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Processo n.º 487/2006
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
Acordam no Tribunal Constitucional
I.
Relatório
1.
A CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES recorre ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro do acórdão proferido em 4 de Abril de
2006 pelo Supremo Tribunal de Justiça, com o fundamento de nele haver sido
recusada a aplicação da norma do artigo 41.º n.º 2 do Estatuto das Pensões de
Sobrevivência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/73 de 31 de Março, na redacção
introduzida pelo Decreto-Lei n.º 191-B/79 de 25 de Junho.
1.1.
O aresto recorrido surge na sequência da acção declarativa de
condenação intentada por A. no Tribunal Judicial de Paredes de Coura contra a
Caixa Geral de Aposentações pedindo a condenação da ré a pagar-lhe pensão de
sobrevivência decorrente do falecimento do seu 'cônjuge' de facto, na qualidade
de herdeira hábil da referida pensão. A acção foi julgada procedente e a CAIXA
GERAL DE APOSENTAÇÕES condenada a pagar a A. a referida pensão de sobrevivência
desde 30 de Setembro de 1994 (data da citação da ré).
Inconformada com o decidido quanto à data do início do pagamento da pensão
reclamada, a CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES recorreu para a Relação de Guimarães
que, no entanto, confirmou por acórdão a sentença da 1ª instância.
Ainda inconformada, a CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES pediu
revista ao Supremo Tribunal de Justiça defendendo a aplicação do n.º 2 do artigo
41.º do Estatuto das Pensões de Sobrevivência (aprovado pelo Decreto-Lei n.º
142/73, de 31 de Março).
No já citado acórdão de 4 de Abril de 2006, o Supremo Tribunal
de Justiça negou a revista e confirmou a decisão recorrida.
Nesse aresto, na parte que ora releva, pode ler-se o seguinte:
«[...] Reconhecido judicialmente o direito a alimentos, perturba o raciocínio,
face ao indicado n.º 2 do artigo 42.º, que o artigo 6.º do Decreto-Regulamentar
n.º 1/94, de 18 de Janeiro, acima transcrito, partindo do mesmo pressuposto da
necessidade de reconhecimento judicial de herdeiro hábil, venha dizer que “A
pensão de sobrevivência é atribuída a partir do início do mês seguinte ao do
falecimento do beneficiário, quando requerida nos seis meses posteriores ao do
trânsito em julgado da sentença…)
9. Não se pode dizer que há um regime padrão, que é o da função pública (podendo
ser inconstitucional antes, o regime geral da segurança social - conclusão f.)
Parece mesmo ousada a afirmação, e ausente de qualquer racionalidade de
solidariedade social, no plano constitucional, e como valor e tarefa de Estado,
em que este direito à segurança social é colocado. [Artigos: 9º d) e 63º-1].
Bom é de ver que, na generalidade, morrendo o titular/contribuinte, falha a
participação deste nas despesas comuns com os seus herdeiros hábeis (indicados
pela ordem do artigo 40º).
É, então, mister que a lei se preocupe, louvavelmente, em lhes assegurar a
sobrevivência, logo a partir do mês seguinte ao falecimento, porque secou a
fonte do rendimento que o contribuinte auferia e, com ele, lhes proporcionava o
bem‑estar ou qualidade de vida, possíveis.
A tal propósito, diz o ponto 2 do relatório preambular do Decreto - Lei n.º
142/73, que «Impunha-se rever o sistema e instituir um novo regime que para
responder apropriadamente às necessidades dos servidores do Estado, se
alicerçasse numa concepção profundamente diversa de previdência... No âmbito do
presente Estatuto, a pensão de sobrevivência surge como um benefício que o
Estado concede aos seus servidores, nos termos e limites da lei, e que não
depende da vontade dos interessados».
Ou seja, impõe-se um regime de obrigatoriedade de inscrição, por razões de
protecção, previdência e segurança social dos funcionários e agentes da
Administração Pública, no mais lato sentido, que o regime facultativo anterior,
não possibilitava.
(São conhecidas, aliás, situações de verdadeira miséria de familiares, muito
próximos, de funcionários falecidos, que, por não haver, então, pensão de
sobrevivência, passaram, nessa altura, a sobreviver de donativos de amigos e
colegas, depositados em conta aberta para tal finalidade!).
10. Ora, quando se trata de determinar o dia a partir do qual a pensão de
sobrevivência deve ser recebida, nas situações em que o direito a alimentos
depende da verificação judicial dos requisitos previstos pelo artigo 2.020º-1,
do Código Civil, naturalmente que a data deve ser igual para todos os
beneficiários que tenham o direito judicialmente verificado.
Ou se aplica o regime da função pública (a indicada norma do Estatuto da
Aposentação); ou se aplica o artigo 6º, também indicado, do Regime Geral da
Segurança Social.
É razoável que prevaleça a vontade do legislador manifestada em último lugar. A
vontade legislativa mais recente. (Por várias pistas de reflexão: revogação
tácita, ou expressa; ou substituição da vontade anterior; ou, caso não se
aplique a lei inovadora, poderá haver lugar a discriminações negativas em
relação a situações iguais anteriores - o que é susceptível de gerar
inconstitucionalidade material da previsão de norma anterior, porque fica
desfavorecida a situação que lhe corresponde, em relação à previsão e estatuição
da nova lei).
11. Várias vezes o problema tem sido levantado na jurisprudência.
E sempre esta, de um modo geral, teve como prevalente a disciplina do dito
artigo 6º, por considerar materialmente inconstitucional o preceituado no artigo
41º, n.º 2, transcrito, na parte em que fixa que «... a pensão de sobrevivência
aí prevista, será devida em data posterior à sentença que reconheça o direito
alimentos ao companheiro (a) ou ex-cônjuge, enquanto que o artigo 6º fixa a
mesma data, mas «... a partir do início do mês seguinte ao do falecimento do
beneficiário, quando requerida nos seis meses posteriores ao trânsito em julgado
da sentença que reconhece o direito a alimentos».
E efectivamente aqui que não encontramos razões plausíveis para explicar a
diferença (significativa diferença) de datas de início do vencimento da pensão
de sobrevivência, para o exercício de direitos que são rigorosamente iguais,
relativamente: aos titulares do direito à pensão, aos pressupostos do seu
exercício e ao seu conteúdo patrimonial.
E sem esquecer — o que não é menos importante — que obedecem à mesma necessidade
social do beneficiário carente.
Tudo isto, consequentemente, quer se trate de ex-cônjuge ou “companheiro” do
trabalhador, agente ou funcionário da Administração Pública, quer se trate de um
outro qualquer trabalhador da função privada, dependente ou liberal.
O direito à igualdade material de tratamento do que é igual não consente, por
isso, qualquer discriminação positiva a favor do direito social à pensão de
sobrevivência originado pelo exercício da função pública, e originado pelo
exercício da função privada, relativamente à data de início de vencimento da
pensão.
Discriminar pela negativa, sem uma razão objectivamente fundamentadora da
diferença, seria usar de dois pesos e de duas medidas, para ponderações e
tamanhos, exactamente iguais.
12. Afirmação que leva a duas últimas reflexões ainda no plano constitucional.
A primeira reflexão: respeita à igualdade de tratamento de todos os cidadãos
perante a lei, como princípio ínsito (artigo 2º) e expresso (artigo 13º) na
Constituição da República.
Temos a consciência de que pouco, ou nada, haverá mais a dizer que já não tenha
sido dito, sobre o princípio da igualdade constitucional,
Lembraremos apenas que a igualdade real entre os portugueses, quanto aos
direitos económicos e sociais de que fala o artigo 9º, alínea d), e o sistema
unificado da segurança social de que fala artigo 63º-2, revelam a manifestação
de princípios tendenciais que vão fazendo o seu caminho, em vista a uma
efectividade relativa, já que a igualdade real — é intuitivo — não existe, por
razões inerentes à pessoa e à vida.
Mas a manifestação de tendência da igualdade possível (mesmo a das
oportunidades) reflecte uma preocupação constitucional que orienta o legislador
e o juiz num caminho, respectivamente, criativo e interpretativo, que se faz
pelo percurso gradualista, evitando a turbulência social grave, no espaço do
objectivamente possível, dos desafios constitucionais da igualdade de todos os
cidadãos perante a lei — ainda aqui, e ainda assim, como expressão de um
principio maior que é o do merecimento e da dignidade da pessoa humana. (Artigo
1º da Constituição).
A essência do princípio da igualdade parte da necessidade de verificação de
comunhão ou núcleo comum existente entre objectos ou sujeitos diversos; depende
do carácter idêntico ou distinto dos seus elementos essenciais.
Quanto a nós, exige-se a mesma conformação do ôntico (essência do ser) e a mesma
modelação normativa do dever ser que se lhe reporta (dever ser jurídico),
justificados pela racionalidade axiológica comum.
Essência e conformação estas que são dirigidas, como atrás se disse, ao
legislador e ao intérprete, ou seja, a quem cria ou a quem aplica a norma,
referenciado sempre pela margem de liberdade de legislar e de julgar, nos
parâmetros definidos pela Constituição e pelos princípios em que se inspira,
para a época histórica a que se destina reger.
Há assim um primado de racionalidade constitucional imanente que orienta um e
outro dos agentes, criativos e aplicadores da lei.
Racionalidade que não suporta um certo grau de intolerabilidade constitutiva da
subversão da Justiça, sobretudo da Justiça distributiva, quando há igualdade de
situações, e diferença de modelações normativas correspondentes, nos termos que
vêm sendo reflectidos atrás. [...] »
1.2.
É do aresto que assim decide que a recorrente interpõe o presente recurso,
invocando que a “norma cuja fiscalização concreta de constitucionalidade se
pretende é a do n.º 2 do art.º 41.º do Estatuto das Pensões de Sobrevivência,
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/73, de 31 de Março, na redacção que lhe foi
dada pelo Decreto-Lei n.º 191-B/79, de 25 de Junho, na interpretação que dela
foi feita no douto acórdão do S.T.J. que antecede, que recusou a sua aplicação
com fundamento em inconstitucionalidade.”
Admitido o recurso, a recorrente concluiu da seguinte forma a sua alegação:
1.ª Entende a recorrente que não pode reconhecer-se à Autora um direito cuja
titularidade tem como pressuposto a aquisição da qualidade de herdeira hábil
previamente à ver verificação desta condição;
2.ª Estabelecendo o n.º 2 do art. o 41.º do Estatuto das Pensões de
Sobrevivência, aprovado pelo D. Lei n.º 142/73, de 31 de Março, que “Aquele que,
no momento da morte do contribuinte, estiver nas condições previstas no artigo
2020.º do Código Civil, só será considerado herdeiro hábil, para efeitos de
pensão de sobrevivência, depois de sentença judicial que lhe fixe o direito a
alimentos e a pensão de sobrevivência será devida a partir do dia 1 do mês
seguinte àquele em que a requeira, enquanto se mantiver o referido direito” (fim
de citação), quer isto dizer que aquando da morte do pensionista António Antas
Barros, aquela que posteriormente se veio a apurar ser sua companheira não era
ainda herdeira hábil, pois, para que pudesse vir a ser como tal reconhecida,
teve ainda de recorrer aos Tribunais afim de obter uma sentença judicial que lhe
fixasse o direito a alimentos;
3ª - Se a Autora, ora recorrida, fosse, desde logo, considerada herdeira hábil
estar-se-ia a dar por assente aquilo que o Tribunal iria posteriormente
apreciar;
4ª - Não é por acaso que o legislador, no mencionado preceito atrás transcrito,
emprega expressamente a expressão “só” será considerado herdeiro hábil, para
efeitos de pensão de sobrevivência, “depois” de sentença judicial que lhe fixe o
direito a alimentos;
5ª - Mas o legislador não fica por aqui, pois na parte final do mencionado
preceito em análise diz também expressamente desde quando a pensão é devida a
partir do dia 1 do mês seguinte àquele em que a requeira, e enquanto se mantiver
o referido direito;
6ª - Nada permitia que o STJ, no douto Acórdão recorrido, reconhecesse à Autora
o direito à pensão de sobrevivência desde o dia 30 de Setembro de 1994.
7ª. O douto Acórdão recorrido reconheceu à Autora o direito ao recebimento da
pensão de sobrevivência desde uma data em que a mesma ainda não era herdeira
hábil e que, portanto, ainda não era detentora de uma sentença judicial que lhe
fixasse o direito a alimentos.
8.ª - Àquele argumento, de ordem lógica, acresce um outro para considerar que a
norma do E.P.S. não é materialmente inconstitucional: por que razão não seria
antes inconstitucional o regime da Segurança Social? O que leva a considerar
aquele como padrão a seguir? O Acórdão não o esclarece.
9.ª Inconstitucional seria se a norma do E.P.S. tratasse diferentemente
subscritores da CGA na mesma situação de forma diferente. No limite, a tese do
Acórdão leva a que possa existir apenas um regime de protecção social no país.
Os regimes especiais — com regras próprias (que têm de se considerar no contexto
do regime em que se inserem) seriam todos inconstitucionais.
10.ª - A inconstitucionalidade afere-se pela violação da Constituição, nunca
pela “desconformidade” com outras normas de idêntica dignidade aplicáveis a
diferente universo pessoal E o facto de o regime da CGA ser, em determinados
aspectos (poucos, como é sabido) menos favorável do que o Regime Geral de
Segurança Social não autoriza a desprezar as regras daquele em favor de uma
aplicação directa deste (sob pena de se deverem fundir - por via jurisdicional -
os dois regimes, aproveitando-se, portanto, as partes de cada um consideradas
mais interessantes, como sendo neste caso uma taxa de contribuição para a CGA
inferior àquela que é devida na Segurança Social).
11.ª - Não pode pretender colocar-se no mesmo plano realidades inteiramente
distintas:
um regime de natureza estatutária, em que na generalidade dos casos há apenas
uma contribuição do trabalhador (de 10%), e outro de carácter assistencialista
em que a contribuição é repartida entre empregador e trabalhador e atinge o
valor global de 23,75%.
12ª-. O princípio da igualdade apenas impõe um tratamento igual quando exista
identidade de situações, Ora, no caso, os regimes são claramente diferentes, até
no valor das prestações concedidas.
13.ª - Quanto ao alegado retrocesso social que a tese da recorrente
introduziria, importa recordar que para que pudesse existir recuo se tornava
necessário que alguma vez tivesse existido progresso. Ora, no âmbito do regime
da função pública, nunca existiu regra que mandasse atender a momento anterior
àquele em que o contribuinte deve considerar-se herdeiro hábil /para efeitos de
atribuição da pensão de sobrevivência a companheiros de contribuintes falecidos.
Não faz, pois, qualquer sentido convocar tal princípio.
1.3.
Por seu turno, a ora recorrida A. defende que o acórdão
recorrido não violou qualquer artigo da Constituição da República Portuguesa e
que 'ajuizou correctamente da não aplicabilidade de norma por ser materialmente
inconstitucional'.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
2.
Do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça resulta que a norma que fixa o momento
do vencimento do direito à pensão é a constante do referido artigo 41.º, n.º 2
do Estatuto das Pensões de Sobrevivência (de agora em diante designado por EPS).
Relativamente a ela, e com base num exercício de comparação com a situação
paralela do chamado Regime de Segurança Social, detecta o acórdão recorrido
violação do princípio constitucional da igualdade, assim concluindo pela já
mencionada recusa de aplicação do referido artigo 41.º n.º 2 do EPS.
Dispõe esta norma, sob a epígrafe “Ex-cônjuge e pessoa em união de facto”, o
seguinte:
Artigo 41.º
1. (…)
2. Aquele que no momento da morte do contribuinte estiver nas condições
previstas no artigo 2020.º do Código Civil só será considerado herdeiro hábil
para efeitos de pensão de sobrevivência depois de sentença judicial que lhe fixe
o direito a alimentos e a pensão de sobrevivência será devida a partir do dia 1
do mês seguinte àquele em que a requeira, enquanto se mantiver o referido
direito.
Deste preceito interessa ao presente caso o segmento respeitante ao momento a
partir do qual a pensão – de que é titular aquele que já obteve a sentença
referida na primeira parte do preceito (que é o caso da ora recorrida) – deverá
ser satisfeita, ou seja, o trecho da norma que estatui que tal pensão vence a
partir do dia 1 do mês subsequente àquele em que foi requerida.
E tal pressuposto de análise é relevante, pois permite desde
já afastar a matéria tratada nas conclusões que antecedem a conclusão 8ª da
alegação da recorrente, que se reportam aos factos dados como provados, através
das quais se visa questionar a própria decisão recorrida, cuja apreciação não
cabe nos poderes de sindicância do Tribunal Constitucional.
2.1. A aludida norma já foi objecto de análise neste
Tribunal – Acórdão n.º 522/2006 (publicado no Diário da República, II Série, de
10 de Novembro de 2006).
