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Processo n.º 446/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional,
1. A., vem reclamar para a conferência, ao abrigo do
disposto no n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), da decisão sumária do relator, de 21 de Junho de 2005, que decidira, no
uso da faculdade conferida pelo n.º 1 do mesmo preceito, não conhecer do
objecto do presente recurso.
1.1. A decisão sumária reclamada é do seguinte teor:
“1. A., interpôs recurso para o Tribunal Constitucional (TC) – ao abrigo do
artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC) –, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 10 de Março de
2005, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade, «por violação dos
princípios constitucionais da confiança, da proporcionalidade, do acesso à
justiça e da igualdade de armas, consagrados nos artigos 2.º, 18.º, 20.º, 202.º
e 205.º da Constituição da República Portuguesa (CRP)», «da norma criada pelo
Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, decorrente da sua interpretação do
disposto nos artigos 655.º, n.º 1, e 653.º, n.º 2, do Código de Processo Civil
(CPC), de onde é extraído o sentido que os princípios da liberdade de
julgamento e da livre apreciação da prova, assim como a análise crítica das
provas que foram decisivas para a convicção do julgador, ínsitos naquelas
disposições legais, não tornam necessária a reapreciação da matéria de facto
pelo tribunal de 2.ª instância», questão de inconstitucionalidade esta que
teria sido suscitada nas conclusões 7.ª, 8.ª e 10.ª das alegações de revista.
O recurso foi admitido pelo Conselheiro Relator do STJ, decisão que não vincula
o TC (artigo 76.º, n.º 3, da LTC). E, com efeito, entende‑se que o presente
recurso é inadmissível, o que possibilita a prolação de decisão sumária de não
conhecimento do seu objecto, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º‑A da LTC.
2. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência
atribuída ao TC cinge‑se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou
seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas
jurídicas (ou a interpretações normativas, hipótese em que o recorrente deve
indicar, com clareza e precisão, qual o sentido da interpretação que reputa
inconstitucional), e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas
directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas, ou a condutas ou
omissões processuais. A distinção entre os casos em que a
inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que
é imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese
é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual
depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade,
e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda
hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por
relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º
1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade
depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de
inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo
72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio
decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente.
3. A questão de inconstitucionalidade suscitada pela recorrente nas alegações
do recurso de revista por ela interposto encontra‑se sintetizada nas
respectivas conclusões 1.ª a 10.ª, do seguinte teor:
«1 – O regime de efectiva implementação do duplo grau de jurisdição na
apreciação da matéria de facto, implementado pelo Decreto‑Lei n.º 39/95, de 15
de Fevereiro, veio a ser apurado na posterior reforma da nossa lei adjectiva,
consagrada no Decreto‑Lei n.° 329‑A/95, de 12 de Dezembro, e diplomas
subsequentes.
2 – Na sequência da consagração legislativa de um duplo grau de jurisdição
sobre o resultado da prova, confiou a ré que tinha o direito de recorrer da
decisão sobre a matéria de facto. E, consequentemente, tinha o direito de ver
apreciadas e decididas as questões quanto à matéria de facto que colocou para
serem conhecidas e decididas no tribunal a quo.
3 – Também o tribunal de 2.ª instância, ao exercer o seu poder/dever de
apreciar e decidir sobre a prova produzida em audiência de julgamento e
designadamente a que se encontra registada e gravada, deve observar os
propalados princípios da imediação, oralidade (reduzido à sua actual dimensão),
concentração e livre apreciação da prova.
4 – Dado o que é disposto de forma actual e reformadora pelos citados
Decretos‑Leis n.ºs 39/95 e 329‑A/95, não podemos aceitar que o tribunal de 2.ª
instância abandone o exercício daquele seu poder/dever e não se pronuncie
directa e concretamente sobre a razão ou fundamento que conduziu a ser
atribuída maior credibilidade ao depoimento de umas testemunhas que ao de
outras.
5 – Ao actuar desse modo, o tribunal a quo, a nosso ver e salvo o devido
respeito, violou, em primeiro lugar, as imposições legais decorrentes das
normas, reformadoras, contidas nos supra citados Decretos‑Leis n.ºs 39/95 e
329‑A/95 e diplomas complementares.
6 – Incorreu, por isso, também salvo o devido respeito, na nulidade cominada
pelo artigo 668.°, n.° 1, alínea b), aplicável ex vi artigos 716.°, n.° 1, e
726.° do CPC.
7 – Violou ainda, sempre salvo o devido respeito e mais douta opinião, os
próprios princípios constitucionais subjacentes à ideia de Estado de direito
democrático, do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva e da
obediência ao disposto na lei em vigor, consagrados nos artigos 2.º, 20.°,
202.° e 205.° da Constituição.
8 – Até porque foi exactamente confiando na possibilidade da realização
efectiva desta garantia de a prova produzida poder ser reapreciada, pelo menos
nos pontos que lhe merecessem discordância, que a apelante requereu a integral
gravação da prova a produzir na audiência de julgamento.
9 – Daqui resulta que o acórdão recorrido, ao não dar integral e efectivo
cumprimento à sua obrigação de reapreciar, em verdadeiro e também efectivo 2.°
grau de jurisdição, a matéria de facto impugnada pela apelante, padece do vício
de nulidade que aqui expressamente se invoca nos termos da aplicação conjugada
das supra citadas normas legais.
10 – Bem como a norma criada pelo Acórdão recorrido na sequência da sua
particular interpretação do disposto no artigo 655.°, n.° 1, e 653.°, n.° 2, do
CPC padece de flagrante inconstitucionalidade, por violação dos princípios e
normas constitucionais supra citadas, designadamente os artigos 2.°, 18.°,
20.°, 202.° e 205.° da Constituição (princípios da confiança, da
proporcionalidade e da igualdade de armas).»
O acórdão ora recorrido desatendeu esta argumentação, com a seguinte
fundamentação:
«Não corresponde também à realidade a afirmação de que a Relação não se
pronunciou directamente sobre as questões relativas à matéria de facto
colocadas pela recorrente na alegação respectiva e deixou, por isso, de “dar
efectivo e integral cumprimento à sua obrigação de reapreciar, em verdadeiro e
também efectivo 2.º grau de jurisdição, a matéria de facto impugnada pela
recorrente”. (Teria assim incorrido em nulidade – omissão de pronúncia –
prevenida na alínea d), que não na invocada alínea b), do n.º l do artigo
668.° do CPC).
Como de imediato elucidado no preâmbulo do Decreto‑Lei n.º 39/95, de 15 de
Fevereiro, citado pela recorrente, a instituição de um 2.° grau de jurisdição
na apreciação da matéria de facto veio ampliar a possibilidade de reacção
contra “eventuais e seguramente excepcionais” erros do julgador na livre
apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução
jurídica do pleito.
A pretendida plenitude do 2.° grau de jurisdição na apreciação da matéria de
facto sofre, em todo o caso, naturalmente, a limitação que a inexistência de
imediação necessariamente acarreta.
“O princípio da imediação”, ensinava Anselmo de Castro, “é consequencial dos
princípios da verdade material e da livre apreciação das provas, na medida em
que uma e outra necessariamente requerem a imediação, ou seja, o contacto
directo do tribunal com os intervenientes no processo, a fim de assegurar ao
julgador de modo mais perfeito o juízo sobre a veracidade ou falsidade de uma
alegação” (são nossos os dois últimos destaques).
Daí que, como bem assim se pode extrair do preâmbulo referido, mais se não deva
esperar do tribunal superior que a sindicância de erro manifesto na livre
apreciação das provas. E foi tal que a Relação julgou não constatar‑se no caso
dos autos.
É, por fim, ponto assente na doutrina e na jurisprudência que só ocorre a
nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 668.° (aplicável à 2.ª
instância por força do artigo 716.°, n.º 1) do CPC quando de todo em todo,
absolutamente, falte a fundamentação de facto ou de direito. É à fundamentação
de facto que esta arguição vem referida (cfr. também o n.º 3 do predito artigo
668.°).
Em vista do que já ficou notado, tem‑se por claro o despropósito da invocação a
este respeito dos “próprios princípios constitucionais, subjacentes à ideia de
Estado de direito democrático, do acesso ao direito e à tutela jurisdicional
efectiva e da obediência ao disposto na Lei em vigor, consagrados nos artigos
2.°, 18.°, 20.°, 202.° e 205.° da Constituição”.
Que se vislumbre, o acórdão recorrido não fez “particular interpretação”
alguma “do disposto nos artigos 655.°, n.º 1, e 653.º, n.º 2, do CPC”
(limitando‑se quanto a este último a julgar que foi correctamente observado na
instância recorrida).»
Como resulta da leitura das transcritas conclusões da alegação do recurso de
revista da recorrente, aí nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa se
suscita, sendo antes reportada directamente a uma actuação do Tribunal da
Relação, simultaneamente, a violação de normas e princípios da lei ordinária e
de princípios constitucionais, desrespeito esse que seria gerador de nulidade da
decisão judicial. Jamais a recorrente identificou, com o mínimo de precisão e
clareza, uma determinada interpretação normativa que o Tribunal da Relação
tivesse erigido em critério abstracto de decisão, a que depois teria subsumido
o caso concreto sub judicio. Pelo contrário, o que se critica é uma concreta
actuação processual do tribunal, indissociável do caso concreto.
Acresce que a dimensão normativa posteriormente identificada no requerimento
de interposição de recurso de constitucionalidade – a «norma» supostamente
criada pelo Tribunal da Relação de Lisboa segundo a qual «os princípios da
liberdade de julgamento e da livre apreciação da prova, assim como a análise
crítica das provas que foram decisivas para a convicção do julgador, ínsitos
naquelas disposições legais, não tornam necessária a reapreciação da matéria de
facto pelo tribunal de 2.ª instância» – não foi, manifestamente, aplicada como
ratio decidendi pelo acórdão recorrido. O que neste acórdão se constatou foi que
a Relação, de acordo com as disposições legais pertinentes, entendeu que, no
caso concreto, não ocorria qualquer erro manifesto na apreciação das provas.
Em suma: nem a recorrente suscitou, de forma processualmente adequada, perante
o STJ, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, nem o acórdão
recorrido fez aplicação, como sua ratio decidendi, do critério normativo
identificado no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade,
razões pelas quais este recurso é inadmissível, não havendo que conhecer do seu
objecto.
4. Em face do exposto, decide‑se, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo
78.º‑A da LTC, não conhecer do objecto do recurso.”
1.2. A reclamação apresentada pela recorrente contra a
decisão sumária do relator desenvolve a seguinte fundamentação:
1.º – O M.mo Juiz Conselheiro Relator proferiu a fls. ... dos autos douta e
sábia decisão sumária, nos termos da qual decidiu não tomar conhecimento do
objecto do presente recurso.
2.º – Salvo o devido e, no caso, muito merecido respeito, a recorrente não se
pode conformar com tal douta decisão, e pretende que sobre a mesma se pronuncie
a conferência – artigo 78.º‑A, n.º 3, da Lei Orgânica do Tribunal
Constitucional.
3.º – Fundamenta a presente reclamação, desde logo, no teor do seu requerimento
de interposição de recurso para este Alto Tribunal, bem como no teor do seu
requerimento de aperfeiçoamento desse mesmo anterior requerimento de
interposição de recurso os quais se encontram a fls. ... e ... dos autos e que,
por isso, por brevidade e economia processual, aqui se devem ter por
integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos.
4.º – Aqui se assinalando, como pertinente e, no muito modesto entender da
recorrente, que a norma cuja constitucionalidade deve ser apreciada nestes autos
de recurso é a constante do n.º 1 do artigo 655.º do Código de Processo Civil,
ao menos no segmento interpretativo que lhe foi dado, quer pelo Tribunal da
Relação de Guimarães – no Acórdão que se encontra a fls. ... dos autos –, quer
pelo Supremo Tribunal de Justiça – no Acórdão proferido a fls. ... dos autos, e
através do qual criaram uma nova norma – alegadamente extraída da aplicação
conjugada desse mesmo n.º 1 do dito artigo 655.º com o n.º 2 do artigo 653.º,
ambos do CPC –,
5.º – E em que se estribaram os Acórdãos recorridos para afastar de facto a
reapreciação em 2.ª instância da prova testemunhal gravada na audiência de 1.ª
instância, e desse modo afastaram a reapreciação da decisão produzida, quanto à
matéria de facto, por no respectivo dizer e apesar do julgamento ter sido
realizado pelo juiz singular, se ter o entendimento que a efectiva
reapreciação da prova e a instituição de um segundo grau de jurisdição na
apreciação da matéria de facto por parte do tribunal superior se dever
restringir a uma mera sindicância de eventual «erro manifesto na livre
apreciação das provas».
6.º – A norma ou, melhor dito, o «complexo normativo» assim criado pelas
instâncias viola os princípios constitucionais da confiança e da
proporcionalidade, tal como o princípio do acesso à justiça em toda a sua
plenitude e, ainda, o próprio principio da igualdade de armas – «due process
[of] law» – e sobretudo viola, de uma forma flagrante, a «tutela jurisdicional
efectiva» da recorrente, consagrados, mesmo que apenas genericamente, nos
artigos 2.º, 18.º, 20.º, 202.º, e 205.º da CRP.
7.º – Os autos e aquela concreta vertente da decisão recorrida evidenciam que o
Tribunal da Relação de Guimarães e o Supremo Tribunal de Justiça, lançando mão
deste particular «critério normativo», que extraíram dos supra citados
preceitos legais, validaram o mesmo e tornaram‑no susceptível de ser
generalizado.
8.º – Ou seja, daqui para o futuro, e desconhecemos nós se tal já alguma vez
antes terá ocorrido..., aquele enunciado critério normativo que foi extraído –
bem ou mal ... e nós pensamos que mal ... – permite que o julgador do tribunal
de 2.ª instância, não avistando o aludido erro manifesto na livre apreciação das
provas por parte do tribunal de 1.ª instância, logo deixe de apreciar e
dilucidar as concretas e especificas divergências colocadas para a sua
apreciação no que concerne à decisão sobre a matéria de facto por quem tenha
interposto recurso dirigido à decisão da questão de facto.
9.º – Por tudo isto e pelo muito que nos falta saber, se reafirma o
entendimento que, quer o Tribunal da Relação de Guimarães, quer o Supremo
Tribunal de Justiça, ao validar tal decisão do Tribunal de 2.ª Instância,
criaram uma «nova norma» ou complexo normativo com o assinalado sentido.
10.º – Parecendo até que, com tal sentido normativo dado àquelas atacadas
normas, e com o fundamento na defesa do «principio da imediação» se veio revogar
por via interpretativa a norma legal e também a norma constitucional que
consagra quer a «tutela jurisdicional efectiva» dos cidadãos de que faz parte o
direito ao recurso, em segundo grau de jurisdição, da matéria/questão de facto.
11.º – O que, por esse lado, significa, in extremis, a violação do princípio
também constitucionalmente consagrado da separação de poderes.
12.º – Como parece ser entendimento maioritário, «aos tribunais – aqui se
incluindo o Tribunal Constitucional – compete não somente a verificação dos
pressupostos de aplicação da norma, ou do respectivo sentido normativo, mas
também a correcção da interpretação da norma e a observância do principio da
proporcionalidade nessa aplicação, expressa não apenas no respeito do fim da
norma mas também na correcção da adequação do meio ao resultado, ou seja, do
“iter” lógico seguido ... na valoração da situação concreta e da correcção
interna dos raciocínios lógico‑discursivos que presidiram à sua aplicação ao
caso» – in Acórdão n.º 233/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 27.º,
pág. 595).
13.º – Cumprindo ainda assinalar que, quando é essencial à resolução da questão
de constitucionalidade, o tribunal não pode deixar de conhecer de certos
aspectos do direito infraconstitucional.
Designadamente,
14.º – «... não pode deixar de verificar a justeza das qualificações feitas pelo
tribunal recorrido, quando tal for indispensável para resolução da questão de
constitucionalidade, ou, talvez melhor dizendo, quando a questão de
constitucionalidade coincidir, em maior ou menor dimensão, com a questão da
qualificação feita à luz do direito ordinário» – Ac. do TC n.º 279/2000, de 16
de Maio de 2000 – in BMJ, ano 2000, n.º 497, pág. 83.
15.º – Assim, e tendo em conta que a Constituição da República especificamente
comete ao Tribunal Constitucional a função de administrar a justiça em matérias
de natureza jurídico‑constitucional,
16.º – Em nosso entendimento, sempre salvo o devido e merecido respeito, este
alto tribunal deverá pronunciar‑se sobre a supra aludida questão normativa, que
se vem generalizando nos nossos tribunais superiores, e que padece do vício de
inconstitucionalidade que se lhe assinalou.
17.º – Daí que, e ainda salvo o devido e merecido respeito, defende a recorrente
que, mau grado alguma menor clareza na invocação da questão da
inconstitucionalidade apresentada nos autos, cumpriu atempadamente os
pressupostos bastantes e suficientes à interposição do recurso – ao qual tem
inalienável direito – para este colendo Tribunal – artigos 70.º, n.º 1, a1íneas
b) e g), 72.º, n.º 2, e 75.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual
redacção.
18.º – Tal como defende a recorrente que este Tribunal, conhecendo do objecto do
recurso e permitindo que a recorrente melhor explane a sua posição e respectiva
tese, a propósito da questão da inconstitucionalidade colocada, no âmbito das
pertinentes alegações de recurso, melhor contribuirá para a plenitude do
respeito pelos direitos e garantias dos cidadãos e para o acesso dos mesmos à
«tutela jurisdicional efectiva» que a consagração do direito de recurso
alargado ao conhecimento da matéria de facto em 2.º grau de jurisdição lhes
confere.
19.º – Por tudo isto, e sendo de um ou de outro modo, defende ainda a recorrente
que a douta decisão reclamada deverá ser reformada e ou alterada por forma a que
seja determinado o conhecimento do objecto do recurso por este Tribunal
Constitucional nos termos do disposto nos artigos 76.º, 77.º e 78.º da dita Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro.”
1.3. Notificada da apresentação desta reclamação, a
recorrida não apresentou resposta.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. A decisão sumária reclamada assenta em dois
fundamentos: (i) não ter a recorrente suscitado, de forma processualmente
adequada perante o tribunal recorrido (o STJ) qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, designadamente a que identificou no
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional; e (ii)
não ter o acórdão recorrido feito aplicação, como ratio decidendi, do critério
normativo acusado de inconstitucional.
Quanto ao primeiro fundamento, basta ler as conclusões
9.ª e 10.ª das alegações do recurso de revista para se constatar que o que aí
se afirma é que o acórdão da Relação padece de nulidade por não ter cumprido, na
extensão considerada legalmente exigida pela recorrente, o dever de reapreciação
da decisão da matéria de facto. Neste contexto, é manifestamente inadmissível
transformar uma pretensa actuação ilegal do tribunal na criação ficcionada de
uma norma pelo tribunal em conformidade com o procedimento adoptado.
E, em todo o caso, é manifesto que o acórdão do STJ,
objecto do presente recurso, não adoptou o entendimento de que “os princípios
da liberdade de julgamento e da livre apreciação da prova, assim como a análise
crítica das provas que foram decisivas para a convicção do julgador, ínsitos
naquelas disposições legais, não tornam necessária a reapreciação da matéria
de facto pelo tribunal de 2.ª instância'. Como se assinalou na decisão sumária
ora reclamada, “o que neste acórdão [do STJ] se constatou foi que a Relação, de
acordo com as disposições legais pertinentes, entendeu que, no caso concreto,
não ocorria qualquer erro manifesto na apreciação das provas”.
Resta acrescentar que é inadmissível fazer derivar de
decisões judiciais pretensamente ilegais a criação de normas jurídicas de
conteúdo contrário (ou, pelo menos, diverso) ao das normas legais. As decisões
judiciais alegadamente ilegais não se transformam em normas jurídicas de
sentido conforme à pretensa ilegalidade cometida, desde logo porque destituídas
de força vinculativa fora do processo, não vigorando em Portugal o sistema do
precedente judiciário.
Assim, sem necessidade de considerações complementares,
é manifesta a improcedência da presente reclamação
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente
reclamação.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 4 de Outubro de 2005
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos