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Processo n.º 342/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
(Conselheiro Paulo Mota Pinto)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O representante do Ministério Público no
Tribunal Judicial da Comarca de Águeda deduziu, em 29 de Junho de 2001, acusação
contra A. e a sociedade B., Limitada, imputando ao primeiro a autoria material
de 31 crimes de abuso de confiança fiscal (5 por não entregas de IVA e 16 por
não entregas de IRS), sendo 29 previstos e punidos pelo artigo 24.º, n.º 1, e os
2 restantes previstos e punidos pelo artigo 24.º, n.ºs 1 e 4, do Regime
Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo
Decreto‑Lei n.º 20‑A/90, de 15 de Janeiro, na redacção dada pelo Decreto‑Lei n.º
394/93, de 24 de Novembro, sendo a arguida sociedade punível por via do disposto
no artigo 7.º do mesmo diploma (fls. 57 a 60).
O arguido A. requereu a abertura da instrução
(fls. 71 a 79), expressamente solicitando que “a realização de todas as
diligências de produção de prova seja notificada ao requerente e aos seus
mandatários, para que a elas possam assistir e nelas possam participar”,
acrescentando:
“A este propósito (de a toda a produção de prova em instrução
dever ser permitida a assistência do requerente e do seu advogado) invoca o
requerente a ilegalidade, por violação da norma do artigo 61.º, n.º 1, alínea
a), e do artigo 63.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (que não podem deixar
de ser tidas como leis com valor reforçado), e a inconstitucionalidade, por
violação da exigência de uma instrução jurisdicionalizada, consagrada no artigo
32.º, n.ºs 4 e 5, da Constituição da República Portuguesa, das normas dos n.ºs 1
e 2 do artigo 289.º do Código de Processo Penal, na interpretação (…) segundo a
qual em instrução o arguido e o seu defensor apenas têm direito de assistir e
intervir no debate instrutório e nos casos expressamente determinados pelo juiz
de instrução.”
Esta última pretensão foi desatendida no
despacho de abertura da instrução (fls. 242), que, após marcação de data para
inquirição das testemunhas oferecidas pelo arguido, consignou:
“Esta inquirição de testemunhas, porque não sujeita a
contraditório nesta fase, é levada a cabo sem a assistência do
arguido/requerente e do seu ilustre mandatário, como requerido, e do Dig.mo
Magistrado do Ministério Público (artigo 289.º do CPP). Com efeito, apesar do
referido pelo arguido A., entende‑se ser este o sentido daquela norma, cuja
constitucionalidade já foi, aliás, apreciada e reconhecida – cf. Acórdãos do
Tribunal Constitucional n.ºs 59/2001 e 272/2000, no Diário da República, II
Série, de 12 de Abril de 2001 e de 13 de Novembro de 2000, respectivamente – e
Germano Marques da Silva, Forum Iustitiae, ano I, n.º 0, Maio 1999, p. 21).”
Desta decisão, que não admitiu a presença e
participação do arguido e seu mandatário nas diligências instrutórias, interpôs
o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, acompanhado da
respectiva motivação (fls. 261 a 277), recurso que foi admitido por despacho de
14 de Janeiro de 2002, “com subida diferida, nos próprios autos e com efeito
meramente devolutivo” (fls. 281). O Ministério Público apresentou resposta à
motivação desse recurso (fls. 295‑297).
Finda a instrução e realizado o debate
instrutório, foram os arguidos pronunciados pelos crimes por que haviam sido
acusados (despacho de 15 de Maio de 2002, fls. 656 verso a 660).
Realizada audiência de julgamento, foi, por
acórdão do Tribunal Colectivo de 10 de Março de 2003 (fls. 944 a 950), o arguido
condenado, pela prática dos 31 crimes de abuso de confiança fiscal por que fora
acusado e pronunciado, na pena única de 650 dias de multa à taxa diária de € 15,
num total de € 9750, com 433 dias de prisão subsidiária, e 3 anos de prisão,
suspensa por 5 anos, sob condição de pagar ao Estado, no prazo de 5 anos, o
valor do pedido, incluindo juros.
Em 11 de Março de 2003, o arguido apresentou
requerimento (fls. 954 e 955), em que, para efeitos de preparação do recurso que
intentava interpor do acórdão condenatório, solicitava: (i) a confiança do
processo; (ii) a entrega de cópias das cassetes com o registo da prova produzida
em audiência e, bem assim, (iii) da respectiva transcrição dactilografada; e
(iv) que fosse certificada a data, dia e hora, de início e fim da deliberação a
que se referem os artigos 365.º e seguintes do Código de Processo Penal (CPP).
Por despacho de 14 de Março de 2003 (fls. 958 a
960) foi: (i) deferida a confiança do processo; (ii) deferido o pedido de
entrega de cópia das fitas gravatas; (iii) indeferido o pedido de entrega das
transcrições das gravações; e (iv) uma vez que “dos autos não consta despacho em
que tenha sido declarada a absoluta impossibilidade da deliberação se seguir ao
encerramento nem qualquer outra referência a esse facto”, determinada a passagem
de certidão relativa tão‑só a este facto.
Em 31 de Março de 2003, o arguido interpôs e
motivou recurso quer do acórdão condenatório quer do despacho que indeferiu o
pedido de entrega das transcrições das cassetes de registo da prova produzida em
audiência (fls. 962 a 1000).
Por acórdão de 4 de Fevereiro de 2004, o
Tribunal da Relação de Coimbra decidiu: (i) não conhecer do recurso interposto
a fls. 242 contra o despacho que não admitiu a presença e participação do
arguido e seu mandatário nas diligências instrutórias, por o arguido, nas
conclusões do recurso interposto da decisão final, nada ter dito quanto a esse
recurso, resultando do artigo 412.º, n.º 5, do CPP (“Havendo recursos retidos, o
recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm
interesse”) que a omissão dessa referência “implica a desistência do recurso
retido que não é especificado”; (ii) rejeitar, por extemporaneidade, o recurso
do acórdão condenatório; e (iii) rejeitar, por manifesta improcedência, o
recurso do despacho que indeferiu o pedido de entrega das transcrições da prova
gravada em audiência.
Notificado deste acórdão, o arguido, em 25 de
Fevereiro de 2004, dele interpôs recursos:
1) para o Tribunal Constitucional (fls. 1207 a
1209), pretendendo ver apreciadas as inconstitucionalidades: (i) “da norma do
n.º 5 do artigo 412.° do Código de Processo Penal, por violar o direito de
acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva e o direito ao recurso,
consagrados nos artigos 20.° e 32.°, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa, na interpretação, acolhida no douto acórdão do Tribunal da Relação
de Coimbra, segundo a qual faz equivaler a omissão da indicação do interesse em
manter o recurso retido nas conclusões do acórdão final à desistência do mesmo”;
e (ii) “da norma do n.º 4 do artigo 690.° do Código de Processo Civil, aplicável
ex vi artigo 4.° do Código de Processo Penal, por violar o direito de acesso ao
direito e a uma tutela jurisdicional efectiva e o direito ao recurso,
consagrados nos n.ºs 1 e 2 do artigo 20.° e no n.º 1 do artigo 32.° da
Constituição da República Portuguesa, na interpretação, dela acolhida no douto
acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no sentido de excluir-se a sua
aplicação perante o n.º 5 do artigo 412.° do Código de Processo Penal, por
entender também que este opera automaticamente a desistência do recurso retido,
mesmo sem prévia notificação ao recorrente para que este possa suprir essa
eventual deficiência ou prestar esclarecimentos quanto às suas conclusões”; e
2) para o Supremo Tribunal de Justiça (fls.
1216 a 1246), sustentando a admissibilidade dos três recursos rejeitados pela
Relação.
Por acórdão de 22 de Setembro de 2004 (fls.
