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Processo n.º 370/2005
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Bravo Serra
Em 3 de Junho de 2005, o relator lavrou a seguinte
decisão:-
“1. Inconformado com o acórdão proferido em 13 de Dezembro de 2003 pelo
tribunal colectivo do 2º Juízo do Tribunal da comarca de Fafe que, pela
co-autoria de um crime de um crime de violação, previsto e punível pelo nº 1 do
artº 164º do Código Penal, o condenou na pena de quatro anos de prisão, recorreu
o arguido A., juntamente com outros dois co-arguidos, para o Tribunal da Relação
de Guimarães que, por acórdão de 7 de Junho de 2004, negou provimento ao
recurso.
De novo irresignado, recorreu o arguido (também acompanhado pelos seus
co-arguidos) para o Supremo Tribunal de Justiça.
Na motivação adrede produzida, e para o que ora releva, pode ler-se:-
‘(...)
III
QUESTÕES OBJECTO DO PRESENTE RECURSO.
A) DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 86º DO CÓDIGO DE PROCESSO
PENAL:
Tem vindo a ser decidido pelo Tribunal Constitucional que a norma constante
do artigo 86º do Código de Processo Penal, mormente no que tange ao segredo de
justiça, é constitucional.
Porém, quando tal norma colide com o asseguramento de todas as garantias de
defesa de que goza o arguido, a mesma terá inequivocamente de violar a
Constituição da Rep[ú]blica Portuguesa ou a própria Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, cujo conteúdo, em matéria de direitos fundamentais, está
estabelecido na Constituição.
E tal sucede inequivocamente quando interpretada em termos de impedir
sempre e quaisquer circunst[â]ncias, de forma abstracta e rígida, o conhecimento
por parte do arguido das dilig[ê]ncias de prova que vão sendo carreadas para os
autos, na fase de inquérito, pois que o impede de as contradizer e, assim, de se
defender, algumas das vezes, como é o caso dos autos, de forma definitiva,
incompatível com o asseguramento das garantias de defesa.
Mais, tal interpretação nesse sentido viola os princípios do contraditório
e acesso aos tribunais, na medida em que o representante do Ministério P[ú]blico
dispõe de um livre e incondicionado acesso aos autos.
A norma do artigo 86º do Código de Processo Penal viola, deste modo, o
disposto no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, nos termos do qual o processo
criminal assegura todas as garantias de defesa.
(...)
E o caso sub j[u]dice é paradigma do que se vem a dizer. Com efeito, a
ofendida, após ter apresentado queixa contra os arguidos, foi submetida no dia
18 de Outubro a exame junto do Gabinete Médico Legal de Guimarães, cujo
resultado consta do respectivo relatório de fls. 14 e seguintes, dele constando,
além do mais, o seguinte:
(...)
Ora, foi dado aos arguidos, mormente ao A., conhecimento de tal exame?
Foi, por iniciativa do Ministério Público, o mesmo A. submetido ele próprio
a um exame no sentido de apurar se também ele padecia da mesma doença?
Poderia o arguido ter tido conhecimento da realização de tal exame e, em
face do mesmo, tomar a iniciativa de se submeter à imediata realização de exames
que lhe possibilitassem apurar da existência ou não dessa doença?
Foram pelo Ministério Público realizadas dilig[ê]ncias no sentido de apurar
se a existência de relação sexual com a ofendida, que padecia da referida
doença, acarreta a infecção pelo micróbio que causa a doença? E que a
possibilidade de se apurar tal infecção seria tanto maior quanto maior fosse a
proximidade da ocorrência do acto?
Ou simplesmente o Ministério Público se limitou a usar o resultado de tal
exame de fls. 14 como simples arma de arremesso contra os arguidos sem qualquer
possibilidade dos mesmos se defenderem, que até o desconheciam?
(...)
Sem prescindir, e retomando a exposição de que a norma constante do artigo
86º do Código de Processo Penal é inconstitucional porque da sua aplicação
resulta a não satisfação das garantias de defesa dos arguidos, de que é exemplo
a situação dos autos, acresce que outras normas constitucionais surgem violadas
com a aplicação do referido artigo 86º:
Desde logo o artigo 20 da Constituição que reconhece vários direitos os
quais, embora conexos, são distintos, como são o acesso ao direito, o direito de
acesso aos tribunais, o direito a informação e consulta jurídicas e o direito ao
patrocínio judiciário, direitos esses, todos eles, componentes de um direito
geral a protecção jurídica, constituindo, cada um, um elemento essencial do
própria ideia de Estado de Direito.
O direito de acesso aos tribunais inclui no seu âmbito normativo o
designado ‘direito ao processo’, o qual, por seu turno, abarca a possibilidade
de consulta dos autos só pode ser restringida observados que sejam determinados
pressupostos, designadamente o segredo de justiça.
Porém, a norma que prevê o segredo de justiça colide com os direitos
fundamentais consagrados no texto constitucional quando da sua aplicação resulta
violação das garantias de defesa do arguido - de que é exemplo flagrante o caso
dos autos, sendo certo que devem entender-se como dirigidas ao arguido as
garantias de defesa que, nos termos do artigo 32º n.º 1, da Constituição, o
processo deve assegurar.
(...)
CONCLUSÕES
Primeira
Há violação da Lei Fundamental por parte do artigo 89º do Código de
Processo Penal, mormente no que tange ao segredo de justiça, quando esta mesma é
interpretada em termos de impedir sempre e em quaisquer circunst[â]cias, de
forma abstracta e rígida, o conhecimento por parte do arguido das dilig[ê]cias
de prova que vão sendo carreadas para os autos, na fase de inquérito,
impedindo-o de as, definitivamente, contradizer, não assegurando, deste modo, as
garantias de defesa por parte deste.
Segunda
E o caso sub j[u]dice é paradigma do que se vem a dizer, pois que não foi
dada a possibilidade aos arguidos, mormente ao A., de proceder à imediata
realização de perícia médico-legal para avaliar em termos precisos e concretos
se padecia ou não da mesma doença da arguida ou, no caso de tal não suceder, as
respectivas razões, designadamente se tal ficou a dever-se a meras defesas do
organismo deste
(...)’
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 30 de Março de 2005,
negou provimento ao recurso do arguido A..
Nesse aresto foi dito, a dado passo:-
‘(...)
2.2. São as seguintes as questões que os Recorrentes colocam à consideração
do Supremo Tribunal de Justiça:
1ª - se o artº 86º do CPP, na interpretação que concretiza - isto é,
«quando esta mesma é interpretada em termos de impedir sempre e quaisquer
circunstâncias, de forma abstracta e rígida, o conhecimento p[o]r parte do
arguido das diligências de prova que vão sendo carreadas para os autos, na fase
de inquérito, impedindo-o de as, definitivamente, contradizer, não assegurando,
deste modo, as garantias de defesa por parte deste» - viola o disposto no artº
32ºda CRP [é de facto o artº 86º, e não o artº 89º como se escreveu na conclusão
1ª, o preceito visado na motivação, como se vê de fls. 797, vº e 800]
(conclusões 1ª e 2ª);
(...)
2.1.1. Da inconstitucionalidade do artº 86º do CPP
Partindo da constatação de que o Tribunal Constitucional tem vindo a
decidir que é constitucional «a norma do artº 86º do Código de Processo Penal,
mormente no que tange ao segredo de justiça», entendem os recorrentes, no
entanto, que essa mesma norma, quando «colide com o asseguramento de todas as
garantias de defesa de que goza o arguido, ... terá inequivocamente de violar a
Constituição da República Portuguesa [concretamente o seu artº 32º, nº 1, como
especifica um pouco mais à frente] ou a própria Convenção Europeia dos Direitos
do Homem ...». E tal sucederá, continua, «quando interpretada em termos de
impedir sempre e em quaisquer circunstâncias, de forma abstracta e rígida, o
conhecimento por parte do arguido das diligências de prova que vão sendo
carreadas para os autos, na fase de inquérito, pois que o impede de as
contradizer e, assim, de se defender, algumas das vezes, como é o caso dos
autos, de forma definitiva, incompatível com o asseguramento das garantias e
defesa.
Esta interpretação, asseveram, viola igualmente os princípios do
contraditório e o acesso aos tribunais, «na medida em que o representante do
Ministério Público dispõe de um livre e incondicional acesso aos autos».
De facto, concretizam, tendo a Ofendida sido submetida a exame médico-legal
- de cujo relatório, fls. 14, conta que «em face da informação prestada pela
examinada e dos dados objectivos e subjectivos recolhidos pelo perito, este é de
parecer que a examinada apresenta sinais de assédio sexual (doença venérea e
lesões traumáticas)» - a nenhum dos arguidos, designadamente ao A., foi dado
conhecimento desse exame, de modo a poder submeter-se, ele próprio, à realização
de exames em ordem a apurar-se se padecia da mesma doença - o que só aconteceu
no requerimento de abertura da instrução, depois de notificado da acusação.
O acórdão recorrido desatendeu a arguição, invocando o segredo de justiça,
como regra da fase do inquérito, com legitimidade constitucional assegurada pelo
artº 20º, nº 3 da CPR, e a inexistência de preceito legal que impusesse se desse
conhecimento do resultado do exame pericial. E acrescentou que não foram, com
isso, postergadas as garantias de defesa dos arguidos porquanto, notificados da
acusação, tiveram acesso ao processo, tendo podido, então, na instrução que
requereram, contraditar toda a matéria da acusação e promovido as diligências
que entendessem, com vista a demonstrar a sua insubsistência.
O decidido tem o nosso acolhimento.
Com efeito, se, quanto ao modo como deve desenvolver-se o processo penal, o
artº 86º, nº 1 do CPP proclama, como princípio geral, o da sua publicidade, com
as limitações estabelecidas no nº 2 seguinte, tal princípio sofre diversas
limitações, de extensão diferente consoante a fase do processo, que atingem a
máxima intensidade na fase do inquérito.
E assim é que, se, na fase da audiência de julgamento, o princípio vale com
o mínimo de limitações, como aliás prescreve o artº 206º da CRP, na fase de
inquérito, considerando as finalidades que lhe são assinaladas pelo artº 262º,
nº 1 do CPP - «o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam
investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a
responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão
sobre a acusação» - há-de tendencialmente vigorar o regime oposto, do máximo
secretismo, de modo a que a investigação da notícia do crime «não corra o risco
de ser perturbada, ou mesmo irremediavelmente prejudicada, por factores externos
à administração da justiça penal» (cfr. Maria João Antunes, ‘O Segredo de
Justiça ...’, Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, 1237 e segs.). É,
aliás, a própria Constituição que, no seu artº 20º, nº 3, atribui à lei
ordinária o encargo de definir e assegurar a adequada protecção do segredo de
justiça - o que foi conseguido pelos arts. 86º, nºs 1 e 4 e 89º, nº 2, do CPP.
Mas também o segredo de justiça, tal como, de resto, o da publicidade, não
vale, nem pode constitucionalmente valer, em termos absolutos. Desde logo porque
a descoberta da verdade material não pode ser prosseguida sem respeito por
«todas as garantias de defesa» que o processo penal tem constitucionalmente que
assegurar em qualquer das suas fases (cfr. nº 1 do artº 32º da CRP).
No caso concreto, porém, não se descortina em que é que a não revelação aos
Arguidos, designadamente ao A., da realização do exame pericial à Ofendida e das
suas conclusões importou restrição intolerável do seu direito de defesa,
designadamente do seu núcleo essencial, tal como configurado no nº 1 do artº 61º
do CPP.
Não estava em causa a defesa da liberdade de qualquer deles nem o
conhecimento dos seus resultados relevava para a sua preservação - hipótese,
esta sim, susceptível de acarretar a inconstitucionalidade do artº 89º, nº 2 do
CPP, como refere o Senhor Procurador-Geral Adjunto da Relação de Guimarães com a
invocação do Ac. do TC nº 121/97 (DR. II Série, de 30.04.97; outros poderiam ser
indicados, como, por exemplo, os citados na motivação do recurso). E o não
conhecimento da realização do dito exame não só não era susceptível de lhes
coarctar o direito de oferecer provas ou de requerer diligências que entendessem
necessárias à sua defesa, como não os impediu, na fase apropriada, na instrução,
cuja abertura requereram, de contraditar os seus resultados.
Reclamam, todavia, os Recorrentes, que não puderam contraditar
oportunamente o referido exame, com o que ficou definitivamente comprometida a
possibilidade de rebater esse meio de prova - o que, na sua óptica, redundará em
violação dos princípios do contraditório e do acesso aos tribunais.
Mas continuam a não ter razão.
Esquecem quem no inquérito, de que o Ministério Público é efectivamente o
dominus - por isso que dispõe, dada essa posição, de «um livre e incondicionado
acesso» sobre os respectivos autos (cfr. motivação, fls. 797 vº), ao contrário
do que sucede com os restantes sujeitos processuais ou simples intervenientes -
o contraditório é excepção, por opção do próprio legislador constitucional -
cfr. artº 32º, nº 5 da CRP. O que nada tem de dramático do ponto de vista do
‘asseguramento’ dos direitos de defesa, porquanto as provas nele recolhidas,
enquanto e apenas destinadas a habilitar o Ministério Público a fundamentar a
decisão de arquivamento ou de acusação, além de poderem ser eficazmente
discutidas e impugnadas na instrução, não lhes é reconhecido qualquer valor no
julgamento, enquanto aí não forem produzidas ou examinadas, agora sim, com
absoluto respeito pelo contraditório - artº 356º e 356º do CPP.
Nem se esgrima, contra tudo isto, que, se o Arguido tivesse sido submetido
a exame logo que conhecido o relatório do que foi feito à Ofendida, aquele
«teria outro valor [valor acrescido, entenda-se, relativamente ao que diz as
instâncias atribuíram ao exame que juntou com o requerimento para a abertura da
instrução], qualquer que fosse o seu resultado.
Como bem refere o Senhor Procurador-Geral Adjunto, na sua resposta, saber
se o Arguido padecia ou não da mesma doença venérea detectada à Ofendida -
candidíase genital , como esclareceu o Senhor Perito médico - «apenas revestiria
um mero interesse sanitário, não um interesse jurídico-penal atendível». Mas não
apenas isso. A omissão desse exame, no momento reclamado, apenas pode ter sido
susceptível de fragilizar os fundamentos da acusação e, consequentemente, de
favorecer a posição processual do Arguido. Basta ver, que, se tivesse sido
pericialmente apurado, naquela altura, que o Arguido era portador da referida
doença, a prova do elemento material do crime que lhe foi assacado - e vem
provado que só ele copulou com a B. - teria ficado facilitada. Já o resultado
negativo não era de molde a afastar a autoria dos factos, visto que, como
esclareceu o Senhor Perito no decurso do debate instrutório, fls. 237, e nos
informa o acórdão recorrido, fls. 783, «a existência de relação sexual com
pessoa que padeça da doença observada na ofendida (...) não acarreta
necessariamente a infecção pelo micróbio que causa a doença, não podendo sequer
estabelecer um grau de probabilidade de a doença ser contraída através de
contacto sexual com a pessoa infectada ...»
Não se vislumbra, assim, qualquer possibilidade de o segredo de justiça
ter, no caso concreto, afrontado ou, de qualquer modo, prejudicado os
indeclináveis direitos de defesa dos Arguidos, mormente os do arguido A. - razão
pela qual concluímos pela improcedência da arguida inconstitucionalidade.
(...)’
É do acórdão de que parte se encontra acima extractada que, pelo
arguido, vem interposto recurso para o Tribunal Constitucional, o que fez por
intermédio de requerimento com o seguinte teor:-
‘A., arguido, nos autos de Recurso Penal à margem identificados, tendo sido
notificado do acórdão de fls, - e não se conformando com o mesmo, dele pretende
interpor recurso para o Tribunal Constitucional, por aplicação de norma - artigo
89º do Código de Processo Penal - cuja inconstitucionalidade foi suscitada
durante o processo, mormente nas alegações apresentadas no Recurso interposto
para o Supremo Tribunal de Justiça, pretendendo que o Tribunal Constitucional
aprecie a constitucionalidade da mencionada norma, tudo nos termos do disposto
nos artigos 69º, 70º, nº1, alínea b), nº 2 e nº 3, 75º, 75º-A e 76º, nº 1, da
Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, sendo certo que da decisão ora recorrida não
cabe recurso ordinário, por já terem sido esgotados os que no caso cabiam’.
O recurso foi admitido por despacho prolatado em 13 de Abril de 2005
pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, sendo os autos
remetidos ao Tribunal Constitucional em 6 de Maio de 2005.
Já neste órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade
normativa, o relator, em 23 de Maio de 2005, exarou seguinte despacho:-
‘Não obedecendo o requerimento de interposição de recurso para este
Tribunal à totalidade dos requisitos ínsitos nos números 1 e 2 do artº 75º-A da
Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e suscitando-se dúvidas quanto à indicação do
preceito, sendo silente a dimensão normativa questionada, deveria, no Alto
Tribunal a quo, cobrar aplicação o que se dispõe no seu nº 5.
Como, porém, isso não foi levado a efeito, de harmonia com prescrito no nº
6, ainda daquele mesmo artigo, convido o impugnante a dar cabal cumprimento ao
que se dispõe nos referidos números 1 e 2, prestando também a aludida
indicação’.
Na sequência, o recorrente veio apresentar requerimento em que disse:-
‘(...)
- o recurso é interposto ao abrigo da alínea b), do nº 1, do artigo 70º
da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro;
- a norma cuja inconstitucionalidade pretende que este Tribunal aprecie é
a do artigo 86º do Código de Processo Penal;
- o arguido considera que tal norma viola o disposto no artigo 32º, n.º 1
da Constituição;
- a peça processual onde o arguido suscitou a questão da
inconstitucionalidade foi no Recurso interposto para o Supremo Tribunal de
Justiça’.
2. Entende-se ser de proferir decisão ex vi do nº 1 do artº 78º-A da
Lei nº 28/82.
Como resulta do relato supra levado a efeito, na motivação do recurso
para o Supremo Tribunal e Justiça, o arguido brandiu com o argumento que o artº
‘89º’ do Código de Processo Penal era conflituante com a Lei Fundamental ...
‘quando interpretada em termos de impedir sempre e quaisquer circunst[â]ncias,
de forma abstracta e rígida, o conhecimento por parte do arguido das
dilig[ê]ncias de prova que vão sendo carreadas para os autos, na fase de
inquérito, pois que o impede de as contradizer e, assim, de se defender, algumas
das vezes, como é o caso dos autos, de forma definitiva, incompatível com o
asseguramento das garantias de defesa’.
Isso significa, inquestionavelmente, que, na perspectiva do impugnante
[o que é realçado quando cita a jurisprudência do Tribunal Constitucional que
não considera passível de censura constitucional o artº 86º do Código de
Processo Penal - recte, as disposições conjugadas dos artigos 86º, nº 1, e 89º,
nº 2, do diploma adjectivo criminal - excepto se for (forem) interpretado
(interpretadas) como não permitindo a consulta do inquérito, e fora das
situações tipificadas no citado nº 2 do artº 89º, para que se possam conhecer as
diligências realizadas no inquérito e que determinaram a privação da liberdade
do arguido, a fim de a decisão impositora da medida de coacção mais severa puder
ser impugnada], aquele preceito (e, note-se, nem sequer se sabe, a que número do
artº 86º se refere o recorrente) deveria ser considerado contrário ao nº 1 do
artigo 32º da Constituição quando comportasse uma dada interpretação, que,
aliás, enunciou (justamente a que se veio a transcrever).
E, por isso mesmo, no despacho de 23 de Maio de 2005, o relator não
deixou de fazer a referência a que o requerimento de interposição de recurso
para o Tribunal Constitucional era silente quanto à dimensão normativa
questionada, pelo que deveria ser feita a cabida indicação.
Ora, no requerimento apresentado na sequência desse despacho, proferido
ao abrigo do nº 6 do artº 78º-A da Lei nº 28/82, o arguido não veio dizer qual a
dimensão do artº 86º do Código de Processo Penal (presumindo-se que é a este que
se quereria referir na motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal
de Justiça e no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional apresentado naquele Supremo) que desejava ser objecto de
apreciação.
Assim - e independentemente da consideração de o recurso ora intentado
interpor se poder considerar manifestamente infundado - o que é certo é que, in
casu, não foi cumprido o requisito da indicação do sentido normativo que se
pretendia submeter à censura deste órgão de administração de justiça.
2.1. Mas para além deste particular, existe ainda uma outra
circunstância que impediria o conhecimento do objecto da vertente impugnação.
De facto, como decorre do acórdão tirado no Supremo Tribunal de
Justiça, este Alto Tribunal considerou que, ainda que tivessem ocorrido exames
médico legais no arguido e deles se concluísse que o mesmo padecia, ou não, da
mesma doença venérea detectada à ofendida, isso não poderia constituir prova da
não autoria do crime que lhe era imputado, pois que se provou a cópula que
manteve com ela.
Ora, sendo sabido que os recursos de constitucionalidade têm natureza
instrumental, por sorte a que a decisão a tomar pelo Tribunal Constitucional só
se justifique se se puder repercutir utilmente na causa de onde emergem,
torna-se evidente que, mesmo a ser tirada, por parte deste Tribunal, decisão no
sentido da inconstitucionalidade da norma pretendida apreciar, isso nenhum
reflexo teria no decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça quanto ao juízo de
autoria do crime de violação por parte do arguido ora impugnante.
Seria, por isso, inútil, para o juízo de autoria do crime imputado ao
arguido levado a efeito pela decisão recorrida, a proferenda pronúncia por este
Tribunal, ainda que no sentido da inconstitucionalidade,
Neste contexto, não se toma conhecimento do objecto do recurso,
condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça
em seis unidades de conta, sem prejuízo de, no caso de as mesmas não serem pagas
voluntariamente, na eventualidade da sua cobrança coerciva se atender ao
benefício do apoio judiciário de que o recorrente desfruta.”
Notificado da transcrita decisão, veio o arguido A.
apresentar nos autos requerimento com o seguinte teor:-
“A., arguido, nos autos de Recurso, à margem identificados,
tendo sido notificado da, aliás douta, decisão de fls. 943 e seguintes,
vem, nos termos do disposto no artigo 669º, nº 1, do Código de Processo Civil,
requerer a V. Exª se digne esclarecer o teor da mesma, porquanto, salvo o devido
respeito, é obscura e confusa, pois que se concluiu não ter sido cumprido o
requisito da indicação do sentido normativo que se pretendia submeter à censura
deste Tribunal, quando foi cumprido na integra o despacho de fls. 939.
Por outro lado, a eventual procedência do presente recurso terá certamente
repercussões na decisão proferida, designadamente na decisão da matéria de facto
proferida ao abrigo de uma lei inquinado do referido vicio, conforme resulta do
disposto no artigo 80º, nº 2, da Lei 28/82, pelo que não se compreende a
considerada inutilidade do presente recurso”.
Porque , dados os termos utilizados no requerimento a
que agora se faz referência, facilmente se alcança que aquilo que o arguido
manifesta não é uma incompreensão do que ficou consignado na decisão de 3 de
Junho de 2005, mas sim uma discordância quanto ao que nela se contém, pelo que,
desta forma, se haveria, na realidade das coisas, que entender que o aludido
requerimento mais não consubstancia do que uma verdadeira impugnação do
decidido, determinou o relator que, respeitantemente a tal requerimento, fossem
processados os autos como uma reclamação a que se reporta o nº 3 do artº 78º-A
da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Na sequência, o Ex.mo Representante do Ministério
Público junto deste Tribunal veio sustentar que a impugnação ora deduzida era
manifestamente improcedente, já que a argumentação do recorrente em nada abalava
os fundamentos da decisão em crise no que toca à evidente inverificação dos
pressupostos do recurso interposto.
Cumpre decidir.
2. O Tribunal entende não ser de censurar a decisão ora
sub iudicio.
Na realidade, mesmo após o convite que lhe foi
endereçado, o arguido não veio indicar qual o sentido normativo, referente ao
artº 86º do diploma adjectivo civil, que, eventualmente tendo sido objecto de
aplicação por banda do acórdão prolatado pelo Supremo Tribunal de Justiça,
pretendia que fosse objecto do recurso interposto para este Tribunal.
Por outro lado, as considerações carreadas à decisão
impugnada no que se prende com a inutilidade de uma eventual decisão de
inconstitucionalidade a tomar por este Tribunal quanto ao juízo de autoria do
crime pelo qual o arguido veio a ser condenado (já que se provou a cópula que
manteve com a ofendida), mostram-se claras a insusceptíveis de merecer
discordância por parte do Tribunal.
Carece, desta arte, de qualquer suporte o requerimento
agora apresentado pelo recorrente que, como se viu, manifesta inconformismo com
o decidido.
Termos em que se indefere a reclamação nele corporizada,
condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça
em vinte unidades de conta, sem prejuízo de, não havendo pagamento voluntário,
na eventualidade de se proceder à sua cobrança coerciva, se atentar no benefício
de apoio judiciário de que o mesmo desfruta.
Lisboa, 28 de Junho de 2005
Bravo Serra
Gil Galvão
Artur Maurício