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Processo n.º 645/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Em 20 de Setembro de 2004, a Inspecção Regional do Trabalho da Região Autónoma
da Madeira instaurou processo de contra-ordenação contra A., S.A., o qual
culminou na aplicação à arguida de uma coima no valor de 130.000,00 € (cento e
trinta mil euros) “pelo não pagamento do acréscimo de 100% da retribuição/dia,
devida aos seus 243 trabalhadores, pelo trabalho efectuado no dia 26 de Dezembro
de 2003”.
Inconformada, a arguida recorreu para o Tribunal de Trabalho do Funchal
invocando nas suas alegações, em conclusão, o seguinte:
“1.º
Não deve ser aplicada qualquer coima à arguida, já que não há qualquer facto
susceptível de ser punido como contra-ordenação,
2.º
Pois o dia 26/12/2003 não é nem foi dia de feriado.
3.º
Efectivamente, os dias de feriado eram os que estavam previstos nos artigos 18.º
e 19.º do Decreto-Lei n.º 874/76, de 28 de Fevereiro, e actualmente e na data da
alegada infracção, no Código do Trabalho, não existindo à data qualquer norma
jurídica que indicasse o dia 26/12/2003 como sendo feriado, ou que permitisse a
alteração da Lei Geral da República relativamente aos feriados, através de
Decreto Legislativo Regional.
4.º
Por outro lado, ainda que se pudesse aplicar alguma coima ao comportamento da
recorrente, o que apenas se aceita por mera hipótese académica, o montante nunca
poderia ser de 130.000,00 €, pois é ilegal por não estar previsto no Decreto-Lei
n.º 433/82.”
5.º
E mantendo-se a decisão recorrida, está-se a violar os artigos 18.º e 19.º do
citado Decreto-Lei, bem como o artigo 112º da Constituição da República
Portuguesa.”
Por sentença datada de 3 de Novembro de 2005, o Tribunal de Trabalho do Funchal
decidiu revogar parcialmente a decisão da entidade administrativa recorrida,
aplicando à recorrente “uma coima no montante de 2.500,00 € pela prática da
contra-ordenação prevista e punível nos termos das disposições conjugadas do
art.ºs 1.º do Decreto Legislativo Regional n.º 18/2002/M, de 8 de Novembro, e
687.º, n.º 1, e 620.º, n.º 3, b), ambos do Código do Trabalho, e da cláusula
25.ª, 2, da Convenção Colectiva de Trabalho para o sector da Segurança, Portaria
e Vigilância, publicada no JORAM, III Série, n.º 5, de 1 de Setembro de 1993, e
Portaria de Extensão publicada no JORAM, III Série, n.º 6, de 16 de Março de
1993”, e condenando a recorrente “a pagar aos trabalhadores a quantia de
3.842,14 €, e à Segurança Social a quantia de 1.507,77 €, conforme mapa de
reposição – cfr. art.º 687.º, n.º 5, do Código do Trabalho”, fundamentando-se
para tal na seguinte ordem de considerações:
«Dispõe o art.º 1.º do Decreto Legislativo Regional n.º 18/2002/M, de 8 de
Novembro (que entrou em vigor no dia 20 de Novembro de 2002, dado que foi
publicado no dia 19 dos mesmos mês e ano – cfr. art.º 2.º), que “O dia 26 de
Dezembro é feriado na Região Autónoma da Madeira.
Segundo a recorrente, apenas com a entrada em vigor do actual Código do Trabalho
e do Decreto Legislativo Regional n.º 3/2004/M, de 18 de Março, é que o dia em
questão passou a ser feriado, sendo que à data dos factos que lhe são imputados
não o era, pelo que não praticou qualquer contra-ordenação.
Para fundamentar a sua posição, alega a recorrente que tal dia não se encontrava
incluído nos feriados elencados no diploma que regulava até então esta questão,
ou seja, o Decreto-Lei n.º 874/76, de 28 de Dezembro.
Efectivamente assiste razão à recorrente quando invoca que o dia 26 de Dezembro
não está abrangido pelos feriados obrigatórios ou facultativos previstos,
respectivamente, nos art.ºs 18.º e 19.º do Decreto‑Lei n.º 874/76, de 28 de
Dezembro.
Esquece-se, porém, que o diploma de cuja violação é acusada é um Decreto
Legislativo Regional que, segundo o art.º 112.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da
República Portuguesa, é um acto normativo (de igual categoria) que versa sobre
matérias de interesse específico para as regiões autónomas e não reservadas à
Assembleia da República ou ao Governo, não podendo dispor contra os princípios
fundamentais das leis gerais da República, sem prejuízo do disposto na alínea b)
do n.º 1 do art.º 227.º (isto é, mesmo que seja matéria de reserva relativa,
poderá haver autorização para sobre ela legislar).
Se atentarmos nas matérias de reserva absoluta e de reserva relativa de
competência legislativa da Assembleia da República (cfr. art.ºs 164.º e 165.º da
Constituição da República Portuguesa) e de competência legislativa do Governo
(cfr. art.º 197.º da Constituição da República Portuguesa), verificamos que a
matéria em causa não se encontra abrangida.
Por outro lado, o referido Decreto Legislativo Regional n.º 18/2002/M foi
decretado nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 227.º da Constituição da
República Portuguesa, o qual estipula que as regiões autónomas são pessoas
colectivas territoriais que têm, entre outros, o poder de “legislar, com
respeito pelos princípios fundamentais das leis gerais da República, em matérias
de interesse específico para as regiões que não estejam reservadas à competência
própria dos órgãos de soberania” e nos termos da alínea o) do art.º 228.º,
segundo o qual “para efeitos do disposto ao n.º 4 do artigo 112.º e nas alíneas
a) a c) do n.º 1 do artigo 227.º, são matérias de interesse específico das
regiões autónomas, designadamente: (…) o) outras matérias que respeitem
exclusivamente à respectiva região ou que nela assumam particular
configuração.”.
Posto isto, há que concluir pela constitucionalidade material e orgânica do
diploma em análise e que este se encontrava plenamente em vigor em Dezembro de
2003.
Em consequência, e tendo em conta a factualidade que se mostra assente e o
disposto na cláusula 25.º, n.º 2, da Convenção Colectiva de Trabalho para o
sector da Segurança, Portaria e Vigilância, publicada no JORAM, III Série, n.º
5, de 1 de Setembro de 1993, e Portaria de Extensão publicada no JORAM, III
Série, n.º 6, de 16 de Março de 1993, há também que concluir que a recorrente
praticou a contra-ordenação que lhe vem imputada.»
2.Inconformada com a decisão, A., S.A. interpôs recurso para o Tribunal da
Relação de Lisboa, sustentando em conclusão o seguinte:
«1.º
Não deve ser aplicada qualquer coima à recorrente, já que não há qualquer facto
susceptível de ser punido como contra-ordenação,
2.º
Pois, o dia 26/12/2003 não é, nem foi dia de feriado.
3.º
Efectivamente, os dias de feriado eram os que estavam previstos nos artigos 18.º
e 19.º do Decreto-Lei n.º 874/76, de 28 de Fevereiro, e, na data da alegada
infracção, não existia à data qualquer norma jurídica legal que configurasse o
dia 26/12/2003 como sendo feriado, ou que permitisse a alteração da Lei Geral da
República relativamente aos feriados, através de Decreto Legislativo Regional.
4.º
A Assembleia Legislativa Regional não poderia legislar sobre esta matéria, uma
vez que não estava em causa matéria de interesse especifico, à luz da
Constituição da República Portuguesa e fazendo-o violava a Lei Fundamental.
5.º
Não há qualquer diferença em matéria laboral na Região Autónoma da Madeira em
relação ao restante território nacional.
6.º
O artigo 1.º do Decreto Legislativo Regional n.º 18/2002/M, de 8 de Dezembro, é
inconstitucional e violador da Lei Geral da República.
7.º
Não há pois qualquer violação da lei por parte da recorrente.
8.º
Deve, pelo exposto, a decisão ora recorrida ser revogada e consequentemente ser
a recorrente absolvida do pagamento da coima, do acréscimo de remuneração a que
os trabalhadores teriam alegadamente direito e do pagamento à segurança social,
pois foram violados os artigos 18.º e 19.º do Decreto-Lei n.º 874/76, de 28 de
Fevereiro, e 5.º, 6.º e 227.º, n.º da Constituição da República Portuguesa.»
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 17 de Maio de 2006, decidiu
“absolver a arguida da coima, bem como das importâncias em que foi condenada
devidas aos trabalhadores mencionados nos mapas anexos ao auto de notícia e à
Segurança Social.” Pode ler-se na respectiva fundamentação:
«(…)
Em primeiro lugar, importa referir que o art.º 4.º, n.º 4, da Lei n.º 99/2003,
de 27.08, que aprovou o Código do Trabalho, estabelece que “as regiões autónomas
podem estabelecer, de acordo com as suas tradições, outros feriados, para além
dos fixados no Código do Trabalho, desde que correspondam a usos e práticas já
consagrados”.
O Código do Trabalho, porém, só foi adaptado à Região Autónoma da Madeira
através do Decreto Legislativo Regional n.º 3/2004/M, de 18.03, que entrou em
vigor no dia 19.03.2004. E no artigo 7.º desse mesmo decreto regional
estabeleceu-se que “o dia 26 de Dezembro é feriado regional da Região Autónoma
da Madeira”.
Assim, a partir de 19 de Março de 2004 nenhuma dúvida se suscita quanto à
legalidade da deliberação que instituiu o dia 26 de Dezembro como feriado
regional.
Porém, a infracção imputada à arguida reporta-se ao dia 26 de Dezembro de 2003,
consistindo no facto de a arguida não haver pago aos seus trabalhadores o
acréscimo de 100% da retribuição/dia, conforme determina o n.º 2 da cls. 25 do
CCT para o sector de segurança, portaria e vigilância, e respectiva portaria de
extensão acima referidas, em virtude desse dia ser considerado feriado regional,
nos termos do art.º 1.º do Decreto Legislativo Regional n.º 18/2002/M de 8 de
Novembro.
À data da edição deste diploma regional o regime jurídico das férias, feriados e
faltas aplicável à generalidade das relações de trabalho prestado por efeito do
contrato individual de trabalho constava do Dec‑Lei n.º 874/76, de 28.12, com as
alterações introduzidas pelos DL n.º 397/91, de 16.10, Lei n.º 118/99, de 11.08,
que no seu artigo 18.º estabelece taxativamente os dias que são feriados
obrigatórios e no art.º 19.º estipula que poderão ser observados como feriados
facultativos: o feriado municipal da localidade ou, quando este não existir, o
feriado distrital; e a terça-feira de Carnaval.
Por sua vez, o art.º 21.º do mesmo diploma comina de nulidade as disposições do
contrato individual de trabalho ou de instrumento de regulamentação colectiva de
trabalho, vigentes ou futuros, que estabeleçam feriados diferentes dos indicados
nos artigos anteriores[1].
A lei quis dotar o regime de feriados de uma imperatividade absoluta, afastando
expressamente a possibilidade de uma fonte de direito inferior criar um regime
mais favorável ao trabalhador (art.º 13.º da LCT). Estas disposições do Dec-Lei
n.º 874/76, conforme consta do respectivo preâmbulo, visaram uniformizar em todo
o território nacional o regime de feriados, através da definição dos feriados
obrigatórios e do estrito condicionamento imposto aos feriados facultativos –
possibilitando apenas a existência de um único feriado em cada região, distrito
ou município.
Trata-se de leis gerais da República (art.º 112.º, n.º 5, da CRP) uma vez que a
sua razão de ser envolve a sua aplicação a todo o território nacional. E, face à
imperatividade de que são dotadas, não podem deixar de ser havidas como
constituindo princípios fundamentais do ordenamento jurídico português.
Pergunta-se, agora, se a Assembleia Regional da Madeira, através do Decreto
Legislativo Regional n.º 18/2002/M, de 8 de Novembro, podia decretar que o dia
26 de Dezembro era feriado, quando já anteriormente, através do Decreto Regional
n.º 27/79/M, de 9 de Novembro, havia instituído o dia 1 de Julho como feriado da
Região Autónoma da Madeira, comemorativo da descoberta da Ilha da Madeira por
Gonçalves Zarco e Bartolomeu Perestelo.
As regiões autónomas são dotadas de um regime político‑administrativo próprio,
cujo estatuto tem evoluído no sentido de uma progressiva autonomia, através de
uma contínua transferência de poderes e competências, conforme se pode ver pela
evolução do art.º 227.º da CRP ao longo das sete revisões constitucionais que já
ocorreram desde 1976.
À data da edição do Decreto Legislativo Regional em causa nestes autos vigorava
a CRP, na revisão aprovada pela Lei n.º 1/2001, de 20.11 (5.ª revisão), que no
seu art.º 227.º, além do mais, dispunha:
“As regiões autónomas são pessoas colectivas territoriais e têm os seguintes
poderes, a definir nos respectivos estatutos:
a) Legislar, com respeito pelos princípios fundamentais das leis gerais da
República, em matérias de interesse específico para as regiões que não estejam
reservadas à competência própria dos órgãos de soberania;
b) Legislar, sob autorização da Assembleia da República, em matérias de
interesse específico para as regiões que não estejam reservadas à competência
própria dos órgãos de soberania;
E no art.º 112.º, n.º 4, dispunha:
Os decretos [legislativos] regionais versam matérias de interesse específico
para a respectiva região, não reservada à Assembleia da República, não podendo
dispor contra os princípios fundamentais das leis gerais da República, sem
prejuízo da al. b) do art.º 227.º.
O Decreto n.º 18/2002/M foi aprovado pela Assembleia Legislativa Regional ao
abrigo da al. a) do art.º 227.º da CRP e, no seu preâmbulo invoca o interesse
específico da região em comemorar o dia conhecido popularmente por “primeira
oitava”, ou seja, o dia 26 de Dezembro, que desde há muito tempo era observado
como feriado.
Não se nega o interesse específico da região em comemorar como feriado o dia
designado por “primeira oitava”, mas não podemos deixar de reconhecer que a
institucionalização desse dia como feriado colide frontalmente com o princípio
fundamental da Lei da República que impede a existência de mais do que um
feriado facultativo na Região Autónoma da Madeira, uma vez que já havia sido
instituído o dia 1 de Julho como feriado regional.
Tal como referiu o Sr. Ministro da República na mensagem de devolução ao
parlamento do referido decreto legislativo, “não basta para que o Parlamento
Regional disponha de competência legislativa que exista semelhante
especificidade, impondo-se ainda que a matéria em causa não preencha o elenco da
competência própria dos órgãos de soberania, nem colida com princípios
fundamentais de leis gerais da República. E é por esta última razão – colisão
com leis gerais da República reguladoras de uma disciplina cuja natureza e razão
de ser impõem a sua aplicação a todo o território nacional – que a norma do
art.º 1.º do decreto em apreço se apresenta ferida de ilegalidade, pois que
havendo sido já instituído o feriado regional do dia 1 de Julho, o presente
diploma, contra o sentido e alcance daquelas leis, determina o estabelecimento
de um segundo feriado regional, contrariando assim a unidade do sistema jurídico
que se pretende preservar”.
O art.º 1.º do Decreto n.º 18/2002/M, está, pois, ferido de
inconstitucionalidade material, por violação da al. a) do art.º 227.º e 112.º,
n.º 4, da CRP (5.ª revisão).
Recusando a aplicação da referida norma, conclui-se não haver a arguida
praticado a infracção em que foi condenada, uma vez que não se considerando
feriado o dia 26 de Dezembro de 2003 não tinha a arguida que pagar aos seus
trabalhadores os correspondentes acréscimos de retribuição pelo trabalho
prestado em dia feriado, não tendo violado o n.º 2 da cls. 25 do CCT acima
referido.»
[Nota de rodapé no original]
3.Notificado deste acórdão, o Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal
da Relação de Lisboa veio interpor o presente recurso para o Tribunal
Constitucional, nos termos do artigo 280.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da
República Portuguesa e dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.ºs 1, alínea
a) e 3, 75.º, n.º 1 e 75.º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional,
pretendendo ver apreciada a constitucionalidade do artigo 1.º do Decreto
Legislativo Regional n.º 18/2002/M, de 8 de Novembro, da Assembleia Legislativa
Regional da Madeira, “por considerar «estar ferido de inconstitucionalidade
material, por violação da alínea a) do art. 227.º e 112.º, n.º 4, da
Constituição da República Portuguesa (5.ª revisão)».”
Nas alegações produzidas neste Tribunal, concluiu assim o recorrente:
«1 – É perspectivável a existência de um interesse específico regional, de ordem
cultural, decorrente de tradições e usos largamente sedimentados na Madeira,
consistentes no prolongamento das comemorações natalícias pelo dia 26 de
Dezembro.
2 – Não pode considerar-se como “princípio fundamental”, subjacente à “lei geral
da República” vigente em sede de férias, feriados e faltas e seus reflexos na
prestação laboral – o Decreto-Lei n.º 874/76, de 28 de Dezembro, aplicável no
tempo ao caso dos autos – nem a inviabilidade jurídica da existência de
“feriados regionais”, estabelecidos pelos órgãos das Regiões Autónomas, dotados
de competência político-legislativa, nem a regra de que, em cada Região
Autónoma, só pode existir um único feriado de tal natureza.
3 – Nestes termos, nada obstava a que a Região Autónoma da Madeira, através do
órgão competente e no exercício da sua ampla competência político-legislativa,
editasse norma consagradora do dia 26 de Dezembro como “feriado” naquela Região.
4 – Termos em que deverá proceder o presente recurso.»
Por parte da recorrida não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
4.O Decreto Legislativo Regional n.º 18/2002/M, de 8 de Novembro, foi emitido ao
abrigo dos artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, alínea o), ambos da
Constituição, bem como dos artigos 37.º, n.º 1, alínea c), e 40.º, alínea vv),
do Estatuto Político‑Administrativo da Região Autónoma da Madeira (aprovado pela
Lei n.º 13/91, de 5 de Junho, alterado pelas Leis n.ºs 130/99, de 21 de Agosto,
e 12/2000, de 21 de Junho).
Tendo em conta que a VI Revisão Constitucional, operada pela Lei Constitucional
n.º 1/2004, de 24 de Julho, introduziu significativas alterações no texto
constitucional no que respeita à matéria das competências das assembleias
legislativas das Regiões Autónomas, depara-se um problema de sucessão de normas
constitucionais no tempo. A questão já foi anteriormente tratada neste Tribunal
Constitucional. Relembre-se o que se afirmou no Acórdão n.º 246/2005 (disponível
em www.tribunalconstitucional.pt):
“(…)
Entre as alterações introduzidas por esta revisão constitucional conta-se a
“simplificação dos parâmetros em que o poder legislativo regional se pode
exercer” (Vitalino Canas, Constituição da República Portuguesa (após a sexta
revisão constitucional-2004), aafdl, 2004, pág. 22) e, concomitantemente, o
alargamento dos poderes legislativos das regiões autónomas. As modificações
assinaladas são, essencialmente, as seguintes:
a) desaparecimento da categoria de leis gerais da República (antigo n.º 5 do
artigo 112.º da Constituição), a cujos princípios fundamentais os diplomas
regionais se encontravam subordinados;
b) eliminação da necessidade de existência de interesse específico regional na
matéria regulada pelas regiões, enquanto pressuposto ou requisito do exercício
da competência legislativa destas últimas (veja-se o n.º 4 do artigo 112º da
CRP, na sua actual redacção).
O poder legislativo das regiões autónomas continua, porém, a enquadrar-se pelos
fundamentos da autonomia das regiões consagrados no artigo 225.º da CRP e a
restringir-se ao âmbito regional e às matérias enunciadas no respectivo estatuto
político-administrativo, em face do disposto no n.º 4 do artigo 112.º e na
alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição (neste sentido, Jorge
Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo V, 2.ª edição, Coimbra Editora,
2004, págs. 398 a 402, e Vitalino Canas, ob. cit., págs. 140 e 236).
Subsiste ainda como requisito de exercício da competência legislativa das
regiões autónomas o respeito da reserva de competência legislativa dos órgãos de
soberania, como se depreende da leitura conjugada dos preceitos constitucionais
acima mencionados. No que diz respeito à reserva absoluta de competência
legislativa da Assembleia da República, não se registam alterações, estando esta
totalmente vedada às regiões autónomas. Já no que se refere à reserva relativa,
poderão as regiões, salvo as excepções previstas na Constituição, tratar as
matérias nela compreendidas, mediante autorização parlamentar (alínea b) do n.º
1 do artigo 227.º da CRP).”
Tendo presente o fundamento do juízo de inconstitucionalidade constante da
decisão recorrida, a apreciação da conformidade com a Constituição do Decreto
Legislativo Regional em apreciação haverá, no presente caso, de reger-se ainda
pelo texto constitucional anterior à Lei Constitucional n.º 1/2004, de 24 de
Julho (cfr., o já citado Acórdão n.º 246/2005 e, bem assim, os Acórdãos n.º
258/2006 e 18/2007, igualmente disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
5.À data da aprovação do Decreto Legislativo Regional n.º 18/2002/M, de 8 de
Novembro – nos termos de cujo artigo 1.º “[o] dia 26 de Dezembro é feriado na
Região Autónoma da Madeira” –, as normas da Constituição acima mencionadas
dispunham como se segue:
“Artigo 227.º
(Poderes das regiões autónomas)
1 - As regiões autónomas são pessoas colectivas territoriais e têm os seguintes
poderes, a definir nos respectivos estatutos:
a) Legislar, com respeito pelos princípios fundamentais das leis gerais da
República, em matérias de interesse específico para as regiões que não estejam
reservadas à competência própria dos órgãos de soberania;
(...)”.
“Artigo 228.º
(Autonomia legislativa e administrativa)
Para efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 112.º e nas alíneas a) a c) do n.º 1
do artigo 227.º, são matérias de interesse específico das regiões autónomas,
designadamente:
(…)
o) Outras matérias que respeitem exclusivamente à respectiva região ou que nela
assumam particular configuração.”
Por sua vez, o artigo 112.º, n.º 4, da Constituição dispunha que “os decretos
legislativos regionais versam sobre matérias de interesse específico para as
respectivas regiões e não reservadas à Assembleia da República ou ao Governo,
não podendo dispor contra os princípios fundamentais das leis gerais da
República (...)”.
De acordo com a decisão recorrida (v. fl. 167, quarto parágrafo), o Governo
aprovou o Decreto-Lei n.º 874/76, de 28 de Dezembro, para valer como lei geral
da República. Procedendo a idêntica qualificação, escreveu-se no Acórdão n.º
483/2003 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
«(…) o regime jurídico de férias, feriados e faltas, aplicável no âmbito do
contrato individual de trabalho, consta do Decreto-Lei n.º 874/76, de 28 de
Dezembro, e, no seu artigo 18.º, estabelece como feriados obrigatórios os
seguintes dias:
§ 1 de Janeiro;
§ Sexta feira Santa (ou outro dia com significado local no período da
Páscoa);
§ 25 de Abril;
§ 1 de Maio;
§ Corpo de Deus (festa móvel);
§ 10 de Junho;
§ 15 de Agosto;
§ 5 de Outubro;
§ 1 de Novembro;
§ 1 de Dezembro;
§ 8 de Dezembro;
§ 25 de Dezembro.
Nos termos do artigo 19.º do mesmo diploma, há também feriados “facultativos”
(cfr. o disposto no artigo 20.º): “Além dos feriados obrigatórios, apenas
poderão ser observados” o feriado municipal da localidade (ou o distrital,
quando aquele não existir) e a terça-feira de Carnaval, a menos que um e, ou, o
outro, sejam substituídos por “qualquer outro dia em que acordem a entidade
patronal e os trabalhadores”.
O artigo 21.º comina com nulidade quaisquer “disposições de contrato individual
de trabalho, vigentes ou futuros, que estabeleçam feriados diferentes dos
indicados nos artigos anteriores.”
Este quadro legal é, desde logo pela sua razão de ser, aplicável à totalidade do
território nacional, pelo que o diploma em questão deve ser qualificado como lei
geral da República – isto, considerando ainda que, nos termos do artigo 194.º da
Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, que aprovou a quarta revisão
constitucional, a exigência de que o diploma se qualifique a si mesmo como tal,
constante desde 1997 do artigo 112.º, n.º 5, da Constituição, apenas “se aplica
às leis e decretos-leis aprovados após a entrada em vigor da presente lei”.»
No entendimento do tribunal a quo “a institucionalização desse dia como feriado
colide frontalmente com o princípio fundamental da lei da República que impede a
existência de mais do que um feriado facultativo na Região Autónoma da Madeira,
uma vez que já havia sido instituído o dia 1 de Julho como feriado regional.”
A questão decisiva é, portanto, a de saber se o invocado princípio se pode
erigir em princípio fundamental do Decreto-Lei n.º 874/76, de 28 de Dezembro,
devendo proceder-se à análise do diploma, sendo, em caso de resposta negativa,
desnecessário ponderar se o Decreto Legislativo Regional n.º 18/2002/M, de 8 de
Novembro, revela uma opção contrária a um princípio que não se vislumbra.
Note-se que o Decreto-Lei n.º 874/76, de 28 de Dezembro, não vigora já hoje na
ordem jurídica, com a entrada em vigor do Código do Trabalho, aprovado pela Lei
n.º 99/2003, de 27 de Agosto – cfr. o artigo 21.º, n.º 1, alínea d), desta lei,
e também o seu artigo 4.º, n.º 4, em que se estabelece que “[a]s Regiões
Autónomas podem estabelecer, de acordo com as suas tradições, outros feriados,
para além dos fixados no Código do Trabalho, desde que correspondam a usos e
práticas já consagrados”.
6.Acerca da noção de princípio fundamental de lei geral da República, disse-se
no Acórdão n.º 631/99 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol.
45º, pág. 43):
«À tarefa, árdua e complexa, de integrar este conceito indeterminado – o dos
“princípios fundamentais” – não teve ainda oportunidade o Tribunal
Constitucional de se dedicar; na doutrina, começa a ensaiar-se a dilucidação do
conceito, procurando sintetizá-lo numa fórmula que, qualquer que seja a sua
valia, terá sempre um limite: sendo os princípios fundamentais das leis gerais
da República “princípios referentes às matérias concretamente disciplinadas por
estas leis”, eles são “insusceptíveis de uma captação apriorística” (Gomes
Canotilho, in cit. “Legislação...”, n.º 19/20, p. 42; cfr. ainda Carlos Blanco
de Morais, “As competências legislativas das regiões autónomas no contexto da
revisão constitucional de 1997”, Separata da “Revista da Ordem dos Advogados”,
ano 57, Dezembro de 1997, pp. 32 e segs..
(...)
Ora, quando as regras consagradas na lei são necessária decorrência de
princípios constitucionais que, especificamente, vinculam o regime jurídico da
matéria, elas são, seguramente, expressão de princípios fundamentais; e é neste
sentido que deve compreender-se o que pretende significar Jorge Miranda, ao
escrever que nem sempre é fácil discernir esses princípios “afora os que derivam
directamente de princípios constitucionais (...)” (“Manual de Direito
Constitucional”, tomo V, p. 404).»
Na doutrina, por sua vez, propõe-se a seguinte definição de princípios
fundamentais das leis gerais da República:
“(...) Poderemos neste pressuposto e a título exemplificativo definir os
“princípios fundamentais” das leis gerais da República como critérios gerais de
decisão legislativa que, pelo seu relevo necessário para todos os cidadãos,
fundamentam o preenchimento homogéneo de fins e o cumprimento uniforme de
obrigações de resultado, por parte de uma disciplina legal determinada” [Carlos
Blanco de Morais, As Leis Reforçadas – As leis reforçadas pelo procedimento no
âmbito dos critérios estruturantes das relações entre actos legislativo,
Coimbra, 1998, pág. 299]
Verifiquemos então se, em razão da finalidadedo regime das férias, feriados e
faltas, é permitido identificar o princípio fundamental da existência de um
único feriado facultativo regional em cada Região Autónoma.
O Decreto-Lei n.º 874/76, de 28 de Dezembro, operou “a unificação num único
instrumento legal da regulamentação das matérias relativas a férias, faltas e
feriados, procedendo-se simultaneamente à sua actualização”, nos termos do
segundo parágrafo do respectivo preâmbulo.
Ora, logo a falta de qualquer referência, nos artigos 18.º e 19.º do Decreto-Lei
n.º 874/76, de 28 de Dezembro, à figura dos “feriados regionais” impede o
reconhecimento de um princípio fundamental que os abranja. E, acompanhando o
Magistrado do Ministério Público em funções neste Tribunal, pode dizer-se que
não contraria os princípios fundamentais do Decreto-Lei n.º 874/76, de 28 de
Dezembro, que as Regiões Autónomas, dotadas de autonomia
político-administrativa, possam criar, por via legislativa, o seu próprio
feriado regional, em consonância com os usos e tradições específicas de cada uma
delas.
Veio, aliás, justamente a ser este pensamento que ditou a alteração constante do
artigo 4.º, n.º 4, da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do
Trabalho, permitindo às Regiões Autónomas estabelecerem feriados diferentes dos
continentais, desde que correspondam a usos e práticas já consagrados. Erigir a
princípio fundamental do Decreto-Lei n.º 874/76, de 28 de Dezembro, a imposição
da existência de um único feriado regional em cada Região Autónoma, quando a lei
nem sequer se refere à figura dos feriados regionais, não é, pois, conclusão com
suporte suficientemente na lei.
7.Os artigos 37.º, n.º 1, alínea c), e 40.º, alínea vv), do Estatuto
Político‑Administrativo da Região Autónoma da Madeira (aprovado pela Lei n.º
13/91, de 5 de Junho, alterada pelas Leis n.ºs 130/99, de 21 de Agosto, e
12/2000, de 21 de Junho) – ao abrigo dos quais foi emitido o Decreto Legislativo
Regional n.º 18/2002/M, de 8 de Novembro – dispõem como se segue:
“Artigo 37.º
Competência legislativa
1 - Compete à Assembleia Legislativa Regional, no exercício de funções
legislativas:
(…)
c) Legislar, com respeito pelos princípios fundamentais das leis gerais da
República, em matérias de interesse específico para a Região que não estejam
reservadas à competência própria dos órgãos de soberania;
(…)”.
“Artigo 40.º
Matérias de interesse específico
Para efeitos de definição dos poderes legislativos ou de iniciativa legislativa
da Região, bem como dos motivos de consulta obrigatória pelos órgãos de
soberania, nos termos do n.º 2 do artigo 229.º da Constituição, constituem
matérias de interesse específico, designadamente:
(…)
vv) Outras matérias que respeitem exclusivamente à Região ou que nela assumam
particular configuração.”
É procedente a não inclusão da matéria do Decreto Legislativo Regional em
apreciação – sobre a definição e tipificação dos feriados –, para efeitos do
disposto no artigo 227.º, n.º 1, alínea a), parte final, da Constituição
(matérias “que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de
soberania”), no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da
República.
Sobre este ponto o Tribunal Constitucional pronunciou-se, porém, repetidas
vezes, como se pode ler, por exemplo, no Acórdão n.º 268/88 (publicado em
Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 12.º, pág. 460), no sentido de que
essas “matérias reservadas à competência legislativa própria dos órgãos de
soberania não se circunscrevem às que a CRP expressamente reserva à Assembleia
da República (cfr. em especial os artigos 164.º, 167.º e 168.º da CRP) e ao
Governo (cfr. em particular o artigo 201.º da CRP), abrangendo ainda as matérias
em relação às quais a CRP, implicitamente embora, exige a intervenção do
legislador nacional (Acórdãos n.ºs 82/86, 164/86 e 326/86, Diário da República,
1.ª série, n.ºs 176, de 2 de Abril de 1986, 130, de 7 de Junho de 1986, e 290,
de 18 de Dezembro de 1986).”
Mais recentemente, no Acórdão n.º 415/2005 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), escreveu-se, porém, que “poderá hoje
questionar-se se esta jurisprudência […], sobre o sentido do requisito negativo
do poder legislativo regional, se mantém válida, nos seus traços gerais, em face
do novo texto constitucional – questão, esta, que não foi ainda tratada na
jurisprudência constitucional”. Contudo, como logo se acrescentou nesse mesmo
Acórdão, “seja, porém, como for quanto ao exacto alcance da parte final do
artigo 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, pode dar-se por assente que
entre as matérias «reservadas aos órgãos de soberania» se encontram, pelo menos,
as matérias de reserva de competência legislativa absoluta da Assembleia da
República e, também, as matérias de reserva relativa. Sobre estas últimas, as
regiões autónomas apenas poderão legislar, fora das matérias previstas na alínea
b) do n.º 1 do artigo 227.º, mediante autorização da Assembleia da República”.
Entre as matérias da reserva relativa da Assembleia da República está a dos
“direitos, liberdades e garantias”, referida na alínea b) do n.º 1 do artigo
165.º da Constituição, sendo certo que, em relação a essa matéria, nem sequer é
admissível a autorização da Assembleia da República às Assembleias Legislativas
das Regiões Autónomas, uma vez que tal está vedado pela alínea b) do n.º 1 do
artigo 227.º da Constituição. Ora, a Constituição não consagra um direito do
trabalhador à existência de determinados (ou de um certo número de) feriados, em
termos semelhantes ao direito que lhe assiste relativamente ao descanso semanal
(neste sentido, v. Maria do Rosário Palma de Ramalho, Direito do Trabalho, Parte
II, Situações Laborais Individuais, Almedina, 2006, pág. 480 e autores para que
remete na nota 523).
Pode, pois, concluir-se que a matéria atinente à definição e tipificação dos
feriados não se situa no âmbito da referida reserva de competência legislativa
da Assembleia da República.
Por outro lado, como sublinha o Magistrado do Ministério Público em funções
neste Tribunal, o Decreto-Lei n.º 874/76, de 28 de Dezembro, foi aprovado ao
abrigo do artigo 201.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, versão originária,
que determina que é da competência do Governo #fazer decretos-leis em matérias
não reservadas ao Conselho da Revolução ou à Assembleia da República”.
8.Importa ainda verificar se existia o “interesse específico” regional, invocado
no preâmbulo do Decreto Legislativo Regional n.º 18/2002/M, de 8 de Novembro, na
instituição de um feriado adicional relativo às comemorações natalícias «que,
aqui, desde há muito se costumam prolongar pelo dia popularmente conhecido por
“primeira oitava” ou seja, o dia 26 de Dezembro», consagrando-se, assim, o dia
26 de Dezembro como feriado na Região Autónoma da Madeira.
A jurisprudência deste Tribunal – e, anteriormente, da Comissão Constitucional –
sempre se pronunciou no sentido de procurar o justo equilíbrio entre os
interesses das Regiões Autónomas e as exigências da unidade nacional, afirmando
que “o interesse específico se encontra negativamente delimitado pela unidade do
Estado e pelo interesse nacional” (Parecer da Comissão Constitucional n.º 11/78,
Pareceres da Comissão Constitucional, 5.º volume, págs. 57 e segs.; cfr. ainda
os Pareceres n.ºs 5/77 e 7/77, Pareceres da Comissão Constitucional, 1.º volume,
págs. 89 e segs. e 113 e segs.).
De facto, como se pode ler no Acórdão n.º 473/2002 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), «o interesse específico constitucionalmente
relevante é (...) apenas o que respeite a matérias que não estejam reservadas à
competência própria dos órgãos de soberania sendo, por isso, desde logo um
conceito condicionado pela relação entre a “razão regional” e a “razão
nacional”».
Assim, nos casos em que claramente prevaleça essa “razão nacional” não há
interesse específico constitucionalmente relevante.
Por isso, como este Tribunal tem sustentado (Acórdão n.º 91/84, Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 4.º volume, pág. 7), “o carácter unitário do Estado e
os laços de solidariedade que devem unir todos os portugueses exigem que a
legislação sobre matéria com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos
seja produzida pelos órgãos de soberania (Assembleia da República ou Governo),
devendo ser estes a introduzir as especialidades ou derrogações que se mostrem
necessárias, designadamente por, no caso, concorrerem interesses insularmente
localizados”.
Existem, pois, matérias que, devido ao seu relevo para a generalidade dos
cidadãos, constituem, segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional,
reserva de competência do legislador nacional. Tais matérias não podem,
logicamente, ser consideradas como de interesse específico das regiões
autónomas.
Este Tribunal afirmou ainda, no já citado Acórdão n.º 246/2005:
«(…)
Tal qualificação do “interesse específico regional” (como requisito ou
pressuposto de competência do poder legislativo regional) encontra apoio na
jurisprudência constitucional portuguesa. Recorde-se, a este propósito, a
afirmação que é feita no Acórdão n.º 235/94 (Diário da República, Série I-A, de
2 de Maio de 1994): “Em jurisprudência reiterada e uniforme, vem este Tribunal
reafirmando que as assembleias legislativas regionais, ao editarem legislação ao
abrigo da referida alínea a) [alínea a) do n.º 1 do então artigo 229.º da CRP],
devem respeitar os seguintes parâmetros condicionadores daquela competência:
a) As matérias a tratar devem ser matérias de interesse específico da região
(parâmetro positivo);
b) Tais matérias não podem estar reservadas à competência própria dos órgãos de
soberania (parâmetro negativo);
c) Ao tratar legislativamente tais matérias, as assembleias legislativas
regionais – para além de haverem de obedecer à Constituição – não podem
estabelecer disciplina que contrarie «leis gerais da República» (…).
Os diplomas legislativos regionais que ultrapassem aqueles limites, quer
invadindo a competência própria dos órgãos de soberania quer tratando matérias
desprovidas de interesse específico, violam as regras de competência (…)”.
Mantém-se, no caso sub iudice, este entendimento, ou seja o de que o interesse
específico das regiões é “um parâmetro autónomo de atribuição de competência
legislativa (funcionando embora sempre com respeito pela Constituição e pelas
leis gerais da República e em matérias não reservadas à competência própria dos
órgãos de soberania)”. Trata-se de um dos mecanismos de que a Constituição se
socorreu para regular o sistema de repartição de competências entre os órgãos
estaduais e os órgãos regionais.
A falta dos requisitos assinalados impede os órgãos regionais de legislar, pelo
que, nesta circunstância, o exercício do poder legislativo se mostra inquinado
por vício de incompetência legislativa. Neste sentido se tem pronunciado o
Tribunal Constitucional quer quanto ao desrespeito dos princípios fundamentais
das leis gerais da República (cfr. o Acórdão n.º 483/03, Diário da República,
Série II, de 11 de Fevereiro de 2004), quer quanto à intromissão na reserva de
competência da Assembleia da República (cfr. Acórdão n.º 242/02, Diário da
República, Série I-A, de 28 de Agosto de 2002), quer, ainda, quanto à
inexistência de interesse específico regional (cfr. o já citado Acórdão n.º
206/87 e o Acórdão n.º 120/99, Diário da República, Série II, de 5 de Julho de
1999).
A caracterização do interesse específico regional como requisito ou pressuposto
da competência legislativa das regiões autónomas é de igual modo adoptado pela
doutrina. A generalidade dos autores assenta a análise da figura em questão na
sua natureza de requisito de competência, qualificando-a como “critério de
atribuição do poder legislativo às regiões autónomas” (Jorge Miranda, Manual de
Direito Constitucional, Tomo V, pág. 399), “primeiro limite de competência dos
órgãos legislativos regionais” (Maria Lúcia Amaral, “Questões regionais e
jurisprudência constitucional: para o estudo de uma actividade conformadora do
Tribunal Constitucional”, Estudos em memória do Professor Doutor João de Castro
Mendes, Lex, s.d., pág. 529), “critério delimitador autónomo dos poderes
legislativos regionais” (Jorge Pereira da Silva, O conceito de interesse
específico e os poderes legislativos regionais, Gabinete do Ministro da
República para a Região Autónoma dos Açores, 1994, pág. 5), “critério aferidor
da competência legislativa regional” (Margarida Salema, “Autonomia regional”,
Nos dez anos da Constituição, INCM, 1987, pág. 219) ou “pressuposto do exercício
de qualquer poder regional constitucionalmente conferido” (Pedro Machete,
“Elementos para o estudo das relações entre os actos legislativos do Estado e
das Regiões Autónomas no quadro da Constituição vigente”, Estudos de direito
regional, Lex, 1997, pág. 105). Outros autores afirmam, ainda, que a violação do
limite imposto pelo interesse específico à actividade legislativa regional
determina a “inconstitucionalidade orgânica dos decretos legislativos regionais
que perpetrem a mesma lesão” (Carlos Blanco de Morais, “As competências
legislativas das regiões autónomas no contexto da revisão constitucional de
1997”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 57, 1997, pág. 988, e “O modelo de
repartição da função legislativa entre o Estado e as Regiões Autónomas”, Estudos
de direito regional, Lex, 1997, pág. 219).
É certo que se escreveu no Acórdão n.º 408/98 (Diário da República, Série II, de
9 de Dezembro de 1998) que se está perante a violação de um “requisito de
constitucionalidade material da legislação regional”. Todavia, a verdade é que
este requisito tem por objectivo determinar as matérias sobre as quais certo
órgão pode legislar, tratando-se de um dos mecanismos de que a CRP se socorre
para regular o sistema de repartição de competências entre os órgãos estaduais e
os órgãos regionais, pelo que a falta daquele requisito suscita directamente um
problema de competência legislativa. Note-se que, mesmo quando qualifica
expressamente a falta de interesse específico regional como vício de
inconstitucionalidade orgânica, não deixa o Tribunal Constitucional de mencionar
que se trata de um parâmetro de condicionamento e limitação da competência
legislativa das regiões autónomas, cuja violação origina um vício de
inconstitucionalidade, por “incompetência absoluta” (neste sentido, cfr. Acórdão
n.º 212/92, Diário da República, Série I-A, de 21 de Julho de 1992). E o
Tribunal tem, ainda, entendido uniformemente que a falta de tal requisito gera
inconstitucionalidade por violação do artigo 227.º da CRP, que contém uma norma
de competência.»
Sobre o sentido do artigo 228.º da Constituição, na versão anterior à sexta
revisão, escreveu-se também, no acima mencionado Acórdão n.º 473/2002, o
seguinte:
«(...) o artigo 228º da Constituição dá conta, através de uma enunciação
exemplificativa, de um conjunto de matérias em que se revela normalmente
interesse específico. Não sendo taxativo, o artigo 228.º tem, no entanto, uma
função “expressiva” do que seja interesse específico, revelando‑se nas suas
alíneas um elemento comum de conexão com as condições de vida materiais e
culturais nas regiões. Esse elemento comum é explicitado na alínea o) do artigo
228.º, que admite que matérias diversas das enunciadas nas alíneas anteriores
sejam também de interesse específico, por respeitarem exclusivamente a uma
região ou por nela assumirem particular configuração. (...) Em face da difícil
delimitação, em abstracto, do parâmetro constitucional, é a própria natureza do
caso concreto que suscita, normalmente, a percepção do critério definidor do
interesse específico. Como se assevera no Acórdão n.º 220/92, “o interesse
específico tem sempre de ser apreciado em concreto, ao que corresponde a emissão
de um juízo de valor...”. Nessa apreciação, a alínea o) do artigo 228.º fornece
um critério interpretativo geral – a exclusividade ou a particular configuração
das matérias – critério esse que constitui o elemento unificador das matérias
expressamente previstas nas alíneas anteriores e daquelas que escapam à previsão
não taxativa do legislador constitucional.»
Ora, a matéria da definição e fixação de feriados regionais respeita apenas às
Regiões Autónomas e nelas assume particular configuração, facilmente se podendo
reconhecer a existência de uma cultura e tradições próprias, de matriz religiosa
e popular, que se traduzem numa certa diferenciação regional.
O Decreto Legislativo Regional n.º 18/2002/M, de 8 de Novembro, não deixa de
afirmar a relevância cultural do feriado que consagra, mencionando a existência
de particularidades regionais atinentes a “práticas tradicionais geradoras de
usos e costumes”, como a de “prolongar as comemorações natalícias pelo dia
popularmente conhecido por «primeira oitava», ou seja, o dia 26 de Dezembro”.
Não existindo razões para não acompanhar a justificação apresentada para esta
especificidade, conclui-se, pois, pela existência de um interesse específico
regional, decorrente de práticas tradicionais sedimentadas, o qual permitia à
Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira legislar sobre a
consagração do dia 26 de Dezembro como feriado naquela Região.
Não se podendo considerar como princípio fundamental subjacente ao Decreto-Lei
n.º 874/76, de 28 de Dezembro, nem a inexistência de feriados regionais, nem a
limitação a um único feriado regional em cada Região Autónoma, e aceitando-se
que na matéria em causa existia interesse específico regional, há que concluir
que o Decreto Legislativo Regional n.º 18/2002/M, de 8 de Novembro, não padece
do vício de inconstitucionalidade que lhe foi atribuído pelo tribunal a quo.
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1.º do Decreto
Legislativo Regional n.º 18/2002/M, de 8 de Novembro, da Assembleia Legislativa
Regional da Madeira, que consagra o dia 26 de Dezembro como feriado na Região
Autónoma da Madeira.
b) Conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido, o qual
deverá ser reformulado de harmonia com o julgamento sobre a questão de
constitucionalidade suscitada.
Sem custas.
Lisboa, 23 de Março de 2007
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos
[1] E idêntico regime consta dos art.ºs 208.º a 210.º do Código do Trabalho.