1268 a 1281), o Supremo Tribunal de Justiça rejeitou o recurso, por
inadmissibilidade, atento o disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP.
Por requerimento expedido em 7 de Outubro de
2004 (fls. 1284 a 1286), o arguido interpôs recurso para o Tribunal
Constitucional:
1) contra o referido acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça, tendo por objecto a questão da inconstitucionalidade da
norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP; e
2) contra o precedente acórdão do Tribunal da
Relação de Coimbra, tendo por objecto determinadas interpretações das normas:
(i) dos artigos 363.º e 364.º, n.ºs 1 e 3, do CPP; (ii) do artigo 412.º, n.º 5,
do CPP; (iii) do Decreto‑Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, e do artigo 143.º,
n.º 4, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por força do artigo 104.º do
CPP; (iv) do artigo 103.º, n.º 1, do CPP; (v) do artigo 414.º, n.º 3, do CPP; e
(vi) do artigo 412.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.
No Tribunal Constitucional, pelo Acórdão n.º
52/2005, de 1 de Fevereiro de 2005 (fls. 1321 a 1353), foi indeferida reclamação
do recorrente contra Decisão Sumária do Relator, de 16 de Dezembro de 2004 (fls.
1293 a 1306), que decidira não tomar conhecimento do recurso interposto do
acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (por o conhecimento desse recurso
estar dependente do desfecho, com trânsito em julgado, da questão da
recorribilidade desse acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça) e negar
provimento ao recurso interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (por
não julgar inconstitucional, na esteira de anterior jurisprudência do Tribunal
Constitucional, a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP).
Indeferidos, pelo Acórdão n.º 112/2005, pedidos
de aclaração do precedente Acórdão n.º 52/2005 e de reforma da decisão quanto a
custas nele contida, o recorrente apresentou requerimento de interposição de
recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro –
LTC), tendo por objecto:
1) o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra,
de 4 de Fevereiro de 2004, a propósito do qual pretendia ver apreciada as
questões de inconstitucionalidade, por violação do direito de acesso ao direito
e a uma tutela jurisdicional efectiva e do direito ao recurso, consagrados nos
artigos 20.º e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), das
normas:
a) do artigo 412.º, n.º 5, do CPP, na
interpretação segundo a qual faz equivaler a omissão da indicação do interesse
em manter o recurso retido nas conclusões do acórdão final à desistência do
mesmo; e
b) do artigo 690.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex
vi artigo 4.º do CPP, interpretado no sentido de excluir‑se a sua aplicação
perante o n.º 5 do artigo 412.º do CPP, por entender que também este opera
automaticamente a desistência do recurso retido, mesmo sem prévia notificação ao
recorrente para que este possa suprir essa eventual deficiência ou prestar
esclarecimentos quanto às suas conclusões;
2) o “acórdão final do tribunal da primeira
instância”, a propósito do qual pretendia ver apreciada a questão da
inconstitucionalidade das normas dos artigos 362.º, 363.º e 364.º, n.ºs 1 e 3,
do CPP, por violação do direito ao recurso e dos princípios do acusatório e do
contraditório (artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP), na interpretação segundo a qual
a transcrição da documentação das declarações orais é apenas necessária após a
interposição de recurso; e
3) o “despacho do tribunal da primeira
instância que não admitiu a presença do arguido e defensor nas diligências
instrutórias”, a propósito do qual pretendia ver apreciada a questão da
inconstitucionalidade da norma contida no artigo 289.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, por
violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais e a uma tutela
jurisdicional efectiva (artigo 20.º da CRP), na interpretação segundo a qual,
em instrução, o arguido e o seu defensor apenas têm direito de assistir e
intervir no debate instrutório e nos casos expressamente determinados pelo juiz
de instrução.
Admitido o recurso por despacho do
Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Coimbra (fls. 1430), o Relator
no Tribunal Constitucional proferiu despacho determinando a produção de
alegações, “mas apenas quanto ao recurso interposto (fls. 1369 e segs.) do
acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4 de Fevereiro de 2004, ficando o
recorrente advertido, para os devidos efeitos, da eventualidade de se não poder
vir a tomar conhecimento dos recursos interpostos, quer do acórdão final do
tribunal de primeira instância (por não ter sido impugnada a
constitucionalidade das normas que levaram o Tribunal da Relação de Coimbra a,
no referido acórdão, considerar extemporâneo o recurso desse acórdão da
primeira instância), quer do despacho da primeira instância que indeferiu a
presença do arguido e defensor em diligências instrutórias (por ser prematuro,
caso venha a obter provimento o primeiro recurso de constitucionalidade, do
referido acórdão do Tribunal da Relação, ou por se ter de considerar assente que
o recorrente desistiu do recurso desse despacho, caso o recurso de
constitucionalidade não venha a obter provimento)” (fls. 1434).
O recorrente apresentou alegações, no termo das
quais formulou as seguintes conclusões:
“A. Vem o presente do recurso interposto, a fls. 1369 e seguintes dos autos,
contra o douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, de 4 de
Fevereiro de 2004, pelo qual o recorrente pede seja declarada:
a. a inconstitucionalidade da norma prevista no n.º 5 do artigo 412.° do Código
de Processo Penal, por a mesma violar o direito de acesso ao direito e a uma
tutela jurisdicional efectiva e o direito ao recurso, consagrados nos artigos
20.° e 32.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, na interpretação,
acolhida no douto acórdão recorrido, segundo a qual faz equivaler a omissão da
indicação do interesse em manter o recurso retido nas conclusões do acórdão
final, à desistência do mesmo;
b. a inconstitucionalidade da norma prevista no n.º 4 do artigo 690.° do Código
de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4.° do Código de Processo Penal, por
violar o direito de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva e o
direito ao recurso, consagrados nos n.ºs 1 e 2 do artigo 20.° e no n.º 1 do
artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa, na interpretação, dela
acolhida no acórdão recorrido, no sentido de excluir‑se a sua aplicação perante
o n.º 5 do artigo 412.° do Código de Processo Penal, por entender também que
esta opera automaticamente a desistência do recurso retido, mesmo sem prévia
notificação ao recorrente para que este possa suprir essa eventual deficiência
ou prestar esclarecimentos quanto às suas conclusões.
Já que,
B. O recorrente, quando elaborou as conclusões das motivações do recurso da
decisão final, por lapso – apesar de entender que a tal não é, como decorrerá do
em seguida alegado, obrigado –, não incluiu a indicação prevista no n.º 5 do
artigo 412.° do Código de Processo Penal, ou seja, não manifestou expressamente
o interesse na manutenção da apreciação do recurso interposto do despacho que
não admitiu a presença e a participação do arguido e do seu advogado nas
diligências instrutórias, recurso interposto a fls. 242 e que ficou retido por
ser admitido com subida diferida. Ora,
C. E em primeiro lugar, cumpre esclarecer que a questão objecto do recurso
retido mencionado – recurso contra o despacho que não admitiu a presença e a
participação do arguido e do seu advogado nas diligências instrutórias –, como
decorre notório da sua natureza, não se encontra prejudicada, nem a sua
apreciação, em sede de recurso, resulta inútil ou supervenientemente inútil em
relação ao momento em que a mesma foi suscitada, pelo que, desta forma e a todos
os níveis, seria de entender que o recorrente nunca prescindiria da sua
apreciação, e que manteria o interesse no julgamento do recurso que havia
interposto. No entanto,
D. Assim não foi entendido pelos Venerandos Senhores Juízes Desembargadores do
Tribunal da Relação de Coimbra, que, no seu acórdão (agora recorrido),
entenderam que, sem aquela manifestação expressa de vontade, o recurso retido
não deveria ser apreciado, não se podendo, o recorrente, conformar, salvo o
devido respeito, com a posição adoptada e agora recorrida, por entender, logo à
partida, não ser obrigado a proceder a tal indicação. Pois que,
E. Em primeiro lugar, porque os recursos são interpostos por meio de
requerimento dirigido ao tribunal que preferiu a decisão recorrida, ao qual são
juntas as motivações de recurso e respectivas conclusões (cf. artigos 411.° e
412.° do Código de Processo Penal). Após a recepção do recurso, o mesmo é ou não
admitido a apreciação, e sendo‑o, ao mesmo são fixados os efeitos e o regime de
subida. A final, o recurso é julgado. Não vem indicado na lei, a propósito da
tramitação processual do julgamento do recurso, a necessidade de o recorrente
ter que manifestar a intenção em ver o recurso por si interposto apreciado.
F. Em segundo lugar, o recorrente entende não ter que proceder à indicação
mencionada no n.º 5 do artigo 412.° do Código de Processo Penal, sob pena de tal
omissão ser entendida automaticamente como desistência, porquanto a desistência
dos recursos interpostos não é operada pela omissão desta ou daquela indicação
posterior à sua interposição, mas pela declaração expressa do recorrente em tal
sentido, por meio de requerimento (cf. artigo 415.° do Código de Processo
Penal). Se o legislador tivesse querido fazer equivaler a omissão do dever
previsto na norma contida no n.º 5 do artigo 412.° do Código de Processo Penal à
pura e simples e automática desistência do recurso retido, teria expressamente
consagrado tal hipótese entre as causas de desistência ou deserção dos
recursos, o que não fez.
G. Em terceiro lugar, mantém o recorrente o entendimento já por si expresso,
porque a norma do n.º 5 do artigo 412.° do Código de Processo Penal refere‑se,
efectivamente e literalmente, apenas aos casos em que há mais do que um recurso
retido (por isso, a lei refere sempre o plural: «recursos retidos» e «quais»),
entendendo o recorrente que, estando perante apenas um recuso retido, nenhuma
intenção ou manutenção de interesse teria que demonstrar.
H. Por último, e em quarto lugar, relevará ainda, para fortalecer o entendimento
subscrito pelo agora recorrente, que a norma agora sob apreciação – n.º 5 do
artigo 412.° do Código de Processo Penal – não faz cominar em desistência a
omissão da indicação a que alude. Aliás, naquela norma, não se prevêem os
efeitos decorrentes da omissão de indicação de manutenção do interesse nos
recursos retidos, pelo que, a entender‑se daí advir algum vício, o mesmo sempre
será o da mera irregularidade (cf. n.º 2 do artigo 118.° do Código de Processo
Penal), cuja reparação deverá ser ordenada (cf. n.º 2 do artigo 123.° do Código
de Processo Penal).
E neste (último) sentido chega‑se à questão suscitada em b. precedente,
entendendo o recorrente, em face de tudo o que se deixou anteriormente dito,
que, maxime, sempre deveria ter sido convidado a aperfeiçoar e a esclarecer se
mantinha ou não interesse no recurso retido, nos termos previstos no n.º 4 do
artigo 690.° do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi artigo 4.° do
Código de Processo Penal.
J. Isto, primeiro, porque esse interesse no recurso era (como é) por demais
evidente, não só pelos motivos que já aqui se deixaram consignados, como por
causa da intrínseca relação entre os motivos (motivação) de um e de outro
recurso;
K. Depois, porque a lei não faz equivaler, de modo algum e em lugar algum, a
omissão de tal indicação à desistência do recurso retido;
L. E depois, ainda, porque se interpretada nesse sentido – de que a omissão da
especificação dos recursos retidos em que se mantém interesse equivale e tem
como consequência automática a desistência dos mesmos, independentemente do
prévio convite ao recorrente para esclarecer se era esse o significado que
pretendia com tal omissão –, a norma citada do n.º 5 do artigo 412.° do Código
de Processo Penal é inconstitucional nos termos e na interpretação acima
mencionados (em a. precedente), o que se pede a V. Ex.ªs se dignem declarar.
M. Com efeito, subscrevendo, salvo o devido respeito, o entendimento manifestado
pelo agora recorrente – de que não só não está obrigado a proceder à indicação
estabelecida no n.º 5 do artigo 412.° do Código de Processo Penal, como
(maxime), devendo proceder a tal indicação quando formula as suas conclusões
nas motivações de recurso da decisão final, se a omitir, sempre deverá o
tribunal convidar o recorrente a esclarecer o significado de uma tal omissão
(cf. n.º 4 do artigo 690.° do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi
artigo 4.° do Código de Processo Penal) – indica‑se, desde logo, o douto
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Outubro de 2002, relativo ao
processo n.º 6826/02, no qual se entende que, «simplesmente, tendo‑se na devida
atenção o enquadramento das disposições em causa (n.º 5) na economia do próprio
preceito (artigo 412.° do CPP) e no próprio contexto jurídico‑formal das
conclusões no seu processamento, formulação, insuficiências, deficiências e seus
reflexos, equacionando‑se e potenciando‑se a interpretação que tem vindo
ultimamente [a ser] sufragada em relação ao n.º 2 do referido artigo, com o
arredar da rejeição liminar do recurso sem o accionar prévio da possibilidade
de uma correcção, aditamento ou esclarecimento, tem‑se por mais ajustado,
correcto e conforme, aliás no quadro do próprio artigo 412.° e da economia de
tal preceito no que respeita às conclusões, sua formulação, deficiências e
consequentes reflexos (...) que deveria antes ter mandado notificar o
recorrente, nos termos do artigo 690.º do CPC, ex vi artigo 4.° do CPP, para dar
cumprimento ao artigo 412.°, n.º 5, do mesmo CPP, e assim esclarecer ou
confirmar a sua posição ante tal recurso, consequentemente não decidindo logo
pelo não conhecimento do mesmo como apressadamente o fez. Posicionamento e
entendimento este que se perfila de todo em todo defensável e justificável
pelas razões que têm vindo a ser adiantadas pelo Tribunal Constitucional
(Acórdão n.º 417/99, Diário da República, de 13 de Março de 2000) em situações
paralelas que contendem com o direito ao recurso e o acesso à justiça face a
limitações que formal e inquestionavelmente se projectariam e se representariam
como claramente desproporcionadas, afectando consequentemente o exercício de
tais direitos e pondo em crise as próprias garantias de defesa dos arguidos, se
não fosse permitido o sanar de tais deficiências».
N. Desta forma, e em face do acima alegado, temos que o Tribunal da Relação de
Coimbra, no douto acórdão agora recorrido, omitiu o dever de convite ao
aperfeiçoamento ao recorrente, fazendo equivaler como «desistência» uma omissão
por parte do recorrente.
O. Com esta actuação e interpretação – das normas contidas no n.º 5 do artigo
412.° do Código de Processo Penal e no n.º 4 do artigo 690.° do Código de
Processo Civil, aqui (necessariamente) aplicável por força do disposto no artigo
4.º do Código de Processo Penal –, ao recorrente está a ver vedada a apreciação
do recurso por si interposto e retido, estando, consequentemente, a ser violados
os direitos ao acesso ao direito, aos tribunais e a uma tutela jurisdicional
efectiva e o direito ao recurso, como previstos nos artigos 20.° e 32.° da
Constituição da República Portuguesa, pelo que a interpretação mencionada (e
recorrida) é inconstitucional face à Lei Fundamental, o que se pede seja
declarado.”
O representante do Ministério Público no
Tribunal Constitucional apresentou contra‑alegações, concluindo do modo
seguinte:
“1 – É inconstitucional, por violação do princípio das
garantias de defesa, a interpretação normativa do artigo 412.º, n.º 5, do Código
de Processo Penal, segundo a qual (ao contrário do que ocorre no processo civil)
é irremediavelmente preclusiva a omissão de especificação dos recursos retidos
que conservam interesse para o recorrente, conduzindo a omissão de referência
aos mesmos (apesar de oportunamente interpostos e motivados), mesmo nos casos em
que o tribunal ad quem se apercebeu da sua existência, à respectiva
desistência, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade processual para
suprir o vício ou deficiência formal que cometeu.
2 – Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Não tendo logrado vencimento o projecto de
acórdão inicialmente apresentado, operou‑se mudança do relator.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Como se relatou, o primitivo Relator, no
despacho que determinou a apresentação de alegações de recurso, limitou o
âmbito deste ao recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra,
de 4 de Fevereiro de 2004, advertindo o recorrente da eventualidade de não se
tomar conhecimento dos recursos interpostos quer do acórdão final do tribunal de
1.ª instância (tendo por objecto determinada interpretação dos artigos 362.º,
363.º e 364.º, n.ºs 1 e 3, do CPP), quer do despacho do tribunal da primeira
instância que não admitiu a presença do arguido e defensor nas diligências
instrutórias (tendo por objecto determinada interpretação do artigo 289.º, n.ºs
1 e 2, do CPP).
Nas alegações apresentadas, o recorrente só
alude à questão de inconstitucionalidade suscitada a propósito do recurso
interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 4 de Fevereiro de
2004, devendo considerar‑se abandonadas as restantes questões. Assim, constitui
objecto do presente recurso a questão da inconstitucionalidade – face ao
direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e face ao direito
ao recurso em processo criminal, consagrados, respectivamente, nos artigos 20.º
e 32.º, n.º 1, da CRP – da interpretação normativa que faz equivaler a omissão
da indicação do interesse em manter o recurso retido, nas conclusões da
motivação do recurso que determina a subida desse recurso, à desistência do
mesmo, sem que previamente o recorrente seja convidado a suprir essa eventual
deficiência, interpretação que o recorrente reporta quer ao artigo 412.º, n.º 5,
do CPP, quer à exclusão da aplicação do artigo 690.º, n.º 4, do CPC, conjugado
com o artigo 4.º do CPP.
2.2. No Acórdão n.º 174/2006, o Tribunal
Constitucional teve ocasião de referenciar a origem e justificação da norma
legal ora em causa. Como aí se assinalou, nem o Código de Processo Penal de
1929, nem o de 1987, na sua versão originária, continham disposição
equivalente à do actual n.º 5 do artigo 412.º. Ela foi introduzida pela Lei n.º
59/98, de 25 de Agosto, representando reconhecidamente uma importação
(incompleta, como a seguir se verá) da inovação operada, pela reforma do
processo civil de 1995/1996 (Decretos‑Leis n.ºs 329‑A/95, de 12 de Dezembro, e
180/96, de 25 de Setembro), com a redacção dada ao artigo 748.º do CPC
(inserido na Subsecção dedicada ao Agravo interposto na 1.ª instância, e cujo
regime o artigo 761.º, n.º 2, tornou extensivo ao agravo interposto na 2.ª
instância), que passou a ter o seguinte teor (redacção de 1996, indicando‑se
entre parênteses rectos a versão de 1995):
“1 – Ao apresentar [apresentarem] as alegações no recurso que
motiva a subida dos agravos retidos, o agravante especificará [as partes
especificarão] obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse
[para o agravante].
2 – Se omitir [omitirem] a especificação a que alude o número
anterior, o relator convidará a parte a apresentá-la [convidá‑las‑á a
apresentá‑la], no prazo de cinco dias, sob cominação de, não o fazendo, se
entender que desiste dos agravos retidos [que deles desistem].”
Como se lê no relatório do Decreto‑Lei n.º
329‑A/95, com o estabelecimento destas regras visou‑se – na sequência da
eliminação da possibilidade de a alegação do agravo ser apenas apresentada na
altura em que o agravo retido devesse subir –, “no que se refere aos agravos
retidos que apenas sobem com um recurso dominante”, impor, “com base no
princípio da cooperação, um ónus para o recorrente, que deverá obrigatoriamente
especificar nas alegações do recurso que motiva a subida dos agravos retidos
quais os que, para si, conservam interesse, evitando que o tribunal superior
acabe por ter de se pronunciar sobre questões ultrapassadas, para além de se
correr o risco, em processos extensos e complexos, de «escapar» a apreciação de
algum recurso não precludido. Na verdade, ninguém melhor que o recorrente estará
em condições de ajuizar quais os recursos que efectivamente interpôs e qual a
utilidade na sua apreciação final”. Por seu turno, como refere Carlos Francisco
de Oliveira Lopes do Rego (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª
edição, Coimbra, 2004, p. 636), “o n.º 2 procura atenuar – em termos de
funcionamento de um princípio geral de proporcionalidade e adequação – o efeito
cominatório e preclusivo associado ao incumprimento do ónus previsto no n.º 1:
assim, se o recorrente omitir a especificação aí prevista, deverá o relator
convidá‑lo a apresentá‑la, em prazo curso (5 dias), sob pena de se entender que
desiste dos agravos retidos”.
Não interessando agora tratar da questão de
saber se este ónus é extensível (e em que termos) aos recorridos no recurso que
determina a subida dos agravos retidos por eles interpostos, como sucedia no
caso sobre que versou o Acórdão n.º 174/2006, mas não ocorre no presente caso,
importa, porém, salientar que não foi integral o acolhimento, na reforma
processual penal de 1998, através da inserção do novo n.º 5 do artigo 412.º do
CPP, do regime introduzido na reforma processual civil de 1995/1996, pois
daquele preceito não consta formulação correspondente à do n.º 2 do artigo
748.º do CPC, isto é, nem se prevê expressamente o dever de o relator, no caso
de não especificação espontânea pelo recorrente dos recursos em cujo
conhecimento mantém interesse, formular convite para suprimento dessa falta de
especificação, nem se comina explicitamente a consequência do incumprimento do
ónus em causa.
No entanto, tem sido doutrinal e
jurisprudencialmente sustentado que também em processo penal se impõe o convite
prévio ao suprimento da falta de indicação, pelo recorrente do recurso
dominante, dos recursos retidos em que mantém interesse. Assim, Fernando Amâncio
Ferreira (Manual dos Recursos em Processo Civil, 6.ª edição, Coimbra, 2005, p.
327, nota 655) entende que todo o regime do artigo 748.º do CPC vale em processo
penal: “quanto à obrigação de especificação dos recursos retidos que mantêm
interesse, por aplicação directa do n.º 5 do artigo 412.º do CPP; e quanto à
sanção pelo incumprimento da referida obrigação, após convite prévio, por
aplicação analógica do n.º 2 do artigo 748.º do CPC” (sublinhado acrescentado).
E Simas Santos e Leal‑Henriques (Recursos em Processo Penal, 5.ª edição,
Lisboa, 2002, p. 99 e nota 116, e Código de Processo Penal Anotado, II vol., 2.ª
edição, reimpressão, Lisboa, 2004, p. 802), após assinalarem que a exigência do
n.º 5 do artigo 412.º do CPP “visa permitir ao tribunal superior o saneamento
dos vários recursos a apreciar, v. g. no caso de processos volumosos e
recheados de impugnações interlocutórias, que entretanto foram perdendo
relevância com o desenvolvimento processual”, anotam que “o Acórdão do STJ, de
24 de Outubro de 2001, proc. n.º 2380/01‑3.ª, decidiu que o incumprimento do
prescrito neste n.º 5 não deve conduzir à imediata rejeição dos recursos
retidos, devendo previamente convidar‑se o recorrente a especificar quais deles
devem ser objecto de reexame, isto por se justificar a mesma solução que vem
sendo adoptada para a falta ou imperfeita especificação dos ónus a que se
referem os n.ºs 2 e 3 do preceito”. Neste último sentido se insere o acórdão do
STJ de 16 de Março de 2005, Proc. n.º 2031/04, assim sumariado (cf. “Sumários de
Acórdãos”, em www.stj.pt): “II – Tem‑se por inconstitucional, por violação do
direito a um processo equitativo e do próprio direito ao recurso (artigos 32.º,
n.º 1, e 20.º, n.º 4, da CRP), a interpretação do artigo 412.º, n.º 5, do CPP
segundo a qual a omissão de especificação dos recursos retidos que mantêm
interesse implica a desistência desses mesmos recursos, sem que previamente se
conceda ao recorrente a possibilidade de colmatá‑la” (sublinhados
acrescentados).
2.3. Também o Tribunal Constitucional já foi
chamado a apreciar a constitucionalidade do n.º 5 do artigo 412.º do CPP,
embora relativamente a dimensões normativas distintas da (ou não inteiramente
coincidentes com a) que está em causa no presente recurso.
Fê‑lo, primeiro, no Acórdão n.º 191/2003
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 55.º vol., p. 809), que “julg[ou]
inconstitucional, por violação das disposições conjugadas do artigo 32.º, n.º
1, e do artigo 20.º, n.º 4, parte final, da Constituição, o artigo 412.º, n.º 5,
do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que é insuficiente para
cumprir o ónus de especificação ali consignado a referência a «todos» os
recursos, nas conclusões da motivação, sempre que no texto desta tenha sido
feita a sua identificação individualizada e seriada”. Neste Acórdão, o Tribunal
Constitucional entendeu maioritariamente não conhecer autonomamente, por
considerar não suscitada, a questão da inconstitucionalidade da norma em causa
interpretada no sentido de atribuir efeito irremediavelmente preclusivo ao
incumprimento ou deficiente cumprimento do aludido ónus, sem que ao recorrente
fosse facultada oportunidade processual de suprir o vício detectado,
registando‑se que quer o representante do Ministério Público neste Tribunal,
quer o Juiz Conselheiro que votou pelo conhecimento dessa dimensão normativa se
manifestaram no sentido de que a reputariam inconstitucional.
Fê‑lo, depois, no Acórdão n.º 724/2004
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 60.º vol., p. 803), que julgou
inconstitucional, com o mesmo fundamento, o mesmo preceito, “interpretado no
sentido de que a exigência da especificação dos recursos retidos em que o
recorrente mantém interesse, constante do preceito, também é obrigatório, sob
pena de preclusão do seu conhecimento, nos casos em que o despacho de admissão
do recurso interlocutório é proferido depois da própria apresentação da
motivação do recurso interposto da decisão final do processo”, e no Acórdão n.º
381/2006 (Diário da República, II Série, n.º 157, de 16 de Agosto de 2006, p. 15
158), que julgou inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos
artigos. 32.º, n.º 1, e 20.º, n.º 4, parte final, da CRP, o n.º 5 do artigo
412.º do CPP, quer “interpretado no sentido de que a exigência da especificação
dos recursos retidos em que o recorrente mantém interesse, constante do
preceito, também é obrigatória, sob pena de preclusão do seu conhecimento, nos
casos em que o despacho de admissão do recurso interlocutório é proferido depois
da própria apresentação da motivação do recurso interposto da decisão final do
processo”, quer “na interpretação que permita ao tribunal ad quem, considerando
não ser suficiente para o cumprimento do ónus previsto nesse preceito a
referência nas conclusões ao recurso interlocutório retido e a que o mesmo
subirá a final, a liminar rejeição desse recurso, entretanto já admitido, sem
que seja formulado ao recorrente um convite para explicitar se mantém interesse
no seu conhecimento”.
Fê‑lo, por último, no Acórdão n.º 476/2006
(proferido na sequência do deferimento, pelo citado Acórdão n.º 174/2006, de
reclamação contra não admissão de recurso para o Tribunal Constitucional), que
não julgou inconstitucional a norma do artigo 412.º, n.º 5, do CPP, quando
interpretada no sentido de que “o recorrido está obrigado a manifestar nos autos
em que recursos retidos está interessado, não se tendo os mesmos tornado
inúteis, quando a matéria questionada no recurso interlocutório, não obstante
tal impugnação, é utilizada para fundamentar alteração na matéria de facto”.
Tendo sido esta última a formulação utilizada pelo recorrente no requerimento de
interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, no referido Acórdão n.º
476/2006 entendeu‑se (cf. n.º 2), face à proibição da ampliação ou modificação,
em sede de alegações, do objecto do recurso definido nesse requerimento, não
ser possível considerar, “por implicarem dimensões do n.º 5 do artigo 412.º do
Código de Processo Penal que não foram impugnadas pelo recorrente quando o
recurso foi interposto (…) nem o aditamento que, na conclusão 2.ª das mesmas
alegações, acrescenta a necessidade do convite para que o mesmo indique se
mantém interesse nos recursos retidos”. Isto é: foi expressamente excluída do
âmbito do recurso sobre que recaiu esse acórdão a dimensão normativa
especificamente ligada à necessidade (ou dispensabilidade) de convite para
explicitação da manutenção do interesse no conhecimento dos recursos retidos.
2.4. Embora, como se viu, a específica questão
de inconstitucionalidade que constitui objecto do presente recurso não tenha
ainda sido objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, é, porém, vasta a
sua jurisprudência relativamente a situações em que o não cumprimento, ou o
cumprimento defeituoso, de certos ónus processuais pelo arguido é susceptível
de implicar a perda definitiva de direitos ou a preclusão irremediável de
faculdades processuais, questionando‑se se, nesses casos, não se imporá a prévia
formulação de convite ao arguido para suprimento da deficiência.
O Tribunal tem entendido que, em geral, e tendo
por parâmetro o direito a um processo equitativo, “não beneficia de tutela
constitucional um genérico, irrestrito e ilimitado «direito» das partes à
obtenção de um sistemático convite ao aperfeiçoamento de todas e quaisquer
deficiências dos actos por elas praticados em juízo”, sendo certo que “o convite
– que não tem que ser sucessivamente renovado ou reiterado – só tem sentido e
justificação quando as deficiências notadas forem estritamente «formais» ou de
natureza secundária” e que “não será constitucionalmente exigível nos casos em
que a deficiência formal se deva a um «erro manifestamente indesculpável do
recorrente»” (Carlos Lopes do Rego, “O direito de acesso aos tribunais na
jurisprudência recente do Tribunal Constitucional”, em Estudos em Memória do
Conselheiro Luís Nunes de Almeida, Coimbra, 2007, pp. 846‑847).
Especificamente quanto ao processo criminal, em
que é convocável o parâmetro constitucional do princípio das garantias de
defesa, incluindo expressamente o direito ao recurso, tem‑se considerado ser
lícito ao legislador, na sua regulamentação, impor determinados ónus aos
diversos intervenientes processuais. Mister é, no entanto, que, ao fazê‑lo, o
legislador respeite o princípio da proporcionalidade. E o juízo de
proporcionalidade a emitir neste domínio tem, assim, de tomar em conta três
vectores essenciais: (i) a justificação da exigência processual em causa; (ii) a
maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado; e (iii) a
gravidade das consequências ligadas ao incumprimento do ónus.
Na presente situação, parece incontroverso que
a imposição do ónus em causa é apropriada a proporcionar uma maior eficiência
do sistema jurisdicional, poupando os tribunais de recurso ao dispêndio de
tempo quer com o conhecimento de recursos que se teriam tornado inúteis para o
respectivo recorrente, quer com a busca, em processos por vezes muito volumosos,
de recursos interlocutórios admitidos com subida diferida. Por outro lado, como
se refere nas contra‑alegações do Ministério Público, “o cumprimento adequado de
tal ónus – expresso num justificado dever de cooperação com o tribunal por parte
do recorrente – não implica um sacrifício desproporcionado para o
arguido/recorrente, não constituindo qualquer dificuldade substancial a feitura
de tal especificação nas conclusões da motivação do recurso dominante”. Já,
porém, surge como desproporcionada, como se assinala nessa contra‑alegação, “a
atribuição de eficácia irremediavelmente preclusiva à omissão de especificação,
ditando a automática preclusão dos recursos interlocutórios que devessem subir
com a decisão final, sem que o Tribunal – que se apercebe da sua existência nos
autos – deva convidar a parte a cumprir adequadamente o ónus em causa, suprindo
a omissão das conclusões do recurso principal”. Na verdade, relativamente a esse
recurso interlocutório, o arguido já cumpriu o ónus, principal e substancial,
de manifestar a sua vontade de impugnar a decisão nele atacada e de expor as
razões da sua discordância, ao apresentar o respectivo requerimento de
interposição de recurso, acompanhado da correspondente motivação. A omissão da
menção, nas conclusões da motivação do recurso dominante, da manutenção do
interesse no conhecimento do recurso retido – menção que constitui um ónus
formal ou secundário –, pode bem dever‑se a um mero lapso do recorrente, sendo
manifestamente excessivo fazer corresponder a esse silêncio uma manifestação de
vontade de desistir de tal recurso, sem que o tribunal (dentro do mesmo
espírito de colaboração que, como se viu, justificou a inserção da norma do n.º
5 do artigo 412.º do CPP) procure previamente esclarecer qual a real intenção do
interessado. Tanto mais que, nos termos do artigo 415.º do CPP, se exige que a
desistência do recuso (apenas admissível até ao momento de o processo ser
concluso ao relator para exame preliminar) seja formalizada através da
apresentação de um requerimento ou por termo no processo.
O entendimento de que, nessas situações, se
justifica a formulação de convite, antes de se considerar irremediavelmente
afastado o conhecimento do recurso retido, tal como sucede em processo civil, é,
aliás, o que melhor se coaduna com a ponderação entre o interesse na celeridade
própria do processo penal e o asseguramento das garantias de defesa e do direito
de recurso, que o Tribunal Constitucional tem feito quando decidiu:
– julgar inconstitucional a norma segundo a
qual deve ser liminarmente rejeitado o recurso do arguido cuja motivação não
contenha conclusões, sem previamente se lhe facultar o suprimento dessa omissão
(Acórdãos n.ºs 323/2003 e 428/2003);
– declarar inconstitucional, com força
obrigatória geral, a norma segundo a qual a falta de concisão das conclusões da
motivação leva à imediata rejeição do recurso sem que previamente seja feito
convite ao recorrente para suprir tal deficiência (Acórdão n.º 337/2000);
– declarar inconstitucional, com força
obrigatória geral, a norma segundo a qual o deficiente cumprimento dos ónus
previstos no n.º 2 do artigo 412.º do CPP tem por efeito a imediata rejeição do
recurso, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade processual de suprir
o vício detectado (Acórdão n.º 320/2002);
– julgar inconstitucionais as normas segundo as
quais a falta ou deficiência de indicação, nas conclusões da motivação de
recurso em que se impugne a decisão da matéria de facto, de todas ou de algumas
das menções referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP,
designadamente pela forma prevista no subsequente n.º 4, tem como efeito o não
conhecimento dessa matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao
recorrente seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência (Acórdãos
n.ºs 529/2003, 140/2004, 322/2004, 405/2004. 488/2004 e 357/2006);
– declarar inconstitucional, com força
obrigatória geral, a norma constante dos artigos 59.º, n.º 3, e 63.º, n.º 1, do
Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, na interpretação segundo a qual a
falta de formulação de conclusões na motivação de impugnação da decisão
administrativa que aplicou uma coima implica a rejeição do recurso, sem que o
recorrente seja previamente convidado a efectuar tal formulação (Acórdão n.º
265/2001).
Como se salientou neste último Acórdão, a
concordância prática entre o valor da celeridade, co‑natural ao processo penal,
e a plenitude das garantias de defesa é possível (e exigida pelo artigo 18.º,
n.º 2, da CRP), com a formulação de convite para, em prazo curto, ser suprida a
deficiência, “sem necessidade de se chegar ao extremo de fulminar desde logo o
recurso, em desproporcionada homenagem ao valor celeridade, promovido, assim, à
custa das garantias de defesa do arguido”.
No presente caso – em que acresce que o
tribunal de recurso se apercebeu da existência do recurso retido e em que não
era patente a perda de interesse no seu conhecimento –, também surge como
desrazoável sobrevalorização das preocupações de celeridade do processo penal,
em detrimento das garantias de defesa e do direito de recurso, o entendimento
de que não era possível ou devida a formulação de convite, aplicando‑se o prazo
de 5 dias previsto no n.º 2 do artigo 748.º do CPC, para o recorrente esclarecer
se mantinha, ou não, interesse naquele recurso.
3. Decisão
Em face do exposto, acorda‑se em:
a) Julgar inconstitucional, por violação do
artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo
412.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a
omissão da indicação, pelo arguido recorrente, nas conclusões da motivação do
recurso que determina a subida de recurso retido, de que mantém interesse no
conhecimento deste recurso, equivale à desistência do mesmo, sem que previamente
seja convidado a suprir essa eventual deficiência; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso,
determinando‑se a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o
precedente juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 23 de Março de 2007.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Benjamim Silva Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto (Vencido, nos termos da declaração de voto que junto)
Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Votei vencido em conformidade com o projecto de acórdão que, enquanto relator,
apresentei, e no qual se propunha a seguinte fundamentação da decisão de não
inconstitucionalidade da norma do artigo 412.º, n.º 5, do Código de Processo
Penal, conjugado com o artigo 690.º, n.º 4, do Código de Processo Civil
(aplicável por força do artigo 4.º do Código de Processo Penal), interpretados
no sentido de atribuir efeito irremediavelmente preclusivo à omissão de
especificação, nas alegações e nas conclusões, de quais os recursos retidos em
que o recorrente conserva interesse em agir, sem que o tribunal deva previamente
convidar o recorrente a suprir tal omissão:
“(…)
A questão a apreciar traduz-se em saber se é ou não constitucionalmente exigido
que seja proferido despacho de aperfeiçoamento, a convidar o recorrente a
especificar os recursos em que conserva o interesse em agir, facultando-lhe,
deste modo, oportunidade processual para suprir a omissão da indicação exigida
pelo artigo 412.º, n.º 5, do Código de Processo Penal.
No recente Acórdão n.º 476/2006, ainda inédito, este Tribunal pronunciou-se, num
caso em que estava em causa semelhante dimensão interpretativa do preceito do
artigo 412.º, n.º 5, do Código de Processo Penal – ainda que a imposição do ónus
de especificação fosse no caso ao arguido que era recorrido no recurso dominante
e não ao recorrente neste último recurso, como no caso dos autos. E concluiu-se
nesse aresto pela não inconstitucionalidade da norma constante do referido n.º 5
do artigo 412.º do Código de Processo Penal. Disse-se na respectiva
fundamentação:
“(…)
4. A norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada é a constante do
nº 5 do artigo 412º do Código de Processo Penal, que tem a seguinte redacção:
Artigo 412.º
(Motivação do recurso e conclusões)
1. [...]
2. [...]
3. [...]
4. [...]
5. Havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas
conclusões, quais os que mantêm interesse.
Do acórdão 174/2006 consta a história deste n.º 5, introduzido no Código de
Processo Penal pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, bem como a referência à
questão (de direito ordinário) de saber se deve ou não considerar-se abrangido
no seu regime o recorrido no recurso que determina a subida dos recursos
retidos, relativamente aos quais ele ocupa a posição de recorrente.
5. Como também se dá nota no acórdão n.º 174/2006, o Tribunal Constitucional já
se pronunciou por diversas vezes sobre o n.º 5 do artigo 412.º do Código de
Processo Penal.
Sempre estiveram, no entanto, em causa interpretações diferentes da que agora
releva, aplicadas em outros tantos casos concretos. E o Tribunal sempre observou
que a razão de ser do preceito é, por um lado, evitar que o tribunal superior
tenha de julgar recursos que vieram a revelar-se inúteis, deixando ao critério
do recorrente (em recursos retidos) a avaliação do interesse que neles mantenha
e, por outro, minimizar o risco de esquecimento, pelo tribunal, de recursos
anteriormente interpostos, apelando para o efeito à cooperação que é exigível
aos diversos intervenientes processuais.
Assim, no seu acórdão n.º 191/2003 (Diário da República, II série, de 28 de Maio
de 2003), o Tribunal Constitucional decidiu “julgar inconstitucional, por
violação das disposições conjugadas do artigo 32.º, nº 1, e do artigo 20.º, n.º
4, parte final, da Constituição, o artigo 412.º, n.º 5, do Código de Processo
Penal, interpretado no sentido de que é insuficiente para cumprir o ónus de
especificação ali consignado a referência a ‘todos’ os recursos, nas conclusões
da motivação, sempre que no texto desta tenha sido feita a sua identificação
individualizada e seriada”.
O Tribunal Constitucional considerou, então, que “tendo em conta a identidade e
unicidade da peça processual em causa – a motivação do recurso” e constando
dessa mesma peça (no texto) a especificação dos recursos retidos e a indicação
(nas conclusões) de que o recorrente mantinha interesse em todos eles, era
excessivo impor, como condição do julgamento dos recursos retidos, a 'repetição
de identificação individualizada dos recursos retidos” nas conclusões.
No acórdão 724/2004 (Diário da República, II série, de 4 de Fevereiro de 2005),
o Tribunal Constitucional decidiu “Julgar inconstitucional, por violação das
disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.º 4, parte final, da
Constituição, o artigo 412.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, interpretado
no sentido de que a exigência da especificação dos recursos retidos em que o
recorrente mantém interesse, constante do preceito, também é obrigatória, sob
pena de preclusão do seu conhecimento, nos casos em que o despacho de admissão
do recurso interlocutório é proferido depois da própria apresentação da
motivação do recurso interposto da decisão final do processo”, nomeadamente por
entender inaceitável “transferir totalmente e apenas para o arguido os efeitos
decorrentes do incumprimento de um ónus cuja conformação legislativa assenta em
razões de cooperação e colaboração entre o recorrente e o julgador numa situação
em que o cumprimento apenas poderia ser perspectivado sobre uma admissão
hipotética do recurso interposto, por o tribunal não ter cumprido o seu dever de
emitir pronúncia sobre requerimento anterior do arguido através do qual interpôs
o recurso dito retido (…)”.
E, recentemente, no acórdão n.º 381/2006, ainda inédito, o Tribunal, por um
lado, reiterou o julgamento de inconstitucionalidade constante do citado acórdão
nº 724/2004 e, por outro, fazendo apelo à semelhança ao que o Tribunal
repetidamente decidira “sobre uma questão paralela, referida aos ónus constantes
dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, tendo concluído
no sentido da inconstitucionalidade destes preceitos quando interpretados no
sentido de que a mera falta de indicação, nas próprias conclusões da motivação,
de qualquer das menções aí contidas tem como efeito imediato o não conhecimento,
nessa parte, do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada oportunidade
de suprir tal deficiência (cfr., entre muitos outros no mesmo sentido, os
Acórdãos n.ºs 288/00, 388/01, 401/2001, 320/2002, 529/2003, 322/2004 ou
405/2004, todos disponíveis na página Internet deste Tribunal”, afirmou:
“A fundamentação que conduziu a esta jurisprudência é inteiramente transponível
para os presentes autos. Com efeito, sendo certo, por um lado, que o cumprimento
adequado do ónus a que se refere o artigo 412.º, n.º 5, do CPP, não pressupõe –
numa interpretação funcionalmente adequada, para utilizarmos as palavras do
acórdão n.º 191/2003, já citado – o uso de qualquer fórmula sacramental e, por
outro, que na conclusão 11.ª os recorrentes mencionam a existência de dois
recursos interlocutórios retidos, versando sobre a matéria da prescrição,
referindo que os mesmos deveriam ‘subir a final’, se, ainda assim, alguma dúvida
persistia no espírito do tribunal sobre se os recorrentes mantinham ou não o
interesse na sua apreciação, deveria efectivamente ter procedido a um convite
para o seu esclarecimento, sob pena de, não o tendo feito, decidir com base numa
interpretação normativa do n.º 5 do artigo 412.º do Código de Processo Penal que
é incompatível com as disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º,
n.º 4, parte final, da Constituição da República Portuguesa.”
Assim, julgou “inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos
artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.º 4, parte final, da Constituição da República
Portuguesa, o n.º 5 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, na
interpretação que permita ao tribunal ad quem, considerando não ser suficiente
para o cumprimento do ónus previsto nesse preceito a referência nas conclusões
ao recurso interlocutório retido e a que o mesmo subirá a final, a liminar
rejeição desse recurso, entretanto já admitido, sem que seja formulado ao
recorrente um convite para explicar se mantém interesse no seu conhecimento”.
6. A norma em apreciação no presente recurso é, portanto, diferente das que
foram consideradas nos referidos acórdãos.
Não deixa, todavia, de respeitar a uma mesma questão substancial e que, no
fundo, se prende, por um lado, com a liberdade de conformação do legislador na
definição das regras de processo penal, e, por outro, com os limites que a
tutela constitucional do direito ao recurso constante do n.º 1 do artigo 32.º da
Constituição impõe a essa liberdade, nomeadamente vista do ângulo do princípio
da proporcionalidade.
Como se sabe, e se dá nota nos acórdãos anteriormente citados, o Tribunal
Constitucional tem afirmado repetidamente que não é legítimo ao legislador, ao
definir aquelas regras, impor ónus de tal forma excessivos ou desproporcionados
que venham a traduzir-se numa lesão constitucionalmente inaceitável do direito
ao recurso.
Isto se disse também, por exemplo, no seu acórdão n.º 260/2002 (Diário da
República, II série, de 24 de Julho de 2002):
“6. O Tribunal Constitucional já por diversas vezes afirmou que se integra na
liberdade de conformação do legislador ordinário a definição das regras
relativas ao processamento dos recursos. Assim, por exemplo, no seu acórdão n.º
299/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24.º vol., p. 699 e segs.), citado
em vários acórdãos posteriores, o Tribunal Constitucional observou que “(...) o
legislador tem ampla liberdade de conformação no estabelecimento das regras
sobre recursos em cada ramo processual (...)”; necessário é que essas regras não
signifiquem a imposição de ónus de tal forma injustificados ou desproporcionados
acabem por importar lesão da garantia de acesso à justiça e aos tribunais ou,
mais especificamente, no que toca ao processo penal, das garantias de defesa e
de recurso afirmadas no citado n.º 1 do artigo 32.º.
(…) 8. No que respeita ao formalismo dos recursos em processo penal,
relativamente ao qual há que contar com o referido artigo 32.º, n.º 1, da
Constituição, o Tribunal Constitucional, recorrendo igualmente ao crivo da
proporcionalidade, na sequência de julgamentos de inconstitucionalidade
formulados em três casos concretos (acórdãos n.ºs 43/99, 417/99, publicados no
Diário da República, II série, respectivamente, de 26 de Março de 1999, de 13 de
Março de 2000 e 43/00, não publicado), julgou inconstitucional, “com força
obrigatória geral (...), por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da
República Portuguesa, (...) a norma constante dos artigos 412.º, n.º 1, e 420.º,
n.º 1, do Código de Processo Penal (na redacção anterior à Lei n.º 59/98, de 25
de Agosto), quando interpretados no sentido de a falta de concisão das
conclusões da motivação implicar a imediata rejeição do recurso, sem que
previamente seja feito convite ao recorrente para suprir tal deficiência.”
