Imprimir acórdão
Processo n.º 449/03
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. e B. intentaram acção de despejo contra C. e D. com
fundamento, além do mais, na falta de pagamento da renda. A acção foi julgada
improcedente, tendo os autores interposto recurso para o Tribunal da Relação de
Lisboa., em cujas alegações sustentaram que o artigo 22.º do Regime do
Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro
(RAU), interpretado no sentido de que o inquilino pode depositar a renda, nos
oito dias posteriores ao vencimento, sem que previamente o senhorio se tenha
recusado a recebê-la, seria organicamente inconstitucional, por violação da
alínea h) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição e da alínea f) do artigo 2.º
da Lei n.º 42/90, de 10 de Agosto, ao abrigo da qual foi publicado.
Por acórdão de 18 de Março de 2003, o Tribunal da Relação de
Lisboa negou provimento ao recurso.
Os autores interpuseram recurso deste acórdão para este
Tribunal, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15
de Novembro (LTC), visando a apreciação da inconstitucionalidade do artigo 22.º
do RAU, interpretado no sentido de que o depósito da renda pelo arrendatário, na
Caixa Geral de Depósitos, nos oito dias posteriores ao seu vencimento ou em data
anterior, é liberatório, ainda que o senhorio não se tenha recusado a recebê-la,
nem ocorra qualquer outro dos pressupostos da consignação em depósito, nem
esteja pendente acção de despejo.
Após ter sido deferida reclamação de decisão sumária de não conhecimento do
objecto do recurso (artigo 78.º-A da LTC), os recorrentes foram notificados para
alegar, o que fizeram, tendo concluído nos termos seguintes:
“1ª
Na interpretação do artigo 22º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15.10 acolhida no, aliás, Acórdão sob recurso, o
depósito da renda na Caixa geral de Depósitos é liberatório, além dos casos
previstos no artigo 991.º do Código de Processo Civil, que o antecedeu, quando
tenha sido efectuado no prazo de oito dias contado do seu vencimento. Assim,
2ª
Desde que o inquilino prove ter depositado as rendas no prazo de oito dias a
contar do seu vencimento, cessa o direito à indemnização igual a 50% do que for
devido ou à sua resolução do contrato (cfr. n.ºs 1 e 2 do art.º 1041.º do C.C.),
mesmo que não tenha alegado a impossibilidade de levar a efeito o pagamento da
renda ou de o fazer com segurança. Dito de outro modo,
3ª
Nesta interpretação, o inquilino, nos oito dias seguintes ao do vencimento da
renda, tanto pode pagá-la ao senhorio, como depositá-la na Caixa Geral de
Depósitos, obrigando este último a, mensalmente, requerer o seu levantamento e
suportar as inerentes despesas e incómodos, apesar de, em nada, ter contribuído
para esse depósito.
4ª
Nesta acepção, o artigo 22.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15.10 alterou as regras definidoras das relações
(direitos e deveres) dos contraentes durante a vigência do contrato, além do que
foi autorizado pela alínea f) do artigo 2.º da Lei n.º 42/90, de 10.08:
“transposição para o local sistematicamente adequado, e com as adaptações
necessárias, dos preceitos substantivos contidos no Código de Processo
Civil...”. Em consequência,
5ª
Interpretado o referido artigo 22.º com este sentido e alcance, o mesmo padece
de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto na alínea h), número
1, do artigo 165.º da Constituição e na alínea f) do artigo 2.º da Lei n.º
42/90, de 10.08.”
Os recorridos não alegaram.
2. A sentença de 1ª instância julgou improcedente o pedido de
resolução do contrato de arrendamento. Quanto ao fundamento de falta de
pagamento de rendas, previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 64.º do RAU,
adoptou a seguinte fundamentação:
“Nos presentes autos, verifica-se que o “Nos presentes autos, verifica-se que o
R. procedeu ao depósito na Caixa Geral de Depósitos, dos montantes relativos aos
meses de Setembro de 1996 em diante, sendo que tais montantes equivalem a
contrapartida monetária devida (cfr. n.ºs 2, 3 e 8) do ponto III.A).
A questão que se coloca é determinar a validade de tais depósitos, uma vez que
dos mesmos consta a menção “recusa de pagamento de renda”, sendo que não
lograram os RR. Fazer prova de tal recusa, como se alcança da resposta negativa
dada ao quesito 1º.
