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Processo n.º 481/05
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que figura
como recorrente A., foi proferido acórdão, em 23 de Fevereiro de 2005, que negou
provimento ao recurso que o arguido havia interposto da decisão do 1º Juízo
Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, que o havia condenado, como autor de um
crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 60 dias de multa à taxa
diária de € 8.
2. Desta decisão do Tribunal da Relação de Coimbra foi interposto o presente
recurso, através de um requerimento que tem o seguinte teor:
“[...], recorrente, não se conformando com o douto acórdão proferido nos mesmos,
vem dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
O presente recurso é interposto ao abrigo do disposto no art. 69º e segs. da Lei
do Tribunal Constitucional, uma vez que o Acórdão ora posto em causa aplicou
normas cuja inconstitucionalidade havia sido suscitada no decurso do processo -
al. b) do n° 1 do art. 70º do diploma referenciado.
Efectivamente na motivação do recurso apresentado o recorrente aludiu à violação
específica do estatuído nos artºs. 127º e 150° do Cód. de Proc. Penal e, por
consequência do artº 32° n°. 2 da Constituição da República,
Tendo na mesma motivação aludido, também, à violação do dever específico de
fundamentação contido no artº. 374° do CPP, tendo, aliás, referido, por
manifesto lapso de escrita o n° 1, quando o que queria dizer era o n° 2, e por
consequência a violação do estatuído no artº 205° n° 1 da Constituição da
República .
Ora a douta decisão agora em crise entendeu que a sentença no que diz respeito à
motivação de facto se encontrava devidamente fundamentada, entendendo, por
omissão, que a mera menção, destituída de qualquer exame crítico à prova
pericial produzida em “reconstituição do facto” e em esclarecimentos em
audiência de julgamento satisfaria o. sobredito dever de fundamentação.
Pretende, assim, o recorrente que o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL declare a
desconformidade com os preditos comandos constitucionais - artºs. 32° n° 2 e
205° n° 1 da CRP - na interpretação e aplicação sufragada pelo Acórdão recorrido
porquanto estas retiram sentido válido aos princípios do “in dubio pro reo” e do
“dever de fundamentação.[...]”.
3. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao
abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão
sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. É o seguinte, na
parte agora relevante, o teor da sua fundamentação:
“[...]3. Admitido o recurso no Tribunal da Relação de Coimbra, cumpre, antes de
mais, decidir se pode conhecer-se do seu objecto, uma vez que a decisão que o
admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. art. 76º, n.º 3 da LTC).
O recorrente indica, como fundamento do recurso, a alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional. O recurso previsto nesta alínea,
pressupõe, designadamente, que a questão colocada ao Tribunal Constitucional
seja uma questão de constitucionalidade normativa, isto é reportada ao confronto
de uma determinada norma ou interpretação normativa com a Constituição.
Pressupõe, além disso, porque de recurso se trata, que o recorrente tenha
suscitado, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a
decisão recorrida, a inconstitucionalidade da norma jurídica - ou de uma sua
dimensão normativa - que pretende ver apreciada por este Tribunal e que, não
obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado, como ratio decidendi, no
julgamento do caso.
Ora, no caso dos autos, é manifesto que nada disto acontece, como sumariamente
veremos já de seguida.
3.1. Em primeiro lugar, o requerimento de interposição de recurso para o
Tribunal Constitucional não coloca, sequer, a este Tribunal uma questão de
constitucionalidade normativa.
De facto, desde logo, basta ler aquele requerimento – que acima se transcreveu -
para se concluir que o recorrente não identificou aí, qualquer questão de
constitucionalidade normativa que possa ser submetida ao Tribunal
Constitucional, limitando-se, apenas, a questionar “a douta decisão agora em
crise” e a pretender que o Tribunal Constitucional “declare a desconformidade
com os preditos comandos constitucionais”.
Tanto basta para que se não possa conhecer do presente recurso.
3.2. Mas, além disso, tratando-se de recurso que é interposto ao abrigo da
citada alínea b), verifica-se, compulsados os autos, que o recorrente nunca
formulou, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, como exige o n.º
2 do artigo 72º da LTC, qualquer questão de constitucionalidade normativa
reportada a um qualquer preceito aplicado naquela decisão. Concretamente, não o
fez, ao contrário do que afirma, nas alegações de recurso para o Tribunal da
Relação de Coimbra, única peça aqui relevante.
