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Processo n.º 494/04
2ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto
no art.º 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua
actual versão (LTC), do acórdão, de 07/01/2004, do Tribunal da Relação de
Coimbra que decidiu alterar o regime de subida do recurso para ele interposto do
despacho de pronúncia – de subida imediata para subida diferida com o recurso
interposto da decisão que tiver posto termo à causa.
2 – No recurso interposto para a Relação do despacho de pronúncia, o
recorrente invocou “diversas nulidades, irregularidades e inconstitucionalidades
que feriam o inquérito e especialmente a instrução, bem como outras questões
prévias ou incidentais, a saber: a insuficiência do inquérito e da instrução e a
nulidade daí decorrente; as nulidades, irregularidades e inconstitucionalidades
suscitadas nos requerimentos/reclamações do arguido de 19.09.2001 (fls. 1138 e
ss.) e de 31.05.2002 (fls. 1455-1457), bem como no debate instrutório, em
conclusões orais e sintetizadas no escrito junto aos autos nesse mesmo debate,
relativamente ao indeferimento de diligências de prova requeridas pelo arguido;
os vícios do debate instrutório; os vícios do despacho de pronúncia; a
irrelevância criminal dos factos descritos na acusação e, consequentemente, na
pronúncia; a violação do princípio in dubio pro reo e outras consequências
processuais do “valor indeterminado” do alegado furto” (sic).
3 – Na parte relevante para a compreensão e decisão do objecto do
recurso de constitucionalidade, o acórdão recorrido discreteou pelo seguinte
modo:
«Nas conclusões afirmadas em sede de debate instrutório, o arguido A. reiterou
vícios processuais anteriormente invocados, sustentando que aquele debate
deveria ser dado sem efeito.
Tais questões foram já decididas nos autos, estando pendente recurso sobre
algumas, donde resulta que este tribunal não poderá voltar a pronunciar-se sobre
elas.
Não há, pois, outras nulidades, irregularidades ou outras questões prévias e
incidentais que, neste momento, cumpra conhecer e obstem à apreciação do fundo
da causa.
*
Após tais considerandos concluiu-se que os factos imputados aos arguidos no
despacho de acusação não são bastantes para integrarem o crime de associação
criminosa, para depois, vir a pronunciar os arguidos.
Notificado de tal despacho, o arguido A. veio arguir a nulidade ou
irregularidade do mesmo, bem como a omissão de pronúncia no que concerne à
nulidade cominada no art. 120°, n.º 2, al. d), do CPP.
Seguidamente, antes de ser proferido despacho sobre o que antes arguira, veio
interpor recurso para este Tribunal, ao abrigo do disposto nos arts 399°, 400°,
nº 1, a contrario, 401°, n.º 1, b), 406°, n.º 1, 407°, n.º 1, i), 408°, n.º 1,
b), 410°, n.ºs 1 e 2, 411°, n.º 1, 427°, 428° e 432° a contrario do Código de
Processo Penal, respeitante ao próprio despacho de pronúncia.
Tal recurso foi admitido para subir imediatamente, em separado, com efeito
suspensivo, com base nos artigos 406°, n.º 2, 407°, n.º 1, al. i), e 408°, n.º
1, al. b), todos do Código de Processo Penal (fls. 1656).
As nulidades e irregularidades arguidas foram indeferidas pelo despacho de fls.
1846.
Neste, parte final, se refere que se encontram pendentes três recursos: um
primeiro interposto a fls. 1217 pelo arguido B.; outro interposto a fls. 1252
pelo arguido A. e um terceiro intentado por este último arguido.
Relativamente aos dois primeiros determinou-se que os mesmos subissem em
separado, imediatamente após a decisão instrutória que viesse a pronunciar os
arguidos.
Quanto ao último, aquele a que se reportam os presentes autos, que subisse
imediatamente em separado.
Aplicando o disposto no art. 735°, n.º 1 do Cod. Proc. Civil, determinou-se que
tais recursos deviam subir conjuntamente, neste momento, afigurando-se que
deverão também ser instruídos e julgados em conjunto.
O arguido A. veio entretanto, desistir do recurso interposto a fls. 1252, o que
foi homologado.
Foi apresentada resposta à motivação do recurso.
*
Como se referiu, o presente recurso foi admitido para subir imediatamente.
E a primeira questão que se coloca é a do momento da subida do recurso, que se
nos afigura estar mal fixado.
Com efeito, trata-se de um recurso reportado ao indeferimento das nulidades
arguidas antes do despacho de pronúncia.
É manifesto que o despacho recorrido não se enquadra na previsão do n.º 1 do
art.407° do C.P Penal.
E diz o n.º 2 desse artigo:
“Sobem imediatamente os recursos cuja retenção os tornaria absolutamente
inúteis'...
Ora, no caso em análise, em que o recurso visa obter a anulação da decisão
instrutória, não vê se que o mesmo deixe de ter utilidade pelo facto de vir a
ser apreciado depois da decisão que venha a pôr termo à causa. È que, caso seja
julgado procedente, anular-se-ão a decisão instrutória e todos os actos
processuais que se lhe seguirem, incluindo o próprio julgamento, dando-se assim,
com evidente utilidade, satisfação à pretensão dos recorrentes. (Ac. Rel. Porto,
1/10/97, Col. Jur. Ano XXII, T. IV, pág. 240).
A situação dos autos é igual, pelo que entendemos alterar o regime de subida do
recurso interposto sobre a decisão instrutória.
E o mesmo regime deve seguir o recurso interposto por B., pelas mesmas razões.
Muito embora os recursos tenham sido admitidos para subir imediatamente, tal não
vincula tribunal superior (art. 414°, nº 3 do Cod. Proc. Penal).
X X
X
Termos em que acordam em alterar o regime de subida dos recursos, determinando
que estes subam com o que vier a ser interposto da decisão final.
Sem tributação.».
4 – Notificado deste acórdão, o ora recorrente requereu o seu
esclarecimento no sentido de saber, segundo os seus próprios termos, «qual foi o
iter argumentativo que conduziu à conclusão de que se trata “de um recurso
reportado [reportado apenas, pois esse parece-nos ser o sentido útil da menção
em causa e das consequências que daí são tiradas] ao indeferimento das nulidades
arguidas antes do despacho de pronúncia”, daí se retirando depois consequências
em matéria de regime de subida do recurso».
Porém, antes de decidido este pedido de aclaração, ora recorrente
veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional através de requerimento do
seguinte teor:
«I. Do regime da subida do presente recurso
De acordo com o Artº 78, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, 'o recurso
interposto de decisão proferida já em fase de recurso mantém os efeitos e o
regime de subida do recurso anterior'.
O presente recurso vem interposto de uma decisão proferida já em fase de
recurso, o qual havia subido imediatamente, nos próprios autos e com efeito
suspensivo. Donde resulta que, ao abrigo da citada disposição legal, o presente
recurso deve subir, igualmente, de forma imediata, nos próprios autos e com
efeito suspensivo.
Contudo, in casu, a decisão da qual vem interposto o presente recurso, e que
fora ela própria proferida já em fase de recurso, alterou o regime de subida
desse mesmo recurso (aliás, é exactamente essa alteração que justifica o
presente recurso).
Ora, como parece evidente, tal circunstância não pode impedir que o presente
recurso suba imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo. Por um
lado porque foi esse, efectivamente, o regime de subida do recurso que deu
origem à decisão ora recorrida, independentemente da decisão posterior que tenha
sido proferida sobre essa mesma questão. Por outro lado porque, na ordem
jurídica, a única decisão transitada em julgado, relativamente ao regime de
subida do recurso, consiste na decisão do Tribunal de primeira instância, uma
vez que a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra - que revogou aquela -
encontra-se agora pendente de recurso.
II. Do pedido de aclaração
O Arguido suscitou, junto do Tribunal da Relação de Coimbra, um pedido de
aclaração do Acórdão ora recorrido.
Não existe, no âmbito da Lei do Tribunal Constitucional e do Código de Processo
Penal, regra idêntica à constante do Artº 686, nº 1, do Código de Processo
Civil. Assim, acautelando (porventura, com excesso de zelo) a possibilidade de
se entender não aplicar o referido Artº 686, nº 1, do Código de Processo Civil,
subsidiariamente, e ao abrigo do Artº 4 do Código de Processo Penal e do Artº 69
da Lei do Tribunal Constitucional, ao caso dos presentes autos, vem o Arguido
interpor, desde já, o presente recurso para o Tribunal Constitucional.
O Arguido requererá os necessários aperfeiçoamentos ao presente requerimento,
caso os mesmos se justifiquem, após a aclaração do Acórdão recorrido.
DA QUESTÃO DE FUNDO
O Recorrente pretende a apreciação da inconstitucionalidade das normas
constantes do artigo 407°, n.º 1, alínea i), e do artigo 407°, n.º 2, ambos do
Código de Processo Penal (adiante CPP), na interpretação feita pelo Tribunal da
Relação de Coimbra, no seu acórdão ora recorrido.
Assim,
No acórdão ora recorrido, o Tribunal da Relação de Coimbra interpretou o artigo
407, n.º 1, alínea i), do CPP, no seguinte sentido:
'É manifesto que o despacho recorrido não se enquadra na previsão do n.º 1, do
art. 407º do C.P.Penal”'
No entendimento do Tribunal a quo, ou melhor, naquele que o Arguido julga ser o
entendimento do Tribunal a quo - uma vez que este foi pouco generoso na
respectiva fundamentação - o artigo 407, n.º 1, alínea i), do CPP apenas se
aplicará à decisão instrutória 'de fundo', isto é, à decisão instrutória (ou
parte ideal da decisão instrutória) que pronuncie, ou não, o Arguido pelos
factos constantes da acusação do Ministério Público.
Ao invés, de acordo com o entendimento do Tribunal a quo, tal dispositivo legal
não se aplicaria à chamada decisão instrutória 'de forma', isto é, a decisão
instrutória (ou a parte ideal da decisão instrutória) que se reporta às questões
prévias ou incidentais, previstas no Artº 308º, n.º 3, do CPP.
A interpretação do Tribunal da Relação de Coimbra, vertida no acórdão recorrido,
a propósito do disposto no artigo 407°, n.º 1, alínea i), do CPP, tem como
consequência a inconstitucionalidade material da norma resultante de tal
interpretação, nomeadamente, por violação do disposto nos artigos 1º, 2°, 13°,
20°, 32°, n.ºs 1, 2, 4 e 5 e 202°, n.º 2, da Constituição da República
Portuguesa (adiante CRP).
Devendo, portanto, entender-se que o artigo 407°, n.º 1, alínea i), do CPP,
determina a subida imediata de todo e qualquer recurso da decisão instrutória,
que não esteja excluído pelo artigo 310°, do CPP, independentemente de o mesmo
se referir à decisão de forma ou à decisão de fundo.
Com efeito, concretizando um pouco mais o referido vício (sem prejuízo de cabal
e completo desenvolvimento em sede de alegações), podemos dizer que:
(i) A decisão instrutória é constituída por duas partes
distintas; uma incide sobre meras questões formais e a outra incide sobre a
questão de fundo. Nos termos do Artº 407, n.º 1, alínea i), do CPP, têm subida
imediata os recursos interpostos 'da decisão instrutória, sem prejuízo do
disposto no artigo 310º'. Assim, a lei consagra, genericamente, a subida
imediata de todo e qualquer recurso da decisão instrutória, que não esteja
excluído pelo artigo 310°, do CPP, sem apresentar qualquer distinção entre
decisão instrutória de fundo e de forma.
O Tribunal a quo realizou, portanto, uma interpretação restritiva do disposto no
Artº 407, n.º 1, alínea i), do CPP, sem fundamento suficiente, e em claro
desfavor e prejuízo do Arguido. Tal interpretação restritiva é proibida, em
processo penal, por violação do principio da presunção de inocência, consagrado
no Artº 32, n.º 2, da CRP, o qual determina, de forma transversal, que a
restrição dos direitos de cidadania do Arguido tenha o alcance mais restrito
possível (quantitativa e qualitativamente), violando, igualmente, o Artº 32º,
n.º 1, da CRP, que assegura todas as garantias de defesa ao Arguido, e o Artº
20º da CRP, que consagra o direito à tutela jurisdicional efectiva.
(ii) A referida interpretação do Artº 407º, n.º 1, alínea i), do
CPP, redunda em norma que viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo
13º da CRP, uma vez que implica um possível tratamento diferente, em termos de
direitos e garantias processuais, de Arguidos que se encontrem numa situação
material idêntica.
Designadamente, e entre o mais, tal interpretação implicará regimes de subida
diferentes para recursos que digam respeito, exclusivamente, à decisão
instrutória de forma, pelo simples facto de a decisão instrutória de fundo – a
qual não está em causa nos referidos recursos! - confirmar, ou não, os factos
constantes da acusação do Ministério Público.
(iii) A finalidade da instrução consiste na comprovação
jurisdicional dos pressupostos jurídico-factuais da acusação, impedindo que o
Arguido seja sujeito a julgamento, quando esses pressupostos se revelem
infundados. Nessa medida, a existência da fase processual da instrução é imposta
pelo princípio da dignidade da pessoa humana e do primado do Estado de Direito
Democrático, consagrados nos Art.ºs 1 e 2 da CRP, os quais proíbem que um
cidadão seja sujeito a julgamento, com tudo o que isso implica em termos de
compressão dos direitos, liberdades e garantias e em termos de estigmatização
social e moral, sem que exista prévia confirmação judicial - pois de acordo com
o Artº 202º da CRP é aos tribunais que cabe a defesa dos direitos liberdades e
garantias dos cidadãos - da suficiência dos indícios em causa. Aliás, de acordo
com o Artº 32º, n.° 4 e 5 da CRP, a instrução, embora facultativa, é um Direito
Fundamental.
Nesses termos, a interpretação do Artº 407º, n.º 1, alínea i), do CPP, proposta
pelo Tribunal da Relação de Coimbra, redunda em norma que viola os Art.ºs 1º,
2º, 32º, n.ºs 4 e 5, e 202º, n.º 2, da Constituição, por implicar que se sujeite
alguém a julgamento, com tudo quanto tal julgamento tem de estigmatizante e
compressor de direitos fundamentais, em momento anterior à decisão sobre a
questão da nulidade e/ou outros vícios do despacho de pronúncia, a qual poderá
determinar que tal julgamento não deveria e não poderia ter tido lugar.
A questão de inconstitucionalidade anteriormente apresentada já tinha sido
invocada durante o presente processo, de forma adequada e tempestiva, no recurso
para o Tribunal da Relação de Coimbra do despacho de pronúncia.
Acresce que:
No acórdão ora recorrido, o Tribunal da Relação de Coimbra interpretou o artigo
407º, n.º 2, do CPP, no seguinte sentido:
'no caso em análise, em que o recurso visa obter a anulação da decisão
instrutória, não se vê que o mesmo deixe de ter utilidade pelo facto de vir a
ser apreciado depois da decisão que venha a pôr termo à causa. È que, caso seja
julgado procedente, anular-se-ão a decisão instrutória e todos os actos
processuais que se lhe seguirem, incluindo o próprio julgamento, dando-se assim,
com evidente utilidade, satisfação à pretensão dos recorrentes'.
Na interpretação formulada pelo Tribunal a quo, a norma constante do artigo
407º, n.º 2, do CPP nunca seria aplicável ao recurso do despacho de pronúncia -
nomeadamente ao recurso do despacho de pronúncia dos presentes autos - na medida
em que o provimento desse mesmo recurso, ainda que julgado conjuntamente com o
recurso da decisão que põe termo ao processo, sempre determinaria a anulação de
todos os actos processuais a partir da decisão instrutória, inclusive,
garantindo, assim, a satisfação plena dos interesses e pretensões do Arguido e,
em consequência, a utilidade do recurso em causa.
A interpretação do Tribunal da Relação de Coimbra, vertida no acórdão recorrido,
a propósito do disposto no artigo 407°, n.º 2, do CPP, tem como consequência a
inconstitucionalidade material da norma resultante de tal interpretação,
nomeadamente, por violação do disposto nos artigos 1°, 2°, 20°, 32°, n.º s 4 e
5, e 202°, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Devendo, portanto, entender-se que o artigo 407°, n.º 2, do CPP, determina a
subida imediata do recurso do despacho de pronúncia, como garantia do efeito
útil do mesmo.
Com efeito, concretizando um pouco mais o referido vício (sem prejuízo de cabal
e completo desenvolvimento em sede de alegações), podemos dizer que:
(i) Conforme referido anteriormente, a finalidade da instrução
consiste na comprovação jurisdicional dos pressupostos da acusação, impedindo
que o Arguido seja sujeito a julgamento, com tudo o que isso implica em termos
de compressão dos direitos, liberdades e garantias e em termos de estigmatização
social e moral, quando esses mesmos pressupostos se revelem infundados.
Nesses termos, a interpretação do Artº 407º, n.º 2, do CPP, proposta pelo
Tribunal da Relação de Coimbra, redunda em norma que viola os Artºs 1º, 2º, 20º,
32º, n.ºs 4 e 5, e 202º, n.º 2, da Constituição, uma vez que os efeitos
estigmatizante e compressores de direitos fundamentais provocados pela sujeição
a julgamento nunca poderão ser reparáveis, ainda que a decisão posterior sobre a
questão da nulidade e/ou outros vícios do despacho de pronúncia venha a
determinar que tal julgamento não deveria e não poderia ter tido lugar.
A questão da inconstitucionalidade da norma resultante do Artº 407º, n.º 2, do
CPP, na interpretação feita pelo Tribunal da Relação de Coimbra, só agora foi
invocada pelo Arguido, na medida em que o presente requerimento de interposição
de recurso constitui o primeiro momento processualmente admissível para o
efeito.
Na verdade, de acordo com o entendimento do Arguido, vertido no recurso do
despacho de pronúncia, a subida imediata do mesmo justificava-se, desde logo,
pela aplicação directa do Artº 407º, n.º 1, alínea i), do CPP - tendo sido,
então, alegada a inconstitucionalidade de norma resultante de interpretação
diferente desse mesmo preceito. Assim, a invocação do Artº 407º, n.º 2, do CPP,
foi realizada, ex officio, e de forma inesperada e inovadora, pelo próprio
Tribunal a quo, não tendo sido dada ao Arguido a possibilidade de se pronunciar
sobre a aplicação dessa mesma disposição legal.
É jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional que deve ser reconhecido o
direito ao recurso, nos casos excepcionais e anómalos, em que o interessado não
dispõe de oportunidade processual para levantar a questão de
inconstitucionalidade antes de proferida a decisão (cfr. Ac. 318/89,329/95,
521/95,364/00 e 374/00, entre outros).
No presente recurso, a questão da inconstitucionalidade da norma constante do
Artº 407, nº 2, do CPP, na interpretação feita pelo Tribunal da Relação de
Coimbra, é invocada a titulo subsidiário, ficando a sua apreciação prejudicada
pela declaração de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 407°, nº
1, alínea i), do CPP, na interpretação feita pelo Tribunal da Relação de
Coimbra.».
5 – Ao pedido de aclaração, o Tribunal da Relação de Coimbra
respondeu do seguinte jeito no seu Acórdão, de 10 de Março de 2004:
«Tendo sido proferido o acórdão de fls. 1882 e segs. onde se determinou a
alteração do regime de subida dos recursos, determinando-se que subissem com o
que vier a ser interposto da decisão final, vem o arguido A. pedir
esclarecimentos, referindo que se não trata só de um recurso do despacho de
pronúncia, ainda que alguns dos vícios deste decorram de vícios anteriores,
versando ainda o recurso outras nulidades, como por exemplo, a omissão de
pronúncia em sede de despacho de pronúncia, bem como os demais vícios do
despacho de pronúncia, a irrelevância criminal dos factos e a violação do
princípio in dubio pro reo.
Mas sem razão.
Porque basta verificarmos a conclusão 1ª da motivação do seu recurso para se
constatar que o presente Recurso do despacho de pronúncia é admissível, porque
relativo a nulidades (e irregularidades) ocorridas durante o inquérito e a
instrução e a outras questões prévias ou incidentais (sublinhado nosso).
Sendo as conclusões que delimitam o objecto do recurso, vemos, pelo referido,
que a circunstância que esteve na base do decidido está perfeitamente correcta,
nada havendo a esclarecer.».
6 – Notificado para alegar, no Tribunal Constitucional, assim concluiu o
recorrente o seu discurso argumentativo:
«1 Os Artºs 407, n.º 1, alínea i), e n.º 2, do CPP, foram aplicados pelo
Tribunal da Relação de Coimbra, no Acórdão recorrido, embora em conjugação com o
n.º 3 do mesmo artigo, o qual não funciona (não pode funcionar!) sem os dois
primeiros; daí se explicar que, antes de fixar o regime de subida diferida, o
Tribunal tenha sustentado expressamente que a situação dos presentes autos não
se enquadrava nem no n.º 1 nem no n.º 2, do Artº 407º, do CPP.
2 No entendimento do Tribunal a quo, o artigo 407º, n.º 1, alínea i), do
CPP, apenas se aplicará à decisão instrutória 'de fundo', isto é, à decisão
instrutória (ou à parte ideal da decisão instrutória) que pronuncie, ou não, o
Arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público.
3 O Tribunal da Relação de Coimbra interpretou o Artº 407º, n.º 1, alínea
i), do CPP, no sentido que mais restringe o estatuto de liberdade do Arguido,
introduzindo, sem fundamento suficiente, e de forma desnecessária, um novo
grilhão na sua situação processual, optando, entre as mentalmente possíveis,
pela solução mais odiosa para a sua dignidade,
4 Ainda para mais numa matéria que diz directamente respeito a direitos
fundamentais do Arguido, de natureza constitucional como é o caso do direito ao
recurso útil do direito à realização de uma instrução efectiva (enquanto fase
processual) e do direito à tutela da dignidade da pessoa humana, no sentido de o
Arguido não ser sujeito a julgamento antes da estabilização da instância em fase
de acusação ou pronúncia.
5 Tal interpretação restritiva e/ou correctiva da lei, em prejuízo do
Arguido, redunda em norma inconstitucional por violação do princípio da
presunção da inocência do Arguido, previsto no Artº 32º, n.º 2, da Constituição,
entendido como o fiel garante da mínima restrição possível dos direitos do
Arguido.
6 O carácter restritivo e/ou correctivo da interpretação do Artº 407º,
n.º 1, alínea i), do CPP, promovida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, e
também o seu carácter injustificado e infundado, resultam da análise, em
concreto, dos diversos elementos de interpretação.
7 É pacífico que a decisão instrutória é composta, em igual medida, por
uma decisão de 'forma' e por uma decisão de 'fundo', sendo certo que de acordo
com a letra do Artº 407º, n.º 1, alínea i, do CPP sobe imediatamente o recurso
da decisão instrutória - todo e qualquer recurso da decisão instrutória – sem
distinção, seja o recurso da decisão de 'fundo' e de 'forma' em conjunto, seja o
recurso em separado da decisão de 'fundo', seja o recurso em separado da decisão
de 'forma'.
8 Pelo que o elemento literal da interpretação da referida lei não
autoriza que o Tribunal da Relação de Coimbra proceda, onde a lei não distingue,
à distinção entre a decisão de 'forma' e a decisão de 'fundo', no que diz
respeito ao regime de subida do correspondente recurso.
9 A ressalva final do Artº 407º, n.º 1, alínea i), do CPP ('sem prejuízo
do disposto no artigo 310º'), não revela se a decisão instrutória sobe
imediatamente ou apenas com a decisão final, servindo apenas para garantir a
irrecorribilidade de certas decisões instrutórias - previstas no Artº 310º, do
CPP - não obstante a existência de uma disposição legal que, em termos gerais e
sem distinções, estabelece que o recurso da decisão instrutória sobe
imediatamente.
10 O Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de fixação de jurisprudência nº
6/2000 decidiu equiparar, ao nível da recorribilidade, a nulidade prevista no
Artº 309º do CPP e as demais nulidades da decisão instrutória, sendo certo que
tal equiparação deve valer, por identidade de razão, para o regime da subida do
recurso em causa;
11 Nessa medida, considerando que o recurso do despacho que indefere a
arguição da nulidade prevista no Artº 309º do CPP sobe imediatamente, por
coerência sistemática (e é nesse sentido que milita o elemento sistemático da
interpretação), e tendo em conta a equiparação anteriormente referida, o recurso
do despacho que indefere a arguição das demais nulidades também deve subir
imediatamente.
12 A não subida imediata dos recursos dos despachos que indeferem a arguição
de nulidades da decisão instrutória colocaria o Arguido numa situação processual
aberrante pois, pelo menos em tese, o provimento de tal recurso implicaria, não
a absolvição do Arguido, mas a sujeição do mesmo a um novo julgamento (ou à
repetição do anterior, conforme se preferir), pelo que, tendo o Arguido
requerido a instrução para evitar a submissão a julgamento, ao invés, por força
de uma (inadmissível) subida diferida do recurso, em tese, poderia vir a ser
julgado duas vezes.
13 A finalidade da instrução consiste em avaliar se a causa deve ou não deve
ser submetida a julgamento, tendo em conta a matéria factual recolhida e a
avaliação jurídica que a mesma merece, da mesma forma que, ao requerer a
abertura da instrução, o Arguido prossegue, em primeira linha, essa mesma
finalidade - a obtenção de uma decisão favorável sobre a (não) submissão da
causa a julgamento (e uma decisão estável, que não venha a ser anulada a final,
obrigando-o a ir a julgamento mais do que uma vez),
14 Nessa medida, em termos teleológicos (e é nesse sentido que milita o
elemento teleológico da interpretação da lei), faz mais sentido que a decisão de
submeter a causa a julgamento se estabilize antes da realização desse mesmo
julgamento, do que realizar o julgamento em causa antes da estabilização da
decisão de realizar o mesmo.
15 A celeridade processual será um valor importante, apenas, na medida em que
acrescente eficiência ao sistema, sem prejudicar os direitos de defesa do
Arguido; no recurso relativo a nulidades ou irregularidades ocorridas no decurso
do inquérito ou da instrução e demais questões prévias ou incidentais, as
questões em causa são eminentemente jurídicas, pelo que a remessa 'apressada'
dos autos para julgamento torna-se ineficiente, uma vez que a fase de julgamento
é o estádio privilegiado para a apreciação dos factos.
16 Face ao exposto, a norma que resulta da interpretação restritiva e/ou
correctiva do Artº 407º, n.º 1, alínea i), do CPP, promovida pelo Tribunal da
Relação de Coimbra, é inconstitucional por violação do princípio da presunção de
inocência do Arguido, previsto no Artº 32º, n.º 2, da Constituição, entendido em
sentido amplo, enquanto fiel garante da mínima restrição possível dos direitos e
posições processuais do Arguido.
17 Acresce que a subida diferida do recurso da decisão instrutória 'de
forma', quando a respectiva decisão 'de fundo' seja irrecorrível, implica, como
se verifica nos presentes autos, que o julgamento seja realizado com base num
despacho de pronúncia cuja validade foi expressamente impugnada junto de um
tribunal superior, pelo que a realização desse mesmo julgamento só poderá ser
suportada por uma presunção de validade da pronúncia subjacente,
18 Sendo certo que tal presunção, pelo menos em algumas situações, implica
uma (ilegítima) antecipação do juízo sobre a alegada responsabilidade do
Arguido, a qual não é necessária, nem justificada por qualquer outro interesse
relevante, nem sequer o da celeridade processual, podendo ser evitado caso se
consagrasse - como efectivamente se consagra - a subida imediata desse mesmo
recurso.
19 A interpretação restritiva e/ou correctiva do Artº 407º, n.º 1, alínea i),
do CPP, promovida pelo Tribunal da Relação de Coimbra redunda, ainda, em norma
inconstitucional por violação do direito fundamental a um processo equitativo,
previsto no Artº 20º, n.º 4, da Constituição, e do direito fundamental às
garantias plenas de defesa em processo penal, incluindo o recurso, previsto no
Artº 32º, n.º 1, da Constituição,
20 Os quais implicam que o Arguido, enquanto titular de um estatuto de pessoa
livre, possa confiar, legitimamente, na interpretação meramente declarativa das
leis, impedindo que venha a ser surpreendido e prejudicado por uma interpretação
restritiva e/ou correctiva da mesma, com a qual não contava e que não tem
justificação suficiente.
21 A interpretação do Artº 407º, n.º 1, alínea i), do CPP, promovida pelo
Tribunal da Relação de Coimbra redunda em norma inconstitucional, por violação
do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da CRP, uma vez que implica
um possível tratamento diferente, em termos de direitos e garantias processuais,
de Arguidos que se encontram numa situação material idêntica, sem que exista
razão justificativa para a diferença de tratamento.
22 Com efeito, Arguidos que tenham sido pronunciados e tenham recorrido do
despacho de pronúncia, com fundamento exclusivo em nulidade ocorrida durante a
instrução (decisão instrutória 'de forma'), teriam um tratamento diferente ao
nível do regime de subida do recurso, pelo facto de, no que diz respeito à
questão 'de fundo' – a qual nem sequer estava em análise nos respectivos
recursos - um dos Arguido ter sido pronunciado pelos mesmos factos que constam
da acusação do Ministério Público.