Como se tinha escrito no citado acórdão n.º 417/99, tais normas impunham “uma
limitação desproporcionada das garantias de defesa do arguido em processo penal,
restringindo o seu direito ao recurso e, nessa medida, o direito de acesso à
justiça”.”
7. Como se viu, também foi por se entender estarem em causa interpretações do
n.º 5 do artigo 412.º do Código de Processo Penal que impunham ao recorrente um
ónus desproporcionado – por confronto com as vantagens, também já apontadas, da
colaboração do interessado e com a consequência decorrente do seu incumprimento
– que o Tribunal Constitucional se pronunciou no sentido da
inconstitucionalidade nos acórdãos n.ºs 191/2003, 724/2004 3 381/2006.
Note-se, aliás, que tal desproporcionalidade – e agora deixa-se de lado a
hipótese contemplada no acórdão n.º 724/2004, pois no caso de que nos ocupamos,
o recurso retido tinha sido oportunamente admitido – assentou decisivamente na
circunstância de na mesma peça processual de que constam as conclusões de
recurso, local onde o n.º 5 do artigo 412.º do Código de Processo Penal
determina que seja fornecida a indicação, especificadamente, do interesse no
julgamento dos recursos retidos, se considerarem suficientemente especificados
tais recursos; e julgou-se que tal especificação, porventura não tão perfeita
quanto poderia ser, era todavia idónea para alertar o tribunal para que os tinha
de julgar – ou por saber exactamente que recursos havia a decidir, ou, pelo
menos, por saber que havia recursos a julgar, justificando-se então que
convidasse o recorrente a especificá-los.
Esta circunstância foi também julgada decisiva quando se apreciaram recursos
que, referidos aos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, se
julgou ser inconstitucional uma interpretação que considerasse absolutamente
impeditiva do julgamento do recurso uma falta das correspondentes indicação nas
conclusões do recurso (cfr. os acórdãos atrás citados), pronunciando-se o
Tribunal Constitucional no sentido da não inconstitucionalidade quando a omissão
ocorria também na motivação.
Com efeito, no seu acórdão n.º140/2004 (Diário da República, II série, de 17 de
Abril de 2004), foi decidido 'não julgar inconstitucional a norma do artigo
412.º, n.ºs 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal interpretada no
sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se
impugne a matéria de facto, a especificação nele exigida tem como efeito o não
conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente
tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências'.
Para além disso, nunca se colocou qualquer dúvida quanto ao regime aplicável,
nem houve decisões divergentes sobre as implicações do incumprimento do ónus
imposto pelo n.º 5 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, introduzido
neste diploma, como se disse, pela Lei n.º 59/98, e inspirado na lei de processo
civil. Não se encontra, assim, motivo semelhante ao que se julgou contribuir
para o juízo de inconstitucionalidade formulado no citado acórdão n.º 260/2002.
(…).”
7. No presente caso, pode remeter-se para a fundamentação deste aresto,
concluindo-se que a norma impugnada não viola o direito ao recurso nem as
garantias de defesa do arguido (artigos 20.º e 32.º da Constituição).
Na verdade, estão em causa, em ambos os casos, recursos de arguidos – naquele
caso, recorrido no recurso dominante, e, no caso dos autos, recorrente neste
último recurso –, e pode invocar-se mesmo, como desenvolvimento argumentativo,
um argumento de maioria de razão: se mesmo ao recorrido no recurso dominante se
pode constitucionalmente impor tal ónus de especificação, apesar de a lei
processual penal lhe não impor, nem o ónus de responder à motivação apresentada
pelo recorrente, nem o ónus de recorrer subordinadamente, utilizando a peça
processual correspondente, para indicar que tem interesse no julgamento de um
recurso retido que anteriormente interpôs, também se pode exigir o mesmo ao
recorrente.
Por outro lado, reitere-se que os juízos de inconstitucionalidade proferidos por
este Tribunal assentaram de forma decisiva, na circunstância de na mesma peça
processual de que constavam as conclusões de recurso se considerarem
suficientemente especificados os recursos retidos que mantêm interesse, ou se
fazer referência a “todos” os recursos, especificação e menção que se julgou
idónea para alertar o tribunal para que os tinha de julgar e de que o recorrente
mantinha neles interesse, justificando-se então que, a não se entender assim, se
convidasse o recorrente a especificar os recursos em causa.
No caso dos autos, diversamente, a percepção de que o recorrente mantém
interesse na apreciação e julgamento do recurso interlocutório não resulta
(sequer indirectamente ou de forma não clara) da motivação do recurso, antes o
recorrente apenas faz referência a um outro recurso interlocutório (ao recurso
do despacho que indeferiu o pedido de entrega da transcrição dactilografada das
cassetes que registaram a prova produzida em audiência de julgamento),
compreendendo-se que o tribunal a quo tenha interpretado a omissão àquele
recurso interlocutório (recurso referente ao despacho de indeferimento da
participação em diligências) como se dele tivesse desistido o recorrente.
Relembre-se, aliás, que o Tribunal Constitucional tem decisivo (por exemplo, no
Acórdão n.º 140/2004, disponível no sítio da Internet
www.tribunalconstitucional.pt) que não fere princípios ou regras constitucionais
a norma do artigo 412.º, n.ºs 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal,
interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso
em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como
efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao
recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências.
Como este Tribunal teve também oportunidade de decidir no Acórdão n.° 259/02
(igualmente disponível em www.tribunalconstitucional.pt), não é legítimo inferir
dos princípios constitucionais a existência de um direito irrestrito à prolação
de despacho de aperfeiçoamento de quaisquer vícios que inquinem quaisquer peças
apresentadas em juízo pelas “partes”. O critério que orienta as diversas
decisões sobre o deficiente cumprimento de ónus processuais e as circunstâncias
em que daí decorre uma obrigação constitucionalmente imposta de notificar os
interessados para suprirem tal deficiência reside, portanto, “na natureza do
incumprimento: onde a falta seja formal apenas, impõe-se a intervenção
correctora. Onde seja substancial já não”. Assim, tal despacho de convite
justifica-se quando estiverem em causa meros vícios formais, ligados a exposição
ou condensação das pretensões dos litigantes, ou quando a funcionalidade
processual das exigências em causa se mostrar preenchida, mas já não quando
aquelas se mostrarem inquinadas por vícios substanciais ou por um verdadeiro
“défice” da impugnação deduzida pelo interessado.
A funcionalidade do ónus de especificação aqui em causa não é, porém, tão-só
possibilitar a apreensão pelo tribunal ad quem da existência do (ou dos)
recurso(s) interlocutório(s), como parece pressupor o Ministério Público em
exercício de funções neste Tribunal, mas também, e sobretudo, a afirmação,
perante o tribunal ad quem, da manutenção do interesse do recorrente na
apreciação e julgamento desses (ou de alguns desses) recursos, desde logo,
devido a todos os actos processuais entretanto praticados (incluindo,
eventualmente, o julgamento e a decisão final).
Não pode, pois, considerar-se inconstitucional a norma do artigo 412.º, n.º 5,
do Código de Processo Penal, conjugado com artigo 690.º, n.º 4, do Código de
Processo Civil (aplicável por força do artigo 4.º do Código de Processo Penal),
interpretados no sentido de atribuir efeito preclusivo à omissão de
especificação, nas alegações e nas conclusões, de qualquer referência aos
recursos retidos em que o recorrente conserva interesse, sem que o tribunal
tenha convidado o recorrente a suprir tal omissão”.
Com estes fundamentos, teria negado provimento ao presente recurso.
Paulo Mota Pinto