiosamente
pela acusação e pelos órgãos de polícia criminal, não obstante estas entidades
se orientarem apenas para a descoberta da verdade, instruindo a favor e contra o
suspeito.
Aliás, afirma o Prof. Manuel da Costa Andrade que “(...) o Ministério Público é
entre nós pacificamente encarado como um órgão da administração da justiça cuja
actuação deve subordinar-se a estritos critérios de legalidade e objectividade.
E a que, nos termos do n° 1 do art. 53° do CPP, cabe «colaborar com o Tribunal
na descoberta da verdade e na realização do direito obedecendo em todas as
intervenções processuais a critérios de estrita objectividade”.
E citando o Prof. Figueiredo Dias, transcreve um pequeno trecho do seu
estudo”Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in O
Novo Código do Processo Penal, CEJ, pág. 25: “Dada a condicional intenção de
verdade e justiça (...) que preside à intervenção do Ministério Público no
processo penal, torna-se claro que a sua atitude não é a de interessado na
acusação, antes obedece a critérios de estrita legalidade e objectividade”.
Dispõe o art. 272° n° 1 do C.P.P.:
“Correndo inquérito contra pessoa determinada, é obrigatório interrogá-la como
arguido. Cessa a obrigatoriedade quando não for possível a notificação”
E o art. 58° n° 1 a) do C.P.P. estabelece:
“(…) é obrigatória a constituição de arguido logo que correndo inquérito contra
pessoa determinada, esta prestar declarações perante qualquer autoridade
judiciária ou órgão de polícia criminal”.
Por sua vez o art. 61° n° 1 do c.P.P. enumera (embora não exaustivamente), um
conjunto de direitos de que o arguido goza.
Ao impor, a lei, o interrogatório do suspeito como arguido, pretende o dar-se a
este conhecimento imediato da existência do processo contra si instaurado, para
que o arguido fique em condições de, tempestiva e mais eficazmente, tomar
posição sobre os fados que lhe são imputados e requerer a realização das
diligências que se lhe afigurem necessárias – art. 61.º n° 1 f) do C.P.P.
Por outro lado, e do ponto de vista do titular da acção penal, o dar-se
conhecimento ao arguido de que contra ele corre um inquérito, deve ser feito tão
cedo quanto possível, pois pode suceder que o arguido forneça elementos de prova
para o processo que facilitem o esclarecimento da notícia do crime, nomeadamente
apresentando provas que permitam excluir, desde logo, a sua eventual
responsabilidade, evitando-se dessa forma um inquérito inútil.
Neste sentido decidiu ainda o Ac. da R.P. de 12/6/2002, no proc. n° 362/02,
afirmando que “(...) Consequência da estrutura acusatória do processo penal –
art. 32° n° 5 da C.R.P. – é o princípio da igualdade de oportunidades ou
igualdade de armas. O processo deve estar estruturado em termos que permitam que
a acusação e a defesa disponham de idênticas possibilidades para intervir no
processo, para demonstrarem perante o tribunal a validade das suas alegações”
Por isso todas as exposições, memoriais e requerimentos do arguido devem ser
sempre integrados nos autos – cfr. art. 98° n° 1 do C.P.P. – embora os
requerimentos de diligências não sejam vinculativos para o M°P°, que só ordena a
realização das que entender necessárias – art. 267.° do C.P.P.
Porém, entende o arguido A. que a realização coactiva do exame para colheita de
saliva por forma a determinar o seu perfil genético a que foi sujeito, “integra
a prática do crime p. e p. pelo art. 143.° n° 1 do C.P.P. por todos os que o
ordenaram, o realizaram e nele de qualquer forma participaram” e os restantes
arguidos, a declaração de nulidade do despacho do M°P.° que determinou a
realização de idêntico exame a eles referente.
É certo que a C.R.P. estabelece no art. 25° n° 1 que “A integridade moral e
física das pessoas é inviolável”.
Por sua vez o art. 32° n° 8 da Lei fundamental prescreve que “São nulas todas as
provas obtidas mediante (...) ofensa da integridade fisica ou moral da pessoa
(...)”.
De acordo com tais normas, dispõe o art. 126° do C.P.P.:
1 – São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante (...)
ofensa da integridade física ou moral das pessoas”
2– São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas,
mesmo que com o consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de (...), ofensas
corporais (...);
c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei, (...)”
A partir das normas que se acabam de citar, cabe a interpretação de que a
utilização do arguido enquanto meio de prova no processo penal, está sempre
limitada pelo integral respeito pela decisão da sua vontade, ao longo de todo o
processo penal, e, no que para o caso dos autos interessa, também na fase do
inquérito, pelo que, os arguidos ao não terem dado consentimento para a recolha
de saliva através de zaragatoa bucal, tem como consequência a proibição da
valoração como prova, do resultado obtido através da sua análise, nos termos do
art. 126° n.°s 1 e 2 a) e c).
Em anotação ao estabelecido no n° 8 do art. 32° da C.R.P. dizem Jorge Miranda e
Rui Medeiros(s) que” O que há de novo no n° 8 não é a proibição do uso de meios
proibidos na obtenção dos elementos de prova mas essencialmente a utilização das
provas obtidas por tais meios. Essas provas é que são nulas (...); seria
intolerável que para realizar a justiça no caso fossem utilizados elementos de
prova obtidos por meios vedados pela Constituição e incriminados pela lei”.
Porém, com todo o respeito por quem sufraga opinião contrária, em nossa muito
modesta opinião, não é aquela a interpretação que o legislador pretendeu
fazer-se quando incluiu no C.P.P. a norma do art. 172 n° 1 que, à primeira
vista, parece contradizer o preceituado no art. 126° n°s 1 e 2 a) e c).
De acordo com o C.P.P., o arguido para além dos direitos e deveres consagrados
de forma não exaustiva no art. 61° do C.P.P., tem, como todas as pessoas em
geral, o dever de colaboração com as autoridades judiciárias para a realização
da justiça nomeadamente o dever de se submetera exame – arts. 171 e segs. do
C.P.P.
O exame tem por fim fixar documental mente ou permitir a observação directa pelo
tribunal de factos relevantes em matéria probatória.
