Imprimir acórdão
Processo n.º 633/05
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam em conferência na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. reclama, ao abrigo do disposto no n.º 4, do artigo 76.º da Lei n.º 28/82,
de 15 de Novembro, do despacho do Conselheiro Vice-Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça de 23 de Junho de 2005 que decidiu não conhecer do
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional do
despacho de indeferimento de reclamação contra um despacho que não admitira
recurso interposto de acórdãos da Relação para esse Supremo Tribunal (artigo
688.º do Código de Processo Civil).
Pede a revogação do despacho reclamado para que seja substituído por
outro que admita o recurso, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 76.ºda LTC,
alegando, em síntese, o seguinte:
- o despacho reclamado não pode deixar de ser interpretado como de
indeferimento do requerimento de interposição do recurso para o Tribunal
Constitucional;
- não foi invocado nenhum dos fundamentos de indeferimento do
requerimento de interposição do recurso previstos no n.º 2 do artigo 76.º da
LTC, nem ocorre qualquer razão para não admiti-lo porque “o requerimento de
interposição do recurso satisfaz os requisitos do art.º 75.º-A; a decisão admite
recurso; o recurso foi interposto dentro do respectivo prazo legal; o recorrente
tem legitimidade, e o recurso não é manifestamente infundado”.
O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:
“Afigura-se que efectivamente – face às regras vigentes no processo
constitucional – incumbe ao Exmo. Presidente de um Tribunal Superior que decidiu
definitivamente o procedimento de reclamação, perante si interposto, confirmando
a não admissibilidade do recurso interposto, pronunciar-se sobre a
admissibilidade do recurso de constitucionalidade, interposto de tal decisão
pelo reclamante: na verdade, é a decisão do Presidente que constitui a “última
palavra”, no âmbito da ordem dos Tribunais Judiciais, sobre a questão,
“consumindo” a precedente decisão sobre a inadmissibilidade do recurso
ordinário, proferida pelo Juiz ‘a quo’.”
2. Revelam os autos as seguintes ocorrências processuais com
interesse para decisão das questões que cumpre apreciar:
a) Em 3 de Março de 2005, recorrente interpôs reclamação do despacho que
não admitiu recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça;
b) Sobre essa reclamação recaiu o despacho de 19 de Abril de 2005, do
Conselheiro Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, do seguinte teor:
“I. O Dr. A., notificado do acórdão da Relação de Coimbra proferido em 14.12.04,
que não conheceu por intempestivo do requerimento por si apresentado na parte em
que arguía a nulidade do acórdão proferido em 08.06.2004 e o indeferiu no
respeitante à nulidade imputada ao acórdão de 19.10.04 e ao pedido de
notificação do despacho de fls. 740, vem agora interpor recurso para este
Supremo Tribunal destes três acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de
Coimbra.
O Ex.mo Desembargador Relator proferiu despacho não admitindo o recurso: no
respeitante aos acórdãos de 08.06.2004 e de 19.10.2004, por já ser ter esgotado
o prazo para a prática do acto; e no que concerne ao acórdão de 14.12.04, por
este se ter limitado a apreciar um requerimento onde se arguíam nulidades que
tinham de ser apreciadas pela Relação e ainda por não ter agora cabimento a
invocação de regras da competência em razão da hierarquia.
Desse despacho reclama o recorrente, sustentando, além do mais, que arguiu
tempestivamente a incompetência absoluta do tribunal para proferir os acórdãos
de 08.06.2004 e de 19.10.04 e que sobre ela não se pronunciou o acórdão de
14.12.04 sendo o recurso admissível para o S.T.J. face ao disposto no art.
678.º, n.º 2 do C PC.
A B. pugna pelo improvimento da reclamação.
Foi mantido o despacho reclamado.
II Cumpre apreciar e decidir.
O ora reclamante, após a notificação do acórdão da Relação de Coimbra proferido
em 14.12.04, que não conheceu por intempestivo do requerimento por si
apresentado na parte em que arguía a nulidade do acórdão proferido em 08.06.2004
e o indeferiu no respeitante à nulidade imputada ao acórdão de 19.10.04 e ao
pedido de notificação do despacho de fls. 740, vem agora recorrer para este
Supremo Tribunal destes três acórdãos.
Dos acórdãos proferidos em 08.06.2004 19.10.04 não é admissível recurso para
este Supremo Tribunal por as respectivas decisões já terem transitado em
julgado.
Como já tantas vezes se disse, dispõe o art.º 668.º, n.º 3 do CPC que “as
nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) só podem ser arguidas perante o
tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário; no caso
contrário, o recurso pode ter como fundamento qualquer dessas nulidades....”.
Daí, se a parte tiver arguido a nulidade do acórdão perante o tribunal que o
proferiu, já não pode depois impugná-lo pela via do recurso.
Donde, a impugnação por esta via dever efectuar-se no prazo de 10 dias a contar
da notificação do acórdão a que se assaca uma nulidade.
Prazo esse que, no respeitante aos acórdãos proferidos em 8.6.04 e 19.10.04, já
há muito se encontra ultrapassado.
Assim sendo, o recurso ficou inviabilizado no momento em que a ora reclamante
arguiu a nulidade dos acórdãos perante o tribunal que os proferiu.
Vejamos agora se é admissível recurso do acórdão proferido em 14.12.04 ao
abrigo do art. 678.º, n.º 2 do CPC, como pretende o reclamante.
Segundo alega o reclamante, no seu requerimento de interposição de recurso para
este Supremo Tribunal, os acórdãos de 8.6.04 e 19.10.04 são nulos por terem sido
proferidos por um tribunal hierarquicamente incompetente, uma vez que com a
prolação do acórdão de 19.02.2004 esgotou-se o poder jurisdicional de apreciação
da Relação.
Depois, a incompetência absoluta em razão da hierarquia foi arguida no
requerimento sobre que recaiu o acórdão de 14.12.04, que sobre ela não se
pronunciou, daí este acórdão reiterar decisão proferida por tribunal
hierarquicamente incompetente.
Não lhe assiste razão.
Isto por, não estarmos perante nenhuma incompetência em razão da hierarquia,
porquanto, se a Relação conheceu de questões de que já não podia conhecer por se
ter esgotado o seu poder jurisdicional de apreciação, tal não consubstancia uma
incompetência em razão da hierarquia, por ser a ela e não ao tribunal inferior
que compete conhecer dos recursos e seus desenvolvimentos ulteriores; logo, não
tem aplicação o disposto no art.º 678.º, n.º 2 do CPC.
III. Pelo exposto, indefere-se a presente reclamação.
Custas pelo reclamante.
Notifique.”
c) Em 6 de Maio de 2005,o reclamante pediu a reforma e arguiu a nulidade do
despacho referido na alínea anterior;
d) Sobre tal reclamação recaiu o despacho de 2 de Junho de 2005, do
seguinte teor:
“I. O Dr. A. requer a reforma da decisão que indeferiu a sua reclamação, por não
ter levado em consideração elementos constantes do processo e argui a nulidade
da mesma, ao abrigo do disposto no art. 668.º, n.º 1, alíneas d) e c) do CPC.
Invoca também a inconstitucionalidade do art. 71.º, n.º 1 interpretado em
conjugação como os arts. 102.º, n.º 1,666.º, 1 todos do CPC, 4.º, n.º 1 da Lei
n.º 21/85 de 30.07 e 4.º, n.º 1, da Lei n.º 38/87, de 23.12, e do art. 678.º,
n.º 2 do C PC, na interpretação que lhe foi dada pelo despacho que agora se
impugna.
II. Cumpre decidir.
A reforma da sentença ou da decisão de mérito, ora permitida pelo n.º 2 do art.
669.º do CPC, tem como pressuposto a existência de manifesto lapso do julgador
(como claramente referem as duas alíneas desse número).
Ora, não há qualquer lapso, que, aliás, nunca seria manifesto.
A competência do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça quando aprecia as
reclamações, nos termos do arts. 688.º e 689.º do CPC, apenas se cinge às
questões da admissibilidade e da retenção do recurso.
Assim, não faz assim sentido suscitar-se e pretender-se que se decidam no âmbito
da reclamação outras questões para além daquelas.
E nesse âmbito tomámos em consideração todos os elementos necessários para a
decisão da reclamação.
Com efeito, não nos cabe conhecer de todas as vicissitudes acontecidas no
processo, como vem pretendido.
O requerente invoca também a nulidade do nosso despacho de fls. 100 e segs.
fundado na alínea c) do n.º 1 do art. 668.º do CPC, por no seu entender existir
“incongruência” entre a fundamentação e a decisão.
Mas sem razão.
Com efeito, o que se disse no nosso despacho de fls.100 e segs. foi que não se
verificava a alegada incompetência em razão da hierarquia como pretendia o
requerente, o que em nada contraria a fundamentação para o efeito encontrada,
uma vez que a expressão “desenvolvimentos ulteriores” abrange os incidentes
suscitados junto da Relação, após a prolação do acórdão de 19.02.04 .
No respeitante á inconstitucionalidade imputada ao art. 71.º, n.º 1 interpretado
em conjugação como os arts. 102.º, n.º 1, 666.º, 1 todos do CPC, 4.º, n.º 1 da
Lei n.º 21/85 de 30.07 e 4.º, n.º 1, da Lei n.º 38/87, de 23.12 refere-se não
ser de conhecer da mesma por nem o despacho proferido pelo tribunal a quo, nem a
decisão que agora se impugna se terem baseado nessas normas para não admitir o
recurso.
Ora, não faz nenhum sentido conhecer-se da inconstitucionalidade de normas que
não foram aplicadas, por irrelevar o juízo de constitucional idade que sobre
elas se emita.
Por último, no que concerne à inconstitucionalidade do art. 678.º, n.º 2 na
interpretação que lhe foi dada pelo nosso despacho de fls. 100 e segs., por
desrespeito dos princípios contidos nos arts. 20.º, n.ºs 1 e 4 e 202.º, n.º 2 da
CRP, apenas se dirá, na sequência da jurisprudência do Tribunal Constitucional,
que a Constituição não impõe que tenha de haver recurso de todos os actos do
juiz, como também não exige que se garanta sempre um segundo grau de jurisdição
e, muito menos, um terceiro grau de jurisdição.
Ora, a admitir-se recurso para este S.T.J., estar-se-ia a garantir um terceiro
grau de jurisdição. Mais: no âmbito do processo civil, o direito à tutela
judicial efectiva, consagrado no art.º 20° da CRP, basta-se, em princípio, com
uma instância única (cf. entre outros o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
261/02 de 18 de Junho de 2002).
III. Pelo exposto indefere-se na totalidade o requerimento de fls. 104 e segs.
Custas pelo requerente, com a taxa de justiça de 3 UC.
Notifique.”
e) Por requerimento de 20 de Junho de 2005,o reclamante interpôs recurso
para o Tribunal Constitucional dos despachos 2 de Junho de 2005 e de 19 de Abril
de 2005 anteriormente referidos.
f) Sobre tal requerimento recaiu o despacho de 22 de Junho de 2005, do
seguinte teor [agora sob reclamação]:
“Recorre o reclamante, A., para o Tribunal Constitucional do despacho,
proferido no apenso de reclamação nº1452/05-7, que indeferiu o pedido de reforma
de anterior despacho proferido nos termos do art. 688° do C PC, que indeferira o
reclamação contra despacho proferido pelo Relator do Tribunal da Relação de
Coimbra que não havia admitido o recurso por si interposto para este Supremo
Tribunal.
De acordo com decisões anteriores (reclamações n.ºs 4670-04-6, 580-A/05-4 e
1145-05-6), temos entendido que a competência do presidente do tribunal ad quem
nos termos do art. 688° do CPC, como decorre deste normativo e dos princípios
gerais do processo civil, limita-se às questões da admissibilidade e do momento
se subida dos recursos.
Exercendo tal competência, por alguns tida por inconstitucional porque,
rigorosamente, não se tratar de actividade jurisdicional, não está o presidente
obrigado à rígida observância de critérios legais, devendo antes, numa atitude
prudencial, avaliar, em cada caso, se a questão da admissibilidade ou do momento
da subida dos recursos, deve ser apresentada decidida pelo tribunal superior.
Na verdade, as decisões do presidente, quando favoráveis ao reclamante, não são
definitivas cabendo, sempre, a última palavra à conferência no tribunal superior
(art. 689° n° 2 do CPC).
Não podem, pois, suscitar-se e pretender que se decidam outras questões, no
âmbito deste incidente, para além das referidas admissibilidade e do momento da
subida.
Por isso, e ma vez que neste apenso se proferiram já despachos de indeferimento
da reclamação e do requerimento para reforma do anterior decisão, nenhuma outra
questão poderá aqui suscitar-se nomeadamente, e sem embargo da norma do art. 70°
b) da Lei 28/82, a da admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional.
É que, por um lado, a resposta positiva à questão da admissibilidade ou da
subida imediata só se consolida após decisão da conferência, no tribunal
superior que, implícita ou explicitamente, a confirmar.
E por outro, a resposta negativa tem, por sua vez, o efeito de consolidar a
decisão do tribunal a quo que não admitiu, ou reteve, o recurso.
Daí que, porque a admissibilidade do recurso agora interposto para o Tribunal
Constitucional tenha que ser apreciada no tribunal a quo e terá de sê-lo da
decisão que aí o não admitiu, pois esta, repetimos, só se consolidou após o
despacho que indeferiu a reclamação.
Nestes termos, não se conhece, aqui, do requerimento de interposição do recurso
para o Tribunal Constitucional.
Custas pelo requerente, fixando a respectiva taxa no mínimo.”
3. O despacho recorrido conclui com uma decisão de “não
conhecimento” do requerimento de interposição do recurso para o Tribunal
Constitucional, o que poderia levantar dúvidas sobre se a presente reclamação
cabe na previsão do n.º 4 do artigo 76.º da LTC, que estabelece a reclamação
para o Tribunal Constitucional do despacho que indefira o requerimento de
interposição do recurso ou retenha a sua subida. Mas tais dúvidas – aliás,
emergentes, mais do que uma coerção da letra da lei, da tipologia processual
que, em geral, contrapõe decisões de “não provimento”, “improcedência” ou
“indeferimento” a decisões de “não conhecimento” – não resistiriam a uma
interpretação teleológica do preceito. Os conceitos de “indeferimento” e
“retenção” devem ser dotados de extensão adequada à função do recurso de
constitucionalidade das decisões dos restantes tribunais para o Tribunal
Constitucional.
Ora, em primeiro lugar, face à fundamentação do despacho há boas
razões para afirmar que, em substância, sob a aparência dessa pronúncia
expressa, está, em direitas contas, uma decisão material de indeferimento do
recurso interposto por a decisão de que se pretendeu recorrer (o despacho que
recaiu sob a reclamação) não ser recorrível.
De todo o modo, o fim visado com o meio processual previsto no n.º 4 do artigo
76.º e no artigo 77.º da LTC, que é o de assegurar que o Tribunal Constitucional
tenha a última palavra sobre a admissibilidade dos recursos para si interpostos
– assegurar a competência sobre a própria competência – não se compadece com uma
interpretação restritiva que permitisse subtrair à sua apreciação qualquer
decisão dos restantes tribunais que, ainda que consistindo numa decisão
formalmente diversa do indeferimento, tenha efeito material directo equivalente
à não admissão ou à ou retenção de um recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade de determinada decisão.
Consequentemente, passa a apreciar-se a reclamação.
4. O despacho recorrido entende que a decisão do presidente do
tribunal superior proferida ao abrigo do artigo 688.º do Código de Processo
Civil não é susceptível de recurso para o Tribunal Constitucional, por não ter
carácter definitivo, na base do seguinte raciocínio dilemático:
- se for de provimento da reclamação (admissão do recurso ou
determinação da sua subida imediata), a decisão do presidente não vincula o
tribunal ad quem (n.º 2 do artigo 689.º do CPC);
- se for de não provimento, a decisão do presidente limita-se a
tornar definitiva a decisão que não admitira o recurso, a que nada acrescenta,
sendo da decisão confirmada que o recurso deve ser admitido.
Em qualquer caso, esse despacho não seria recorrível “a se”.
Para decisão da presente reclamação, não importa considerar a
primeira hipótese porque não é desse género o caso presente. Interessa-nos,
apenas, a justificação para a não admissão de recurso das decisões de
indeferimento da reclamação. Ora, pelo menos relativamente às decisões de
indeferimento, não pode acolher-se tal construção jurídica, sendo até
dispensável uma mais extensa justificação, face ao teor do n.º 3 do artigo 70.º
da LTC que, ao incluir expressamente a reclamação para o presidente dos
tribunais superiores no âmbito do ónus de esgotamento dos “recursos” ordinários,
necessariamente implica o reconhecimento de que as decisões que aí venham a ser
proferidas constituem a “última palavra” da ordem jurisdicional respectiva
quanto à não admissão do recurso e, portanto, que ela vem a ser o objecto
passível do recurso para o Tribunal Constitucional quanto à
inconstitucionalidade (ou à ilegalidade) das normas de que tenha feito
aplicação. Não se vislumbra razão para, sendo imposta a exaustão de determinado
meio processual na ordem jurisdicional respectiva como condição de acesso ao
Tribunal Constitucional, o recurso de constitucionalidade vir, afinal, a incidir
sobre a decisão confirmada e não sobre a decisão que vem a constituir a última
palavra dessa ordem jurisdicional. Basta ver que esta decisão pode mesmo
resultar da aplicação de normas diversas daquelas que foram consideradas no
despacho reclamado. Não poderia negar-se o acesso ao Tribunal Constitucional e
não se vê como imputar o fundamento normativo invocado à decisão primitiva.
Por outro lado, seria de uma complexidade inútil definir o âmbito da
recorribilidade em função da inovação, cindindo, com possível duplicação, o
objecto imediato do recurso.
Há, aliás, sem que tenha sobrevindo qualquer alteração legislativa
ou de sistema que justifique revê-la, uma prática judiciária pacífica
relativamente à admissão de recurso para o Tribunal Constitucional quanto a este
tipo de decisões.
5. Não basta, todavia, que não subsistam as razões em que a decisão
reclamada fundou a não admissão do recurso para o Tribunal Constitucional para
que a reclamação seja deferida e o recurso admitido. Como constitui
jurisprudência corrente, fazendo a decisão caso julgado quanto à admissibilidade
do recurso (n.º 4 do artigo 77.º da LTC), há-de o Tribunal verificar, no momento
em que profere tal decisão, se estão reunidas todas as condições de que depende
essa admissibilidade.
O recorrente identificou nos seguintes termos as normas cuja
inconstitucionalidade quer ver apreciada:
“1. A do art.º 668.º, n.º 3, do CPC, aplicada ao Despacho de 19.4.2005, com o
sentido de abranger também a arguição de nulidade processual ao abrigo do
disposto no art.º 201.º, n.º 1, do CPC, e os pedidos deduzidos ao abrigo do
disposto no n.º 2 do mesmo preceito legal.
Tal dimensão normativa viola os princípios da segurança jurídica e da confiança
implícitos no princípio do Estado de Direito consignado no art.º 2.º da
Constituição, e as normas relativas à repartição da função jurisdicional e à
hierarquia constitucional dos tribunais consagradas nos artºs. 202.º, 209.º e
210.º da mesma Lei.
Estes princípios encontram-se invocados na Reclamação de 2.3.2005 (data do
registo postal), mais concretamente nos seus n.ºs 1.3 e 5, como parâmetros
constitucionais de qualquer preceito legal que impeça o recurso efectivo para os
tribunais de decisões desprovidas de poder jurisdicional com a finalidade de
remover a obstrução ao exercício da jurisdição pelo tribunal competente.
2. A do art.º 666.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, interpretada em conjugação com as dos
art.ºs 71.º, n.º 1, 102.º, n.º 1 e 4ºs, n.ºs 1, das Leis n.ºs 21/85, de 30.7, e
38/87, de 23.12, aplicada no Despacho de 19.4.2005, com o sentido de abranger a
prolação de decisões contraditórias com a decisão final do recurso, quer com
relação ao objecto deste quer com relação às imputação das custas do mesmo,
incluindo a de ordenar a extinção da instância de recurso.
Tal dimensão normativa viola os princípios da segurança jurídica e da confiança
implícitos no princípio do Estado de Direito consignado no art.º 2.º da
Constituição, e os relativos à repartição da competência dos tribunais
pressupostos na repartição constitucional da função jurisdicional e na
hierarquia dos tribunais consagradas nos artºs. 202.º, 209.º e 210.º da mesma
Lei.
A inconstitucionalidade de tal dimensão normativa encontra-se invocada na
Reclamação de 2.3.2005, mais concretamente nos seus n.ºs 1.3, 5 e 6, e também na
Reclamação de 6.5.2005, mais concretamente nos seus n.ºs 8 e 13.
3. A do art.º 678.º, n.º 2, do CPC, no segmento relativo às regras de
competência em razão da hierarquia, aplicada no Despacho de 19.4.2005 com o
sentido de não abrangera obstrução ao exercício da jurisdição pelo tribunal
competente quando este seja um tribunal inferior na hierarquia dos tribunais.
Tal dimensão normativa viola os princípios da segurança jurídica e da confiança
implícitos no princípio do Estado de Direito, consagrado no art.º 2.º da
Constituição, do acesso ao direito e aos tribunais e ao processo equitativo
consagrado no art.º 20º, n.ºs 1 e 4, da vinculação dos tribunais à incumbência
da defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos
consagrado no art.º 202.º, n.º 2, e da repartição da competência e da hierarquia
consagrados nos artº.s 209.º e 210.º da mesma Lei.
A inconstitucionalidade de tal dimensão normativa encontra-se suscitada na
Reclamação de 2.3.2005, mais concretamente nos seus n.ºs 1.3 e 5, e, também, na
Reclamação de 6.5.2005, mais concretamente no seu n.º 14.”
O recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC, que o permite de decisão judicial que tenha aplicado norma cuja
inconstitucionalidade tenha sido suscitada, de modo processualmente adequado
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida (n.º 2 do artigo 72.º da
LTC). Ora, cotejando as decisões de que se pretende recorrer com as intervenções
anteriores do recorrente, tem de concluir-se que não estão reunidos estes
pressupostos relativamente a qualquer das normas ou grupo de normas indicados
pelo recorrente.
Com efeito, o recorrente reclamara para o Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça, ao abrigo do artigo 688.º do CPC, de um despacho que não
admitira recurso de três acórdãos da Relação para o Supremo. Quanto a dois deles
(os acórdãos de 8/6/2004 e de 19/10/2004) por intempestividade; quanto ao outro
(o acórdão de 14/12/2004), por “não ter qualquer cabimento a invocação feita das
regras de competência em razão da hierarquia, sendo certo que a reclamação de
nulidade sempre teria de ser apreciada neste tribunal”.
Na reclamação, o requerente sustentou:
“2. O requerimento de 28.6.2004, de arguição de nulidade processual permitido
pelo art.º 666.º, n.º 2, do CPC, interrompeu o prazo para arguir nulidades de
sentença das decisões de 8.6.2004, desprovidas de poder jurisdicional.
As decisões de 19.10.2004, sobre ele proferidas, foram tempestivamente arguidas
de incompetência absoluta. Sobre esta questão não se pronunciou o Tribunal em
14.12.2004.
Pelo que, o reclamante, ao interpor recurso das decisões de 8.6.2004, 19.10.2004
e 14.12.2004, por requerimento de 11.1.2005, considerando as férias judiciais
entretanto ocorridas, está, obviamente, em tempo, segundo a lei vigente.
3. Diz-se no despacho de fls. 819, que não tem cabimento a invocação de regras
de competência em razão da hierarquia. E acrescenta-se: sendo certo que a
reclamação de nulidade sempre teria que ser apreciada neste Tribunal.
Tal arguição foi feita. Mas o Tribunal recusou pronúncia sobre a mesma.
Recorda-se, com a devida vénia, que o acórdão de 19.2.2004, ainda não transitou
em julgado, pelo que a arguição de incompetência absoluta do Tribunal é
tempestiva.
4. A arguição de incompetência absoluta do Tribunal, no requerimento de
interposição de recurso de 11.1.2005, cumpre a apreciação legal do art.º 687.º,
n.º 1, 2ª parte, do CPC. Como nele foi expressamente indicado, tendo-se porém
escrito por evidente lapso, n.º 2.
Não pode, pois, o Tribunal estranhar que tal invocação tenha sido feita.
5. As decisões de 8.6.2004, 19.10.2004 e 14.12.2004, são contraditórias com a
proferida em primeiro lugar, isto é, com as de 19.2.2004. Pelo que, por força do
disposto no art.º 675.º, n.º 2, do CPC, elas nunca poderão ser cumpridas.
Mas, enquanto proferidas por tribunal hierarquicamente incompetente, são
recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo do disposto no art.º
678.º, n.º 2, do CPC.
E a tutela da confiança e da segurança jurídica implícita no Estado de Direito
consagrado no art.º 2.º da Constituição, e a vinculação dos tribunais à defesa
dos direitos e dos interessas legalmente protegidos dos cidadãos, impõem que
seja permitido que o STJ se pronuncie sobre a nulidade e ineficácia de tais
decisões.
O requerimento de interposição de recurso é tempestivo, conforme nele alegado, e
aqui fica demonstrado. Ao recurso interposto não se aplica o art.º 754.º, n.º 2,
do CPC, ex vi seu n.º 3.
6. A norma do art.º 666.º, n.º 1, do CPC, concretiza a garantia constitucional
da independência e imparcialidade dos tribunais, e da segurança jurídica
implícita no princípio do Estado de Direito consagrado no art.º 2.º da
Constituição. A norma que atribua competência a qualquer juiz para decidir sobre
a matéria da causa após decisão final, sem ser em cumprimento de decisão de
tribunal superior, é inconstitucional por violar as garantias e princípios. Uma
decisão proferida por qualquer juiz sobre a matéria da causa, que não o seja no
exercício de poder jurisdicional, é sempre recorrível para configurar uma
situação de incompetência absoluta.”
A reclamação foi indeferida nos seguintes termos, pelo despacho de
19 de Abril de 2005:
“O ora reclamante, após a notificação do acórdão da Relação de Coimbra proferido
em 14.12.04, que não conheceu por intempestivo do requerimento por si
apresentado na parte em que arguía a nulidade imputada ao acórdão de 19.10.04 e
ao pedido de notificação do despacho de fls. 740, vem agora recorrer para este
Supremo Tribunal destes três acórdãos.
Dos acórdãos proferidos em 08.06.2004 19.10.04 não é admissível recurso para
este Supremo Tribunal por as respectivas decisões já terem transitado em
julgado.
Como já tantas vezes se disse, dispõe o art.º 668.º, n.º 3 do CPC que “as
nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) só podem ser arguidas perante o
tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário; no caso
contrário, o recurso pode ter como fundamento qualquer dessas nulidades…”.
Daí, se a parte tiver arguido a nulidade do acórdão perante o tribunal que o
proferiu, já não pode depois impugná-lo pela via de recurso.
Donde, a impugnação por esta via dever efectuar-se no prazo de 10 dias a contar
da notificação do acórdão a que se assaca uma nulidade.
Prazo esse que, no respeitante aos acórdãos proferidos em 8.6.04 e 19.10.04, já
há muito se encontra ultrapassado.
Assim sendo, o recurso fica inviabilizado no momento em que o ora reclamante
arguiu a nulidade dos acórdãos perante o tribunal que os proferiu.
Vejamos agora se é admissível recurso do acórdão proferido em 14.12.04 ao abrigo
do art.º 678.º, n.º 2 do CPC, como pretende o reclamante.
Segundo alega o reclamante, no seu requerimento de interposição de recurso para
este Supremo Tribunal, os acórdãos de 8.6.04 e 19.10.04 são nulos por terem sido
proferidos por um tribunal hierarquicamente incompetente, uma vez que com a
prolação do acórdão de 19.02.2004 esgotou-se o poder jurisdicional de apreciação
da Relação. Depois, a incompetência absoluta em razão da hierarquia foi arguida
no requerimento sobre que recaiu o acórdão de 14.12.04, que sobre ela não se
pronunciou, daí este acórdão reiterar decisão proferida por tribunal
hierarquicamente incompetente.
Não lhe assiste razão.
Isto porque, não estarmos perante nenhuma incompetência em razão da hierarquia,
porquanto, se a Relação conheceu de questões de que já não podia conhecer por se
ter esgotado o seu poder jurisdicional de apreciação, tal não consubstancia uma
incompetência em razão da hierarquia, por ser a ela e não ao tribunal inferior
que compete conhecer dos recursos e seus desenvolvimentos ulteriores; logo, não
tem aplicação o disposto no art.º 678.º, n.º 2 do CPC.”
O simples cotejo das partes transcritas da reclamação e da decisão
que sobre ela recaiu imediatamente revela que o recorrente não suscitou de modo
processualmente adequado, perante o órgão jurisdicional que proferiu a decisão
recorrida, a questão de inconstitucionalidade das normas que nesta foram
adoptadas como ratio decidendi do indeferimento da reclamação e, portanto, da
não admissão dos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça. Efectivamente, só
se considera arguida uma questão desta natureza se o interessado a tiver
enunciado, com identificação da norma que se quer ver desaplicada e um mínimo de
substanciação quanto à sua desconformidade com normas ou princípios
constitucionais, em termos tais que o órgão jurisdicional deva saber que é
chamado a exercer o poder que lhe é conferido pelo artigo 204.º da Constituição.
Ora, não há nessa peça processual, designadamente nas passagens que a recorrente
indica no requerimento de interposição, qualquer censura de
inconstitucionalidade, com essas características, relativamente às normas que
fundaram o indeferimento da reclamação: o n.º 3 do artigo 668.º e n.º 2 do
artigo 678.º do CPC. Não satisfaz essa exigência a afirmação, que nem sequer é
referida a qualquer norma em concreto, em que genericamente se diz que “a norma
que atribua competência a qualquer juiz para decidir sobre a matéria da causa
após decisão final sem ser em cumprimento de decisão do tribunal superior é
inconstitucional por violar aquelas garantias e princípios” [A garantia
constitucional da independência e imparcialidade dos tribunais e da segurança
jurídica]. Aliás, ainda que se ligasse essa afirmação à referência ao n.º 1 do
artigo 661.º do CPC que consta do período que a antecede, essa não é a norma
aplicada no despacho de indeferimento do recurso, sendo, quando muito, uma das
razões da divergência com os acórdãos de que se pretende recorrer.
O reclamante acrescenta que alegou as inconstitucionalidades que
pretende ver apreciadas na arguição de nulidade do despacho de 19 de Abril de
2005, que veio a ser apreciada pelo despacho de 2 de Junho de 2005. Sucede que
esse não seria o momento processualmente adequado para fazê-lo. Não estamos
perante uma daquelas situações, excepcionais ou anómalas, em que o recorrente
não tivesse disposto de oportunidade para suscitar a questão de
constitucionalidade das normas aplicadas na decisão de indeferimento da
reclamação antes de ela ter sido proferida, que foram apenas as dos n.ºs 3 do
artigo 668.º e do n.º 2 do artigo 678.º do Código de Processo Civil, cuja
interpretação se não afastou daquilo com que seria razoável contar, desde logo
porque era o sentido que estava pressuposto no despacho do relator no Tribunal
da Relação que se queria ver revogado. E quanto às normas que a recorrente
identifica no n.º 2 do requerimento de interposição, como se afirma no despacho
de 2 de Junho de 2005 (fls. 27 e segs.) que indeferiu o pedido de reforma e
arguição de nulidade, nem o despacho proferido no Tribunal da Relação nem o
indeferimento da reclamação se basearam nelas para não admitir o recurso.
6. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o
reclamante nas custas, fixando em 20 (vinte) unidades de conta a taxa de justiça
respectiva.
Lisboa, 25 de Outubro de 2005
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050568.html ]