23 A interpretação do Artº 407º, n.º 1, alínea i), do CPP, proposta pelo
Tribunal da Relação de Coimbra, redunda em norma que viola os Artºs 1º, 2º, 32º,
n.ºs 4 e 5, e 202º, n.º 2, da Constituição, por implicar que se sujeite alguém a
julgamento, com tudo quanto tal julgamento tem de estigmatizante e compressor de
direitos fundamentais, em momento anterior à decisão definitiva sobre a questão
da nulidade, irregularidade e/ou outros vícios do despacho de pronúncia, a qual
poderá determinar que tal julgamento não deveria e não poderia ter tido lugar.
24 Com efeito, a realização do julgamento criminal antes da estabilização
definitiva da instância, antes do saneamento definitivo do processo e (veja-se a
incoerência!) antes da decisão definitiva sobre a submissão ou não do Arguido a
esse mesmo julgamento viola, entre o mais, a dignidade da pessoa humana e as
garantias de defesa do Arguido, traduzidas no direito fundamental a uma
instrução efectiva.
25 Aquilo que traduz a violação do princípio da dignidade humana não é a
sujeição do Arguido a julgamento, sem que exista 'uma completa e exaustiva
verificação da existência de razões que indiciem a sua presumível condenação';
antes, aquilo que traduz a violação do princípio da dignidade humana é a
sujeição do Arguido a julgamento, sem que exista uma verificação suficiente
dessas mesmas razões!
26 A jurisprudência tem entendido que o despacho que indeferir uma diligência
instrutória considerada como obrigatória tem subida imediata - veja-se, por
todos, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 3 de Fevereiro de 1998, CJ, Ano XXIII,
1998, tomo I, pág. 148 - o que revela que, pelo menos, a decisão de submeter o
Arguido a julgamento deverá ser precedida da realização das diligências
instrutórias essenciais que, devido a essa mesma essencialidade, a lei considera
obrigatórias.
27 Nos presentes autos, omitiu-se uma diligência, a diligência absolutamente
essencial para apurar se, efectivamente, o Arguido teria ou não direito às
quantias em causa, como contrapartida da sua função de Advogado, a qual consiste
na quantificação da contrapartida devida ao Arguido pelos seus serviços,
nomeadamente através do pedido de laudos de honorários à única entidade
competente para o efeito (cfr. nomeadamente artigo 42º, n.º 1, alínea t) do
E.O.A.), isto é, a Ordem dos Advogados.
28 Se é verdade que a submissão do Arguido a julgamento não constitui, por si
(e sublinha-se, por si só), uma violação do princípio da dignidade da pessoa
humana, é igualmente seguro que, no caso dos presentes autos, tal violação
resulta dos factos de (i) tal submissão a julgamento fazer-se com base num
despacho de pronúncia alegadamente nulo ou irregular, o que inquina a própria
decisão de submeter o Arguido a julgamento, (ii) a subida diferida do recurso da
decisão instrutória 'de forma' implicar, em tese, a possibilidade de o Arguido
vir a ser submetido a julgamento por duas vezes, quando havia requerido a
instrução para evitar esse mesmo julgamento e (iii) o Arguido que, nos presentes
autos, se pretende levar a julgamento ser um Advogado que se encontra acusado
pela prática de um furto, no exercício da sua profissão, em que o queixoso é,
precisamente, o cliente desse mesmo Advogado.
29 Na interpretação formulada pelo Tribunal a quo, a norma constante do
artigo 407º, n.º 2, do CPP, nunca seria aplicável ao recurso do despacho de
pronúncia - nomeadamente ao recurso do despacho de pronúncia dos presentes autos
- na medida em que o provimento desse mesmo recurso, ainda que julgado
conjuntamente com o recurso da decisão que põe termo ao processo, sempre
determinaria a anulação de todos os actos processuais a partir da decisão
instrutória, inclusive, garantindo, assim, a satisfação plena dos interesse e
pretensões do Arguido e, em consequência, a utilidade do recurso em causa.
30 A interpretação do Tribunal da Relação de Coimbra a propósito do disposto
no artigo 407º, nº 2, do CPP, tem como consequência a inconstitucionalidade
material da norma resultante de tal interpretação, nomeadamente, por violação do
disposto nos artigos 1°, 2°, 20°, 32°, nº s 4 e 5 e 202°, n.º 2, da
Constituição, por implicar que se sujeite o Arguido a julgamento, com tudo
quanto tal julgamento tem de estigmatizante e compressor de direitos
fundamentais, em momento anterior à decisão sobre a questão da nulidade,
irregularidade e/ou outros vícios do despacho de pronúncia, a qual poderá
determinar que tal julgamento não deveria e não poderia ter tido lugar.
31 E isto porque, por um lado, a concepção do direito processual penal
enquanto 'direito constitucional aplicado' não permite que se adopte uma
interpretação tão estreita e redutora do Artº 407º, n.º 2, do CPP, o qual deve
ser compreendido como co-envolvendo uma cláusula geral de segurança efectiva (e
não virtual) do sistema e, nesta medida, abrangendo, no mínimo, as decisões que
possam conflituar com direitos fundamentais consagrados na Constituição.
32 Assim, haverá certas situações - pelo menos aquelas em que estejam em
causa direitos fundamentais do Arguido, como é o caso dos presentes autos - em
que a eventual anulação de todo o processado e a satisfação do respectivo
interesse do Arguido que são objecto de tutela jurídica, justificando-se a
subida imediata do recurso.
33 Por outro lado, embora tivesse aderido ao critério puramente processual do
conceito de “inutilidade absoluta”, o Tribunal da Relação de Coimbra veio a
aplicar esse critério de forma incorrecta, no âmbito do presente processo, pois
não faz sentido que, relativamente a um recurso do despacho de pronúncia
fundado, entre o mais, na insuficiência do inquérito e da instrução e no
indeferimento de diligências de prova requeridas pelo Arguido, se defenda que a
eventual anulação de todos os actos processuais a partir da decisão instrutória,
inclusive, satisfaria, de forma plena, os interesses processuais do Arguido,
34 Pois, transitando os autos para a fase de julgamento (a fase rainha do
processo penal), o Arguido poderá ver finalmente realizadas, nessa mesma fase
processual, oficiosamente (Artºs 323º e 340º do CPP) ou a requerimento (Artº
315º do CPP), as diligências omitidas na instrução!
35. A questão da inconstitucionalidade da norma resultante do Artº 407º,
n.º 2, do CPP, na interpretação feita pelo Tribunal da Relação de Coimbra, foi
invocada pelo Arguido, no próprio requerimento de interposição de recurso para o
Tribunal Constitucional, na medida em que esse mesmo requerimento de
interposição de recurso constituiu o primeiro momento processualmente admissível
para o efeito.
36 Nas presentes Alegações de recurso, a questão da
inconstitucionalidade da norma constante do Artº 407º, n.º 2, do CPP, na
interpretação feita pelo Tribunal da Relação de Coimbra, é invocada a título
subsidiário, ficando a sua apreciação prejudicada pela declaração de
inconstitucionalidade da norma constante do artigo 407°, n.º 1, alínea i), do
CPP, na interpretação feita pelo Tribunal da Relação de Coimbra.
Nesses termos, e nos mais de Direito aplicáveis, nomeadamente através do
disposto no Artº 79º-C da Lei do Tribunal Constitucional, deve o Tribunal:
A) Declarar a inconstitucionalidade material da norma constante do
disposto no Artº 407°, n.º 1, alínea i), do CPP, no sentido em que este foi
interpretado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no Acórdão recorrido, por
violação do disposto nos artigos 1°, 2°, 13°, 20°, 32°, n.ºs 1, 2, 4 e 5 e 202°,
n.º 2, da Constituição.
B) A título subsidiário, e caso assim não se entenda, declarar a
inconstitucionalidade material da norma constante do disposto no Artº 407°, n.º
2, do CPP, no sentido em que este foi interpretado pelo Tribunal da Relação de
Coimbra, no Acórdão recorrido, por violação do disposto nos artigos 1º, 2°, 20°,
32°, n.ºs 4 e 5 e 202°, n.º 2, da Constituição.».
7 – O Ministério Público contra-alegou, concluindo:
«1 ° - O direito ao recurso - ínsito no princípio constitucional das garantias
de defesa do arguido - não implica que todas as decisões interlocutórias,
proferidas no decurso do processo e sem incidência nas medidas de coacção, sejam
recorríveis - nem, por maioria de razão, conduz à fixação de um regime de subida
imediata para tais recursos interlocutórios, fundado num pretenso direito do
arguido a não ser submetido a julgamento.
2° - Termos em que deverá improceder o presente recurso.».
B – Fundamentação
8 – Da delimitação do objecto do recurso
Quer no requerimento de interposição do recurso quer nas alegações
para o Tribunal Constitucional o recorrente requer a apreciação, a título
principal, da constitucionalidade da norma constante do artigo 407º, n.º 1,
alínea i), do Código de Processo Penal (CPP), na interpretação segundo a qual
este preceito apenas se aplica “à decisão instrutória (ou parte ideal da mesma)
que pronuncie, ou não, o arguido pelos factos constantes da acusação do
Ministério Público” e já não à “decisão instrutória (ou parte ideal da mesma)
que se reporta às questões prévias ou incidentais, previstas no art.º 308º, n.º
3, do CPP”, e, a título subsidiário, da constitucionalidade da norma constante
do artigo 407º, n.º 2, do mesmo compêndio processual, na interpretação segundo a
qual não são absolutamente inúteis os recursos interpostos da decisão de
instrução que julgue não verificadas as nulidades antes arguidas, traduzidas no
indeferimento de pedidos de realização de diligências no decurso do inquérito e
da instrução, a falta de fundamentação desses despachos, os vícios do debate
instrutório e do despacho de pronúncia consequenciais desse indeferimento e a
inconstitucionalidade das normas neles aplicadas, se subirem, forem instruídos e
julgados conjuntamente com o recurso interposto da decisão que tiver posto termo
à causa.
É dentro da natureza instrumental do recurso de fiscalização
concreta de constitucionalidade - de apreciação da conformidade com a Lei
Fundamental das normas que tenham constituído ratio decidendi da decisão
recorrida - que importa considerar aqueles pedidos do recorrente.
Nesse sentido entende-se que, com a formulação daqueles pedidos, o recorrente
apenas pretende acautelar, perante uma situação de dúvida sua, o conhecimento da
questão de inconstitucionalidade da norma que constituiu a ratio decidendi da
decisão recorrida.
A situação não é, por outro lado, de recurso subordinado, não admissível em
processo constitucional (n.º 4 do art.º 74º da LTC).
Mas sendo assim, a questão resume-se a uma simples questão de
interpretação de qual foi o fundamento normativo da decisão recorrida,
constituindo essa norma o objecto do recurso de que cumpre conhecer.
Ora, como decorre do acórdão recorrido – e foi posteriormente melhor
precisado no acórdão que conheceu do pedido de aclaração - este considerou que,
por força das conclusões das alegações apresentadas para o Tribunal da Relação,
o objecto do recurso que apreciou se reportava apenas “ao indeferimento das
nulidades arguidas antes do despacho de pronúncia”.
Não cabe ao Tribunal Constitucional controlar a correcção do juízo
feito pelo tribunal a quo sobre a delimitação do objecto do recurso interposto
para o mesmo tribunal, pois isso equivaleria a sindicar o seu juízo, como se
fora tribunal de hierarquia, sobre os limites dos seus poderes de conhecimento
do recurso, determinados por via da aplicação de uma determinada norma (a de que
são as conclusões que delimitam o objecto do recurso).
Tendo por referência tal pressuposto, o acórdão recorrido começou, primeiro, por
afastar expressamente a subsunção do caso ao n.º 1 do art.º 407º do CPP - ao
dizer que “é manifesto que o despacho recorrido não se enquadra na previsão do
n.º 1 do art.º 407º do C. P. Penal”.
Mas logo de seguida confrontou-o com o estatuído no n.º 2 do mesmo preceito para
daí concluir que a situação não era de recurso cuja retenção os tornaria
absolutamente inúteis, pois “no caso de ser apreciado depois da decisão que
venha a por termo à causa, anular-se-ão a decisão instrutória e todos os actos
processuais que se lhe seguirem, incluindo o próprio julgamento, dando-se assim,
com evidente utilidade, satisfação à pretensão dos recorrentes”.
Assim sendo, impõe-se concluir que o acórdão recorrido fez aplicação
quer do n.º 1 do art.º 407º [alínea i)] do CPP quer do n.º 2 do mesmo artigo, na
interpretação segundo a qual não sobe imediatamente o recurso da parte da
decisão instrutória respeitante a nulidades arguidas antes do despacho de
pronúncia (na instrução e no debate instrutório), por não estar abrangido nas
hipóteses recortadas naquele n.º 1 e a sua retenção não o tornar absolutamente
inútil.
É, pois, esta a norma cuja conformidade à Lei fundamental importa
indagar.
9 – Do mérito do recurso
9.1 - Preceitua o artigo 407º do Código de Processo Penal:
“Artigo 407.º (Momento da subida)
1 – Sobem imediatamente os recursos interpostos:
a) De decisões que ponham termo à causa;
b) De decisões posteriores às referidas na alínea
anterior;
c) De decisões que apliquem ou mantenham medidas de
coacção ou de garantia patrimonial, nos termos deste Código;
d) De decisões que condenem no pagamento de quaisquer
importâncias, nos termos deste Código;
e) De despacho em que o juiz não reconhecer
impedimento contra si deduzido;
f) De despacho que recusar ao Ministério Público
legitimidade para a prossecução do processo;
g) De despacho que não admitir a constituição de
assistente ou a intervenção de parte civil;
h) De despacho que indeferir o requerimento para a
abertura de instrução;
i) Da decisão instrutória, sem prejuízo do disposto
no artigo 310.º;
j) De despacho que indeferir requerimento de
submissão de arguido suspeito de anomalia mental à perícia respectiva.
2 – Sobem ainda imediatamente os recursos cuja retenção os tornaria
absolutamente inúteis.
3 – Quando não deverem subir imediatamente, os recursos sobem e são instruídos
e julgados conjuntamente com o recurso interposto da decisão que tiver posto
termo à causa.”
Não está em causa no recurso a questão de saber se a decisão instrutória que
pronuncia o arguido, na parte relativa às nulidades, é recorrível, questão essa
que, no passado, mereceu diferentes respostas por parte da jurisprudência dos
tribunais judiciais e sobre a qual o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do
Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2000, publicado no Diário da República I
Série-A, de 7 de Março de 2000, se pronunciou em sentido afirmativo (vide a
recensão de jurisprudência aí feita) e que foi objecto também de apreciação
neste Tribunal, entre outros, nos seus Acórdãos nº 216/99, publicado no Diário
da República II Série, de 6 de Agosto de 1999, e n.º 387/99, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt/.
Tal questão, no caso, mostra-se resolvida, tendo o recurso sido admitido.
A problemática que está agora em causa prende-se com o regime de subida dos
recursos interpostos da parte relativa ao indeferimento da arguição de nulidades
da decisão instrutória que pronunciar o arguido.
Também essa matéria foi objecto de acesa polémica no âmbito dos tribunais
judiciais, tendo-se a jurisprudência, também aqui, dividido. Recentemente, o
Acórdão de Fixação de Jurisprudência, do Supremo Tribunal de Justiça, n.º
7/2004, publicado no Diário da República I Série-A, de 2 de Dezembro de 2004,
fixou a jurisprudência de que “sobe imediatamente o recurso da parte da decisão
instrutória respeitante às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da
instrução e às demais questões prévias e incidentais, mesmo que o arguido seja
pronunciado pelos factos constantes da acusação do Ministério Público”.
No caso dos autos, a decisão recorrida seguiu doutrina de sentido oposto,
alinhando ao lado do acórdão fundamento referido naquele Acórdão de Fixação de
Jurisprudência e de outros aí identificados.
Não está, porém, em causa saber qual o melhor direito que dimana dos preceitos
infraconstitucionais do processo penal, mas sim saber se o direito assim
determinado, como correspondente a uma opção do legislador é ou não direito
válido à face da Lei Fundamental.
Sendo assim, o que agora se trata de saber é se a norma aplicada pelo acórdão
recorrido, com o sentido de que o recurso interposto da decisão instrutória, na
parte em que indefere a arguição de nulidades, apenas sobe diferidamente (depois
da decisão que ponha termo à causa), viola qualquer parâmetro constitucional.
Como resulta dos seus próprios termos, o n.º 2 do art.º 407º do CPP configura-se
como uma norma de salvaguarda da subida imediata de recursos de decisões
proferidas em processo penal relativas a situações que não estão cobertas pelo
n.º 1 do mesmo artigo, agrupadas em torno do pressuposto de qualificação “de
recursos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis”.
O Tribunal Constitucional já teve ocasião de se pronunciar várias vezes sobre a
(in)constitucionalidade da norma constante do art.º 407º, n.º 2, do Código de
Processo Penal (CPP) quando interpretada em termos de dela resultar um regime de
subida diferida para o recurso de decisões proferidas na fase de inquérito e na
fase instrutória que tenham decidido questões prévias e incidentais.
Assim o Tribunal já julgou que aquela norma, quando interpretada em
termos de considerar “como não sendo absolutamente inúteis os recursos do
despacho que indefira o pedido de realização de diligências de prova em fase de
instrução, se subirem, forem instruídos e julgados conjuntamente com o recurso
interposto da decisão que tiver posto termo à causa, não viola qualquer
princípio ou norma constitucional, designadamente os artigos 1º, 2º, 13º, 16º,
20º e 32º da Constituição da República Portuguesa” (cfr. os acórdãos n.ºs
474/94, 964/96, 1205/96, 104/98 e 68/2000, publicados no Diário da República II
Série, respectivamente, de 8 de Novembro de 1994, 23 de Dezembro de 1996, 14 de
Fevereiro de 1997, 20 de Março de 1998 e 4 de Outubro de 2000).
Igualmente no sentido da não inconstitucionalidade da mesma norma se
pronunciou o Tribunal em casos de recurso interposto de despacho que se absteve
de apreciar o pedido de restituição de veículo automóvel apreendido nos autos
(Acórdão n.º 244/97, inédito), de recurso atinente a questões prévias suscitadas
relativamente ao despacho de pronúncia (Acórdãos n.ºs 46/2001 e n.º 350/2002,
inéditos), de recurso do indeferimento da arguição de nulidade de uma diligência
de busca (Acórdão n.º 1205/96, publicado no Diário da República II Série, de 14
de Fevereiro de 1997), e do recurso em que se questiona a validade do acto de
notificação edital da acusação à arguida (Acórdão n.º 551/98, inédito).
Mas já no acórdão n.º 417/03, publicado no Diário da República II
Série, de 7 de Abril de 2004, o Tribunal julgou inconstitucional, por violação
dos artigos 32º, n.º 1, e 20º, n.º 5, da Constituição da República, a norma do
artigo 407º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de
apenas dever subir com o interposto da decisão final o recurso interposto da
decisão que indeferiu o pedido de acesso a elementos contidos nos autos com
vista a impugnar a decisão que aplicou ao recorrente a medida de coacção de
prisão preventiva.
Embora o último acórdão pareça assentar em uma ponderação divergente
dos parâmetros de constitucionalidade da garantia do acesso aos tribunais, na
sua dimensão de direito a tutela efectiva dos direitos e interesses legítimos
(art.º 20º, n.ºs 1 e 5, da CRP), e do direito a todas as garantias de defesa em
processo criminal, incluindo o direito de recurso (art.º 32º, n.º 1, da CRP) -
que foram invocados em todos os casos constitucionalmente sindicados –, com os
quais a norma do n.º 2 do art.º 407º do CPP foi confrontada, o certo é que tal
não se verifica.
Na verdade, independentemente de a dimensão interpretativa do preceito que foi
questionada no acórdão n.º 417/03 não se justapor a qualquer dos outros
critérios normativos cuja conformidade com a Lei fundamental foi apreciada nos
outros arestos, o que justifica, desde logo, que não houvesse de ser confrontada
com a mesma dimensão e grau ou intensidade de tutela concedida em tais normas e
princípios constitucionais, verifica-se que o acórdão n.º 417/03 não se afasta
da jurisprudência anterior e que só chegou à conclusão de inconstitucionalidade
por na norma (dimensão) aí em causa ocorrerem duas circunstâncias específicas
que aqueles parâmetros não poderiam tolerar.
Na verdade, ponderou tal acórdão:
- por um lado, que «a (A) dirimição da questão discutida neste recurso apenas no
momento em que, no final do processo, é proferida e impugnada a decisão
condenatória carece, pois, de sentido e utilidade. E bem pode dizer-se, assim,
que a norma em apreço, ao impor a apreciação do presente recurso apenas após o
julgamento, quando os elementos em questão são já conhecidos, vai retirar o
sentido à decisão do recurso e impedir a sua apreciação em tempo útil»;
- e, por outro lado, que
«A referência, na interpretação normativa em crise, à absoluta inutilidade da
retenção do recurso não pode, porém, bastar-se com tal noção de utilidade
estritamente processual [assumida pelo conceito em que se enquadra a razão antes
exposta], designadamente, quando está em causa a impugnação de uma decisão que
aplicou ao recorrente uma medida de coacção de prisão preventiva».
«Pelo menos nesses casos - continua o aresto a discretar - a “absoluta
inutilidade” a que se refere a norma há-de aferir-se também pela circunstância
de esse interesse do recorrente poder ainda vir a obter tutela mediante a
apreciação do recurso – e, portanto, pela susceptibilidade de a anulação
resultante do provimento do recurso retido, com a “eliminação”
jurídico-processual dos actos subsequentemente praticados, satisfazer ainda o
interesse do recorrente. Pois é tal noção de utilidade não estritamente
processual, mas antes relativa à possibilidade de satisfação do fim visado com o
recurso, aquela que dá conta da circunstância de o processo se não dever limitar
a servir interesses que ele próprio cria, como “fim em si mesmo”, mas antes de
pessoas e entidades que lhe são externos.».
«Ora, é claro que – diz o referido acórdão fazendo a subsunção do caso - ,
quanto ao recurso em causa, nem sequer a eventual anulação de todo o processado,
decorrente de um hipotético provimento do recurso retido, é susceptível de
“apagar” de forma adequada a privação da liberdade sofrida, em termos
irremediáveis, pelo arguido, devido à medida de coacção de prisão preventiva,
que quis impugnar por via de recurso, para isso justamente pretendendo obter
elementos com o recurso retido.
Também sob este prisma se revela, pois, que o eventual provimento do recurso a
final é insusceptível de aproveitar ao recorrente, cuja situação de prisão
preventiva, contra a qual pretendeu reagir, não pode, naturalmente, ser
“apagada” com a anulação do processo. E também por aqui se evidencia a lesão do
direito ao recurso, devido à sua falta de apreciação em tempo útil.».
9.2 - Ora pode notar-se, desde logo, que, relativamente à norma aqui sob
censura constitucional, não se vislumbra a existência deste quid especificum que
determinou, no caso, o juízo de inconstitucionalidade – a insusceptibilidade “de
a anulação resultante do provimento do recurso retido, com a eliminação
jurídico-processual dos actos subsequentemente praticados, não satisfazer o
interesse do recorrente”, porquanto “tal apreciação e eventual provimento do
recurso seriam então insusceptíveis de aproveitar ao recorrente, cuja situação
de prisão preventiva, contra a qual pretendeu reagir, não é eliminada com a
anulação do processo”.
Na situação em apreço a anulação da decisão denegatória de realização das
diligências de prova e de apreciação das questões de constitucionalidade
respeitantes aos mesmos incidentes resultante do provimento do recurso, com a
anulação dos actos subsequentemente praticados, satisfará ainda o interesse do
recorrente, pois acaba por permitir a apreciação das questões incidentais de
constitucionalidade e a realização dessas diligências de prova e a sua
ponderação enquanto elementos determinantes de conduzir ou não a uma nova
pronúncia e a um novo julgamento do arguido, não estando a dar resposta a um
interesse diferente, mas ainda ao mesmo interesse material visado no recurso
relativo ao objecto do processo – a sujeição a (novo) julgamento do arguido
apenas no caso de serem recolhidos indícios suficientes de se terem verificado
os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de
segurança.
Como se escreveu no acórdão n.º 946/96, publicado no Diário da República II
Série, de 23 de Dezembro de 1996, «o sentido constitucionalmente necessário da
determinação segundo a qual “sobem ainda imediatamente os recursos cuja retenção
os tornaria absolutamente inúteis” é o da não inviabilização da prova em ordem à
consecução da verdade material. A ponderação que o juiz deve empreender é a de
se o regime de subida diferida que atribui ao recurso ainda está nos limites da
subsistência da afirmação da prova ou, se pelo contrário, o diferimento do
controlo em via do recurso da apreciação da prova corresponde à negação de
subsistência da mesma prova».
Podendo a prova ser ainda produzida e com utilidade em função do objecto do
processo, não obstante a anulação da decisão e dos actos subsequentes, incluindo
o julgamento, continua a subsistir a possibilidade da satisfação do interesse do
arguido de fazer valer a verdade material relativa ao objecto do processo.
Dir-se-á – com o recorrente – que a realização de algumas dessas diligências
poderá ser então impossível (inútil), por as mesmas poderem ter sido produzidas
no decurso posterior do processo, mormente na defesa em julgamento.
Mas uma tal possibilidade, em vez de infirmar a conformidade do preceito com a
Lei Fundamental, vai antes no sentido de a abonar: é que, sem perda de eficácia
do princípio da celeridade processual penal que é um valor constitucionalmente
assumido, e da subida diferida do recurso, o arguido pôde desfrutar ainda de uma
oportunidade eficaz de fazer valer os seus direitos de defesa.
9.3 - Objecta, todavia, o recorrente que o juízo judicial de denegação da
realização das diligências requeridas poderá não assentar numa análise
suficiente e razoável - exigência de sentido diferente da de impor a produção de
todas as diligências de prova requeridas - quanto à sua pertinência para poder
conduzir à decisão de pronúncia ou de não pronúncia e de assim, por ser
submetido a julgamento com tudo o que isso tem de estigmatizante e compressor de
direitos fundamentais, saírem violados com tal interpretação do art. 407º, nº 1,
al. i) e nº 2, do CPP, o princípio da dignidade humana, o princípio da presunção
de inocência e a garantia do arguido a um processo equitativo.
Mas não tem razão. Às dúvidas levantadas por uma tal argumentação teve já o
Tribunal Constitucional a oportunidade responder na jurisprudência que se
pronunciou sobre a conformidade com a Lei fundamental da norma que estabelece a
irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido – o n.º 1 do
art.º 310º do Código de Processo Penal (cf. Acórdãos n.º 265/94, de 23 de Março,
publicado no Diário da República II Série, n.º 165, de 19 de Julho de 1994, n.º
610/96, de 17 de Abril, publicado no Diário da República II Série, n.º 155, de 6
de Julho de 1996, n.º 468/97, de 2 de Julho (inédito), n.º 45/98, de 3 de
Fevereiro (inédito), n.º 101/98, de 4 de Fevereiro (inédito), n.º 156/98, de 10
de Fevereiro, publicado no Diário da República II Série, n.º 105, de 7 de Maio
de 1998; n.º 238/98, de 5 de Março (inédito), n.º 266/98, de 5 de Abril,
publicado no Diário da República II Série, n.º 158, de 11 de Julho de 1998, n.º
299/98, de 28 de Abril (inédito), e n.º 300/98, de 28 de Abril (inédito), e mais
recentemente, o n.º 79/2005, publicado no Diário da República II Série, de 6 de
Abril de 2005).
Tendo-se colocado a questão da conformidade constitucional deste preceito,
enquanto interpretado no sentido de “ser irrecorrível a decisão instrutória que
pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público e
de determinar que os autos sejam remetidos imediatamente ao tribunal competente
para o julgamento”, não deixou o Tribunal de equacionar se ele violava tais
parâmetros constitucionais, acabando por lhe dar, sempre, resposta negativa,
embora com votos de vencido.
Não esgrimindo a argumentação do recorrente elementos novos relativamente a tal
matéria, é a fundamentação neles expendida de acolher.
Também, a propósito de questão mais próxima daquela que está sob exame -
confronto do n.º 1, al. i) e nº 2 do art.º 407º do Código de Processo Penal,
interpretado no sentido de que não sobe imediatamente o recurso da parte da
decisão instrutória respeitante a nulidades arguidas antes do despacho de
pronúncia, com o princípio das garantias de defesa consagrado no art.º 32º, n.º
1, da CRP - discreteou-se, no referido acórdão n.º 474/94, no mesmo sentido e
por modo que veio a ser acolhido em outros arestos posteriores, sendo que tal
fundamentação é aqui de reiterar:
«Com efeito, visando a instrução a comprovação judicial da decisão de deduzir
acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a
julgamento (artigo 286º, n.º 1), o juiz deve indeferir, por despacho, 'os actos
requeridos que não interessem à decisão da causa ou servirem apenas para
protelar o andamento do processo e pratica ou ordena oficiosamente aqueles que
considera úteis' (artigo 291º, n.º 1, 2º período).
Conclui-se deste normativo transcrito que o juiz não está obrigado, na
instrução, a realizar todas as diligências que lhe forem requeridas, e que,
embora não lhe seja também conferido um poder totalmente discricionário, deve
ordenar a realização das diligências necessárias à realização das finalidades
próprias da instrução.
A subida diferida de recursos assenta claramente numa exigência de celeridade
processual - como bem refere, nas suas alegações, o Procurador-Geral adjunto -
que em processo penal é um 'valor constitucionalmente relevante'. Assim, fazendo
a lei processual penal subir imediatamente apenas os recursos cuja utilidade se
perderia em absoluto se a subida fosse diferida, obvia-se a que a tramitação
normal do processo seja afectada por constantes envios do processo à segunda
instância para apreciação de decisões interlocutórias e, por outro lado, pode
vir a evitar-se o conhecimento de muitos destes recursos que podem ficar
prejudicados no seu conhecimento pelo sentido da decisão final.
É certo que o provimento de um recurso deste tipo leva à inutilização dos actos
processuais que forem praticados após a sua interposição e que estejam na
dependência do acto ou despacho recorrido.
Importa aqui, porém, acentuar que o regime de subida diferida em nada diminui as
garantias de defesa do arguido que, face ao provimento do recurso, sempre verá a
sua posição ser reconhecida jurisdicionalmente.
Acresce que - conforme se refere no Acórdão nº 338/92 [...], citando o Acórdão
n.º 31/87 - 'a Constituição não estabelece qualquer direito dos cidadãos a não
serem submetidos a julgamento, sem que previamente tenha havido uma completa e
exaustiva verificação de existência de razões que indiciem a sua presumível
condenação. O que a Constituição determina no n.º 2 do artigo 32º é que todo o
arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de
condenação, pelo que o simples facto de se ser submetido a julgamento não pode
constituir, só por si, no nosso ordenamento jurídico, um atentado ao bom nome e
reputação'.
Deve, por isso, concluir-se que a subida diferida de um recurso de despacho que
indefira a realização de diligências na fase de instrução não afronta o
princípio das garantias de defesa do arguido nem o princípio da dignidade do
cidadão pela sua submissão ao julgamento penal.».
E referindo-se ao princípio da presunção de inocência,
acrescentou-se no mesmo aresto:
«Tal regime de subida de recurso não viola também, manifestamente, o
princípio da presunção de inocência do arguido uma vez que o modo de subida de
tal recurso não altera por qualquer forma o estatuto do arguido, antes permite
que, com um julgamento mais célere, se defina, de modo terminal, a posição do
arguido face aos factos apurados.».
Por seu lado, abordando precisamente uma tal possibilidade de errada
avaliação judicial quanto à susceptibilidade de as provas preteridas poderem
alterar a decisão de pronúncia, afirmou-se no referido acórdão n.º 350/02:
«É certo que o juiz, quando indefere a realização de diligências de prova, pode
ajuizar mal sobre a utilidade das mesmas; e, ao receber o recurso com subida
diferida, pode errar quanto ao juízo de não inviabilização da prova.
São riscos 'inerentes à ponderação das exigências de celeridade' processual
(para dizer com o citado acórdão n.º 1205/96).
Ora, a celeridade processual é, ela também, um valor constitucional, pois é
direito do arguido o ser julgado “no mais curto prazo compatível com as
garantias de defesa” (cf. o n.º 2 do artigo 32º da Constituição): é o direito a
um processo que, além de justo, seja célere'.».
9.4 - Estes fundamentos continuam a valer na situação dos autos. É claro que o
princípio da dignidade humana (art.º 1º, da CRP), entretecido com os princípios
das garantias de defesa (art.º 32º, n.º 1, da CRP) e de um processo equitativo e
justo concedente de uma tutela efectiva e em tempo útil (art.º 20º, n.º 5, da
CRP), demanda que o arguido só possa ser sujeito a julgamento “se até ao
encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se
terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma
pena ou de uma medida de segurança” (art.º 308º, n.º 1, do CPP).
Como demanda, seguramente, que esse juízo de ponderação das razões de facto e de
direito assente, usando as próprias palavras do recorrente, numa “análise
suficiente e razoável” das questões de facto e das questões de direito levada a
cabo por um tribunal, sendo, porém, certo que essa análise tem a sua sede,
essencialmente, no plano da prognose valorativa levada a cabo pela decisão
judicial.
Mas o que já não demanda, seguramente, à face das razões esgrimidas nos arestos
do Tribunal Constitucional acima referidos que aqui se reafirmam, é que a
possível divergência existente, de um lado, entre o arguido, o Ministério
Público e o assistente e, do outro, o tribunal, quanto à pertinência, como
elementos capazes de influir decisivamente na aferição da suficiência dos
indícios para justificar a pronúncia do arguido, tenha de passar pelo reexame ou
controlo imediato de um tribunal superior.
A concordância prática entre a protecção máxima potenciada por tais princípios
constitucionais e o princípio da celeridade do processo penal, arvorado
igualmente em valor constitucional, mesmo em relação ao arguido, não permitem
assim considerar merecedora de censura uma interpretação da opção do legislador
infraconstitucional no sentido de remeter o conhecimento de tais questões para o
momento do conhecimento dos recursos interpostos da decisão que tiver posto
termo à causa.
Não se diga, com o recorrente, que esse conhecimento diferido afronta o
princípio da garantia de um processo equitativo (art.º 20º, n.º 5, da CRP).
Basta atender à circunstância de tal solução constituir, na óptica do
legislador, um compromisso entre as exigências constitucionais postuladas pelo
princípio das garantias de defesa e da celeridade processual e também ao facto
de, sempre, a questão, caso a sua utilidade não fique prejudicada pelo
desenvolvimento do processo, poder vir ser a conhecida a final e com a
consequência da anulação da decisão impugnada e de os actos subsequentes
praticados no processo serem anulados – o que demonstra, contra o que sustenta o
recorrente, ter a norma do n.º 2 do art.º 407º do CPP a natureza de uma cláusula
geral de segurança efectiva (e não virtual) -, para se concluir não sair violado
aquele princípio constitucional.
O recurso não merece, pois, provimento.
C – Decisão
10 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide negar
provimento ao recurso e condenar o recorrente nas custas com taxa de justiça que
se fixa em 20 UC.
Lisboa, 4 de Maio de 2005
Benjamim Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta)
Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Votei vencida o presente Acórdão, pois considero que o artigo 407º, nº 2, do
Código de Processo Penal, é inconstitucional, por violação do direito de
recurso, consagrado no artigo 32º, nº 1, da Constituição, quando interpretado no
sentido de permitir a subida do recurso interposto do indeferimento da arguição
de nulidade da decisão instrutória que pronuncia o arguido com o recurso da
decisão que puser termo à causa.
Com efeito, a tutela constitucional do direito de recurso impõe, no plano
infraconstitucional, a efectiva eficácia do recurso. Essa eficácia ou utilidade
afere-se não só em certa medida em função da defesa do recorrente, mas também
tendo presente a fase processual em que o recurso é interposto, nomeadamente a
sua finalidade.
A instrução, nos termos do nº 1 do artigo 286º do Código de Processo Penal,
“visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o
inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. Assim, a instrução
tem por finalidade impedir a sujeição a julgamento sem a devida consistência e
fundamentação, o que não só corresponde, em princípio, a uma perspectiva de
garantias de defesa como também ao sentido último daquela fase do processo
(cfr., quanto ao direito a não ser submetido a julgamento, o Acórdão nº 910/96,
em D.R., II Série, de 6 de Julho de 1996).
Ora, o recurso interposto pelo arguido da decisão que indeferiu a arguição de
nulidade do despacho de pronúncia só mantém utilidade se puder revogar a
pronúncia com a consequência inerente da não sujeição a julgamento, ou seja, se
puder ainda evitar o julgamento.
A subida diferida, com o recurso da decisão final, do recurso que visa a não
sujeição a julgamento inutiliza, numa perspectiva substancial, o mecanismo de
impugnação em causa, subsistindo então apenas a mera afirmação formal e
desprovida de conteúdo de um direito de recurso. De facto, a finalidade da
instrução, com a qual o recurso interposto se encontra funcionalmente
conexionado, acaba por ser gorada, sobretudo na dimensão em que o recurso
interposto a poderia concretizar.
Não acompanho, igualmente, a fundamentação do Acórdão, quando refere que o
arguido pode dispor no julgamento de uma oportunidade eficaz de fazer valer os
seus direitos de defesa. Ao contrário do sentido da conclusão tirada pelo
Tribunal, considero que tal circunstância demonstra, de modo inequívoco, a
inutilização do direito de recurso que a subida diferida implica. Na verdade, o
seguimento do processo para julgamento, possibilitando a apreciação ulterior das
questões suscitadas no recurso, torna inútil a apreciação do recurso retido (o
próprio Acórdão admite que a utilidade do recurso pode ficar prejudicada, o que
consubstancia, a meu ver, uma denegação do direito de recurso).
Não me parece procedente, neste contexto, a invocação da celeridade processual.
Com efeito, a possibilidade de o julgamento vir a ser anulado, por força de uma
nulidade cometida na fase de instrução, com a consequente repetição de todo o
processado, implica, agora sim, um efectivo e significativo atraso do processo.
De resto, nada impede, aliás tudo aconselha, que o recurso seja apreciado de
modo expedito e rápido.
Divirjo, pois, do entendimento que fez vencimento.
Maria Fernanda Palma
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, por entender que a interpretação das
normas do artigo 407.º, n.º 1, alínea i), e 407.º, n.º 2, do Código de Processo
Penal (CPP), no sentido de ter subida diferida (com o recurso que vier a ser
interposto da decisão que ponha termo à causa) o recurso da parte da decisão
instrutória respeitante às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da
instrução e às demais questões prévias ou incidentais, viola as garantias de
defesa em processo criminal (englobando necessariamente o direito de recurso)
consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa
(CRP).
A minha divergência relativamente à jurisprudência que
reconheço ser dominante no Tribunal Constitucional radica no entendimento de
que, pelo menos quando estejam em causa infracções criminais de certa gravidade,
que ultrapassem as meras “bagatelas penais”, do princípio da presunção de
inocência decorre o direito a não ser submetido a julgamento sem que estejam
comprovados indícios suficientes da prática de um crime, embora não se exija,
naturalmente, uma apreciação exaustiva das provas, reservada à fase de
julgamento: cf. declarações de voto da Conselheira Maria Fernanda Palma, apostas
aos Acórdãos n.ºs 964/96, 1205/96 e 459/2000 (esta mantida no Acórdão n.º
78/2001), e da Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, aposta ao Acórdão n.º
68/2000 (mantida nos Acórdãos n.ºs 371/2000, 46/2001 e 350/2002). Não acompanho,
assim, a concepção, reiteradamente afirmada desde o Acórdão n.º 474/94, citado
no precedente acórdão, de que, porque a CRP determina, no n.º 2 do artigo 32.º,
que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de
condenação, “o simples facto de se ser submetido a julgamento não pode
constituir, só por si, no nosso ordenamento jurídico, um atentado ao bom nome ou
reputação”.
Como se assinalou na declaração de voto da Conselheira
Maria dos Prazeres Beleza, aposta ao Acórdão n.º 387/99:
“3. Na verdade, a pronúncia determina a continuação do processo, mediante a
sujeição do arguido a julgamento.
Da continuação do processo resulta necessariamente a imposição – ou manutenção
da imposição – ao arguido do termo de identidade e residência, previsto no
artigo 196.º do Código de Processo Penal.
A submissão do arguido a julgamento acarreta, inegavelmente, a compressão da
sua liberdade pessoal, tendo em conta o tempo necessário à organização da sua
defesa e à comparência na audiência, compressão tanto mais significativa quanto
mais complexa for a matéria dos autos, e que pode, em certos casos, colocar em
causa a continuação da sua actividade profissional.
A aceitação pelo Tribunal de Instrução de que existem indícios suficientes da
verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena
ou de uma medida de segurança implica entender que existe uma «possibilidade
razoável» de tal pena ou medida de segurança vir a ser aplicada (n.º 2 do artigo
283.º e n.ºs 1 e 2 do artigo 308.º) em julgamento. O que leva, de facto, apesar
da força jurídica do princípio da presunção de inocência, à submissão do
arguido a uma forte censura social, que uma eventual decisão final absolutória
não consegue, as mais das vezes, apagar.
Acresce que, após a recente revisão do Código de Processo Penal (cf. n.º 1 do
artigo 86.º, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto), o
processo penal é público a partir da decisão instrutória, quando seja proferida,
cessando nesse momento o segredo de justiça.
Recorde-se ainda que o n.º 1 do artigo 6.º do Estatuto Disciplinar dos
Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local (aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro), não julgado inconstitucional pelo
Acórdão n.º 439/87 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 10.º, págs. 523 e
seguintes), estabelece como consequência do trânsito em julgado do despacho de
pronúncia em processo de querela – independentemente de saber se tal norma se
aplica aos processos regidos pelo Código de Processo Penal de 1987 – a suspensão
de funções e do vencimento até à decisão final.”
A este elenco pode mesmo acrescentar-se a norma do
artigo 157.º, n.º 4, da CRP, que prevê a suspensão do mandato de Deputado quando
este for “acusado definitivamente” em processo criminal, suspensão que é
obrigatória quando se trate de crime doloso a que corresponda pena de prisão
cujo limite máximo seja superior a três anos.
Tudo isto (para não falar na constatação de que, na
prática judiciária, a pronúncia do arguido é geralmente vista como um elemento
que, tornando mais plausível a condenação, pode determinar o aumento do receio
de fuga e, assim, justificar mais facilmente o decretamento da prisão
preventiva) demonstra que, não apenas sociológica, mas também juridicamente a
pronúncia de um arguido, com subsequente sujeição a julgamento, representa o
agravamento da sua situação, constituindo negação da realidade a afirmação de
que esse agravamento não se verifica só porque está constitucionalmente
consagrado o princípio da presunção de inocência.
Face a uma decisão inequivocamente gravosa para a
posição jurídica do arguido, é constitucionalmente fundada a exigência do
reconhecimento do direito de recurso dessa decisão e de um recurso que seja
eficaz, o que, no caso, reclama a sua subida imediata.
O STJ, após haver uniformizado a jurisprudência no
sentido de que “A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos
constantes da acusação do Ministério Público é recorrível na parte respeitante
à matéria relativa às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução
e às demais questões prévias ou incidentais” (“Assento” n.º 6/2000), veio
recentemente a fixar a seguinte jurisprudência: “Sobe imediatamente o recurso da
parte da decisão instrutória respeitante às nulidades arguidas no decurso do
inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais, mesmo que
o arguido seja pronunciado pelos factos constantes da acusação do Ministério
Público” (Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/2004). Embora este último
acórdão se tenha fundamentado essencialmente numa interpretação da expressão
“decisão instrutória”, usada na alínea i) do n.º 1 do artigo 407.º do CPP, tida
por mais correcta, no sentido de abranger, não só a parte “substantiva” dessa
decisão (a decisão de pronúncia), mas também a parte “formal” (sobre nulidades e
questões prévias), não deixou de assinalar, em apoio da razoabilidade da
solução, que “não faria (...) muito sentido que o tribunal pudesse, ultrapassada
a fase da instrução, vir a conhecer em conjunto dos recursos interpostos da
decisão final e de outros interpostos de decisões intercalares, dada a vocação
de estanquicidade das fases de inquérito, instrução e processo”. Não deixando de
reconhecer que a lei, ao estabelecer a regra de que os recursos de decisões
intercalares sobem, em princípio, com o recurso da decisão final, privilegia a
celeridade processual em detrimento da economia processual, o referido acórdão
salienta que a essa regra foram estatuídas diversas excepções, nas várias
alíneas do n.º 1 do artigo 407.º do CPP, que admitem a subida imediata de
recursos interpostos de decisões interlocutórias, prevendo no n.º 2 da mesma
norma uma válvula de segurança que permite a subida imediata dos recursos cuja
retenção os torne absolutamente inúteis.
No presente caso, a interpretação que, considerando
inaplicável quer a alínea i) do n.º 1 quer o n.º 2 do artigo 407.º do CPP,
fixando, assim, ao recurso interposto o regime de subida diferida, com o recurso
da decisão que vier a pôr termo ao processo, elimina qualquer possibilidade de
efeito útil do recurso interposto.
Na verdade, face a uma decisão final absolutória, o
conhecimento do recurso da decisão instrutória respeitante às nulidades e
questões prévias deixa de ter obviamente qualquer interesse. No caso de decisão
final condenatória, versando o recurso da decisão instrutória sobre alegada
insuficiência do inquérito e da instrução por não produção de prova requerida
pelo arguido, que naturalmente terá reproduzido esse requerimento na audiência
de julgamento, de duas uma: ou essa prova foi então admitida e se, mesmo assim,
o arguido foi condenado, é de concluir que a sua produção na fase de instrução
não teria obstado à pronúncia, e o recurso da parte “formal” da decisão
instrutória está inexoravelmente condenado ao insucesso; ou a produção dessa
prova foi de novo recusada e então é perante esta nova decisão que o arguido tem
de reagir, conformando-se com ela ou impugnando-a, sendo certo que qualquer uma
destas atitudes retira relevância autónoma ao recurso “retido” da decisão
instrutória. Tanto basta para demonstrar que, por regra, ficará prejudicado ou
será absolutamente inútil o conhecimento deste recurso apenas após a prolação da
decisão que pôs termo à causa.
Depois – e decisivamente –, na perspectiva que perfilho,
visando a admissibilidade do recurso em causa a protecção do “direito a não ser
submetido a julgamento sem que estejam comprovados indícios suficientes da
prática de um crime”, a sua subida apenas após a efectivação desse julgamento
nunca assegurará a salvaguarda desse direito, como é óbvio.
A este respeito, o precedente acórdão, tentando
demonstrar que o eventual provimento do recurso retido ainda teria utilidade,
afirma (n.º 9.2):
“Na situação em apreço, a anulação da decisão denegatória da
realização das diligências de prova e de apreciação de questões de
constitucionalidade respeitantes aos mesmos incidentes resultantes do provimento
do recurso, com a anulação dos actos subsequentemente praticados, satisfará
ainda o interesse do recorrente, pois acaba por permitir a apreciação das
questões incidentais de constitucionalidade e a realização dessas diligências de
prova e a sua ponderação enquanto elementos determinantes de conduzir ou não a
uma nova pronúncia e a um novo julgamento do arguido, não estando a dar
resposta a um interesse diferente, mas ainda ao mesmo interesse material visado
no recurso relativo ao objecto do processo – a sujeição a (novo) julgamento do
arguido apenas no caso de serem recolhidos indícios suficientes de se terem
verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou
medida de segurança.”
Mas, como se me afigura óbvio, se se considera relevante
o interesse em não ser submetido a segundo julgamento sem se terem “recolhido
indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a
aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança”, muito mais relevante
será o interesse em não ser sujeito a julgamento algum sem esse apuramento. As
limitações da liberdade pessoal, o agravamento da situação jurídica e o efeito
estigmatizante que para o arguido derivam da pronúncia e da sujeição ao primeiro
julgamento já se produziram irremediavelmente. Para evitá-los, entendo ser
constitucionalmente exigível a subida imediata do recurso em causa, sendo
manifestamente de muito mais reduzido alcance os efeitos negativos que poderão
ser ainda evitados com o conhecimento do recurso e seu eventual provimento só
após a prolação da decisão final da causa (naturalmente condenatória, com a
associada degradação da imagem social do arguido, irrecuperável com a mera não
sujeição a segundo julgamento por força de eventual provimento do recurso
retido).
Mário José de Araújo Torres