A perícia, por sua vez, consiste num meio de prova em que a percepção ou a
apreciação dos factos recolhidos exigem conhecimentos técnicos, científicos ou
artísticos – art. 151.º do C.P.P.
Como faz notar o Sr. Prof. Figueiredo Dias, o facto de o arguido ser considerado
um sujeito do processo penal “(...) não quer dizer que o arguido não possa, em
determinados termos demarcados pela lei por forma estrita e expressa, ser
objecto de medidas coactivas e constituir ele próprio um meio de prova. Quer
dizer sim, que as medidas coactivas e probatórias que sobre ele se exerçam não
poderão nunca dirigir-se à extorsão de declarações ou de qualquer forma de
autoincriminação, e que, pelo contrário, todos os actos processuais do arguido
deverão ser expressão da sua livre personalidade”.
Mas haverá que interpretar “cum grano salís” esta afirmação do insigne
Professor.
De acordo com a sua lição, o arguido pode constituir meio de prova autónomo no
processo penal, quer em sentido material através das declarações que presta
sobre os factos, quer em sentido formal na medida em que o seu corpo e o seu
estado corporal podem ser objecto de exames.
Nesta perspectiva, os exames têm uma dupla natureza:
- por um lado, “são meio de prova, enquanto neles se faça avultar o juízo que se
emite sobre as qualidades ou características de uma pessoa, isto é, enquanto têm
primacialmente em vista a sua mais ou menos acentuada natureza de «inspecção» ou
«perícia»“;
- por outro lado, “como verdadeiro meio de coacção processual na medida em que a
entidade competente que preside à fase processual em causa, pode tornar
efectivas as suas ordens, até com o auxílio da força”.
No actual C.P.P., de acordo com o disposto no art. 60º do C.P.P., “Desde o
momento em que uma pessoa adquirir a qualidade de arguido é-lhe assegurado o
exercício de direitos e deveres processuais, sem prejuízo (...) da efectivação
de diligências probatórias, nos termos especificados na lei”.
Conforme estatui expressamente o art. 61° n° 3 do C.P.P.: “Recaem em especial
sobre o arguido os deveres de sujeitar-se a diligências de prova (...) ordenadas
e efectuadas por entidade competente “, ou seja, a todas as que se entenderam
como necessárias para a descoberta da verdade e a realização da justiça – sendo
a regra a da atipicidade das diligências da prova – desde que não estejam
proibidas por lei – cfr. art. 125° do C.P.P.
Daí que o arguido possa ter de submeter-se a exame e a perícia – arts. 151º a
171° do C.P.P. – como sucedeu no caso dos autos, ordenada pela autoridade
judiciária competente que preside à respectiva fase processual, neste caso, o
M°P°.
E tal obrigação vem expressamente prescrita e salvaguardada no art. 172.° n° 1
do C.P.P. “Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame (...) pode
ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente”.
Mas esta sujeição do arguido a submeter-se a diligências de prova, só deverá ser
coactivamente imposta, tal como se verifica quanto à aplicação da medida de
coacção da prisão preventiva, quando a realização da Justiça não possa
alcançar-se através de outras diligências, por forma a não contender-se com a
decisão de vontade do arguido por ele livremente tomada e com o facto de a sua
intervenção no processo representar um meio de defesa que lhe é atribuído no
nosso processo penal.
Daí que o Sr. Prof. Figueiredo Dias tenha considerado o exame, e para o que
interessa para o caso dos autos, mutatis mutandis também a subsequente perícia,
como “um verdadeiro meio de coacção processual pelo que se o objecto for uma
pessoa” (...) esta vê-se constrangida a sofrer ou a suportar uma actividade de
investigação sobre si mesma (...) e por isso, as normas que os permitem não
poderão de deixar de ser entendidas e aplicadas nos termos mais estritos. tal
como sucede com os restantes meios de coacção, maxime com a prisão preventiva:
em um como em outro caso a liberdade é a regra e a restrição daquela, a
excepção”.
No mesmo sentido afirma Maia Gonçalves que o que no art. 172° do C.P.P. “se
dispõe sobre a possibilidade de a autoridade judiciária compelir alguém a
sujeitar-se a qualquer exame ou a facultar coisa que deva ser examinada é um
dispositivo geral, podendo portanto ser afastado pela aplicação de algum regime
especial consagrado na lei. É o caso por exemplo, do condutor que recusa
submeter-se à prova para detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por
substâncias estupefacientes ou psicotrópicas” – cfr. arts. 156° e 157° n°s 1 e 4
do Cód. da Estrada alterado pelo D.L. n° 44/2005 de 25 de Fevereiro.
Para o caso dos autos, a lei não só não afasta a citada regra imposta pelo art.
172° no 1 do C.P.P., como pelo contrário, estatuiu no art. 43 n° 1 do D.L. n°
11/98 de 24 de Janeiro que “Ninguém pode eximir-se a ser submetido a qualquer
exame médico-legal quando este for necessário ao inquérito ou à instrução de
qualquer processo e desde que seja ordenado pela autoridade judiciária
competente nos termos da lei de processo”.
E no art 44° n° 1 do mesmo diploma prescreve que “Qualquer pessoa devidamente
convocada pelo responsável do serviço do instituto (...) para a realização de
uma perícia tem o dever de comparecer no dia, hora e local designados, sob pena
das sanções previstas na lei do processo”.
Certo é, recordemos, que o recurso a tais meios de obtenção da prova só poderão
ser ordenados e sobre o arguido impende a consequente obrigação de se sujeitar a
eles, tem carácter excepcional, apenas na estrita medida em que se mostrem
ineficazes outros meios de prova, devendo observar-se quanto à sua utilização os
mesmos princípios que regem a aplicação da medida de coacção da prisão
preventiva.
No caso sub judicio, verifica-se essa situação de excepção, de necessidade e
subsidiariedade, porquanto não existem testemunhas presencias dos homicídios
qualificados em investigação, de que foram vítimas D.e E. e, consequentemente,
de meios probatórios que permitam a identificação dos seus autores.
Por conseguinte, sem necessidade de mais fundamento ou desenvolvimento, este
Tribunal decide julgar improcedente a invocada nulidade e consequente proibição
da valoração como prova, do resultado da análise da saliva colhida através de
zaragatoa bucal efectuada ao arguido A. e ainda a efectuar aos restantes
arguidos, e por conseguinte, ser legal o despacho proferido pelo Exm° Magistrado
do M°P° titular do inquérito, que ordenou a realização dos preditos exames à
saliva dos arguidos a colher através de zaragatoa bucal.
(...)»
III – 3.1.) Como vimos, o essencial das razões de discordância dos recorrentes
tem como alvo “mediato” um despacho do Ministério Público proferido em inquérito
a ordenar a realização de zaragatoa bucal para recolha de saliva, a que aqueles
não aderiram, quer de facto, emprestando a sua disponibilidade para a respectiva
realização, quer de direito, impugnando-a e títulos.
Antes de podermos abordar essa temática, haverá no entanto que apreciar uma
outra, atravessada a título prejudicial pelo Senhor magistrado que assegura a
resposta ao recurso, já que de um modo mais radical consequência a sua não
admissibilidade.
Na base desta posição, está o entendimento perfilhado em como tal despacho não é
sindicável pelo juiz de instrução criminal, nos termos em que o foi, já que
naquela fase de processo, “fora das situações previstas nos art.°s 268.° e 269.°
do Cód. Proc. Penal, o mesmo não pode conhecer da arguição de nulidades”, donde
a respectiva decisão, por maioria de razão, não o dever ser a título de recurso.
Não sofre qualquer contestação, para o que não se toma necessário voltar a citar
disposições legais já amiúde referidas nestes autos, que a fase de inquérito no
nosso ordenamento processual, está cometido exclusivamente ao Ministério
Público, que determinará as diligências reputadas pertinentes e adequadas à
investigação do crime e dos seus agentes, desse modo recolhendo as provas que
irão fundamentar a sua decisão de acusar ou não.
Sendo assim naquela fase o “dominus” do processo, como é habitual dizer‑se,
fácil será compreender que mantenha a iniciativa e o controlo dos actos por si
determinados, mesmo numa perspectiva de legalidade, já que alia à sua autonomia
como órgão de administração da justiça, uma orientação balizada exactamente por
tal princípio (cfr. art. 221.° da CRP e art. 1.0 do respectivo estatuto).
A articulação naquela mesma fase com a intervenção do juiz de instrução
criminal, entidade que superintende a seguinte, caso requerida, mas que não
deixa de naquela poder intervir, já que de acordo com art. 17.º do Cód. Proc.
Penal e 59.° da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, exerce as funções
jurisdicionais relativas ao inquérito, nos termos prescritos no referido Código,
opera-se basicamente em torno dos art.°s 268.° e 269.° do Cód. Proc. Penal.
Segundo o primeiro, que ostenta exactamente tal epígrafe:
“1. Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução:
a) Proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido;
b) Proceder à aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, à
excepção da prevista no artigo 196.º, a qual pode ser aplicada pelo Ministério
Público;
c) Proceder a buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico
ou estabelecimento bancário, nos termos dos artigos 177. °, n.° 3, 180.°, n.° 1,
e 181.°;
d)Tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência
apreendida, nos termos do artigo 179. °, n.° 3;
e) Declarar a perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o Ministério
Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277. °,
280.° e 282.°;
f) Praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de
instrução.”
Os actos contemplados no preceito seguinte como sendo da sua competência
exclusiva naquela fase, são os de ordenar ou autorizar:
a) Buscas domiciliárias, nos termos e com os limites do art. 177. °,
b) Apreensões de correspondência, nos termos do art. 179. °, n.° 1;
c) Intercepção, gravação ou registo de conversações ou comunicações, nos termos
dos artigos 187.0 e 190.0;
d) A prática de quaisquer outros actos que a lei expressamente fizer depender de
ordem ou autorização do juiz de instrução.
III – 3.2.) É claro que, na al. f) do n.° 1, daquele art. 268.°, cabem diversos
actos dispersamente prevenidos no Código de Processo em que a intervenção
daquele juiz é convocada. Assim, entre outras, a título meramente
exemplificativo, a admissão de assistente (art. 68.°, n.° 3), a detenção perante
falta injustificada (art. 116.°, n.° 2), as declarações para memória futura
(art. 271.°)
Em qualquer dos casos, a situação ora suscitada não encontra cabimento expresso
em nenhum desses actos avulsos especialmente regulados.
Se percorremos as disposições reguladoras do meio de obtenção da prova – exames
(art.°s 171.° a 173.° do Cód. Proc. Penal) – não encontraremos aí, também,
qualquer referência a uma autorização a conceder pelo juiz de instrução
criminal.
Ora se a esta constatação juntarmos a estruturação acusatória do nosso processo,
facilmente se alcançará a confirmação do acerto, em tese geral, da posição
assumida pelo Sr. magistrado do Ministério Público.
Parafraseando o Prof. Germano Marques da Silva – Curso de Processo Penal Verbo,
III Vol., pág. a 81 “se a lei confia ao Ministério Público a direcção da
investigação, permitindo-lhe dispor quais os actos que entenda necessários à
realização da finalidade do inquérito, não se compreenderia que depois
submetesse a actividade desenvolvida a fiscalização judicial. O que fica sujeito
a fiscalização judicial é a decisão do Ministério Público no termo do
inquérito”.
E como se opera?
Precisamente pela instrução, a fase cuja finalidade específica é exercer tal
controlo.
Confira-se, por exemplo, que de harmonia com o disposto no art. 308.°, n.° 3, do
Cód. Proc. Penal, antes de proferir despacho de pronúncia ou não pronúncia, o
“juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais
de que possa conhecer”.
E nessa conformidade, tendo em vista a aí contemplar, designadamente, as
nulidades arguidas no decurso do inquérito, a Jurisprudência autonomizou do art.
310.º do mesmo diploma, um recurso específico de tal segmento da decisão
(Assento n.° 6/2000, de 19/01/2000, publicado no DR 1ª Série, de 07/03/2000) a
que inclusive atribuiu “subida imediata” de acordo com o Ac. do STJ n.° 7/204,
publicado no DR Iª Série de 02/12/2004.
Dito por outras palavras, havendo discordância sobre a legalidade de acto
praticado na fase inquérito e influindo a mesma na decisão de acusação, deverá o
requerente solicitar a abertura da instrução e aí fazer a invocação das razões
que entenda pertinente contrapor-lhe.
É essa a sede própria, por exemplo, para discutir-se uma proibição de prova, e
por isso mesmo, a sua influência pertinente na demonstração de facto ou factos
que importem à responsabilização criminal, não o seu ajuizamento abstracto em
função da prática de actos tidos por úteis ou inúteis, matéria de cujo
conhecimento aquele obviamente está arredado.
É este o esquema que salvaguarda a separação das fases mencionadas e respeita a
autonomia de funções das Magistraturas encarregadas da sua superintendência, em
obediência a um quadro de intervenções legal e constitucionalmente bem
definidas.
Ou seja, para resumir, na sistemática e coerência do modelo processual actual,
não cabe a impugnação avulsa para o juiz de instrução criminal, acto a acto do
Ministério Público em inquérito, com fundamento na sua eventual nulidade.
III – 3.3.) Mas se temos este entendimento como seguro para a generalidade das
situações, ainda assim é possível encontrar um domínio de excepção onde será
possível admitir (mais não seja para melhor poder testá‑lo), uma intervenção
pontual do juiz de instrução criminal sobre a legalidade das iniciativas
processuais assumidas pelo Ministério Público no inquérito: a dos actos
“necessários à salvaguarda dos seus direitos fundamentais”.
Tal como refere o Germano Marques da Silva na obra já citada, pág.s 79/80 “(...)
competindo a direcção do inquérito ao Ministério Público, não é curial que o
juiz possa intrometer-se na actividade de investigação e recolha de provas,
salvo se tratar de actos necessários à salvaguarda de direitos fundamentais.
Para a prática de algum desses actos pode necessitar da intervenção do juiz,
quer para os consentir, quer mesmo para os praticar mas só por sua promoção
podem ter lugar (o que não é a situação dos autos), a menos que se trate de
actos necessários à salvaguarda de direitos fundamentais dos requerentes”.
(...)
“Mesmo na interpretação prevalecente e restritiva do art. 32.°, n.° 4, da
Constituição é reservada à competência do juiz de instrução a prática dos actos
de investigação, ainda que na fase processual do inquérito, que se prendam com
os direitos fundamentais”.
Nesta conformidade, e tal como já se decidiu no recurso com o n.° 6541/05, de
que este é simétrico, vamos admitir o recurso nesta base, já que também na mesma
se situou a intervenção da Sr.a Juiz de Instrução Criminal.
III – 3.4.) Como acima já deixamos sublinhado, discute-se no presente recurso,
essencialmente, a legalidade e constitucionalidade da decisão que determina a
submissão dos arguidos a sujeitar-se a exame (colheita de saliva através de
zaragatoa bucal), para assegurar uma determinada investigação criminal conexa
com dois homicídios de que não existe prova testemunhal, ainda que nesse sentido
concorra a recusa daqueles em nela colaborarem voluntariamente.
Estatui o art. 171.°, n.° 1, do Cód. Proc. Penal “que por meio de exames das
pessoas (...) inspeccionam-se os vestígios que possa ter deixado o crime e todos
os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado, às pessoas que
o cometeram ou sobre as quais foi cometido”, sendo que o preceito seguinte
esclarece, que “se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido
ou a facultar coisa que deva ser examinada, pode ser compelido por decisão da
autoridade judiciária competente.”
Não havendo dúvidas que na fase de inquérito tal autoridade é o Ministério
Público (art.°s 263.°, n.° 1 e 267.° do Cód. Proc. Penal) e que entre os deveres
específicos decorrentes da situação de arguido se encontra o de “se sujeitar a
diligências de prova” (art. 61.°, n.° 3), não é menos verdadeiro que de harmonia
com o estabelecido com o art. 126.° do mesmo diploma, “são nulas, não podendo
ser utilizadas, as provas obtidas mediante (...) coacção ou, em geral, ofensa à
integridade física ou moral das pessoas”.
Em todo o caso, até pela unidade do pensamento legislativo que regulamenta toda
esta matéria, zonas haverá seguramente onde a obrigação de alguém a submeter-se
a um exame não integra coacção, ofensa moral ou à integridade física da mesma,
sob pena de outra maneira aquela primeira norma ficar vazia de sentido.
III – 3.5.) É sabido que a nosso ordenamento jurídico prevê “várias situações em
que o direito à integridade corporal e o direito à autodeterminação corporal
cedem face a interesses comunitários e sociais preponderantes, quer na área da
saúde pública, quer na área da defesa nacional, quer na área da justiça, quer
noutras áreas.
Assim sucede quando se impõem certas condutas corporais como a vacinação
obrigatória, os radiorrastreios, o tratamento obrigatório de certas doenças
contagiosas, a proibição de dopagem dos praticantes desportivos, o serviço
militar obrigatório ou a prestação de serviço cívico e a realização de perícia
psiquiátrica e de perícia sobre a personalidade” (cfr. Ac. da Relação de Coimbra
no Recurso n.° 3261/01).
Para além do arresto do Tribunal Constitucional aí mencionado, no Ac. n.° 319/95
do mesmo Tribunal discutia-se o art. 6.° do DL n.° 124/90, de 14 de Abril, ao
permitir que a autoridade policial efectue exames na pessoa do arguido (sopro em
balão), sem a presença do Ministério Público, concluindo-se que tal disposição
não violava o princípio da igualdade, o direito ao bom nome e à reputação, à
reserva da intimidade privada, à imagem, destacando-se na sua fundamentação o
seguinte trecho:
“A submissão do condutor ao teste de detecção de álcool (e, assim, a norma do
artigo 6°, n° 1, que a permite) também não viola o dever de respeito pela
dignidade da pessoa do condutor, nem o seu direito ao bom nome e à reputação,
nem o direito que ele tem à reserva da intimidade da vida privada.
Desde logo, tais direitos não proíbem a actividade indagatória do Estado, seja
ela judicial, seja policial. O que o princípio do Estado de Direito impõe é que
o processo (maxime, o processo criminal) se reja “por regras que, respeitando a
pessoa em si mesma (na sua dignidade ontológica), sejam adequadas ao apuramento
da verdade” (cf. acórdão n° 128/92, publicado no Diário da República, II série,
de 24 de Julho de 1992).
Ora, o exame para pesquisa de álcool, com o recorte que, nos seus traços
essenciais, dele se deixou feito, destinando-se, não apenas a recolher uma prova
perecível, como também a impedir que um condutor, que está sob a influência do
álcool, conduza pondo em perigo, entre outros bens jurídicos, a vida e a
integridade física próprias e as dos outros, mostra-se necessário e adequado à
salvaguarda destes bens jurídicos e ao fim da descoberta da verdade, visado pelo
processo penal.”.
No Ac. n.° 161/05, estava em causa a aplicação, a inconstitucionalidade, da
norma do n.° 1 do artigo 172.° do Código de Processo Penal (CPP), quando
interpretada no sentido de que pode ser ordenada a detenção de arguido, pelo
tempo indispensável à realização de exame médico em caso de falta injustificada
a diligência anteriormente designada para tal efeito (exame psiquiátrico).
Aí se considerou, designadamente, que “Entre as provas cuja realização no
processo penal é admissível, desde logo na fase do inquérito, figuram as provas
periciais (cf. art.°s 151° e ss. do CPP), nelas se contando a perícia
psiquiátrica, vocacionada, entre o mais, para determinar se o arguido sofre de
estados patológicos do foro mental que o tomem incapaz de se autodeterminar
livremente ou seja, se é inimputável criminalmente em razão de qualquer
patologia que afecte a sua capacidade de entender, de se decidir e de agir
livremente ou em termos racionais (cf. art.°s 159°, n.° 2, e 35 1°, do CPP), o
que, a acontecer, acarretará que o mesmo não possa ser sujeito de sanções
penais.
A prova pericial psiquiátrica pode, deste modo, incidir sobre a própria pessoa
do arguido, pelo que a sua produção demanda a sua presença física na respectiva
diligência processual e ter lugar logo na fase do inquérito.
A norma em apreciação prende-se com a necessidade de garantir a presença do
arguido a esse exame pericial psiquiátrico, tendo a decisão recorrida recusado a
sua aplicação por entender que, não obstante o arguido haver faltado
injustificadamente aos exames antes marcados ao abrigo do disposto no art.° 273°
do CPP e a detenção pedida ser apenas pelo período indispensável à realização do
exame médico, a privação da sua liberdade era para ser presente a diligência a
ser efectuada sob a presidência e direcção apenas de quem pratica o respectivo
acto de exame médico.”
Para se concluir que “não existe dúvida de que é conforme com aquela prescrição
constitucional uma norma infraconstitucional que permita a detenção de arguido
pelo tempo indispensável à realização da diligência de exame pericial
psiquiátrico a levar a cabo na sua pessoa sob a presidência de agente do
Ministério Público ou de juiz”, isto depois, de entre o mais se ter sopesado que
“Em face daquele princípio – da tipicidade constitucional das medidas privativas
ou restritivas da liberdade – o que há então que decidir é a questão de saber se
a restrição do direito à liberdade, em situações como a retratada nos autos, se
encontra ou não autorizada por aqueles números 2 ou 3 do artigo 27° da
Constituição.”
III – 3.6.) Como regra os nossos Comentadores são muito parcos sobre o sentido a
conferir àquela compulsão referida no art. 172.°, n.° 1.
Já no domínio da Doutrina, o Prof. Germano Marques da Silva menciona na
decorrência da al. c) do n.° 3 do art. 61.º do Cód. Proc. Penal, que “o arguido
tem o dever de sujeitar-se a diligências de prova e medidas de coacção e
garantia patrimonial”.
“No que às diligências de prova respeita, tem de sujeitar-se a todas as que não
forem proibidas por lei (art. 125.º), entre outras, a interrogatório (prova por
declarações – art.°s 140.° e segts.) a acareação (art. 146.°) a reconhecimento
(art. 147.°) e reconstituição dos factos (art. 150.°) a perícia e exame (art.°s
151.º e 171.°)
(...)”
E ainda que num domínio processual e constitucional já não vigente, o Prof.
Figueiredo Dias ensinava que:
“(...) Na medida, porém, em que o objecto do exame seja uma pessoa, que assim se
vê constrangida a sofrer ou suportar uma actividade de investigação sobre si
mesma, o exame constitui um verdadeiro meio de coacção processual – como
claramente o inculca, de resto, a 2ª parte do corpo do art. 178.° do CPP, ao
estatuir que, para realização de um exame, pode «o juiz tomar efectivas as suas
ordens, até com o auxílio da força...» -, tendo por isso de submeter-se aos
princípios (já acima referidos) que estritamente demarcam a admissibilidade de
tais meios e coacção.
Sendo os exames, na parte referida, um meio de coacção processual, as normas que
os permitem não poderão deixar de ser entendidas e aplicadas nos termos mais
estritos, tal como sucede com os restantes meios de coacção, maxime com a prisão
preventiva; em um como em outro caso a liberdade é a regra e a restrição daquela
a excepção. Excepção que, aliás, não deixa de ser constitucionalmente imposta:
assegurando o art. 8.°, n.° 1, da Constituição Política a todos os cidadãos o
direito à integridade pessoal, quaisquer limitações que a tal direito sejam
feitas pela lei ordinária relativa a exames em processo penal terão de obedecer
à máxima strictissime sunt interpretanda”.
Todo este tipo de preocupações esteve presente no despacho recorrido ao se ter
consignado que “o recurso a tais meios de obtenção da prova só poderão ser
ordenados e sobre o arguido impende a consequente obrigação de se sujeitar a
eles, tem carácter excepcional, apenas na estrita medida em que se mostrem
ineficazes outros meios de prova, devendo observar-se quanto à sua utilização os
mesmos princípios que regem a aplicação da medida de coacção da prisão
preventiva.
No caso sub judicio, verifica-se essa situação de excepção, de necessidade e
subsidiariedade, porquanto não existem testemunhas presencias dos homicídios
qualificados em investigação, de que foram vítimas D. e E. e, consequentemente,
de meios probatórios que permitam a identificação dos seus autores.”.
III – 3.7.) No fundo, em sede constitucional, a ideia fundamental a retirar
nesta matéria, é aquela já assinalada no referido Ac. da Relação de Coimbra,
posto que invocando ideia de outro Autor, em como “apenas é ilegítima a
restrição dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados
em caso de conflito com direitos ou valores da mesma matriz, quando a restrição
atente contra as exigências (mínimas) de valor que, por serem a projecção da
ideia de dignidade humana, constituem o fundamento (a essência) de cada preceito
constitucional nesta matéria, sendo certo que mesmo no caso de falta de preceito
constitucional que autorize a restrição pela lei pode tal falta ser colmatada
pelo recurso à Declaração Universal dos Direitos do Homem, nos termos do n.° 2,
do art. 16.°, da Constituição da República.”
Ora como aí também se disse, a “Declaração Universal dos Direitos do Homem, no
seu art. 29.° permite que o legislador estabeleça limites aos direitos
fundamentais para assegurar o reconhecimento ou o respeito dos valores
enunciados: «direitos e liberdades de outrem», «justas exigências da moral, da
ordem pública e do bem-estar geral numa sociedade democrática».
Os recorrentes chamam em seu abono, entre outros, o seu direito à integridade
física constitucionalmente protegido no art. 25.° (1- A integridade moral e
física das pessoas é inviolável 2 – Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a
tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos), outros direitos pessoais
mencionados no art. 26.°, n.° 1 (A todos são reconhecidos os direitos à
identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil,
cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade
da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de
discriminação), e a garantia do processo criminal contida no art. 32.°, n.° 8,
todos da Constituição da República Portuguesa (São nulas todas as provas obtidas
mediante tortura, coacção, ofensa à integridade física ou moral da pessoa,
abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas
telecomunicações), sendo que estes, basicamente, preenchem a matriz dos direitos
invocados nos demais textos declarativos invocados.
Haverá que ponderar por outro, o interesse comunitário e do Estado na
administração da justiça, para que um crime com a gravidade das consequências
patenteadas nestes autos, sem mais, fique sem investigação.
Estamos ainda muito longe do estabelecimento de eventuais responsáveis.
Ora naquele vastamente aqui citado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra,
entendeu-se, para além do mais, que a colheita de saliva embora ofendendo o
direito à autodeterminação corporal dos recorrentes, o fazia em “grau ou medida
desprezível, isto é irrelevante”.
O mesmo sucedeu no acórdão desta Relação de 3 de Maio de 2006, no recuso n.°
6541/05, de que também fomos co-subscritores, e onde em jeito de conclusão se
deixou referido:
“Deste modo e tendo presente que o exame ordenado tem em vista a procura da
verdade material para administração da justiça penal, o que constitui uma
exigência da ordem pública e do bem-estar geral, bem como um dos pilares do
Estado de Direito, há que concluir que a realização compulsiva daqueles se
mostra justfl cada e legitimada a significar que a decisão impugnada, proferida
ao abrigo da norma do art. 172°, n. 1 do Código de Processo Penal, que atribui à
autoridade judiciária o poder de compelir as pessoas à submissão de exame devido
ou a facultar coisa que deva ser examinada, não viola os arts. 25.°, n.° 1
(acrescentaríamos 26.°, n.° 1) e 32°, ° 8, da Constituição da República, na
parte em que ordena o exame e perícia mediante extracção de saliva por via de
zaragatoa bucal, dado que a mesma apenas é susceptível de ofender o direito à
autodeterminação corporal do(s) recorrente (s) em medida irrelevante.
Sendo este entendimento de manter, igualmente em face do art. 8.° da Convenção
Europeia Dos Direitos do Homem, art. 12.° da Declaração Universal dos Direitos
do Homem e art. 17.° do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que
no fundo previnem as intromissões “arbitrárias e ilegais” contra a vida privada,
família, domicílio correspondência, honra e reputação, nesta conformidade,
consideramos não ser de dirigir censura ao despacho recorrido.
Em consequência, o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso.
2. C. interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:
– O RECURSO VAI INTERPOSTO AO ABRIGO DAS ALÍNEAS B) E F) DO Nº 1 DO ART 70 DA
LEI 28/82 NA REDACÇÃO DADA PELA LEI 85/89 DE 07/09.
– O RECORRENTE PRETENDE VER APRECIADA A INCONSTITUCIO-NALIDADE E ILEGALIDADE DAS
NORMAS CONSTANTES NOS ART°S 53º, 61º, Nº 1 AL F) E N° 3. 154° Nº 1, 172°/1, E
126°/1, 2 AL A) E C) E 3 TODOS DO C.P.P., NO SENTIDO DE POSSIBILITAR AO M.P.
ORDENAR A COLHEITA COACTIVA DE VESTÍGIOS BIOLÓGICOS DE UM ARGUIDO PARA
TIPIFICAÇÃO E COMPARAÇÃO DO SEU PERFIL GENÉTICO, QUANDO ESTE ÚLTIMO TENHA
MANIFESTADO A SUA OPOSIÇÃO À DITA COLHEITA, COM BASE NA AUSÊNCIA DE SUPORTE
LEGAL EXPRESSA POR SER MATÉRIA – MUITO ESPECÍFICA – ATINENTE AOS DIREITOS,
LIBERDADES E GARANTIAS FUNDAMENTAIS O QUE ESTÁ SUJEITA A RESERVA DE LEI FORMAL E
MATERIAL, O QUE IMPLICARIA A SUA PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO COMO PROVA.
– AS NORMAS ACIMA REFERIDAS VIOLARAM NO ENTENDIMENTO ACIMA REFERENCIADO OS ART
26°, N° 1 E 3, 18° N°1, 2 E 3, 25° N° 1, 27º Nº 2 E 3, E 32° N° 8, 115°, 167° E
168º N° 1 AL B) E 283º N° 3 TODOS DA C.R.P.
– A QUESTÃO DA INCONSTITUCIONALIDADE E ILEGALIDADE ACIMA REFERIDA FOI SUSCITADA
NOS AUTOS EM REQUERIMENTOS DE FLS 992 A 1026 DIRIGIDOS AO JUIZ DE INSTRUÇÃO
CRIMINAL E NA MOTIVAÇÃO E CONCLUSÕES DO RECURSO INTERPOSTO PARA O TRIBUNAL AGORA
RECORRIDO.
– DEVERÁ O RECURSO SUBIR IMEDIATAMENTE, EM SEPARADO, FIXANDO-LHE EFEITO
SUSPENSIVO DO PROCESSO, JÁ POR SER ESSE O REGIME REGRA COMO TAMBÉM PROVER MANTER
OS EFEITOS DE SUBIDA DO REGIME ANTERIOR.
Junto do Tribunal Constitucional o recorrente alegou, concluindo o seguinte:
I. NO DIREITO POSITIVO VIGENTE EM PORTUGAL SÓ O CONSENTIMENTO LIVRE E
ESCLARECIDO DO ARGUIDO PODE LEGITIMAR A SUA SUBMISSÃO A UMA COLHEITA DE
VESTÍGIOS BIOLÓGICOS PARA ANÁLISE DE ADN, SENDO POR ISSO JURIDICAMENTE
INADMISSÍVEL QUER A RECOLHA COACTIVA DE TAIS VESTÍGIOS, QUER A SUA ULTERIOR E
NÃO CONSENTIDA ANÁLISE GENÉTICA COM VISTA A DETERMINAÇÃO DA CHAMADA «IMPRESSÃO
DIGITAL GENÉTICA», PARA FINS DE PROCESSO CRIMINAL;
II. PARA QUE SEMELHANTE COLHEITA E POSTERIOR ANÁLISE GENÉTICA FOSSEM
JURIDICAMENTE ADMISSÍVEIS, SERIA ABSOLUTAMENTE NECESSÁRIA UMA LEI ESPECÍFICA QUE
AS AUTORIZASSE E PRESCREVESSE O RESPECTIVO REGIME (PRESSUPOSTOS MATERIAIS,
FORMAIS, ORGÂNICOS E PROCEDIMENTAIS), JÁ QUE POR FORÇA DOS PRINCÍPIOS DA
LEGALIDADE E DE RESERVA DE LEI, CONSAGRADOS NO ART. 18.º DA C.R.P., SÓ ESSA LEI
EMPRESTARIA AS ALUDIDAS MEDIDAS E INDISPENSÁVEL LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL –
LACUNA ESSA QUE O INTÉRPRETE E O APLICADOR DA LEI NÃO ESTÃO, POR SI, LEGITIMADOS
A COLMATAR;
III. SEMELHANTES MEDIDAS, COM EFEITO, SÃO PORTADORAS DE UM POTENCIAL DE
DANOSIDADE E DE DEVASSA QUE ESTÁ MUITO PARA ALÉM DA QUE FOI PRESSUPOSTA PELO
LEGISLADOR AO REGULAR OS “NORMAIS” EXAMES E PERÍCIAS OU, MESMO, AO PRESCREVER A
RECOLHA DE SANGUE PARA DETERMINAR SE UM CONDUTOR ESTÁ INFLUENCIADO PELO ÁLCOOL
OU POR SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS;
IV. MERCÊ DISSO, DEVER-SE-IA TER DESAPLICADO AS NORMAS CONTIDAS NOS ART.S 172º
N° 1 E 126°, N.°S 1, 2 – ALS. A) E C), E 3, DO CPPEN E CUJA
INCONSTITUCIONALIDADE FOI EXPRESSAMENTE INVOCADA PELO ORA RECORRENTE, DE MOLDE A
QUE FOSSE RECONHECIDA E DECLARADA A INTRANSPONÍVEL PROIBIÇÃO DE PRODUÇÃO PROVA
RELATIVAMENTE AQUELAS MEDIDAS, COM A CONSEQUENTE PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO DA(S)
PROVA(S) ASSIM OBTIDA(S);
V. DECIDINDO DE FORMA DIVERSA E NÃO TENDO JULGADO ESSAS NORMAS
INCONSTITUCIONAIS, O ACÓRDÃO RECORRIDO VIOLOU FRONTALMENTE OS PRECEITOS E
PRINCÍPIOS DA NOSSA LEI FUNDAMENTAL QUE SE DEIXARAM DEVIDAMENTE ENUNCIADOS
CONTIDOS NOS ART°S 26°, N.° 1 E 3, 18°, N.° 1, 2 E 3, 25°, N°1, 27º, N° 2 E 3, E
32º, N.º 8, 115°, 167º E 168°, N°1 AL. B) E 283°, N.° 3 TODOS DA C.R.P. E, ALÉM
DO MAIS QUE DE RESTO, CONSTAVAM JÁ DO REQUERIMENTO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL.
O Ministério Público contra‑alegou, concluindo o seguinte:
1. Não são inconstitucionais as normas dos artigos 172°, n° 1 e 126°, nºs 1, 2
alíneas a) e c) e 3, do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de
poder valer como prova a obtida através de exame a vestígios biológicos,
ordenada pela autoridade judiciária competente e conseguidos através de colheita
coactiva (consistente em zaragatoa bucal para extracção de saliva) para
determinação de perfil genético a arguido, contra a sua vontade e recusa
expressa em colaborar ou permitir tal colheita.
2. Termos em que não deverá proceder o presente recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentação
3. As questões de constitucionalidade são suscitadas a partir da formulação
segundo a qual violam a Constituição [os artigos 26º, nºs 1 e 3, 18º, nºs 1, 2 e
3, 25º, nº 1, 27º, nºs 2 e 3, 32º, nº 8, 115º, 167º, 168º, nº 1, alínea b),
283º, nº 3], as normas constantes dos artigos 53º, 61º, nº 1, alínea f) e nº 3,
154º, nº 1, 172º, nº 1, e 126º, nºs 1, 2, alíneas a) e c), 3, do CPP, nos termos
das quais se possibilita ao Ministério Público ordenar a colheita coactiva de
vestígios biológicos de um arguido para tipificação e comparação do seu perfil
genético, quando este tenha manifestado a sua oposição à dita colheita, com base
na ausência de suporte legal expresso por ser matéria – muito específica –
atinente aos direitos, liberdades e garantias fundamentais, que está sujeita a
reserva de lei formal e material, não sendo, consequentemente, valorável como
prova.
A partir desta longa formulação destacam‑se, porém, três questões de
constitucionalidade: a eventual violação de proporcionalidade na restrição de
direitos fundamentais do arguido; a eventual violação de uma legitimação legal
para a intervenção em causa; e, por último, a questão da violação do espaço de
competência do juiz de instrução, nos termos do artigo 32º, nº 4, da
Constituição, na realização de tal intervenção.
O Acórdão nº 155/2007 do Tribunal Constitucional, debruçando‑se sobre caso
idêntico, respondeu às duas primeiras questões de modo negativo, não julgando
inconstitucional a norma em causa e respondeu, positivamente, à última das
questões, julgando inconstitucional a dimensão normativa questionada.
O Tribunal adere aos fundamentos do juízo de inconstitucionalidade formulado
nesse aresto. Tal perspectiva situa‑se na linha de anterior jurisprudência
relativa à articulação dos poderes do Ministério Público com os do Juiz de
Instrução (cf., entre outros, Acórdãos nºs 7/87, 23/90 e 395/2004).
Decisivamente, entende o Tribunal que, tratando‑se de uma intervenção
significativa nos direitos fundamentais do arguido, se impõe um controlo prévio
pelo juiz como expressão da separação de poderes e competências decorrente da
estrutura acusatória do Processo Penal consagrada nos artigos 32º, nºs 4 e 5 do
Código de Processo Penal.
4. Por outro lado, o Tribunal adere, no essencial, às razões que justificaram a
conclusão pela não inconstitucionalidade das restantes questões, tendo em
consideração a dimensão normativa concretamente questionada. Assim, admite‑se
que, em si mesmo, não existirá desproporcionalidade na utilização de tais
métodos invasivos do corpo da pessoa (mas não lesivos da integridade física), da
sua liber-dade e privacidade, como único meio para obtenção da prova em
situações (tal qual a do presente caso) de extrema gravidade dos factos
perpetrados, com base numa ponderação de todas as circunstâncias a efectuar por
um juiz imparcial que não tem a seu cargo ou sob o seu domínio a investigação do
processo, e sendo assegurado o controlo de todo o aproveitamento possível dos
resultados de tal intervenção.
Tratando‑se, no presente caso de fiscalização concreta de constitucionalidade,
sempre haverá que tomar em consideração os específicos critérios normativos
subjacentes à decisão judicial. Ora, entre tais critérios salvaguardam‑se dois
que o Tribunal considera essenciais: o interesse do Estado na realização da
justiça em face de um crime com a elevada gravidade patenteada nos autos e a
medida diminuta de afectação dos direitos à autodeterminação corporal e à
própria intimidade pessoal, a par da utilização exclusiva para tais fins do
material biológico recolhido.
Por outro lado, a menor densificação da lei existente que autorize tais
intervenções, nomeadamente ao prever critérios de ponderação, procedimentos e
limitação da utilização de tais materiais, não redunda, no caso concreto, em
inconstitucionalidade porque a “norma do caso” formulada pelo tribunal recorrido
quanto a critérios de proporcionalidade, necessidade e adequação, integrou os
elementos substanciais que, de modo suficiente e exigente, poderiam assegurar a
adequação e proporcionalidade que são exigidas pelo artigo 18º, nº 2, da
Constituição.
Também não é determinante, no presente caso, em face da dimensão normativa em
causa, o facto, em si mesmo, de a lei não densificar os critérios de recolha de
prova com esta natureza. Com efeito, não estamos perante uma intervenção
restritiva de direitos fundamentais não autorizada legalmente nem da ausência de
densificação resultou, segundo os critérios fixados, uma intervenção arbitrária.
Finalmente, tratando‑se de recolha de prova, sem alternativas, dada a falta de
testemunhas, em matéria de crime de muita elevada gravidade, a exigência de
densificação da lei como exigência de constitucionalidade não consideraria a
“necessidade investigatória” urgente em confronto com a medida diminuta de
sacrifício dos direitos fundamentais no caso concreto.
Não estamos, assim, perante situação comparável, qualitativa e
quantitativamente, a qualquer substituição do legislador pelo julgador em sede
de definição do tipo legal de crime. Aí, o valor da segurança democrática
relativamente ao que é proibido impõe‑se sem quaisquer restrições. Nesta
matéria, é admissível que, em circunstâncias de necessidade investigatória, o
juiz ainda possa fazer uma ponderação que, segundo os padrões garantísticos da
mais exigente das ponderações de acordo com os critérios da Constituição, o
legislador nunca poderia excluir ao densificar a lei que autoriza a recolha de
tais materiais como meios de prova.
Assim, em face destes critérios normativos, e tendo presente o que se disse no
Acórdão nº 155/2007, o Tribunal entende não ser inconstitucional a dimensão
normativa agora em causa.
III
Decisão
5. Nestes termos, o Tribunal decide:
a) julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos n.ºs
25.º, 26.º e 32.º, nº 4, da Constituição, a norma constante do artigo 172.º, nº
1, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de possibilitar,
sem autorização do juiz, a colheita coactiva de vestígios biológicos de um
arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha
manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita;
b) consequencialmente, julgar inconstitucional, por violação do
disposto no artigo 32.º, nº 4, da Constituição, a norma constante do artigo
126º, nºs 1, 2 alíneas a) e c) e 3, do Código de Processo Penal, quando
interpretada em termos de considerar válida e, por conseguinte, susceptível de
ulterior utilização e valoração a prova obtida através da colheita realizada nos
moldes descritos na alínea anterior.
c) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e ordenar a
reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo de
inconstitucionalidade que agora se formula.
Lisboa, 28 de Março de 2007
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Paulo Mota Pinto (nos termos da declaração de
voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Pronunciei-me no sentido da inconstitucionalidade da norma impugnada também por
falta de habilitação legal suficiente para proceder ao exame em causa. Apesar de
menos “intrusivo” do que certos outros exames médicos, o exame de ADN para a
identificação de perfis genéticos, envolvendo ainda uma restrição a direitos,
liberdades e garantias (designadamente, a direitos relativos ao controlo sobre a
própria informação genética, que devem reputar-se consagrados no artigo 26.º),
carece, a meu ver, de uma habilitação legal específica, que não existia e que
não pode considerar-se satisfeita com a mera remissão (constante do Acórdão n.º
157/2007 e aceita na presente decisão) para a concretização da norma que foi
efectuada no caso concreto pelo tribunal: a “densificação” judicial da norma
habilitante não pode suprir a necessária habilitação legislativa específica,
que, a meu ver, é exigida pela Constituição da República.
Paulo Mota Pinto