Ora, independentemente da razão que determinou tal depósito, o que é certo é que
os mesmos foram efectuados tempestivamente, ou seja – nos primeiros oito dias
anteriores ao mês a que dizem respeito.
Donde, conclui-se que os RR. lograram fazer prova de terem efectuado o pagamento
referido, tal como lhes competia em decorrência das regras relativas ao ónus da
prova, pelo que não assiste aos AA. o direito à resolução do contrato de sub
judice por falta de pagamento das rendas, improcedendo, nesta parte, o pedido
formulado.”
No recurso para o Tribunal da Relação, os recorrentes arguiram
a inconstitucionalidade orgânica do artigo 22.º do RAU, no entendimento
subjacente à sentença recorrida (conclusão 5.ª das alegações de fls. 324 ss.). A
isto respondeu o acórdão recorrido nos seguintes termos:
“Estabelece o art.º 22.º do RAU: - “1. O arrendatário pode depositar a renda,
quando ocorram os pressupostos da consignação em depósito e ainda quando lhe
seja permitido fazer cessar a mora ou fazer caducar o direito à resolução do
contrato, por falta de pagamento de renda, nos termos, respectivamente, dos
artºs. 1041.º, n.º 2 e 1048.º, do Código Civil. 2. O arrendatário pode ainda
depositar a renda quando esteja pendente acção de despejo”.
Através deste artigo, constata-se que o arrendatário pode proceder ao depósito
da renda quando se verifique alguma das hipóteses seguintes:
a) Quando, sem culpa sua, não puder efectuar o pagamento da renda, ou não lhe
for possível fazê-lo com segurança, por qualquer razão inerente à pessoa do
credor (senhorio) ou se este se encontrar em mora, isto é, quando ocorram os
pressupostos da consignação em depósito indicados nas als. a) e b) do n.º 1 do
art.º 841.º do C.C.;
b) Quando lhe seja permitido fazer cessar a mora por falta de pagamento de
renda, em conformidade com o disposto no n.º 2 do art.º 1041.º do C.C.;
c) Quando lhe seja permitido fazer caducar o direito à resolução do contrato por
falta de pagamento de renda, de acordo com o disposto no art.º 1048.º do C.C.;
d) Quando esteja pendente acção de despejo, seja qual for o fundamento da acção
e enquanto a lide não chegar ao seu termo.
Ora, um dos fundamentos da presente acção reside na falta de pagamento de
rendas, invocando-se o disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 64.º do RAU (cfr.
artigos 4º, 5º e 15º da petição inicial).
Deste modo, mesmo que não se tenham provado os factos respeitantes a que os
arrendatários, sem culpa sua, não tenham podido levar a efeito o pagamento da
renda, ou que o não tenham podido fazer com segurança por qualquer motivo
relativo à pessoa do credor (senhorio) ou à mora deste, como acontece no caso
vertente, a verdade é que encontrando-se demonstrado o depósito das rendas no
prazo de oito dias a contar do começo da mora, cessa o direito à indemnização
igual a 50% do que for devido ou à resolução do contrato (cfr. n.ºs 1 e 2 do
art.º 1041.º do C.C.).
Ora, no caso ‘sub judice’ o R. procedeu ao depósito das rendas nos primeiros
oito dias anteriores ao mês a que respeitam ou antes, pelo que é válido o seu
depósito em singelo.
Por outro lado, o depósito da renda relativa ao mês de Abril de 1998, referida
pelos Apelantes, foi efectuado em 27.2.1998, conforme se constata do documento
de flª 250, anteriormente ao seu vencimento.
O facto de existirem depósitos efectuados na data do vencimento ou em datas
anteriores, não implica que não sejam válidos para os efeitos apontados,
nomeadamente para fazer cessar o aludido direito à indemnização, pois o que
releva é a circunstância de o depósito se encontrar efectuado dentro do prazo
estabelecido.
Também, o Regime do Arrendamento Urbano foi aprovado pelo Dec-Lei n.º 321-B/90,
de 15 de Outubro, mediante autorização legislativa constante da Lei n.º 42/90,
de 10 de Agosto, a qual fixou as directrizes a observar, pelo que não ocorre a
invocada inconstitucionalidade orgânica por violação da al. h), do n.º 1, do
art.º 165.º da Constituição.”
3. A partir da revisão constitucional de 1982, passou a ser da
exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo
(reserva relativa de competência legislativa), legislar sobre o 'regime geral do
arrendamento rural e urbano' (artigo 168.º, n.º 1, alínea h), nas versões de
1982 e 1989, artigo 165.º, n.º 1, alínea h), na versão de 1997).
O Tribunal Constitucional teve a oportunidade de explicitar,
por diversas vezes, o que se deve considerar abrangido na reserva assim
definida. Por exemplo, no acórdão nº 311/93 (Diário da República, II Série, de
22 de Julho de 1993), em que analisou diversas normas da Lei n.º 42/90, de 10 de
Agosto, louvando-se em jurisprudência anterior, afirmou o seguinte:
“Este Tribunal já teve ocasião de se debruçar sobre esta matéria. Fê-lo no
acórdão nº 77/88, publicado no Diário da República, I série, de 28 de Abril de
1988, afirmando a propósito:
[...] a reserva em causa não se limita à definição dos 'princípios',
'directivas' ou standards fundamentais em matéria de arrendamento (é dizer, das
'bases' respectivas), mas desce ao nível das próprias 'normas' integradoras do
regime desse contrato e modeladoras do seu perfil. Circunscrito o âmbito da
reserva pela noção de 'arrendamento rural e urbano', nela se incluirão, pois, as
regras relativas à celebração de tais contratos e às suas condições de validade,
definidoras (imperativa ou supletivamente) das relações (direitos e deveres) dos
contraentes durante a sua vigência e definidoras, bem assim, das condições
e causas da sua extinção - pois tudo isso é 'regime jurídico' dessa figura
negocial. Por outras palavras, e em suma: cabe reservadamente ao legislador
parlamentar definir os pressupostos, as condições e os limites do exercício da
autonomia privada no âmbito contratual em causa. (Cf. também o acórdão nº
358/92, Diário da República, I-A série, de 26 de Janeiro de 1993).
E, mais adiante - depois de se sublinhar que esta reserva 'não é
esgotante e absoluta', antes permitindo que 'nesse domínio venham ainda a
intervir outros órgãos com competência legislativa' - disse-se, para o que aqui
importa, mais o seguinte:
[...] é de entender a reserva como respeitando unicamente aos aspectos
significativos, ou seja, verdadeiramente substantivos, do regime legal do
contrato, mas permitindo a intervenção do Governo na regulamentação do que seja
puramente adjectivo ou processual (em suma, 'regulamentar').”
O mesmo critério foi seguido, por exemplo, nos acórdãos n.ºs
410/97 (Diário da República, I Série-A, de 8 de Julho de 1997), 127/98 (Diário
da República, II Série, de 28 de Maio de 1998), 55/99 (Diário da República, de
19 de Fevereiro de 1999), 273/99 (Diário da República, de 21 de Outubro de
1999), 391/99 (Diário da República, II Série, de 8 de Novembro de 1999), ou
97/2000 (Diário da República, II Série, de 17 de Março de 2000) e 461/2002
(Diário da República, II Série, de 26 de Fevereiro de 2002).
4. Vejamos, então, se a fixação normativa dos pressupostos em
que é facultado ao arrendatário livrar-se da obrigação de pagamento da renda
mediante o seu depósito integra a reserva de competência legislativa assim
delimitada. Só perante resposta afirmativa a esta questão, o facto de o artigo
22.º do RAU, eventualmente, ter excedido o que constava do Código de Processo
Civil assumirá relevância, designadamente face ao invocado preceito da Lei n.º
42/90, em sede de inconstitucionalidade orgânica.
É incontestável que a obrigação de pagar a renda, a cargo do arrendatário
(alínea a) do artigo 1038.º do Código Civil), integra o sinalagma contratual,
contrapondo-se à obrigação do senhorio, de proporcionar-lhe o gozo da coisa
(artigo 1.º do RAU), pelo que também não sofrerá dúvidas que a disciplina
jurídica do tempo e lugar do pagamento da retribuição respeita a um aspecto
essencial dos termos do cumprimento desta obrigação fundamental da relação
contratual, com repercussão directa na definição dos limites do exercício da
autonomia privada no âmbito contratual em causa (cfr. artigos 20.º e 21.º do
RAU, em coordenação com o artigo 1039.º do Código Civil).
Assim, a fixação das condições em que o depósito da renda tem
efeito liberatório – os pressupostos materiais da faculdade de proceder ao
depósito, havendo obviamente outros aspectos que são de natureza processual -
incidindo sobre o modo de satisfação da prestação, com directa repercussão na
disciplina contratual relativa ao lugar do pagamento da renda e nas
consequências de a prestação não ser cumprida nos termos pactuados ou
supletivamente aplicáveis, insere-se nas regras definidoras das relações dos
contraentes que se consideram compreendidas na referida reserva de competência
legislativa.
5. Pela Lei n.º 42/90, de 10 de Agosto, a Assembleia da
República conferiu autorização ao Governo para alterar o regime jurídico do
arrendamento urbano, obedecendo às directrizes enunciadas no seu artigo 2.º,
designadamente:
'[ …]
f) Transposição para o local sistematicamente adequado, e com as
adaptações necessárias, dos preceitos substantivos contidos no Código de
Processo Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44129, de 28 de Dezembro de 1961;'
Algumas destas normas, respeitantes a aspectos substantivos do
regime do arrendamento urbano que o Decreto-Lei n.º 321‑B/90, de 15 de Outubro,
editado ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 42/90,
expressamente revogou, transferindo a regulação da matéria para o RAU, quer no
aspecto substantivo, quer no aspecto adjectivo, foram as dos artigos 991.º e
seguintes do Código de Processo Civil que respeitavam ao depósito de rendas
(cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto‑Lei n.º 321-B/90). Aliás, o
preâmbulo daquele Decreto-Lei, refere-se às regras referentes ao depósito das
rendas como tratando-se de preceitos substantivos que, por circunstâncias
históricas foram inseridos nas leis de processo e que importa incorporar no novo
diploma.
Os casos em que era permitido ao arrendatário livrar-se
mediante depósito de rendas estavam regulados no artigo 991.º do Código de
Processo Civil [e não no artigo 961.º como, por lapso, os recorrentes escrevem],
que dispunha:
Artigo 991.º
(Casos em que é lícito o depósito)
“O arrendatário tem a faculdade de depositar a renda nos oito dias imediatos à
data do vencimento, quando lhe seja permitido livrar-se mediante depósito
judicial, nos termos do artigo 841.º do Código Civil, ou quando esteja pendente
acção de despejo.”
E passou a estar regulada no artigo 22.º do RAU, com o seguinte
teor:
Artigo 22.º
(Depósito)
1 - O arrendatário pode depositar a renda, quando ocorreram os pressupostos da
consignação em depósito e ainda quando lhe seja permitido fazer cessar a mora ou
fazer caducar o direito à resolução do contrato por falta de pagamento de renda,
nos termos, respectivamente, dos artigos 1041, n.º 2, e 1048.º do Código Civil.
2 - O arrendatário pode ainda depositar a renda quando esteja pendente acção de
despejo.”
No presente recurso, está em causa o segmento do n.º 1 do
artigo 22.º que permite o depósito da renda pelo arrendatário quando lhe seja
permitido fazer cessar a mora, nos termos do n.º 2 do artigo 1041.º do Código
Civil (“Cessa direito à indemnização ou à resolução do contrato, se o locatário
fizer cessar a mora no prazo de oito dias a contar do seu começo”), interpretado
no sentido de que o depósito é liberatório mesmo que, quanto a esse depósito,
não se tenham provado os pressupostos da consignação em depósito.
Com efeito, o acórdão recorrido atribuiu à expressa introdução
da previsão de também poder haver lugar a depósito na hipótese de o arrendatário
pretender fazer cessar a mora nos termos do n.º 2 do artigo 1041.º, o sentido de
que o depósito é liberatório 'mesmo que não se tenham provado os factos
respeitantes a que os arrendatários, sem culpa sua, não tenham podido levar a
efeito o pagamento da renda, ou que o não tenham podido fazer com segurança por
qualquer motivo relativo à pessoa do credor (senhorio) ou à mora deste, como
acontece no caso vertente, a verdade é que encontrando-se demonstrado o depósito
das rendas no prazo de oito dias a contar do começo da mora, cessa o direito à
indemnização igual a 50% do que for devido ou à resolução do contrato (cfr. n.ºs
1 e 2 do artigo 1041.º do C.C.)'.
Nesta interpretação – que não cabe ao Tribunal Constitucional
apreciar no plano do direito ordinário, não deixando, contudo, de referir-se que
a eficácia liberatória do depósito é, também nesta hipótese, subordinada à
existência de mora do credor, por exemplo, por PINTO FURTADO, Manual do
Arrendamento Urbano, 3.ª ed., pág. 436, e por ARAGÃO SEIA, Arrendamento Urbano,
6.ª ed., pág. 241 – o preceito teria introduzido uma substancial inovação
relativamente ao regime anterior. Efectivamente, por esta via, abre-se ao
arrendatário, a possibilidade de, em vez de satisfazer a prestação ao senhorio
no lugar estipulado no contrato, ou supletivamente pela lei, fazê-lo mediante
depósito, a seu arbítrio.
Com efeito, assim interpretada, a norma em causa conduz a que o
inquilino possa, à sua escolha:
- Pagar a renda ao senhorio, nas circunstâncias de lugar e
tempo que tiverem sido estipulados no contrato ou, na falta de estipulação, no
seu domicílio (artigo 1039.º, n.º 1 do Código Civil);
- Nos oito dias seguintes ao vencimento, pagá-la nos mesmos
termos ou, ainda que o senhorio a não recuse nem se verifique qualquer das
situações a que se refere o artigo 841.º do Código Civil, nem esteja pendente
acção de despejo, depositar o montante correspondente na Caixa Geral de
Depósitos.
Aliás, o acórdão leva essa interpretação às suas consequências
lógicas quando afirma que '[o] facto de existirem depósitos efectuados na data
do vencimento ou em datas anteriores, não implica que não sejam válidos para os
efeitos apontados, nomeadamente para fazer cessar o aludido direito à
indemnização, pois o que releva é a circunstância de o depósito se encontrar
efectuado dentro do prazo estabelecido'. Vale por dizer que a obrigação tanto se
extingue pela prestação a que o inquilino está obrigado, de entregar determinada
quantia no lugar contratualmente estipulado, como pelo depósito da mesma
quantia, forçando o senhorio aos incómodos e encargos inerentes ao respectivo
levantamento.
Ora, com este conteúdo normativo, não compreendido no artigo
991.º do Código de Processo Civil, o n.º 1 do artigo 22.º do RAU não encontra
cobertura na lei de autorização legislativa, nomeadamente na alínea f) do artigo
2.º da Lei 42/90, cujo sentido e extensão excede. Na verdade, ao permitir o
depósito das rendas nestes termos, o legislador não se limitou a transpor as
disposições de natureza substantiva contidas na lei processual para o lugar
sistematicamente adequado, nem a introduzir as adaptações necessárias no regime
do depósito ao novo contexto sistemático, conservando o seu conteúdo dispositivo
essencial, antes lhe acrescentou um aspecto profundamente inovador, de natureza
substantiva, quanto ao lugar e modo de cumprimento da obrigação fundamental do
arrendatário, que é satisfazer a prestação respectiva nos termos que, por
cláusula contratual ou disposição supletiva, emergem do contrato.
Consequentemente, não tendo esta dimensão normativa cobertura
na lei de autorização legislativa ao abrigo da qual foi emitida pelo Governo, a
norma do n.º 1 do artigo 22.º do RAU, na interpretação com que foi aplicada pelo
acórdão recorrido, sofre de inconstitucionalidade orgânica, assim merecendo
provimento o recurso de constitucionalidade.
6. Decisão
Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação da alínea h) do n.º 1
do artigo 168.º da Constituição, na versão de 1989, a norma do n.º 1 do artigo
22.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90,
de 15 de Outubro, na interpretação de que, quando o arrendatário pretenda fazer
cessar a mora nos termos do n.º 2 do art.º 1041.º do Código Civil, pode proceder
ao depósito da renda mesmo que não ocorram os pressupostos da consignação em
depósito, nem esteja pendente acção de despejo.
b) Ordenar a reforma do acórdão recorrido em conformidade com o
agora decidido quanto à questão de constitucionalidade.
c) Sem custas.
Lisboa, 21 de Março de 2007
Vítor Gomes
Bravo Serra
Gil Galvão
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício