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Processo n.º 539/02
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Em 27 de Agosto de 1996, A. e outros, todos melhor identificados nos autos,
deduziram impugnação do acto tributário resultante da fixação, pela Câmara
Municipal do Porto, de uma taxa de urbanização no valor de 14 855 468$00, pelo
projecto de construção com alvará de licença n.º 147/96, com fundamento em que
tal “taxa”, prevista no artigo 97.º do Regulamento Municipal de Obras aprovado
por deliberação camarária de 6 de Abril de 1986 e homologada pela Assembleia
Municipal em 5 de Junho de 1989 (edital n.º 11/89, com as alterações dos editais
n.ºs 1/92 e 14/95), constituía, de facto, um “verdadeiro imposto”,
consequentemente inconstitucional.
Remetido o processo ao Tribunal Tributário de 1.ª Instância do Porto, no seu 3.º
Juízo veio a impugnação a ser liminarmente indeferida, em 11 de Abril de 1997,
nos termos do artigo 22.º, n.º 2, da Lei n.º 1/87, de 6 de Janeiro, por não ter
sido precedida de decisão dos órgãos executivos da autarquia e o tribunal se ter
considerado absolutamente incompetente.
Inconformados, os impugnantes apresentaram recurso para a Secção de Contencioso
Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, encerrando deste modo as suas
alegações:
«1 – A receita camarária cujo acto de liquidação foi impugnado, prevista no
Regulamento Municipal de Obras da Câmara Municipal do Porto assume natureza
jurídica de Imposto e não de Taxa, sendo irrelevante o “nomen iuris” que lhe foi
atribuído.
2 – Constituindo um imposto, o recurso contra os respectivos actos de liquidação
há-de ser interposto directamente para o Tribunal Tributário de 1.ª Instância do
Porto, nos termos do n.º 1 do art.º 22.º da Lei n.º 1/87, de 6/1.
3 – Mesmo a considerar-se a receita em apreço uma verdadeira Taxa, o “Princípio
da Separação de Poderes” e o art.º 62.º, n.º 1, a), do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais admitiriam o recurso directo para o supra referido
Tribunal Tributário.
4 – Ao absolver da instância a Câmara Municipal do Porto, o Tribunal a quo
violou, entre outros, os artigos 62.º, n.º 1, a), do ETAF e 22.º, n.ºs 1 e 2, da
Lei n.º 1/87, de 6 de Janeiro.»
Contra-alegou o representante da Fazenda Pública, pugnando pela manutenção da
decisão, após o que a juíza do 3.º Juízo do Tribunal Tributário de 1.ª Instância
do Porto decidiu reparar a decisão agravada, nos termos do artigo 744.º do
Código de Processo Civil, mantendo o indeferimento liminar da petição inicial
mas agora com fundamento em “não haver a impugnante esgotado os meios de reacção
perante os órgãos executivos autárquicos já referidos, faltando, assim, um
pressuposto de procedência que torna ilegal a impugnação deduzida.”
2.De novo interpuseram recurso os impugnantes, encerrando assim as suas
alegações:
«1 – O douto despacho em recurso que diz reparar o agravo interposto do despacho
que julgou absolutamente incompetente o Tribunal, quando não se trata de recurso
de agravo mas de recurso processado como o de agravo e que o substituiu por
outro despacho que indefere liminarmente a petição, ofendeu desde logo os
artigos 102.º da LPTA, 169.º do C. P. Tributário e 666.º e 744.º do C. P. Civil.
2 – A receita camarária cujo acto de liquidação foi impugnado, prevista no
Regulamento Municipal de Obras da Câmara Municipal do Porto, assume natureza
jurídica de Imposto e não de Taxa, sendo irrelevante o “nomen iuris” que lhe foi
atribuído.
3 – Constituindo um imposto, o recurso contra os respectivos actos de liquidação
há-de ser interposto directamente para o Tribunal Tributário de 1.ª Instância do
Porto, nos termos do n.º 1 do art.º 22.º da Lei n.º 1/87, de 6/1.
4 – Mesmo a considerar-se a receita em apreço uma verdadeira Taxa, o “Princípio
da Separação de Poderes” e o art.º 62.º, n.º 1, a), do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais admitiriam o recurso directo para o supra referido
Tribunal Tributário.
5 – Ao indeferir liminarmente a petição, o douto despacho em recurso violou,
entre outros, os artigos 62.º, n.º 1, a), do ETAF e 22.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º
1/87, de 6 de Janeiro.»
Não houve outras intervenções processuais e subiram os autos ao Supremo Tribunal
Administrativo.
Por acórdão de 10 de Maio de 2000, esse Supremo Tribunal, pela sua Secção de
Contencioso Tributário, decidiu revogar “o despacho, dito de reparação de
agravo”, por ter deixado intocada a questão da competência do Tribunal
Tributário, e revogar também o primeiro despacho de indeferimento liminar,
determinando a sua substituição “por outro que não seja de indeferimento liminar
por incompetência em razão da matéria do Tribunal”.
3.Tendo a juíza do 3.º Juízo do Tribunal Tributário de 1.ª Instância do Porto
por sentença de 29 de Setembro de 2000, indeferido liminarmente a petição
inicial, “por não haver a impugnante esgotado os meios de reacção perante os
órgãos executivos autárquicos já referidos, faltando assim, um pressuposto de
procedência que torna ilegal a impugnação deduzida”, de novo os impugnantes
interpuseram recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, encerrando as suas
alegações deste modo:
«1 – A receita camarária cujo acto de liquidação foi impugnado, prevista no
Regulamento Municipal de Obras da Câmara Municipal do Porto, assume a natureza
jurídica de Imposto e não de Taxa, sendo irrelevante o “nomen iuris” que lhe foi
atribuído.
2 – Constituindo um imposto, o recurso contra os respectivos actos de liquidação
há-de ser interposto directamente para o Tribunal Tributário de 1.ª Instância do
Porto, nos termos do n.º 1 do art.º 22.º da Lei n.º 1/87, de 6/1.
3 – De resto, o n.º do artigo 22.º da Lei n.º 1/87 não quis consagrar, para as
reclamações e impugnações de taxas, regime diferente do previsto no n.º 1 da
mesma disposição para as reclamações e impugnações de impostos, apenas se
explicando diferentes disposições na medida em que as taxas, sendo liquidadas
pelas autarquias, impõem que as reclamações e impugnações sejam deduzidas
perante os órgãos executivos das autarquias locais, como se dispõe naquele n.º
2, enquanto os impostos previstos no artigo 4.º e a derrama, cuja liquidação e
cobrança o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 163/79, de 31 de Maio, previa deixaram
de ser feitas pelos respectivos serviços das câmaras municipais, sendo liquidado
e cobrados hoje por serviços da Administração Fiscal, impõem que as respectivas
reclamações e impugnações sejam deduzidas perante a entidade competente para a
liquidação.
4 – O regime de reclamação e impugnação dos referidos impostos e das taxas era
exactamente o mesmo, como resulta do artigo 3.º daquele Decreto-Lei n.º 163/79,
que prescrevia que “o disposto nos artigos anteriores aplica-se às reclamações,
impugnações e transgressões referentes à liquidação e cobrança de taxas e
mais-valias” e, se a Lei n.º 1/87 tivesse pretendido inovar a este respeito e
quebrar uma longa tradição jurídica, tê-lo-ia dito explicitamente.
5 – Nem se entende bem o que seja uma aberrante impugnação graciosa a que se é
conduzido pela interpretação do n.º 2 do citado artigo 22.º consagrada pela
douta sentença em recurso e por alguma outra Jurisprudência no mesmo sentido.
6 – Contra tal interpretação e a favor do ponto de vista aqui sustentado podem
invocar-se também disposições legais ulteriores, como o artigo 68.º, n.º 3, do
Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, na redacção do Decreto-Lei n.º
250/94, de 15 de Outubro, que republicou aquele com as alterações nele
introduzidas, e o artigo 32.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de
Novembro, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 334/95, de 28 de
Dezembro, e pela Lei n.º 26/96, de 1 de Agosto, cujos preceitos são
incompatíveis com qualquer prévia impugnação graciosa, de cuja decisão caberia
recurso para os tribunais tributários de 1.ª instância, pois o que naqueles
preceitos se dispõe é que da liquidação das taxas cabe recurso para os tribunais
nos termos e com os efeitos previstos no Código de Processo Tributário.
7 – E pode invocar-se também o douto acórdão pelo qual esta mesma questão já foi
apreciada e decidida por este Venerando Tribunal, a propósito da impropriamente
chamada “taxa de aparcamento” – Recurso n.º 17331 – DOCUMENTO JUNTO ao recurso
do despacho que julgou absolutamente incompetente o tribunal – e no qual foi aí
perfilhada a tese acabada de expender.
8 – Acresce que, hoje, o artigo 30.º, n.º 1, da Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto,
correspondente ao anterior artigo 22.º, n.ºs 1 e 2, da citada Lei n.º 1/87, de 6
de Janeiro, manda aplicar as normas do Código de Processo Tributário à
reclamação graciosa ou impugnação judicial da liquidação dos impostos das
alíneas a) e b) do artigo 16.º bem como das taxas, encargos de mais-valias e
demais receitas de natureza fiscal, constituindo disposição verdadeiramente
interpretativa dos anteriores preceitos da Lei n.º 1/87, que nada inovou em
relação ao regime do Decreto-Lei n.º 163/79, de 31 de Maio, regime que é
exactamente igual ao actualmente vigente, nada justificando que se continue a
sustentar como sustenta o douto despacho em recurso que ao caso dos autos se
aplica a Lei n.º 1/87 como se esta, quando devidamente interpretada, dispusesse
diferentemente…
9 – Mesmo a considerar-se a receita em apreço uma verdadeira Taxa, o “Princípio
da Separação de Poderes” e o art.º 62.º, n.º 1, a), do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais admitiriam o recurso directo para o supra referido
Tribunal Tributário.
(10) – Ao indeferir liminarmente a petição, o douto despacho em recurso violou,
entre outros, os artigos 62.º, n.º 1, a), do ETAF e 22.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º
1/87, de 6 de Janeiro.»
Em vista aos autos, o Ministério Público junto do Supremo Tribunal
Administrativo invocou o acórdão n.º 639/95, do Tribunal Constitucional (Diário
da República [DR], II Série, de 19 de Março de 1996) para considerar taxas as
receitas em causa e concluir pela “falta de um pressuposto de procedibilidade
impugnatória”, concluindo pelo não provimento do recurso, e, por acórdão de 16
de Maio de 2001, assim se decidiu, invocando-se os acórdãos do Tribunal
Constitucional de 21 de Junho de 2000 e de 23 de Fevereiro de 2000, publicados,
respectivamente, no DR, II Série, de 8 de Novembro de 2000 e de 24 de Outubro de
2000.
4.Vieram então, em Junho de 2001, os impugnantes interpor recurso “para o Pleno
da Secção de Contencioso Tributário, nos termos do artigo 30.º, b), do E.T.A.F.
e do artigo 102.º da L.P.T.A.” com fundamento em oposição de tal acórdão com o
proferido pela mesma Secção em 11 de Maio de 1994, no processo n.º 17 311, e de
que já fora junta cópia aos autos.
Em 10 de Outubro de 2001, a escrivã auxiliar lavrou informação nos autos dando
conta de que lhe parecia “que as alegações deram entrada fora de prazo”, pois
que
“O requerente foi notificado da admissão de recurso em 12-7-2001, tendo o prazo
terminado em 26-9-2001 tendo as alegações sido apresentadas em 4-10.”
Ouvidos os recorrentes, insistiram estes na tempestividade da apresentação das
alegações de recurso, defendendo que, em resultado da revogação dos artigos
763.º a 770.º do Código de Processo Civil por força do artigo 17.º do
Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, “o prazo não pode deixar de ser o
de 20 dias” previsto no artigo 106.º da L.P.T.A.
Pronunciou-se o Ministério Público pela deserção do recurso, por falta de
alegação tempestiva, e assim decidiu o relator em 21 de Novembro de 2001.
Inconformados, os impugnantes reclamaram para a conferência suscitando também a
inconstitucionalidade do artigo 102.º da L.P.T.A., por força do artigo 203.º da
Constituição, na interpretação, adoptada pelo Supremo Tribunal Administrativo,
que “manda aplicar os revogados artigos 763.º a 770.º do C. P. Civil”.
Por acórdão de 8 de Maio de 2002, a conferência da Secção de Contencioso
Tributário do Supremo Tribunal Administrativo indeferiu a reclamação,
considerando, entre o mais, que a arguição de inconstitucionalidade não estava
“minimamente densificada, por modo a possibilitar a sua análise.”
5.Inconformados, os impugnantes trouxeram recurso a este Tribunal, ao abrigo do
disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, “uma vez que a
interpretar-se, como tem sido interpretado pelo Supremo Tribunal Administrativo,
que o artigo 102.º da L.P.T.A. manda aplicar os revogados artigos 763.º a 770.º
do C. P. Civil, então o artigo 102.º da L.P.T.A. é inconstitucional por ofensa
do artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa, que impõe aos Tribunais
a sujeição à lei, não podendo esta ser uma lei revogada.”
Nas alegações que apresentaram neste Tribunal formularam as seguintes
conclusões:
«1.ª - No douto acórdão em recurso para o Tribunal Constitucional, decidiu-se
que os artigos 763.º a 767.º do C. P. Civil, que foram revogados pelo artigo
17.º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, continuam a ser aplicáveis
aos recursos para o Pleno por oposição de acórdãos, quando é certo que os ora
recorrentes tinham sustentado que é inconstitucional, por ofensa do artigo 203.º
da Constituição, na parte em que impõe aos Tribunais a sujeição à lei, a
interpretação, seguida pelo Supremo Tribunal Administrativo, de que o artigo
102.º da LPTA manda aplicar aqueles artigos em vez do artigo 106.º da LPTA e os
artigos 678.º, n.º 4, e 732.º–A e 732.º-B do C. P. Civil.
2.ª - E não faz qualquer sentido sustentar, como o douto acórdão em recurso, que
o prazo de 5 dias do artigo 765.º, n.º 3, do C. P. Civil passou a ser de 10
dias, nos termos do artigo 6.º, n.º 1, b), do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de
Dezembro, que é precisamente o diploma que revogou os artigos 763.º a 770.º
daquele Código, tratando-se de pura ficção esta tese que não encontra na lei o
mínimo de apoio.
3.ª - A tese do Supremo Tribunal Administrativo, quanto ao recurso por oposição
de acórdãos, não tem qualquer consagração no novo Código de Processo nos
Tribunais Administrativos, cujo artigo 148.º dispõe de forma idêntica à dos
artigos 732.º–A e 732.º-B do C. P. Civil e cujo regime do artigo 152.º não
difere substancialmente do regime do artigo 678.º, n.º 4, do C. P. Civil,
aplicando-se a disposição geral do artigo 144.º daquele Código, quanto ao prazo
de 30 dias para o requerimento de recurso com a respectiva alegação.
4.ª - E, na verdade, ao contrário do que se entendeu no douto acórdão em
recurso, de nada interessa para a solução da questão dos autos que a revogação
dos artigos 763.º a 770.º do Código de Processo Civil tenha ficado a dever-se à
inconstitucionalidade do instituto dos assentos, aos quais não eram equiparados
os arestos do Supremo Tribunal Administrativo, que não têm nem nunca tiveram
força obrigatória geral, pois esta consideração e a da excepção à regra geral da
natureza dinâmica da remissão da lei, se permite manter em vigor um regime para
que remete a norma de devolução se tal regime foi apenas alterado por causa de
razões específicas do sistema legal em que esse regime está inserido, não
permite mantê-lo em vigor se ele foi totalmente revogado.
5.ª - Assim, por força dos artigos 102.º e 106.º do LPTA e dos artigos 678.º,
n.º 4, e 732.º-A e 732.º–B do C. P. Civil, o prazo para alegações de recurso
para o Tribunal Pleno é o de 20 dias e não o de 5 dias do revogado artigo 765.º,
n.º 2, do C. P. Civil, sob pena de inconstitucionalidade do artigo 102.º do
LPTA, por violação do artigo 203.º da Constituição, na parte em que impõe aos
Tribunais a sujeição à lei, que não pode ser a lei a que o poder legislativo
retirou vigência.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
6.Importa começar por apurar se se pode tomar conhecimento do recurso. No
presente caso pode recordar-se o que se escreveu no acórdão n.º 643/99,
disponível em www.tribunalconstitucional.pt
«a questão de constitucionalidade normativa cuja solução conduz à aplicação das
disposições do Código de Processo Civil em causa (em particular o artigo 765.º)
ao recurso por oposição de acórdãos perante o Pleno do Supremo Tribunal
Administrativo não diz respeito a estas próprias disposições, mas à
“interpretação do sentido da remissão” contida no artigo 102.º da Lei de
Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais, no sentido de não ser uma
remissão “dinâmica”. Isto é, tal questão ancora-se, não nas próprias normas para
as quais se remete, mas na norma remissiva, dizendo respeito ao entendimento
desta remissão “dinâmica” ou “estática”. Isto porque, como também se salientou,
aquelas normas objecto de remissão não comportam em si qualquer interpretação no
sentido de, apesar de revogadas, deverem continuar a ser aplicáveis, tal como,
aliás, não contêm “qualquer virtualidade aplicativa, fora do processo civil,
independentemente daquela remissão (e, depois da sua revogação, da interpretação
do sentido desta remissão, como sendo ‘dinâmica’ ou ‘estática’)”.»
No caso vertente, e ao contrário do que ocorreu no caso decidido pelo citado
aresto, estão aqui preenchidos os requisitos do tipo de recurso de
constitucionalidade interposto – designadamente a adequada suscitação de uma
questão de constitucionalidade normativa durante o processo.
E está também delimitada essa questão de constitucionalidade: consiste ela em
aquilatar da conformidade constitucional – designadamente com o disposto no
artigo 203.º da Constituição - da norma do artigo 102.º da Lei de Processo nos
Tribunais Administrativos, que definia o regime dos recursos ordinários de
decisões jurisdicionais nos tribunais administrativos, entendida no sentido de
conter uma remissão para o conteúdo de normas (artigos 763.º a 770.º, e em
especial o artigo 765.º, do Código de Processo Civil) que foram entretanto
revogadas.
7.Está em causa, portanto, admitir ou não, no espaço de conformidade
constitucional – com o invocado princípio da obediência à lei, mas também com o
princípio da separação de poderes -, a interpretação (correctiva) que foi
adoptada pelo Supremo Tribunal Administrativo quanto à supressão dos recursos
fundados em oposição de acórdãos, operada pelo artigo 17.º do Decreto-Lei n.º
329-A/95, de 12 de Dezembro. Com a revogação das normas dos artigos 763.º a
770.º, sobre o recurso para o tribunal pleno, no Código de Processo Civil (na
sequência da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre os assentos – cfr.
o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329‑A/95), deparavam-se, em abstracto, várias
opções quanto às conclusões a extrair no âmbito do direito administrativo (pois
o legislador não previu expressamente o sentido das normas que remetiam para os
artigos que revogou). Tais opções poderiam incluir o desaparecimento do recurso
por oposição de acórdãos no âmbito do direito administrativo (embora por razões
que, a mais de lhe serem estranhas, não teriam sido desejadas pelo legislador da
reforma do processo civil), a sua substituição pelo chamado novo julgamento
ampliado da revista (que implicaria, como que por arrastamento, uma reforma do
sistema de recursos do contencioso administrativo e tributário), ou a manutenção
do sistema anteriormente vigente, entendendo a remissão feita no domínio do
processo administrativo como mantendo-se para as mesmas normas, cuja revogação
não obstaria a que se mantivessem, como incorporadas no conteúdo normativo das
normas remissivas.
Ora, não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar os méritos relativos de cada
uma das três soluções, mas apenas averiguar se a continuidade do regime adoptado
pelo Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Junho, que aprovou a Lei de Processo nos
Tribunais Administrativos, e que corresponde a esta última alternativa, é
constitucionalmente conforme, como, implicitamente, julgou o Supremo Tribunal
Administrativo.
Importa, aliás, notar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo
resolveu a dúvida referida no sentido da manutenção da aplicabilidade das normas
dos artigos 765.º e 767.º do Código de Processo Civil, com as necessárias
adaptações, à regulação da tramitação do recurso por oposição de acórdãos no
âmbito do contencioso administrativo, apesar da sua revogação no âmbito do
processo civil (artigos 3.º e 17.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 329-A/95), logo
pouco depois da revogação operada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95 – cfr. logo o
acórdão de 24 de Abril de 1996 (in BMJ, n.º 456, p. 253). E tal orientação foi
depois reiterada em numerosos arestos – cfr., por exemplo, o acórdão do pleno da
Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo de 8 de
Outubro de 1998 (sumariado em www.dgsi.pt).
Quando interpuseram o seu recurso, os recorrentes não podiam, pois, deixar de
conhecer esta orientação, no sentido da manutenção da aplicabilidade do artigo
765.º do Código de Processo Civil ao recurso por oposição de julgados nos
tribunais administrativos.
8.Os recorrentes impugnam, porém, a interpretação em causa, por entender que ela
é contra legem, violando o artigo 203.º da Constituição, na parte em que impõe
aos Tribunais a sujeição à lei.
Ora, como se refere na doutrina (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1993, p. 795, anotação V ao artigo 206.º,
actual artigo 203.º), a independência dos tribunais, consagrada a par da sua
subordinação à lei, não pode deixar de entender-se que “compreende a autonomia
na interpretação do direito”, sendo que esta envolve também a integração de
eventuais “lacunas ocultas”, em especial por “redução teleológica” (e, como se
sabe, «[e]xiste uma “lacuna oculta” quando, segundo a teleologia imanente da
lei, a regra legal carece de uma restrição que a lei não formula. A “integração”
da lacuna faz-se então pelo aditamento da restrição postulada, de harmonia com o
sentido da lei. Como, por este processo, a regra demasiado ampla que a lei
contém é reduzida ao âmbito de aplicação que lhe cabe segundo o fim ou o
contexto significativo da lei, falamos a este propósito de uma “redução
teleológica”» - Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa, 1978,
pp. 450-451).
Ora, no presente caso, a interpretação normativa em causa foi formulada
justamente invocando a necessidade de uma consideração do espírito do legislador
ao revogar as normas dos artigos 763.º e segs. do Código de Processo Civil – a
necessidade de afastar o instituto dos “assentos” e sua força obrigatória geral,
que não se verificava quanto às decisões proferidas no âmbito do recurso por
oposição de acórdãos no contencioso administrativo. O Supremo Tribunal
Administrativo procurou cuidadosamente mostrar que a sua solução se não opõe à
vontade do legislador, mas, antes que, através de uma “obediência pensante’
(Heck) e inteiramente de acordo com o espírito do legislador, actua as
verdadeiras intenções deste ao tomar em conta o sentido e o fim da norma” (Karl
Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, Lisboa, 1965, p. 278). Uma tal forma
de interpretação de modo algum conflitua com o dever de obediência à lei, mas
antes traduz a sujeição ou “obediência pensante” justificada pela consideração
da sua finalidade.
Não deverão as coisas ser diferentemente entendidas por, alegadamente, a
revogação das normas implicar uma radical remoção da sua validade jurídica. É
que, na verdade, está então também em causa apenas uma interpretação do alcance
da norma revogadora e da norma remissiva. Não se vê, sob o ponto de vista do
dever de sujeição à lei, fundamento para, do ponto de vista constitucional,
distinguir extensão teleológica e ultra-actividade de normas (ou aplicabilidade
de normas por força de uma certa interpretação da norma que para elas remete).
Quer face ao princípio da separação de poderes, quer face ao princípio da
obediência dos tribunais à lei, não existe, pois, na interpretação normativa em
apreciação, qualquer ofensa. Antes está apenas em questão determinado
entendimento, desde logo, da norma remissiva do artigo 102.º da Lei de Processo
nos Tribunais Administrativos, no sentido de se não tratar de uma remissão
dinâmica, antes se mantendo para as normas em vigor no momento em que foi
formulada. Tal entendimento, há muito consolidado na jurisprudência do Supremo
Tribunal Administrativo quando os recorrentes interpuseram o seu recurso para o
pleno, foi justificado à luz da ratio da revogação de determinado regime no
processo civil, que se entendeu inaplicável ao contencioso administrativo, e não
traduz violação de qualquer disposição constitucional relativa à relação entre o
poder judicial e o poder legislativo.
Com o que há que negar provimento ao presente recurso.
III. Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo
102.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, entendida como mantendo
no seu conteúdo uma remissão para o conteúdo normativo dos artigos 765.º a 767.º
do Código de Processo Civil, não obstante a sua revogação pelo artigo 17.º do
Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro;
b) Consequentemente, confirmar a decisão recorrida e
condenar os recorrentes em custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte)
unidades de conta.
Lisboa, 21 de Setembro de 2005
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos