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Processo n.º 362/05
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A., recorrente nos presentes autos, intentou, no Tribunal Cível da Comarca de
Lisboa, acção com processo ordinário contra os ora recorridos, pedindo, em
síntese, a condenação solidária dos réus a pagar à massa falida da sociedade B.,
determinadas quantias, melhor identificadas nos autos, tudo num total de €
1.559.561,04.
2. Nas respectivas contestações os Réus suscitaram a excepção da ilegitimidade
do Autor, que foi julgada procedente no despacho saneador, tendo, em
consequência, os Réus sido absolvidos da instância.
3. Inconformado com esta decisão o Autor recorreu dela para o Tribunal da
Relação de Lisboa, que negou provimento ao recurso.
4. Novamente inconformado o Autor recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça,
tendo, a concluir a sua alegação, formulado as seguintes conclusões:
“a)- A legitimidade do autor aferida nos termos do art.º 26° do CPC traduz-se no
interesse directo em demandar exprimido pela utilidade para aquele da
procedência da acção;
b )- O autor é directamente detentor de uma quota correspondente a 40% do
capital social da sociedade B., e, bem assim, é gerente desta, não obstante, no
período subsequente ao 25 de Abril de 1974, ter sido, face aos acontecimentos
sociais e políticos, afastado da sociedade, tendo posteriormente regressado ao
controlo da sociedade por solicitação dos trabalhadores.
c )- A sociedade B., por causa da situação que viveu enquanto entidade
autogestionada, foi declarada falida, encontrando-se o processo de falência a
correr os seus termos na 11ª Vara Cível de Lisboa.
d)- A sociedade B. apresentou proposta de concordata suspensiva no âmbito do
processo de falência, a qual se encontra pendente de decisão, tendo em vista
voltar a exercer a sua actividade económica;
e )- Para a apresentação desta proposta de concordata foi decisivo o contributo
do autor e ora recorrente, nos contactos com os diversos credores;
f)- O autor pretende que a sociedade B., volte a ocupar o seu ligar no sector
empresarial, pelo que tem interesse directo e imediato na defesa dos direitos e
património da sociedade B..
g)- A presente acção tem por causa de pedir a existência de conluio e actuação
no mínimo negligente entre os diversos R. nesta acção, actuação que causou
graves danos à B., no montante que se mostra contabilizado na petição inicial,
cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para os devidos efeitos
legais.
h)- Assim, não obstante o produto da indemnização reverter directamente para a
massa falida, o certo é que, a procedência da acção, ao reclamar indemnização
pelos danos que lhe foram causados, vai permitir ao Autor, após aprovação da
concordata, avançar com o processo de reabilitação e reestruturação da empresa e
implementação no mercado;
i)- Aferida a legitimidade em função do interesse em demandar e dos benefícios
que a procedência da acção traz ao Autor, é clara a legitimidade deste na
propositura desta acção;
j)- Ela visa ressarcir a sociedade dos danos que lhe foram causados no âmbito da
administração judicial e reforçar as condições económicas que detinha
anteriormente e que a actuação dos RR. retirou, possibilitando assim, ao Autor
avançar com a recuperação e viabilização económica da empresa.
l)- Nem o administrador judicial da falida e nem os restantes credores têm
interesse em agir, um porque estaria a pedir a sua condenação e os outros
porque, não sendo os seus créditos afectados pela conduta dos RR., uma vez que
para pagamentos dos créditos reclamados existe o montante pecuniário suficiente
e necessário, não podem socorrer-se de qualquer acção de conservação da sua
garantia patrimonial, não detendo legitimidade, por conseguinte para o efeito,
aferida esta no sentido da utilidade que a procedência da acção lhes traria.
m)- O autor é a única entidade física que se mostra prejudicada pela actuação
dos RR. e recorridos, porquanto a conduta destes e os danos que causaram são
susceptíveis de dificultar e/ou impedir a reestruturação da empresa, pretendida
pelo Autor.
n)- Na medida em que só ao autor e ora recorrente interessa a reabilitação da
empresa e a sua reimplantação no sector empresarial, apenas para este advém
qualquer utilidade da procedência da acção e apenas o autor tem interesse em
agir, sendo por conseguinte parte legitima. Por outro lado,
o)- Tal legitimidade é reforçada por duas disposições legais, cuja aplicação,
ainda que por analogia, se impõe ao presente caso concreto: o art.º 77° do
Código das Sociedades Comerciais e o art° 1289 do Código de Processo Civil na
redacção anterior à sua revisão.
p)- Dispõe o art.º 77 do CSC que: ' Independentemente do pedido de indemnização
dos danos individuais que lhe tenham causado, podem um ou vários sócios que
possuam pelo menos 5% do capital social propor acção social contra gerentes,
administradores ou directores, com vista à reparação, a favor da sociedade, do
prejuízo que esta tenha sofrido, quando a mesma a não haja solicitado. '.
q)- E, dispõe o art.º 80 do CSC que: As disposições respeitantes às
responsabilidades dos gerentes, administradores e directores aplicam-se a outras
pessoas a quem sejam confiadas funções de administração '.
r)- Ora, detendo o administrador da falida e R. nesta acção funções de
administração, pode ser demandado por qualquer sócio que detenha pelo menos 5 %
do capital social por danos que haja causado à sociedade com a sua
administração.
s)- Mesmo que, a reparação da lesão revelia a favor da sociedade,
t)- É o que acontece no presente caso: ainda que património social e ainda que o
direito à indemnização sociedade, o Autor, enquanto detentor de participação
social superior a 5% pode demandar o administrador da falida.
u)- Pelo que, para além de ter um interesse directo em agir conforme acima
demonstrado, ao autor é ainda conferida legitimidade pelo art.º 77 do CSC. E,
v)- Dispõe o art.º 1289 do CPC, aplicável à falência da sociedade B., conforme
despacho já transitado, que: 'Os directores, administradores ou gerentes de
sociedade de responsabilidade limitada ficam sujeitos às obrigações que no
processo de falência incumbem ao falido singular; devem ser ouvidos no caso em
que se exige que o seja o falido e têm legitimidade para opor embargos à
falência e para interpor os mesmos recursos que competem ao falido singular.'
x)- Conforme se reconhece no acórdão impugnado, à falida competiria interpor a
presente acção; porém, uma vez que se trata de pessoa colectiva há lugar à
aplicação, ainda que por analogia, da citada disposição, competindo assim, ao
autor, seu gerente, interpor as mesmas acções que competem ao falido singular no
sentido de proteger a falida.
z)- Estas duas disposições, apesar de não respeitarem pretenderem regular
concretamente a situação do Autor, vem-lhe conferir legitimidade para a defesa
dos direitos da sociedade, não já enquanto titular directo do interesse (que,
como se demonstrou acima, o autor detém) mas como sócio, no primeiro caso, e
como gerente, no segundo. Pelo que,
aa)- O autor é parte legitima na presente acção, é detentor de interesse directo
na procedência da acção, devendo como tal ser julgado e em consequência,
ordenar-se o prosseguimento da acção, com elaboração da base instrutória e
fixação da matéria assente, seguindo-se os ulteriores termos até final.
ab )- A não se entender assim, então significaria que se impunha ao Autor e ora
recorrente a situação de mero espectador da delapidação do património da
sociedade em questão, e do fim desta enquanto sociedade e bem assim do seu
próprio património, o que, de per si, constituiria uma situação de pura
injustiça, impedindo, de, em tempo e através do recurso aos meios judiciais, pôr
termo à situação anómala em curso. Aliás,
ac)- O autor, no âmbito de outro recurso que correu seus termos na mesma secção
e tribunal sob o n.º 1325/02-1 julgado por acórdão de 10/12/2002, foi admitido a
intervir por ter sido julgada procedente a sua legitimidade e portanto o seu
interesse directo em intervir, no âmbito de acção intentada por duas das rés
nesta acção, contra a B., Pelo que,
ad)- O presente acórdão encontra-se em oposição com o acórdão referido na alínea
que antecede, o que se invoca para efeitos de uniformização de jurisprudência, e
constitui aliás, por dever do oficio e conhecimento no âmbito do exercício das
funções jurisdicionais, facto de conhecimento oficioso do Venerando Tribunal da
Relação de Lisboa”.
5. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 23 de Novembro de 2004, negou
provimento ao recurso, decisão que fundamentou nos seguintes termos:
“Os artigos 77º e 80º do CSC respeitam à responsabilidade dos gerentes,
administradores ou directores (art. 77º) ou de outras pessoas a quem sejam
confiadas funções de administração da sociedade (art. 80º).
O que ali se dispõe quanto à legitimidade dos sócios para a acção proposta
contra os responsáveis não é aplicável à responsabilidade do administrador dos
bens da massa falida que, em concluiu com os outros RR, se invoca nesta acção.
Nem sequer por analogia.
Esta pressupõe uma lacuna da lei para caso semelhante que exija tratamento
semelhante – art. 10º do C. Civil.
Ora, como resultava do art. 1250º do CPC, hoje revogado, a legitimidade para
responsabilizar o administrador dos bens da massa por actos prejudiciais
praticados no decurso da liquidação cabia aos credores e ao falido.
*
Também não há analogia entre o caso desta acção e o previsto no artigo 1289º do
C. P. Civil, igualmente já revogado, que conservou a representação dos
directores, administradores ou gerentes da sociedade falida para os embargos à
falência e os recursos que competem ao falido singular.
Não foi como representante da sociedade falida, mas em seu nome próprio, que o
A. intentou a acção.
*
Pedindo o A. que a indemnização reverta para a massa falida, portanto no
interesse da sociedade, o que, como diz, viabilizará a alegada concordata, a
procedência da acção aproveita directamente à B. e não a ele, a quem só
aproveitará reflexamente.
Não é assim directo o seu interesse em demandar – art.º 26º, n.º 1, do C. P.
Civil”.
6. Desta decisão foi interposto recurso para este Tribunal, não sem que, antes,
tenha sido pedido o seu esclarecimento. O Supremo Tribunal de Justiça indeferiu
o pedido de esclarecimento, “por injustificado”, acrescentando: “Já no despacho
de fls. 777, proferido em 05.07.04, pelo anterior Juiz Conselheiro Relator, se
fez constar que a actuação processual do recorrente não anda longe da litigância
de má fé (art.º 456º n.º 2 al. d) do CPC). Esperemos que o recorrente não
insista neste tipo de comportamento. Custas do incidente pelo recorrente, sem
prejuízo do apoio judiciário.” É o seguinte o teor do requerimento de recurso
para este Tribunal:
“[...], notificado do douto acórdão de fls. ..., vem do mesmo interpor recurso
de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional, o que faz nos termos e
com os fundamentos seguintes que sumariamente, e sem prejuízo de posteriores
alegações, se expõem:
1. O recorrente [...] é sócio maioritário e gerente da sociedade B..
2. A sociedade B. foi declarada falida por sentença judicial de 1988.
3. Na referida qualidade o recorrente interpôs acção declarativa de condenação
alegando que tinha legitimidade para peticionar indemnização a favor da
sociedade de que era sócio e gerente;
4. Interpôs a acção contra o administrador da falida, e contra a Leiloeira que,
em colaboração com aquele, liquidou o património da sociedade falida, entre
outros.
5. O processo de falência, conforme decisão já transitada segue os termos do
processo de falência regulado no Código de Processo Civil vigente em 1987.
6. Da redacção vigente do Código de Processo Civil constava a seguinte
disposição, aplicável à sociedade falida:
7. Artigo 1289.º CPC: “Os directores, administradores ou gerentes de sociedade
de responsabilidade limitada ficam sujeitos às obrigações que no processo de
falência incumbem ao falido singular; devem ser ouvidos no caso em que se exige
que o seja o falido e têm legitimidade para opor embargos à falência e para
interpor os mesmos recursos que competem ao falido singular.”
8. Alegou, bem assim, que tinha interesse directo em agir uma vez que tinha na
qualidade de sócio maioritário e gerente apresentado concordata suspensiva da
falência, tendo portanto interesse da defesa do património da sociedade falida e
dos direitos que esta tem de peticionar indemnização por responsabilidade civil,
contratual e extracontratual.
9. Aliás, a acção não poderia ser intentada pelo administrador da falida uma vez
que este é Réu no processo.
10. Está igualmente afastada da legitimidade activa a eventual “Comissão de
Credores” por a mesma não existir pela razão de não estar prevista na legislação
que regula a falência em questão.
11. Assim, não existindo comissão de credores e sendo o falido uma pessoa
colectiva em que o administrador falimentar era Réu, a única pessoa com
interesse em defender o património da falida era o Autor e ora recorrente.
12. Por outro lado, não poderia o presente processo - por se tratar de uma acção
autónoma, envolvendo outros sujeitos processuais que não apenas os da instância
falimentar - e ainda por falta de pressupostos processuais - correr por apenso
ao processo falimentar .
13. Não obstante, o recorrente veio a ser julgado parte ilegítima com base nas
disposições conjugadas dos artigos 1250° e 1289° CPC.
14. Para efeito de melhor compreensão transcreve-se também a redacção do artigo
1250° CPC vigente a data: 'Contra os actos irregulares ou prejudiciais
praticados no decurso da liquidação podem os credores e o falido dirigir, por
escrito reclamações ao juiz de falência, que decidirá depois de ouvidos o
síndico e as pessoas directamente interessadas na manutenção do acto, com
produção de prova que se torne necessária.”
15. Ora foi justamente com, base nas duas disposições processuais transcritas -
e designada mente nesta última - que o Colendo Supremo Tribunal de Justiça veio
a considerar o recorrente como parte ilegítima para a propositura da acção,
conforme passagem que, do acórdão proferido no último pedido de esclarecimento,
se transcreve: “A legitimidade para propôr a presente acção, como se afirma nas
decisões das instâncias e no acórdão reclamado, a fls. 794 (linha 12), cabia aos
credores e à falida como resultava, na época, do art.º 1250° do CPC.” (sic.
acórdão de 08/03/2005)
16. Ora, como o Colendo Supremo Tribunal de Justiça reconhece a legitimidade
para a propositura da presente acção ao falido conforme resulta do excerto
transcrito, e como, por aplicação do art.º 1289° do C PC, no caso de pessoas
colectivas têm legitimidade para o exercício dos direitos do falido singular os
gerentes,
17. Entende o recorrente que a interpretação e aplicação que o Supremo Tribunal
de Justiça faz das disposições em apreço não é conforme à Constituição da
Republica Portuguesa,
18. Com efeito, a interpretação que a instâncias fazem dos artigos 1250° e 1289°
do C PC vigente à data da falência não é conforme ao artigo 1º, 2° e 13° da
Constituição da República Portuguesa e bem assim, aos princípios de Estado de
Direito Democrático que assentam na construção de uma sociedade justa e direito
de realização da justiça que embora sem assento directo na Constituição são
desta corolários.
19. Se o Colendo STJ reconhece legitimidade ao falido singular para a
propositura deste tipo de acções e se a Lei diz que os direitos do falido
singular podem no caso das sociedades de responsabilidade limitada ser exercidos
pelos seus gerentes, então a negação da possibilidade de o recorrente exercer
esses direitos viola o princípio da igualdade porquanto não está a tratar de
forma igual, pessoas que a Lei para este efeito considera como iguais.
20. Se a Lei processual civil atribui ao gerente das sociedades os mesmos
direitos que ao falido são atribuídos e se o Tribunal recorrido (esse Colendo
STJ) reconhece o direito de acção do falido singular, então o não reconhecimento
desse mesmo direito ao recorrente - sócio maioritário e gerente da sociedade
falida - viola o direito à igualdade sendo por conseguinte ilegítima e
inconstitucional a interpretação que o STJ faz das citadas disposições
processuais.
21. A interpretação e aplicação ao caso concreto que o Colendo Supremo Tribunal
Justiça faz das disposições dos artigos 1250° e 1289° do C PC, na redacção
vigente em 1987 e que para facilidade de compreensão se mostra transcrita nos
pontos 7 e 14 acima, é contrária, não conforme, ao disposto nos artigos 1º, 2° e
13° da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos,
Requer-se a V. Exas se dignem admitir o recurso de constitucionalidade
relativamente :
a)- às normas dos artigos 1250° e 1289° do CPC, vigente em 1987, com a
interpretação que lhe foi dada pelo STJ na decisão recorrida, ou seja, no
sentido de não atribuir ao gerente e sócio maioritário da falida o direito de
acção judicial quando reconhece esse mesmo direito ao falido singular.”
7. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao
abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão
sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. É o seguinte, na
parte agora relevante, o teor da sua fundamentação:
“[...] 7. Cumpre, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do objecto do
recurso, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal
Constitucional (cfr. art. 76º, n.º 3 da LTC).
Pretende o recorrente, nos termos do respectivo requerimento de interposição do
recurso, ver apreciada a constitucionalidade “dos artigos 1250° e 1289° do
Código de Processo Civil, vigente em 1987, com a interpretação que lhe foi dada
pelo STJ na decisão recorrida, ou seja, no sentido de não atribuir ao gerente e
sócio maioritário da falida o direito de acção judicial quando reconhece esse
mesmo direito ao falido singular”.
Mas, como se verá sumariamente já de seguida, não pode conhecer-se do seu
objecto.
Com efeito, como este Tribunal tem reiteradamente afirmado e resulta
expressamente do disposto no n.º 2 do artigo 72º da Lei n.º 28/82, o recurso
previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º daquele diploma, “só pode ser
interposto pela parte que haja suscitado a questão de constitucionalidade [...]
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida”. A razão de ser desta
disposição é evidente e tem sido reiteradamente enunciada pelo Tribunal
Constitucional: visa que o tribunal recorrido seja colocado perante a questão de
constitucionalidade da norma que aplica como fundamento da decisão e que o
Tribunal Constitucional apenas sobre tal questão se pronuncie por via de
recurso, não se substituindo ao tribunal recorrido no conhecimento da questão de
constitucionalidade fora dessa via.
Ora, no caso dos autos, é manifesto que o recorrente nunca confrontou o Supremo
Tribunal de Justiça, antes da prolação da decisão recorrida - podendo e devendo
fazê-lo, nomeadamente na alegação que apresentou perante esse Tribunal, cujas
conclusões já transcrevemos integralmente -, com a questão de
constitucionalidade que agora quer ver apreciada.
Assim sendo, apenas resta concluir pela impossibilidade conhecer do objecto do
recurso, por evidente falta de, pelo menos, um dos seus pressupostos legais de
admissibilidade.[...]”
8. De novo inconformado, agora com esta decisão, veio o recorrente aos autos com
o seguinte requerimento (fls. 934 e 935), inscrevendo no respectivo cabeçalho a
epígrafe “Aclaração (Artº 669º CPC)”:
“[...], recorrente nos autos à, margem referenciados, notificado da decisão
sumária, vem .respeitosamente, previamente à apresentação de qualquer reclamação
para a conferência, expor e requerer a V. Exa o seguinte:
1. Na douta decisão proferida nos termos do n° 1 do artigo 78º-A da LTC consta.
a fls. 8 que não pode esse Venerando Tribunal conhecer do recurso uma vez que o
recurso para esse Tribunal “só pode ser interposto pela parte: que haja
suscitado a questão da inconstitucionalidade [...] perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida”.
2. Consta igualmente que “é manifesto que o recorrente nunca confrontou o
Supremo Tribunal de Justiça (...) com a questão da constitucionalidade que agora
quer ver apreciada” ;
3. Acontece porém que, o recorrente contrariamente ao que é afirmado não
poderia. ter suscitado anteriormente a questão da inconstitucionalidade da
interpretação das normas que foi efectuada pelo Supremo Tribunal de Justiça,
previamente a este ter efectuado tal interpretação.
4. Só após o Supremo ter interpretado as citadas disposições é que o recorrente
poderia ter recorrido com base na inconstitucionalidade de tal aplicação /
interpretação. Como assim,
5. Vem o recorrente respeitosamente requerer a V. Exa se digne esclarecer se
sendo o objecto de recurso a interpretação que foi dada pelo Supremo: Tribunal
de Justiça às disposições legais em questão, o recorrente poderia e deveria, sem
ser em sede de recurso para o Tribunal Constitucional, ter suscitado a questão
da inconstitucionalidade da interpretação que este mesmo Supremo Tribunal de
Justiça deu às disposições em questão.
6. Como poderia o recorrente antecipadamente saber que a ..interpretação que o
Supremo Tribunal de Justiça iria dar às .referidas disposições seria
inconstitucional ?
7. O contrário é que era admissível, ou seja, presumir que o Supremo Tribunal de
Justiça iria fazer uma interpretação/aplicação .das disposições legais em
questão conforme à Constituição da Republica.
Nestes Termos,
Requer-se a V. Exa se digne esclarecer a obscuridade da afirmação contida na
douta decisão sumária e designadamente como, poderia o recorrente ter
confrontado o Supremo Tribunal de Justiça, previamente à decisão deste, com a
inconstitucionalidade da decisão que viria a proferir.”
Notificados os recorridos, nada disseram.
Cumprindo decidir, foram os presentes autos presentes à Conferência.
II. Fundamentação
9. Notificado da decisão sumária que não tomou conhecimento do objecto do
recurso, veio o recorrente aos autos com um requerimento, sob a epígrafe
“Aclaração “Art. 669º CPC)”, em que, “previamente à apresentação de qualquer
reclamação para a conferência”, pretende ver esclarecida “a obscuridade da
afirmação contida na douta decisão sumária e designadamente como, poderia o
recorrente ter confrontado o Supremo Tribunal de Justiça, previamente à decisão
deste, com a inconstitucionalidade da decisão que viria a proferir.” Alega que
“contrariamente ao que é afirmado, não poderia ter suscitado anteriormente a
questão da inconstitucionalidade da interpretação das normas que foi efectuada
pelo Supremo Tribunal de Justiça, previamente a este ter efectuado tal
interpretação”.
O pedido de aclaração visa, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 669º do
Código de Processo Civil, “o esclarecimento de alguma obscuridade ou
ambiguidade” que a decisão contenha.
Ora, a decisão sumária aqui em causa é claríssima, não só quanto à decisão – não
tomar conhecimento do objecto do recurso, constituído pelas “normas dos artigos
1250° e 1289° do CPC, vigente em 1987, com a interpretação que lhe foi dada pelo
STJ na decisão recorrida, ou seja, no sentido de não atribuir ao gerente e sócio
maioritário da falida o direito de acção judicial quando reconhece esse mesmo
direito ao falido singular” -, mas também quanto ao seu fundamento - falta de,
pelo menos, um dos seus pressupostos legais de admissibilidade, por ser
manifesto que, ao contrário do que exige expressamente o disposto no n.º 2 do
artigo 72º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, o recorrente “nunca confrontou o
Supremo Tribunal de Justiça, antes da prolação da decisão recorrida [...], com a
questão de constitucionalidade que agora quer ver apreciada”.
E isso mesmo compreendeu perfeitamente o recorrente, como resulta, de modo
evidente, do seu requerimento. Na verdade, aí, o recorrente alega que
“contrariamente ao que é afirmado, não poderia ter suscitado anteriormente a
questão da inconstitucionalidade da interpretação das normas que foi efectuada
pelo Supremo Tribunal de Justiça, previamente a este ter efectuado tal
interpretação”. (itálico e negrito aditados). Mas, ao fazê-lo, o recorrente,
representado que está por profissional do foro e não podendo ignorar o disposto
na lei, nomeadamente no n.º 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional,
não está, substancialmente, a formular um pedido de esclarecimento, ainda que
eventualmente infundado – pois nada para ele está incompreendido -, mas antes a
contestar, em concreto, a decisão sumária proferida, nomeadamente a sua
fundamentação.
Assim sendo, porém, como indubitavelmente o é, tal requerimento não pode deixar
de ser entendido, ao contrário do que o recorrente pretende e à semelhança do
que aconteceu, por exemplo, nos acórdãos n.ºs 185/2005 e 344/2005, tirados nesta
mesma Conferência (o primeiro já disponível na página Internet do Tribunal
Constitucional, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos), como
configurando, materialmente, uma reclamação da decisão sumária, como tal tendo
de ser tratado, ao abrigo do disposto no artigo 78º - A, n.º 3, da Lei do
Tribunal Constitucional.
Vejamos, então, se tem razão.
10. O recurso previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, visa submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a
apreciação da constitucionalidade de normas jurídicas efectivamente aplicadas
pela decisão recorrida e, como resulta expressamente do disposto no n.º 2 do
artigo 72º da Lei n.º 28/82, só pode ser interposto pela parte que haja
suscitado a questão de constitucionalidade, de modo processualmente adequado
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar
dela obrigado a conhecer.
10.1. Interroga-se o recorrente, no requerimento apresentado a fls. 934 e 935,
sobre como poderia “ter confrontado o Supremo Tribunal de Justiça, previamente à
decisão deste, com a inconstitucionalidade da decisão que viria a proferir”
(negrito aditado). Acontece, porém, que, visando o recurso de
constitucionalidade a apreciação de normas, nunca dele se poderia conhecer se,
acaso, a pretensão do recorrente fosse a de confrontar este Tribunal com a
inconstitucionalidade do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Na verdade, constitui jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada que,
estando em causa a própria decisão em si mesma considerada, não há lugar ao
recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal.
Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da Lei
n.º 28/82 e assim tem sido afirmado pelo Tribunal Constitucional em inúmeras
ocasiões. Na verdade, ao contrário dos sistemas em que é admitido recurso de
amparo, nomeadamente na modalidade de amparo dirigido contra decisões
jurisdicionais que, alegadamente, violam directamente a Constituição, o recurso
de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal não se
destina ao controlo da decisão judicial recorrida, como tal considerada, como
sucede quando a discordância se dirige a esta última, mas, pelo contrário, ao
controlo normativo de constitucionalidade da norma aplicada.
10.2. Entendendo-se, contudo, que o objecto do recurso é aquele que foi
delimitado no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, isto
é, as “normas dos artigos 1250° e 1289° do CPC, vigente em 1987, com a
interpretação que lhe foi dada pelo STJ na decisão recorrida, ou seja, no
sentido de não atribuir ao gerente e sócio maioritário da falida o direito de
acção judicial quando reconhece esse mesmo direito ao falido singular”, então é
manifesto que, a questão da inconstitucionalidade de uma tal interpretação não
podia deixar de ter sido suscitada, de modo processualmente adequado perante o
tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a
dela conhecer, como exige o citado n.º 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal
Constitucional.
Por um lado, porque, em qualquer caso, como este Tribunal tem afirmado
repetidamente, recai sobre a parte o ónus de analisar as diversas possibilidades
interpretativas susceptíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão e
de utilizar as necessárias precauções, de modo a poder, em conformidade com a
orientação processual considerada mais adequada, salvaguardar a defesa dos seus
direitos (cfr., nesse sentido, entre muitos outras decisões, quer anteriores,
quer posteriores, o acórdão n.º 479/89, publicado em Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 14º vol., p. 149 e seguintes).
Por outro lado, porque, no caso concreto, o recorrente, podia e devia, se
pretendia ter aberta uma via de recurso para este Tribunal, ter suscitado a
inconstitucionalidade das normas dos artigos “1250° e 1289° do CPC, vigente em
1987”. De facto, nos presentes autos, desde o despacho saneador que o recorrente
foi considerado parte ilegítima, sempre se entendendo que, nos termos do artigo
26º do Código de Processo Civil, carecia de “interesse directo na demanda”, não
sendo o titular do direito cuja tutela pretendia. Para assim concluir, foi o
artigo 1250º do Código de Processo Civil citado na decisão da 1ª instância e o
artigo 1289º do mesmo Código referido no acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa. Ora, não se tendo o recorrente conformado com tal solução e tendo
interposto recurso deste último acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça – que
as viria igualmente a referir na sua decisão -, nunca, nas alegações desse
recurso, invocou qualquer questão de inconstitucionalidade referida àquelas
normas, ou, sequer, a quaisquer outras. Aliás, a única vez que invoca a
Constituição é para, quando trata da “Aplicação analógica dos artigos 77º do
Código das Sociedades Comerciais” (sic), vir dizer “o autor e ora recorrente tem
assim direito a intervir na defesa dos direitos quer da sociedade quer pessoais
uma vez que as pessoas encarregues de tal não o fizeram. Este direito é, aliás,
reconhecido pelo artigo 20º e 202º da Constituição da República Portuguesa.
Enquanto lesado – e é-o directamente – tem a legitimidade para os defender em
Tribunal.”
Ora, tal maneira de proceder não é, em caso algum, modo processualmente adequado
de suscitar qualquer questão de constitucionalidade normativa, muito menos
referida aos artigos “1250° e 1289° do CPC, vigente em 1987”.
Assim sendo, pelas razões já constantes da decisão reclamada, que mantém inteira
validade, é efectivamente de não conhecer do objecto do recurso que o recorrente
pretendeu interpor, carecendo inteiramente de suporte o requerimento apresentado
pelo recorrente e a sua manifestação de inconformismo com o decidido.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se desatender a reclamação corporizada no requerimento de
fls. 934 e 935.
Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta, sem prejuízo de, não havendo pagamento voluntário, se atender ao
benefício do apoio judiciário.
Lisboa, 4 de Julho de 2005
Gil Galvão
Bravo Serra
Artur Maurício