Ora, sendo essencialmente a mesma a questão em análise
[apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 41.º, n.º 2 do
Estatuto das Pensões da Sobrevivência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/73, de
31 de Março, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 191-B/79, de 25 de
Junho, na parte em que determina que “a pensão de sobrevivência será devida a
partir do dia 1 do mês seguinte àquele em que tal pensão tenha sido requerida”],
são por isso transponíveis para o caso sub judice os fundamentos desse Acórdão.
Assim, diz-se, a determinada altura, nesse aresto:
“[…]
Ora, neste caso, a questão do direito à pensão de sobrevivência por parte do
“viúvo de facto” já foi resolvida, estando, por isso, ultrapassada, não
interferindo, contrariamente ao que até agora tem sucedido na jurisprudência
deste Tribunal, com a aplicação do trecho final da norma, que fixa o momento a
partir do qual a pensão é devida. Deixou, assim, de estar em causa – e trata-se
de um elemento importante na subsequente indagação de constitucionalidade – uma
questão que convoque, para aferição do respeito pelo princípio da igualdade,
qualquer comparação dos regimes decorrentes do casamento e da união de facto [a
evolução do entendimento do Tribunal Constitucional, relativamente a esse
(outro) problema, pode ser apreciada numa leitura sequencial dos Acórdãos nºs
88/04 (Diário da República – II Série, de 16/04/2004, pp.5962/5967), 159/05
(Diário da República – II Série, de 23/12/2005, pp. 18056/18062) e 614/05
(Diário da República – Série, de 29/12/2005, pp.18116/18118)]. Trata-se aqui,
portanto, de comparar as situações de quem, como sucede com a recorrida, já viu
judicialmente reconhecidos os pressupostos do direito à pensão de sobrevivência,
por morte daquele com quem viveu em união de facto, restando apenas determinar o
momento a partir do qual tal pensão é devida.
Sublinha-se com esta caracterização um elemento específico que a abordagem deste
recurso, na perspectiva do princípio da igualdade, implica, traduzido na
convocação de um “par de comparação”, distinto daquele que os citados Acórdãos
nºs 88/04 e 159 e 614/05 convocavam. Comparam-se aqui, interessa não o esquecer,
situações sempre respeitantes à união de facto, nas quais o controlo da
observância do mencionado princípio só relaciona quem, tendo vivido “[…] em
união de facto há mais de dois anos” (artigo 1º, nº1 da Lei nº 7/2001), obteve o
reconhecimento judicial desse facto, enquanto pressuposto específico do direito
a receber a prestação consubstanciada na pensão de sobrevivência.
2.2.2. Tendo presentes estes elementos, importa avançar para a concreta
comparação que o princípio da igualdade neste caso pressupõe. Está em causa, nos
termos em que a decisão recorrida coloca a questão e sempre no quadro geral da
união de facto, relacionar a situação daqueles que, tendo adquirido o direito a
auferir uma pensão de sobrevivência por morte do respectivo cônjuge de facto, se
diferenciam, tão só, pela circunstância de essa pensão se gerar por morte de um
funcionário ou agente da Administração Pública (situação em causa no presente
recurso), ou por morte de um beneficiário do denominado Regime Geral da
Segurança Social.
No primeiro caso, definido judicialmente o direito à pensão, é a mesma devida,
nos termos da norma em apreciação, desde o dia 1 do mês seguinte àquele em que
tal pensão foi requerida. No segundo caso, gerado no âmbito do Regime Geral, a
mesma pensão – ou seja, a pensão adquirida com base em pressupostos de facto
substancialmente idênticos – é devida, nos termos do artigo 6º do Decreto
Regulamentar nº 1/94, de 18 de Janeiro, se requerida nos seis meses posteriores
ao trânsito da decisão judicial que reconheça tal direito, “[…] a partir do
início do mês seguinte ao do falecimento do beneficiário […]”. Sendo distintos
os momentos fixados em cada caso para o começo das prestações (mais cedo
relativamente aos beneficiários de pensão gerada no Regime Geral), coloca-se a
questão da observância do princípio constitucional da igualdade relativamente a
quem, fora do quadro desse Regime Geral, tenha actuado dentro de lapsos de tempo
que conduziriam à primeira hipótese prevista no artigo 6º do Decreto
Regulamentar nº 1/94. É esta, enfim, a questão de igualdade que aqui importa
dilucidar.
2.2.2.1. Constitui jurisprudência assente e reiterada deste Tribunal a
caracterização do princípio da igualdade, decorrente do artigo 13º da CRP, como
proibição do arbítrio (cfr. Acórdão nº 232/03, publicado no Diário da República
– I Série-A, de 17/06/2003, pp. 3514/3531). Com tal sentido, nas palavras do
Tribunal Constitucional, “[o] princípio [da igualdade] não impede que, tendo em
conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer
diferenciações de tratamento, «razoável, racional e objectivamente fundadas»,
sob pena de, assim não sucedendo, «estar o legislador a incorrer em arbítrio,
por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores
constitucionalmente relevantes» […]. Ponto é que haja fundamento material
suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada […]”
(Acórdão nº 319/00, publicado no Diário da República – II Série, de18/10/2000,
pp. 16785/16786)[...].
2.2.2.2. Constitui aqui elemento de igualdade fáctica a circunstância, comum aos
dois termos da comparação, de o direito à pensão de sobrevivência ter sido
adquirido em função do reconhecimento judicial de uma situação de união de facto
com um beneficiário ou subscritor falecido. Este elemento, não expressando uma
situação de igualdade fáctica absoluta, já que compara pensões geradas no
chamado Regime Geral com pensões geradas no âmbito do Regime dos funcionários e
agentes da Administração Pública, permite, no entanto, a qualificação da
situação de ambos como essencialmente igual, isto em função de uma expressiva
preponderância de elementos comuns. De facto, apreciando os dois regimes (o
Geral e o da Administração Pública), constata-se ocorrer em ambos, de forma
substancialmente idêntica, a projecção da “relação jurídica de segurança social”
[...]
Nesta situação, que – repete-se – é de igualdade naquilo que expressa a essência
relevante para a comparação, quaisquer especificidades do chamado Regime Geral
de Segurança Social, relativamente ao Regime de Segurança Social dos
funcionários e agentes da Administração Pública, porque referidas, como já se
indicou, a elementos não relevantes para esta comparação concreta, perdem
sentido e deixam de justificar, quanto à fixação do momento a partir do qual a
pensão é devida, um tratamento menos vantajoso, como o decorrente do segmento
final do nº2 do artigo 41º do EPS, comparativamente ao artigo 6º do Decreto
Regulamentar nº 1/94. Não obstante, relativamente a essas (possíveis)
especificidades de cada um dos Regimes, sublinhar-se-á que o “programa
constitucional” assenta, neste domínio, na ideia de unificação do sistema de
segurança social – “incumbe ao Estado organizar […] um sistema de segurança
social unificado […]” (artigo 63º, nº2 da CRP) – e que, em tal quadro, a procura
de soluções de igualdade não deixa de assumir uma espécie de “valor reforçado”
no plano da convergência entre os regimes de protecção social da função pública
e “ […] os regimes do sistema de segurança social quanto ao âmbito material,
regras de formação de direitos e atribuição das prestações” (artigo 124º da Lei
nº 32/2002, de 20 de Dezembro, que estabelece as bases do sistema de segurança
social) […]”.
2.2.
Sendo estes fundamentos, como se notou já, inteiramente transponíveis para o
caso em apreço, deve concluir-se que da ausência de uma justificação relevante
para a mencionada diferenciação entre regimes decorre a ofensa ao princípio
constitucional da igualdade, contido no artigo 13º da Constituição da República.
Consequentemente, sufraga-se a decisão de recusar a aplicação da norma impugnada
ao presente caso.
Resta, por isso, confirmar o acórdão recorrido na parte da questão de
inconstitucionalidade normativa que é objecto do presente recurso.
III. Decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da igualdade
constante do n.º 1 do artigo 13.º da Constituição, a norma constante do artigo
41.º n.º 2 do Estatuto das Pensões da Sobrevivência, aprovado pelo Decreto-Lei
n.º 142/73 de 31 de Março, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 191-B/79
de 25 de Junho, na parte em que determina que a pensão de sobrevivência será
devida a partir do dia 1 do mês seguinte àquele em que tal pensão tenha sido
requerida.
b) Confirmar, no que à questão de constitucionalidade diz respeito, a
decisão recorrida.
c) Negar provimento ao recurso.
Lisboa, 15 de Maio de 2007
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos