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Processo nº 722/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é
recorrente A. e são recorridos o Ministério Público e B., foi interposto recurso
para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1,
alínea b), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 15 de Março de 2006,
“complementado pelo Acórdão de 21 de Junho de 2006 – que indeferiu arguição de
nulidades”.
2. Em 24 de Outubro de 2006, foi proferida decisão sumária (artigo 78-A, nº 1,
da LTC), no sentido de que não podia conhecer-se do objecto do recurso em causa,
com os seguintes fundamentos:
“Em resposta ao convite formulado, nos termos do disposto no nº 6 do artigo
75º-A da LTC, a recorrente continua a não identificar, com precisão, a decisão
da qual interpõe recurso para o Tribunal Constitucional. De todo o modo,
independentemente dessa questão, importa concluir que nenhum dos acórdãos
aplicou as “normas” cuja apreciação é requerida, não se podendo dar como
verificado um dos requisitos do recurso de constitucionalidade previsto na
alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC e, consequentemente, conhecer do objecto
do recurso interposto.
1. A recorrente requer a apreciação da norma do artigo 425° do Código de
Processo Penal conjugada com o disposto no artigo 713° do Código de Processo
Civil, quando interpretada no sentido de admitir como decidida e fundamentada
uma questão de constitucionalidade normativa sem que o tribunal tenha, de facto
e de direito, efectuado qualquer julgamento de constitucionalidade relativamente
à norma arguida de inconstitucional, confrontando-a, designadamente com os
parâmetros constitucionais tidos como violados; bem como a do artigo 425° do
Código de Processo Penal, conjugada com o disposto no artigo 374°, nº 2, do
mesmo diploma, quando interpretada no sentido de admitir como decidida e
fundamentada uma questão de constitucionalidade normativa sem que o tribunal
tenha, de facto e de direito, efectuado qualquer julgamento de
constitucionalidade relativamente à norma arguida de inconstitucional,
confrontando-a, designadamente com os parâmetros constitucionais tidos como
violados.
Tem vindo este Tribunal a entender que pode ser requerida a apreciação da
inconstitucionalidade de uma norma na sua totalidade, em determinado segmento ou
segundo certa interpretação, desde que mediatizada pela decisão recorrida, (cf.,
entre muitos outros, o Acórdão nº 232/02, Diário da República, II Série, de 18
de Julho de 2002). Porém, só pode «apresentar-se como sendo interpretação de uma
determinada norma jurídica, mesmo quando ela seja lida conjugadamente com outra
ou outras normas jurídicas, um sentido que seja referível ao seu teor verbal: é
que, o intérprete não pode considerar ‘o pensamento legislativo que não tenha na
letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente
expresso’ e deve presumir ‘que o legislador (…) soube exprimir o seu pensamento
em termos adequados’» (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 106/99, não
publicado).
No caso em apreço, aquela formulação não pode apresentar-se como sendo
interpretação de norma do artigo 425º do Código de Processo Penal conjugada com
o disposto no artigo 713º do Código de Processo Civil, nem tão-pouco
interpretação de norma do primeiro artigo, conjugada com o disposto no artigo
374º, nº 2, do Código de Processo Penal. Não pode apresentar-se como
interpretação, atento o teor destes artigos, que se reportam a regras sobre a
elaboração do acórdão – e notificação do mesmo (nº 6 do artigo 425º) – e aos
requisitos da sentença em matéria de fundamentação de facto.
Aquela formulação é significativa, isso sim, sob a capa formal da invocação da
inconstitucionalidade daqueles preceitos, da discordância da recorrente
relativamente ao decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, de [em] 21 de
Junho de 2006, quando acordou que a questão de inconstitucionalidade reportada
aos artigos 307º e 308º do Código de Processo Penal foi apreciada e decidida no
Acórdão de 15 de Março do mesmo ano.
2. A recorrente requer também a apreciação da norma do artigo 668°, nº 1, alínea
d), do Código de Processo Civil, quando interpretada no sentido de admitir que
se indefira a arguição de nulidade de omissão de pronúncia relativa a uma
questão de constitucionalidade e simultaneamente se decida, na mesma reclamação
que se indefere, em termos inovadores, essa mesma questão. Ora, resulta
claramente do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de Junho de 2006 –
e só este poderia aplicar norma do artigo 668º, nº 1, alínea d), do Código de
Processo Civil – que este artigo não foi interpretado e aplicado daquela forma.
Tal decorre especificamente da passagem que, de seguida, se transcreve:
«(…) certo sendo que se omitiu por completo, o vocábulo inconstitucionalidade,
não menos é que, tal arrogada inconstitucionalidade, foi apreciada e decidida,
como ressalta daquele aresto, mormente de fls 19 (primeiras vinte linhas) e fls.
20».
Remetendo para o decidido no acórdão cuja nulidade foi arguida, o Tribunal da
Relação de Coimbra não aplicou aquele artigo 668º, nº 1, alínea d), naquela
interpretação, desde logo porque não terá então decidido a questão de
inconstitucionalidade “em termos inovadores”.
3. A recorrente requer, ainda, a apreciação da norma dos artigos 307° e 308° do
Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de admitir que o juízo
de não pronúncia não cuide directa e exclusivamente da avaliação objectiva da
suficiência de indícios.
Também quanto a esta norma dos artigos 307º e 308º do Código de Processo Penal,
quando interpretados daquele modo, é de concluir que o Tribunal da Relação de
Coimbra, em 15 de Março de 2006, não a aplicou, como ratio decidendi. A decisão
no sentido de negar provimento ao recurso interposto da decisão instrutória de
não pronúncia assentou numa interpretação distinta da alegada, bastando para tal
concluir atentar no teor da passagem da decisão daquele Tribunal, transcrita no
ponto 2. do Relatório que antecede.
Considerando a peça processual indicada pela recorrente em cumprimento da parte
final do nº 2 do artigo 75º-A da LTC (especialmente, fls. 346 e s. e 358) e o
requerimento de arguição de nulidade do acórdão de 15 de Março de 2006, aquela
formulação é significativa de uma interpretação no sentido de admitir que o
juízo de não pronúncia seja determinado por uma conclusiva e subjectiva
avaliação precária da prova, projectada num juízo de valor que não é dirigido à
maior ou menor suficiência dos indícios, projectada, por outras palavras, no
concreto julgamento da causa realizado com prova precária e sem contraditório
adequado. Ora, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra daquela data é por
demais explícito no sentido de distinguir o juízo que cabe ao juiz de instrução,
enquanto avalia a suficiência dos indícios, do que cabe ao juiz de julgamento,
enquanto decide sobre a prova dos factos. Pode ler-se aí, nomeadamente, o
seguinte:
«Podemos adiantar, como seguro, que indícios suficientes serão os elementos
bastantes para estabelecerem no julgador a convicção maior ou menor da
existência do facto delituoso e da participação nele do arguido em termos de se
presumir a sua condenação.
E só constituem indícios suficientes “aqueles elementos que logicamente
relacionados e conjugados formam um conjunto persuasivo, na pessoa que os
examina, sobre a existência do facto punível, de quem foi o seu autor e da sua
punibilidade”.
Nesta fase processual a lei basta-se pela existência de indícios de
probabilidade da existência do facto considerado como crime, contrariamente à
fase do julgamento em que a lei exige uma certeza do facto e da participação
nele pelo arguido.
A diferença nestas duas fases processuais é constituída pela distância que vai
da probabilidade à certeza.
Nas fases preliminares do processo (inquérito e instrução) não se visa alcançar
a demonstração da realidade dos factos, antes tão só indícios, sinais de que um
crime foi cometido por determinado arguido, constituindo as provas reunidas
nessas fases, pressuposto, não da decisão de mérito, mas da decisão processual
de prossecução dos autos para julgamento onde o julgador deverá ser mais
exigente. Em julgamento exige-se certeza cimentada através de uma sã apreciação
crítica da prova, enquanto que para o acto provisório da acusação ou da
pronúncia, se exige somente aquela convicção».
No fundo, e mais uma vez, sob a capa formal da invocação da
inconstitucionalidade de normas, a recorrente demonstra a sua discordância
relativamente à decisão de não pronúncia proferida pelas instâncias”.
3. Notificada desta decisão, a recorrente apresenta agora o seguinte
requerimento:
«1. Ao abrigo do disposto no artigo 669.°, n.º 1, alínea a), do Código de
Processo Civil, aplicável ex vi o disposto no artigo 69.° da Lei n.º 28/82,
[vem] solicitar esclarecimento de ambiguidade contida na decisão sumária, como
condição sine qua non de possibilidade de exercer, em termos válidos, o direito
de reclamação para a conferência, com base nos seguintes fundamentos:
A ora reclamante suscitou nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de
Coimbra a inconstitucionalidade da norma do artigo 307.° e 308.° do Código de
Processo Penal quando interpretados no sentido de admitir que o juízo de não
pronúncia não cuide directa e exclusivamente da avaliação objectiva da
suficiência de indícios.
De acordo com a decisão sumária ora notificada, concluiu esse Tribunal que o
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15 de Março de 2006, não aplicou
essa norma como ratio decidendi e, simultaneamente, que “sob a capa formal da
inconstitucionalidade de normas, a recorrente demonstra a sua discordância
relativamente à decisão de não pronúncia proferida pelas instâncias”.
Ora, salvo o devido respeito, tais fundamentos não são compatíveis entre si.
De facto, ou se entende que a recorrente contesta a decisão judicial traduzida
no acto de aplicação subsuntiva realizado pelo tribunal a quo, caso em que não
se estará perante uma questão de constitucionalidade normativa, ou, em oposição,
se entende que o tribunal não aplicou a norma como ratio decidendi.
A diferença não é irrelevante.
No primeiro caso, implica que se aprecie, independentemente do confronto com a
decisão recorrida, a suscitação da constitucionalidade da “norma”, em termos de
saber se aí se abstrai das particularidades do caso e se define, em termos
normativos, um critério susceptível de ser apreendido e aplicado, em face da sua
generalidade e abstracção, pelos operadores jurídicos.
No segundo caso, ter-se-á de confrontar a norma arguida de inconstitucional com
a decisão recorrida de modo a sindicar se o tribunal aplicou, ou não, essa norma
como ratio decidendi.
Como é óbvio, a recorrente não concorda com a decisão do Tribunal da Relação,
MAS, essa discordância funda-se no facto do Tribunal da Relação ter decidido com
base num critério normativo que se julga inconstitucional, e é esta discordância
que está na origem do seu recurso para o Tribunal Constitucional.
Na verdade, considerado o critério normativo cuja constitucionalidade foi
suscitada, bem se vê que a recorrente não controverte o juízo aplicativo em si,
projectado na subsunção da factualidade relevada pelo tribunal, mas,
diferentemente, o critério normativo que esteve pressuposto a tal aplicação.
2. Ao abrigo do disposto no artigo 70.°, n.º 1, alínea b), da LOFTC, a
recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie, dando-se cumprimento
à ulterior tramitação processual relevante, a constitucionalidade da norma do
artigo 78.°-A, n.º 1, da Lei n.º 28/82, quando interpretada no sentido do Juiz
Relator poder proferir decisão sumária de não conhecimento do objecto do
recurso, sem audição prévia do recorrente, por violação do disposto no artigo
20.°, da Constituição, na parte em que daí se extrai o direito a um processo
justo e equitativo com respeito pelas garantias de defesa e pelo princípio do
contraditório, como, ademais, se ponderou, com outro circunstancialismo, no
Acórdão N°. 358/98 deste Tribunal.
