Imprimir acórdão
Processo n.º 164/02
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
Nos autos emergentes de acidente de trabalho a correr termos no Tribunal de
Trabalho de Famalicão foi, em 24 de Maio de 2001, proferida decisão que condenou
a companhia de seguros A. a pagar ao sinistrado B. o montante correspondente ao
capital de remição relativo a uma pensão, anual e vitalícia, de 129.996$00, com
início em 23 de Janeiro de 2001, bem como a quantia de 12.896$00, a título de
diferenças de indemnização, e a quantia de 1.500$00, a título de pagamento de
transportes.
Inconformada com esta decisão recorreu a seguradora, alegando, em síntese, que a
pensão em causa não é imediatamente remível por se encontrar abrangida pelo
regime transitório previsto no artigo 74º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de
Abril.
O Ministério Público, na qualidade de patrono oficioso do sinistrado
contra-alegou, sustentando que o regime transitório não é aplicável ao caso, em
virtude de a referida pensão não estar em pagamento em 1 de Janeiro de 2000. E,
nas alegações de recurso, fundamentou assim a sua posição:
'(...) A isto acresce que sendo o DL 143/97, de 30.04, como legislação
regulamentar, um mero desenvolvimento de uma lei da assembleia da república, o
mesmo nunca poderia, mesmo que fosse essa a vontade do legislador, contrariar o
regime imposto pela al a), nº 2 da lei 41º da lei, por tal extravasar os limites
da competência conferida ao governo pelo art. 198º, nº 1, al. c) da C.R.P.
(...)
4- A interpretação do art. 74º do DL 143/99, de 30.04, no sentido de que a
reparação dos acidentes de trabalho ocorridos na vigência da Lei 100/97, de
13.09, estão sujeitos à remição faseada prevista naquele preceito, contraria o
disposto na al. a), do nº 1 da Lei 100/97, uma vez que esta regulamentação foi
prevista apenas para as pensões já em pagamento à data da entrada em vigor da
Lei 100/97.
5- A mesma interpretação viola o disposto na al. c), n 1 do art. 198º da CRP,
uma vez que de acordo com esta lei fundamental o governo não pode contrariar o
que foi determinado por lei emergente da assembleia da república.'
A Relação do Porto, por acórdão de 10 de Dezembro de 2001, decidiu julgar
procedente o recurso. Para tanto, ponderou essencialmente o seguinte:
“Deve, assim, “interpretar-se extensivamente o art. 74º do Dec.-Lei n.º 143/99,
considerando que o regime transitório aí consagrado se aplica não só às remições
de pensões previstas na alínea d) do n.º 1 do art. 17º e no art. 33º da Lei n.º
100/97, mas também às remições de pensões decorrentes de acidentes de trabalho,
ocorridos na vigência da Lei n.º 2.127, e correspondentes a I.P.P. inferiores a
30% ou a pensões de reduzido montante, que, em 01.01.00, já se encontrem em
condições de pagamento ou que apenas posteriormente se venham encontrar em tal
situação” (cfr. ac. Relação de Lisboa de 15.11.00, Col. Jur.2000, Tomo V, pág.
162).
A idêntica conclusão chegou esta Relação, afirmando a aplicação do regime
transitório supra referido quer às pensões devidas por acidentes de trabalho
ocorridos antes de 1.1.2000, quer à remição de pensões devidas por acidentes
ocorridos na vigência da Lei n.º 100/97 (cfr. acórdão de 2.07.01, proferido no
processo 857/01, da 1ª Secção).”
E acrescentou:
“Uma nota final para salientar que, contrariamente ao alegado pelo MºPº, e, em
consequência do entendimento supra, não foi violado o art. 198,º n.º 1, alíneas
a) e c), da Constituição, já que o Dec.-Lei n.º 143/99, nomeadamente no tocante
ao preceituado no art. 74º, mais não representa do que o desenvolvimento das
bases gerais do regime jurídico dos acidentes de trabalho, aprovado pela Lei n.º
100/97.”
É desta decisão que o Ministério Público, em representação do sinistrado,
interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea f), com referência à alínea c)
do n.1 do artigo 70º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC), pretendendo ver
apreciada a ilegalidade da norma do artigo 74º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30
de Abril, com a interpretação que lhe foi dada na douta decisão recorrida,
segundo a qual o regime transitório de remição obrigatória de pensões por
acidentes ocorridos, que aí se prevê, se aplica à remição de pensões devidas por
acidentes ocorridos na vigência da nova Lei de Acidentes de Trabalho, a Lei n.º
100/97, de 13 de Setembro, por entender que tal norma, nessa interpretação
padece de vício de ilegalidade, conforme previsão das disposições conjugadas dos
arts. 112º, n/s 2 e 3 e 198º, n/s 1, al. c) e 3, da CRP, pelo que com a referida
interpretação, feita no acórdão recorrido, incorreu em ilegalidade, por violar a
lei de prevalência, lei esta com valor reforçado – artigo 112º, n/s 2 e 3 da
CRP.
Recebido o recurso e notificado para alegar, concluiu o Ministério Público as
suas alegações da seguinte forma:
1 ° - A Lei n° 100/97, de 13 de Setembro, configura-se como verdadeira lei de
bases em matéria de regime jurídico dos acidentes de trabalho, por conter os
aspectos essenciais e estruturantes da disciplina de tal matéria, estando a sua
vigência e aplicabilidade condicionadas à edição de diplomas de índole
complementar ou 'regulamentar', legitimados para desenvolver e densificar os
regimes genéricos aí instituídos.
2° - A matéria da remição obrigatória das pensões devidas por acidentes de
trabalho situa-se na área de competência legislativa reservada da Assembleia da
República, por respeitar aos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores.
3° - Relativamente às opções parlamentares assumidas explicitamente pela Lei n°
100/97, apenas dispõe o Governo, no exercício da competência prevista na alínea
c) do n° 1 do artigo 198° da Constituição da República Portuguesa, de poderes
para desenvolver as 'bases gerais' contidas na lei que funciona como pressuposto
normativo necessário do diploma complementar, de índole regulamentar.
4°- Pelo que não era lícito ao Governo, ao editar o Decreto-Lei n° 143/99
(alterado pelo Decreto-Lei 383-A/99), ampliar, em detrimento dos interesses e
direitos dos trabalhadores, o regime transitório previsto no artigo 41º, n° 2,
alínea a) da Lei n° 100/97, submetendo ao regime de remição gradual ou faseada,
não apenas as pensões emergentes dos acidentes laborais anteriores a 1 de
Janeiro de 2000 (e regidos pela Lei n° 2127) mas as resultantes dos próprios
acidentes posteriores à vigência do novo regime jurídico dos acidentes de
trabalho.
5°- Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o
juízo de ilegalidade da interpretação normativa do artigo 74° do Decreto-Lei n°
143/99, por afrontar lei com valor reforçado - a citada lei n° 100/97, no que
respeita à opção legislativa plasmada no artigo 41°, n° 2, alínea a).
Por sua vez, a seguradora, ora recorrida, apresentou as seguintes conclusões:
1 - A interpretação dada pelo douto acórdão recorrido ao art. 74° do DL 143/99,
de 30/4, não enferma de qualquer ilegalidade ou irregularidade.
2 - Muito pelo contrário, ela encontra-se, não só em perfeita harmonia com a lei
regulamentada (Lei n.º 100/97, de 13/9, como também em absoluto respeito pelo
princípio da igualdade, previsto no n.º 13° da Constituição da República
Portuguesa).
3 - A remição da pensão dos autos encontra-se abrangida pelo regime transitório
previsto no DL 143/99, de 30/4 (art. 74°) e no DL 382-A/99, de 22/9 (art. 2º).
4 - A alínea a) do n° 2 do art. 41° da L 100/97, de 13/9, estabelecia que o
regime transitório seria aplicável às pensões em pagamento à data da sua entrada
em vigor.
5 - Isto é, o regime transitório de remição das pensões seria criado para
aplicar apenas às pensões e remições previstas na lei anterior.
6 - Porém, ao ser criado, o referido regime transitório não se limitou às
pensões e remições previstas e que estivessem em pagamento à data da entrada em
vigor da nova lei, mas foi mais além.
7- Este regime encontra-se regulado no art. 74° do DL 143/99, de 30/4
(actualizado pelo DL 382-A/99, de 22/9) e nele se remete para as remições das
pensões previstas na nova lei: 'As remições das pensões, previstas na alínea d)
do n.º1 do art. 17° e no art. 33° da lei, serão concretizadas gradualmente...'.
8 - São, pois, as próprias pensões previstas na nova lei, como a do processo que
deu origem aos presentes autos, que se encontram abrangidas pelo regime
transitório de remição das pensões do art. 74° do DL 143/99, de 30/4
(actualizado pelo DL 382-A/99, de 22/9).
9 - Ora, para o corrente ano de 2001, segundo os citados preceitos legais, só
poderão ser remidas pensões até 120.000$00.
10 - O entendimento contrário violaria, de forma absolutamente inaceitável,
princípio da igualdade, consagrado no art. 13° da C.R.P..
11 - O douto Acórdão recorrido não fez qualquer interpretação ilegal do art. 74°
do DL 143/99, de 30/4 e disposto no art. 2° do DL 382-A/99, de 22/9.
Por determinação do Tribunal, as partes foram ouvidas sobre questão prévia assim
equacionada:
“(...)
O recurso foi interposto ao abrigo da alínea f) do n. 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional, com referência à alínea c) do mesmo preceito,
sustentando--se que a norma do artigo 74º do Decreto-Lei 143/99 de 30 de Abril,
aplicada na decisão recorrida, é ilegal por violar o artigo 41º n. 2 alínea a)
da Lei n.º 100/97 de 13 de Setembro – que será uma lei com valor reforçado.
Conforme se prevê no n. 2 do artigo 72º da LTC, o presente recurso só pode ser
interposto por quem haja suscitado a questão da ilegalidade “de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em
termos de este estar obrigado a dela conhecer”.
Ora, pode aqui razoavelmente levantar-se a questão de saber se o recorrente
suscitou adequadamente a questão de ilegalidade perante o tribunal recorrido; e
se se concluir em sentido negativo, o Tribunal poderá recusar-se a conhecer do
objecto do recurso com fundamento na não verificação deste pressuposto.
Interessa, pois, ouvir o recorrente e a recorrida sobre esta matéria – sobre a
qual se não verificou, ainda, qualquer debate.”
O Ministério Público pugna, em resposta, pelo conhecimento do mérito do recurso,
nos seguintes termos:
1- Como se nota a fls. 90, no requerimento de interposição do recurso,
afigura-se que a questão da ilegalidade – por violação de lei com valor
reforçado – da norma que integra o presente recurso foi suscitada, em termos
adequados, nas contra-alegações de recurso apresentadas pelo Ministério Público,
a fls 58 e segs dos autos.
2- Efectivamente, afirma-se em tal peça processual que certa interpretação
normativa do artigo 74º do Decreto-Lei nº 143/99 – aí identificada:
- por um lado, contraria o disposto na alínea a) do nº1 da Lei nº 100/97
(arguição do vício de “ilegalidade”);
- conexiona-se claramente, por outro lado, tal “ilegalidade” com o valor
constitucionalmente reforçado da Lei nº 100/97, ao invocar-se “o disposto na
alínea c) do nº1 do artigo 198º da Constituição da República Portuguesa”, que
limita a competência legislativa do Governo ao desenvolvimento dos princípios e
bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevem
(cfr., conclusões, a fls. 62).”
3- Sendo certo que a decisão recorrida apreciou, a fls. 84 verso, tal questão de
ilegalidade qualificada, julgando-a improcedente.
A recorrida não apresentou qualquer resposta.
Importa, portanto, começar por decidir a já referida questão prévia, julgando da
verificação dos pressupostos de admissibilidade do presente recurso.
O recurso previsto na mencionada alínea f) destina-se a conhecer da ilegalidade
de uma norma aplicada, como ratio decidendi, na decisão recorrida, não obstante
ter sido suscitada, durante o processo e de forma processualmente adequada, a
questão da ilegalidade com qualquer dos fundamentos referidos na alíneas c), d)
ou e) do citado artigo (cfr. n. 2 do artigo 72º).
Ora, como se pode extrair da leitura das contra-alegações do Ministério Público
no recurso interposto para a Relação do Porto, nunca foi levantada uma questão
de ilegalidade por violação de lei com valor reforçado, que constitui o
fundamento relevante para o presente recurso. A questão ali suscitada – a da
violação da alínea c) do n. 1 do artigo 198º da Constituição – configura-se como
uma questão de constitucionalidade e não contém, nem sequer implicitamente, a
invocação de uma questão de ilegalidade por violação de lei reforçada. Esta
questão – de ilegalidade por violação de lei com valor reforçado – só é referida
pela primeira vez no processo no requerimento de interposição de recurso para
este Tribunal. Não pode, portanto, considerar-se ter o recorrente suscitado,
durante o processo e de modo processualmente adequado, a questão da ilegalidade
que pretende ver apreciada.
Aliás, neste mesmo sentido, em caso em tudo idêntico ao presente, decidiu este
Tribunal no Acórdão n. 468/03 (publicado no DR, II Série, de 19 de Novembro de
2003), ponderando para tal:
Por outro lado, decisivamente, porque o que está em causa é, efectivamente, não
uma mera qualificação jurídico-constitucional da questão, mas sim o
preenchimento dos pressupostos necessários para que, no particular sistema de
fiscalização concreta de constitucionalidade - ou de ilegalidade por violação de
lei de valor reforçado - existente entre nós, seja possível ao Tribunal
Constitucional apreciar as questões que lhe são postas. Ora, é manifesto que, no
âmbito de um recurso interposto ao abrigo da alínea f), com referência à alínea
c), do n.º 1, do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, a via de recurso só
está aberta se, como se explicita no n.º 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal
Constitucional, a parte tiver suscitado “a questão da inconstitucionalidade ou
da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu
a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”.
[...]
Ora, nos casos das alíneas b) ou f) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, como já se
afirmou supra, só a suscitação da questão de inconstitucionalidade ou de
ilegalidade “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a
decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” permite
abrir a via de recurso. Daí que, como se escreveu no acórdão n.º 348/2002, onde
estava em causa uma eventual convolação de um recurso interposto ao abrigo do
disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, num recurso da respectiva alínea f), não seja possível a convolação,
“não só por terem pedidos diferentes (julgamento de ilegalidade ou de
inconstitucionalidade), mas também por serem diversas as condições de
admissibilidade, como se pode verificar da simples leitura do artigo 70º da Lei
n.º 28/82.” Aliás, numa situação-espelho da actual, o Tribunal Constitucional
concluiu no acórdão 468/2002, que, “estando-se em face de um recurso fundado na
alínea b) do n.º 1 do artº 70º da Lei n.º 28/82, possível não será aferir, na
presente impugnação, da alegada ilegalidade, por violação de lei com valor
reforçado, da norma constante do artº 74º do Decreto-Lei n.º 143/99, quando
interpretada no sentido de o regime transitório previsto na alínea a) do n.º 2
do artº 41º da Lei n.º 100/97 ser aplicável às pensões a remir fixadas
posteriormente a 1 de Janeiro de 2000. Por isso, o pedido subsidiário ínsito na
«conclusão» 5ª da alegação da entidade recorrente não poderá ser, de todo,
atendido, pois que, não só aquando da suscitação da questão em apreço aquilo que
foi sustentado foi um vício de desconformidade com a Lei Fundamental, como a
impugnação da decisão sub iudicio se estribou, como se disse, naquela alínea
b).”
Idênticas razões conduzem a que, no presente caso, o Tribunal não possa conhecer
do presente recurso.
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Lisboa, 14 de Outubro de 2005
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Maria Helena Brito
Artur Maurício