Com efeito, se lermos as conclusões dessas alegações, bem como a totalidade das
suas 23 páginas, verifica-se que, quando muito, é aí imputada uma
inconstitucionalidade à própria decisão de que se recorre ou a uma determinada
actuação do juiz. Para o demonstrar, bastará recordar aqui os números 34 e 43
das alegações e as conclusões 4 a 7, únicos lugares onde o recorrente se refere
a uma alegada violação da Constituição:
“[...] 34. Indubitável se torna, pois, ao arguido, que a decisão recorrida, com
o devido respeito, sofre de violação do princípio do in dubio pro reo,
constitucionalmente consagrado no artigo 32º, 2 da C.R.P.. [...]
43. Do exposto resulta que nesta parte, relativa ao exame crítico da
reconstituição dos factos levada a efeito, pela sua inexistência, enferma também
a sentença de inconstitucionalidade nos termos do artigo 205º da C.R.P.
conjugado com os termos do n.º 2 do artigo 374º do C.P.P., por falta de
fundamentação.[...]
Conclusões:
[...] 4.º O Sr. Juiz a quo, com o devido respeito, violou, pois, o estatuído no
art. 32°, n.º 2 da C.R.P. porquanto o “non liquet” em matéria de prova impõe
decisão a favor do arguido.
5.º Por outro lado, no que diz respeito ao auto de reconstituição de facto e à
apreciação dos esclarecimentos prestado pelo Sr. Perito, o Sr. Juiz a quo, ao
limitar-se a dizer que não infirmam os depoimentos e testemunhos prestados, não
cumpre o estatuído no artº. 374° n.º 2 do C.P.P., uma vez que não expõe, tanto
quanto possível os motivos de facto e de direito que fundamentaram essa decisão,
bem como não procedeu à respectiva crítica o que constitui uma clara
inconstitucionalidade tendo em conta o estatuído no art. 205°, n.º 1 da C.R.P.
6°. Deste modo se impugnando a matéria de facto dada como provada e transcrita
no art. 1 ° das presentes conclusões, impondo-se, por isso, a reapreciação da
prova produzida em audiência e, consequentemente, a absolvição do arguido, com
base no princípio do in dubio pro reo.
7° Violadas foram, pois, com o devido respeito pelo Sr. Juiz a quo, as regras
estatuídas nos arts. 127°, 150° e 374°, n.º 1 do C.P.P., com referência, os dois
primeiros, ao art. 32°, n.º 2 da C.R.P e a segunda ao art. 205°, n.º 1 da mesma
Constituição”
É, contudo, jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada que, estando em
causa a própria decisão em si mesma considerada, não há lugar ao recurso de
fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta
do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da Lei n.º 28/82, e
assim tem sido afirmado pelo Tribunal Constitucional em inúmeras ocasiões. Na
verdade, ao contrário dos sistemas em que é admitido recurso de amparo,
nomeadamente na modalidade de amparo dirigido contra decisões jurisdicionais
que, alegadamente, violam directamente a Constituição, o recurso de fiscalização
concreta de constitucionalidade vigente em Portugal não se destina ao controlo
da decisão judicial recorrida, como tal considerada, como sucede quando a
discordância se dirige a esta última, mas, pelo contrário, ao controlo normativo
de constitucionalidade da norma aplicada.
Não foi, assim, de todo em todo, suscitada qualquer “questão de
inconstitucionalidade [...] de modo processualmente adequado perante o tribunal
que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela
conhecer”, como exige o disposto no n.º 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal
Constitucional, para que possa ser interposto recurso para este Tribunal.
3.3. Em face do exposto, e sem necessidade de maiores considerações,
inteiramente inúteis no presente contexto, torna-se evidente que não pode
conhecer-se do recurso que o recorrente pretendeu interpor, por manifesta falta
dos seus pressupostos legais de admissibilidade. [...]”
4. Notificado desta decisão, veio o recorrente aos autos com o seguinte
requerimento:
“[...], recorrente nos autos em epígrafe e nos mesmos melhor identificado vem
requerer Aclaração da douta decisão proferida que decide não conhecer o recurso
Porquanto
a) Um dos argumentos em que o Exmo Senhor Conselheiro Relator ancora a sua
decisão é o de que o ora recorrente não suscitou correctamente a questão de
inconstitucionalidade da norma jurídica violada;
b) Salvo o devido respeito, que é muito, afigura-se ao recorrente que o
tratamento da questão se queda pela mera semântica, sem contender com o fundo da
questão;
c) Com efeito, no requerimento de interposição do recurso está referido que a
decisão em crise entendeu que a motivação de facto estava devidamente
fundamentada, sem curar que a inexistência de exame crítico relativamente à
prova pericial violaria o dever geral de fundamentação. Ou seja, o que aí vai
referido é que a interpretação do preceito constante do n.º 2 do art. 374º do
C.P.P. emergiu ao arrepio da disposição contida no n. 1 do art. 205º da C.R.P.
d) Isto é, a decisão recorrida aplicou uma norma em colisão com a materialidade
fluente do texto fundamental.
e) Ignorar esse segmento do recurso, em ordem a um jogo de palavras que tenha
como objecto a arguição, eventual, de uma inconstitucionalidade da decisão – por
oposição a uma interpretação inconstitucional de uma norma – é resolver questão
crucial por via do recurso a uma mera e vazia formalidade.
Nestes Termos,
Requer a V. Ex.ª se digne aclarar a decisão proferida, explicitando se o
requerimento de interposição do recurso do ora requerente, pelo menos,
implicitamente, não invoca a interpretação normativa dos art. 374º, n.º2, do
C.P.P., tornado inconstitucional por violação do n.º 1 do art. 205º da C.R.P.
[...]”
5. Notificados os recorridos, sustentou o Ministério Público que o pedido era
“manifestamente infundado, já que o requerente não identifica minimamente
qualquer dúvida ou obscuridade que, na decisão reclamada, careça de ser
esclarecida” e que é evidente que o “meio impugnatório para o requerente
manifestar discordância quanto ao sentido da decisão seria a reclamação para a
conferência – e não a descabida pretensão que deduziu”.
Cumprindo decidir, foram os presentes autos presentes à Conferência.
II. Fundamentação
6. Notificado da decisão sumária que não tomou conhecimento do objecto do
recurso, veio o recorrente aos autos com um requerimento em que requer
“Aclaração da douta decisão proferida”.
O pedido de aclaração visa, porém, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo
669º do Código de Processo Civil, “o esclarecimento de alguma obscuridade ou
ambiguidade” que a decisão contenha. Ora, não deriva da referida decisão sumária
qualquer motivo para tal incompreensão, já que ela não contém nenhuma
obscuridade ou ambiguidade, sendo claríssima, não só acerca do que nela se
decidiu - “não tomar conhecimento do objecto do recurso” -, mas também em
relação aos motivos pelos quais assim se decidiu - “manifesta falta dos seus
pressupostos legais de admissibilidade”.
E isso mesmo compreendeu perfeitamente o recorrente, como resulta do seu
requerimento. Na verdade, aí, o recorrente alega que, no requerimento de
interposição do recurso, terá referido que “a interpretação do preceito
constante do n.º 2 do art. 374º do C.P.P. emergiu ao arrepio da disposição
contida no n. 1 do art. 205º da C.R.P.”, isto é, que “a decisão recorrida
aplicou uma norma em colisão com a materialidade fluente do texto fundamental” e
que “Ignorar esse segmento do recurso, em ordem a um jogo de palavras que tenha
como objecto a arguição, eventual, de uma inconstitucionalidade da decisão – por
oposição a uma interpretação inconstitucional de uma norma – é resolver questão
crucial por via do recurso a uma mera e vazia formalidade.” (itálico e negrito
aditados). Ou seja, o recorrente considera que, ao contrário do decidido, terá
colocado uma questão de constitucionalidade normativa e que a decisão recorrida
terá ignorado esse facto. Ao fazê-lo, porém, o recorrente, representado que está
por profissional do foro, não está, substancialmente, a formular um pedido de
esclarecimento, ainda que eventualmente infundado – pois nada para ele está
incompreendido -, mas antes a contestar, em concreto e objectivamente, a decisão
sumária proferida, nomeadamente a sua fundamentação.
Assim sendo, contudo, como indubitavelmente o é, tal requerimento não pode
deixar de ser entendido, ao contrário do que o recorrente pretende e à
semelhança do que aconteceu, por exemplo, nos acórdãos n.ºs 185/2005, 344/2005 e
350/2005, tirados nesta mesma Conferência (já disponíveis na página Internet do
Tribunal, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos), como
configurando, materialmente, uma reclamação da decisão sumária, como tal tendo
de ser tratado, ao abrigo do disposto no artigo 78º - A, n.º 3, da Lei do
Tribunal Constitucional.
Vejamos, então, se tem razão.
7. O recurso previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, na sequência do disposto no n.º 2 do artigo 280º da
Constituição, visa submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a apreciação
da constitucionalidade de normas jurídicas efectivamente aplicadas pela decisão
recorrida e, como resulta expressamente do disposto no n.º 2 do artigo 72º da
Lei n.º 28/82, só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão de
constitucionalidade, de modo processualmente adequado perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar dela obrigado a conhecer.
7.1. Ora, em primeiro lugar, há que mencionar que só por manifesto lapso ou
desconhecimento se pode afirmar, como o faz o ora requerente, que um dos
argumentos da decisão sumária “é o de que o ora recorrente não suscitou
correctamente a questão de inconstitucionalidade da norma jurídica violada”
(itálico aditado). Na verdade, tratando-se de um recurso de fiscalização
concreta de constitucionalidade, a norma alegadamente violada é, ela própria, um
preceito constitucional, no caso, segundo o recorrente, pelo menos, “n.º 1 do
art. 205º da C.R.P.”. Ora, exercendo-se os poderes cognitivos deste Tribunal,
neste contexto, apenas a propósito do confronto com a Constituição de normas de
direito infraconstitucional, nunca poderia o Tribunal Constitucional conhecer de
uma tal inconstitucionalidade, pelo que sempre seria descabido afirmar ser a não
suscitação de uma tal questão fundamento para dela não conhecer.
O que se disse, e repete, foi coisa bem diferente: que “o recorrente nunca
formulou, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, como exige o n.º
2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional, qualquer questão de
constitucionalidade normativa reportada a um qualquer preceito aplicado naquela
decisão” e que, consequentemente, não lhe estava aberta a via de recurso para
este Tribunal.
7.2. Entende o recorrente que, ao menos implicitamente, terá, no requerimento de
interposição do recurso, invocado “a interpretação normativa dos art. 374º,
n.º2, do C.P.P., tornado inconstitucional por violação do n.º 1 do art. 205º da
C.R.P.”. Quererá com isto dizer, como supra se viu já, que, naquele
requerimento, terá suscitado uma questão de constitucionalidade normativa. Ora,
basta ler tal requerimento com um pouco de atenção, para verificar que nem
explicita nem implicitamente, nem directa nem indirectamente, está nele colocada
qualquer questão de constitucionalidade normativa.
7.3. Finalmente, sempre se dirá que, sendo inteiramente omissas as peças
processuais do recorrente quanto à suscitação de qualquer questão de
constitucionalidade normativa, não poderia qualquer “jogo de palavras”,
efectuado no requerimento de interposição do recurso, abrir uma via de recurso
para este Tribunal. É que, como resulta da lei e da Constituição, em termos cujo
significado e sentido não sofrem contestação, não cabe ao Tribunal
Constitucional ser mais uma grau de jurisdição para julgar a causa, apenas lhe
competindo apreciar, em recurso, a questão de constitucionalidade normativa
julgada na decisão recorrida, uma vez preenchidos os seus pressupostos de
admissibilidade.
Assim sendo, pelas razões já constantes da decisão reclamada, que mantém inteira
validade, é efectivamente de não conhecer do objecto do recurso que o recorrente
pretendeu interpor, carecendo inteiramente de suporte o requerimento apresentado
pelo recorrente e a sua manifestação de inconformismo com o decidido.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se desatender a reclamação corporizada no requerimento de
fls. 549.
Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 26 de Setembro de 2005
Gil Galvão
Bravo Serra
Artur Maurício