3. Subsidiariamente, caso se entenda indeferir o pedido constante dos pontos
anteriores, ao abrigo do disposto no artigo 78.°-A, n.º 3, da Lei do Tribunal
Constitucional, reclama-se para a conferência nos seguintes termos:
3.1. Questão Prévia
A reclamante requereu aclaração da douta decisão sumária como forma de
esclarecer uma ambiguidade aí existente quanto aos fundamentos do não
conhecimento do objecto do recurso.
A não ser clarificada e decidida essa ambiguidade, o direito de reclamação da
decisão sumária fica seriamente comprometido na medida em que a reclamante não
sabe quais os fundamentos que há-de rebater, quando exista, como existe, uma
contradição quanto aos fundamentos do não conhecimento do objecto do recurso.
Deste modo deverá considerar-se inconstitucional a norma do artigo 669.°, n.º 1,
alínea a), do Código de Processo Civil, quando interpretada no sentido de ser
inaplicável ao esclarecimento de decisão sumária de não conhecimento de objecto
do recurso proferida nos termos do artigo 78.°-A, n.º 1, da Lei da Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, por violação do direito de
acesso aos tribunais.
3.2. Sem conceder,
Salvo o devido respeito, não pode considerar-se que a norma do artigo 307.° e
308.° do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de admitir
que o juízo de não pronúncia não cuide directa e exclusivamente da avaliação
objectiva da suficiência de indícios, não foi aplicada como ratio decidendi pelo
Tribunal da Relação.
De facto, basta considerar o que o próprio Tribunal da Relação deixou consignado
quanto a tal norma:
“O Acórdão versa primacialmente sobre o cerne da questão além aportada, qual
seja a da verificação/inverificação de indícios para submeter a julgamento, o
arguido (...).
E dele decorre que, neste critério se não possa violar quer o artigo 20.°
(acesso ao direito) quer o artigo 211.°, n.º 2 (competência dos tribunais),
designadamente pela violação do juiz natural.
A mera e exclusiva “avaliação objectiva da suficiência de indícios” não passa de
uma miragem, quando tal avaliação é “ainda” feita por um ser humano”.
É o próprio Tribunal da Relação que dá por assente uma interpretação normativa
do artigo 307.° e 308.° do Código de Processo Penal no sentido de admitir que o
juízo de não pronúncia não cuide directa e exclusivamente da avaliação objectiva
da suficiência de indícios, tendo decidido com base em tal critério normativo.
3.3. Também a norma do artigo 668.°, n.º 1, alínea d), do Código de Processo
Civil, foi aplicada como ratio decidendi, como se constata pelo facto de o
Tribunal da Relação, na peça onde diz ter resolvido a questão de
constitucionalidade, nada dizer sobre esta questão.
A “fls 19 (primeiras vinte linhas) e fls 20”... não se vê que o Tribunal da
Relação tenha dirimido, contrariamente ao que indicou, qualquer questão de
constitucionalidade.
Caberá ao Tribunal Constitucional, em todo o caso, aferir se o critério
normativo que o Tribunal diz ter seguido foi, ou não, na realidade, aquele que
foi aplicado! Só assim se alcançará a verdadeira – não fictícia – ratio
decidendi do decidido.
Por outras palavras, a recorrente entende que o Tribunal Constitucional não está
vinculado ao que o Tribunal da Relação diz ter decidido, mas sim ao que de facto
decidiu, não esquecendo, quanto a este ponto, que o critério normativo aí
acolhido foi o de considerar que (um)a questão de constitucionalidade não
integrava o objecto do recurso.
Essa não vinculação tem, ademais, sido assumida pelo Tribunal Constitucional
quando está em causa o cumprimento das suas decisões, pelo que, também aqui,
terá de ser esse o critério a prevalecer, sendo que, bem vistas as coisas, não
há nada – mas mesmo nada – no excerto indicado pelo próprio Tribunal da Relação
que possa ser visto ou interpretado, no mínimo que seja, como resposta à arguida
questão de constitucionalidade.
Ou seja, parece-nos que o Tribunal da Relação decidiu a inconstitucionalidade
“em termos inovadores”, ao contrário do que se refere na decisão reclamada, sem
qualquer referência ou análise do texto onde o Tribunal da Relação (NÃO) decidiu
a questão.
3.4. Por último, a recorrente pretendia ver fiscalizada a constitucionalidade do
critério normativo segundo o qual se admitisse como tendo sido decidida e
fundamentada uma questão de constitucionalidade sem que o tribunal tivesse, de
facto e de direito, efectuado qualquer julgamento de constitucionalidade
relativamente à norma arguida de inconstitucional, confrontando-a,
designadamente, com os parâmetros constitucionais.
E, no seu entendimento, essa norma resulta inferida do disposto no artigo 374.°,
n.º 2 do Código de Processo Penal, conjugada com o artigo 425.° do mesmo Código.
Diz-se na decisão sumária que “só pode apresentar-se como sendo interpretação de
uma norma um sentido que seja referivel ao seu teor verbal”.
Permitimo-nos realçar o seguinte:
No artigo 374.°, n.º 2, do Código de Processo Penal, a propósito dos requisitos
da sentença, diz-se que o tribunal deve fundamentar de facto e de direito, os
motivos que fundamentam a decisão, não podendo, como é óbvio, deixar de decidir
as questões que constituam objecto da intervenção do tribunal.
No artigo 425.°, trata-se da elaboração do Acórdão, sendo-lhe aplicável, como
não pode deixar de ser, as exigências postas no artigo 374.º, n.º 2, ao nível da
exposição dos critérios de cognoscibilidade e fundamentação decisória que esse
artigo define.
Há, pois, uma clara referência verbal da interpretação questionada às sobreditas
normas.
O Tribunal considerou, com todo o respeito, erradamente, que a norma do artigo
374.°, n.º 2 cuida apenas dos requisitos da sentença em matéria de fundamentação
de facto.
E, ainda, errou novamente ao considerar restritiva e revogatoriamente os
critérios quanto à elaboração do acórdão à norma sobre a sua notificação não
tomando em conta as exigências da elaboração do acórdão ao nível do
estabelecimento de critérios quanto à fundamentação de facto e de direito das
questões que são resolvidas.
Além de que, mesmo que assim não se entendesse, o que não se concede, importa
reter que tal norma é implicitamente acolhida pelo Tribunal da Relação, pelo que
a recorrente apenas assume, tal como o tribunal podia assumir, que a
interpretação questionada se extrai desses preceitos.
Mas, para além desse invocado fundamento para não conhecer da questão, também
aqui, o Tribunal entende que se está a discordar da decisão, não havendo
qualquer critério normativo abstraído do circunstancialismo do caso concreto.
Reiterando aqui o que se deixou dito atrás, acrescenta-se apenas que também esse
argumento é, salvo melhor opinião, equívoco. Poderia por acaso a recorrente ter
definido outro critério interpretativo-normativo quando o Tribunal da Relação
efectivamente interpretou a norma no sentido de admitir como decidida e
fundamentada uma questão de constitucionalidade sem que o tribunal tenha
efectuado um julgamento da sua constitucionalidade, confrontando-a com os
parâmetros constitucionais?!!
Foi esta a ratio decidendi do acórdão! Foi este o critério normativo
implicitamente acolhido e projectado na decisão do Tribunal da Relação e
trata-se, efectivamente, de uma norma susceptível de ser abstractamente
exportada e desvinculada do caso e passível de um julgamento autêntico de
constitucionalidade».
4. Notificados os recorridos, o representante do Ministério Público junto deste
Tribunal respondeu nos termos seguintes:
«1 – O pedido de aclaração deduzido carece manifestamente de fundamento.
2 – Na verdade, a decisão reclamada é perfeitamente clara e insusceptível de
dúvida objectiva sobre o nela decidido acerca da inverificação dos pressupostos
do recurso de fiscalização concreta interposto.
3 – Por outro lado, a reclamação, deduzida subsidiariamente, é manifestamente
improcedente, já que a argumentação da reclamante em nada abala os fundamentos
da decisão reclamada – e que radica na confusão evidente entre os planos da
constitucionalidade normativa, conexionada necessariamente com um critério
normativo decisório, de cariz generalizante, e da discordância quanto à concreta
e específica decisão tomada pelo Tribunal “a quo”».
B. respondeu, sustentando que deve “ser julgada improcedente a reclamação para a
conferência, ficando a subsistir a decisão sumária proferida”.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. A ora reclamante solicita esclarecimento de ambiguidade contida na decisão
sumária de 24 de Outubro de 2006.
Conforme decorre do disposto nos artigos 669º, nº 1, alínea a), e 716º do Código
de Processo Civil, aplicáveis por força do consagrado no artigo 69º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, proferida
decisão, pode o recorrente pedir o esclarecimento de alguma obscuridade ou
ambiguidade que a mesma contenha: “a decisão judicial é obscura quando, em algum
passo, o seu sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se
preste a interpretações distintas” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº
533/04, não publicado).
Sustenta a ora reclamante que a decisão sumária proferida é ambígua por, numa
parte, assentar em “fundamentos não compatíveis entre si (…): ou se entende que
a recorrente contesta a decisão judicial traduzida no acto de aplicação
subsuntiva realizada pelo tribunal a quo, caso em que não se estará perante uma
questão de constitucionalidade normativa, ou, em oposição, se entende que o
tribunal não aplicou a norma como ratio decidendi”.
Confrontada a parte da decisão que é objecto de aclaração é de concluir, porém,
que a mesma não é ambígua, uma vez que se presta apenas a uma interpretação: a
recorrente – apesar de ter enunciado uma “norma” – pretendeu questionar a
decisão de não pronúncia proferida.
2. A ora reclamante requer também que o Tribunal Constitucional “aprecie (…) a
constitucionalidade da norma do artigo 78.º-A, n.º 1, da Lei n.º 28/82, quando
interpretada no sentido do Juiz Relator poder proferir decisão sumária de não
conhecimento do objecto do recurso, sem audição prévia do recorrente, por
violação do disposto no artigo 20.°, da Constituição, na parte em que daí se
extrai o direito a um processo justo e equitativo com respeito pelas garantias
de defesa e pelo princípio do contraditório”.
Apesar de este pedido de apreciação não se inserir num requerimento de
interposição de recurso, a peça processual através da qual se requer a este
Tribunal a apreciação da inconstitucionalidade de normas (artigo 75º-A, nº 1, da
LTC), diga-se que aquela questão já foi objecto de decisão, nomeadamente através
do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 80/99 (não publicado).
Por um lado, escreveu-se que no nº 3 do artigo 78º da LTC «é assegurado o
princípio do contraditório, facultando-se ao recorrente a oportunidade de
reclamar para a conferência (…). A conferência decide definitivamente as
reclamações, desde que haja unanimidade dos juízes intervenientes; não existindo
unanimidade, a decisão cabe ao pleno da secção (cfr. nº4 do mesmo preceito)». Ou
seja, «perante o cada vez maior número de processos no Tribunal Constitucional,
o legislador ordinário, sem descurar a necessidade de assegurar uma tutela plena
dos direitos dos recorrentes, criou a figura da decisão sumária, para acelerar o
processo decisório de determinadas questões».
Por outro lado, atendendo ao disposto no artigo 700º do Código de Processo
Civil, considerou-se que «a figura da decisão sumária prevista no artigo 78º-A
da Lei do Tribunal Constitucional corresponde a uma solução geral do direito
processual português. Traduz aliás uma concretização da remissão genérica
contida no artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, nos termos do qual ‘à
tramitação dos recursos para o Tribunal Constitucional são subsidiariamente
aplicáveis as normas do Código de Processo Civil, em especial as respeitantes ao
recurso de apelação’».
3. A ora reclamante requer, ainda, que o Tribunal defira a presente reclamação
no que toca à decisão de não conhecimento do objecto do recurso interposto.
3.1. Relativamente aos artigos 307º e 308º do Código de Processo Penal, sustenta
a ora reclamante que o Tribunal da Relação os aplicou, como ratio decidendi,
interpretados no sentido de “admitir que o juízo de não pronúncia não cuide
directa e exclusivamente da avaliação objectiva da suficiência de indícios”.
Para além de a presente reclamação não questionar o fundamento da parte
correspondente da decisão sumária – a recorrente pretendia, afinal, a apreciação
da decisão de não pronúncia proferida e não de uma qualquer norma –, socorre-se
do texto de uma decisão que, seguramente, não fez qualquer aplicação daqueles
artigos do Código de Processo Penal – o acórdão do Tribunal da Relação de
Coimbra, de 21 de Junho de 2006, que indeferiu a nulidade do acórdão de 15 de
Março do mesmo ano, a decisão que aplicou os artigos 307º e 308º daquele Código.
3.2. Também quanto ao artigo 668º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil,
é sustentado pela reclamante que o Tribunal da Relação o aplicou como ratio
decidendi, interpretado no sentido de admitir que se indefira a arguição de
nulidade de omissão de pronúncia relativa a uma questão de constitucionalidade e
simultaneamente se decida, na mesma reclamação que se indefere, em termos
inovadores, essa mesma questão.
Porém, toda a argumentação utilizada vai no sentido de mostrar a divergência da
ora reclamante quanto à decisão de indeferir a arguida nulidade por omissão de
pronúncia quanto à questão de constitucionalidade suscitada. Chega mesmo a dizer
que “caberá ao Tribunal Constitucional, em todo o caso, aferir se o critério
normativo que o Tribunal diz ter seguido foi, ou não, na realidade, aquele que
foi aplicado!”.
3.3. Por último, no que se refere à norma do artigo 425° do Código de Processo
Penal, conjugada com o disposto no artigo 374°, nº 2, do mesmo diploma, quando
interpretada no sentido de admitir como decidida e fundamentada uma questão de
constitucionalidade normativa sem que o tribunal tenha, de facto e de direito,
efectuado qualquer julgamento de constitucionalidade relativamente à norma
arguida de inconstitucional, confrontando-a, designadamente com os parâmetros
constitucionais tidos como violados, a reclamante nada alega no sentido de
contrariar o fundamento correspondente da decisão sumária proferida – a
recorrente pretendia, afinal, a apreciação da decisão de indeferimento da
arguida nulidade por omissão de pronúncia e não de uma qualquer norma.
Para além de tentar demonstrar que a “norma” formulada tem na letra da lei um
mínimo de correspondência verbal, reitera apenas que o Tribunal da Relação
“efectivamente interpretou a norma” naquele sentido. Para tal concluir
suporta-se no acórdão de 21 de Junho de 2006, mediante o qual foi indeferida a
nulidade então arguida, à luz do estabelecido no artigo 668º, nº 1, alínea d),
do Código de Processo Civil, o que por si é demonstrativo de que só a
interpretação e aplicação desta disposição legal poderia estar em causa.
Resta, assim, concluir pelo indeferimento da presente reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir:
a) O esclarecimento requerido; e
b) A reclamação, confirmando, consequentemente, a decisão no sentido do não
conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades
de conta.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2007
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício