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Processo nº 781/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º
3 do art. 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão
(LTC), da decisão sumária proferida pelo relator, no Tribunal Constitucional,
que decidiu não conhecer do recurso de constitucionalidade, interposto do
acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11 de Julho de 2006.
2 – Fundamentando a sua reclamação, discorre o reclamante do
seguinte jeito:
«Em síntese, serve de sustentação à doutíssima decisão sumária em causa a
invocada tese de falta de relação efectiva entre a matéria apreciada pelo
Tribunal a quo e aquela em que o ora reclamante alicerçou o recurso sub judice.
Ora, salvo o devido e merecido respeito, que muito é, ainda que tal falta de
nexo possa, eventualmente, resultar de alguma opacidade do douto Acórdão
sindicado em sede constitucional – sem conceder – o certo é que essa decisão
omitiu pronúncia clara sobre a matéria que lhe foi sujeita, desviando o âmbito
do recurso para questões novas como, de resto, foi suscitado no requerimento
preliminar de interposição do presente recurso.
É assim que resulta pacífico da simples leitura do Venerando Acórdão recorrido
que a questão da inconstitucionalidade interpretativa de algumas normas legais
aplicáveis, apesar de aflorada,[1] 1 não é apreciada.
E partindo de pressupostos correctos no que tange à inclusão das missivas e
pagela de teor religioso no círculo da privacidade e intimidade da vida privada
do prosador epistolar, matéria que já havia sido também assente noutra Relação,
vem considerar que “(...) a defesa da arguida no processo cível, ainda que
passível daquela crítica, não foi inequivocamente dirigida à violação do
referido bem jurídico em hostilidade directa ou necessária no plano subjectivo
jurídico-penal aludido.(...)”[2].
Ora, precisamente uma das interpretações considerada incorrecta e expressamente
arguida de inconstitucionalidade era a de que a utilização dessas epístolas como
prova em processo civil carecia da tramitação imposta em sede de suprimento
judicial, tal como se aduziu na conclusão 9 do recurso ali em apreciação, pelo
que esta questão básica que inopinadamente surge postergada per saltum que é o
fulcro da alegada interpretação inconstitucional das normas penais invocadas.
Questão, também ela previamente suscitada em sede preliminar no requerimento de
interposição do presente recurso, onde expressa e clarividentemente se pode ler:
“Esta questão de inconstitucionalidade foi suscitada expressamente, ad cautelam
nas conclusões 7ª, 21ª e 22ª do recurso apreciado pelo Tribunal a quo, como
corolário das demais, para além do que do inusitado e imprevisto quanto à
alteração dos fundamentos essenciais que emerge agora do venerando acórdão assim
sindicado quanto à interpretação das normas.” – sublinhado de agora.
Configura-se assim – e ali foi previamente considerado e alegado – que existia
um desvirtuamento da matéria sujeita a juízo de um modo tão inesperado e
imprevisto que a sua prognose não poderá ser exigível ao cidadão comum, ao bonus
paterfamilias,[3] na senda, de resto, da vasta jurisprudência deste Tribunal
Constitucional.
Esta derroga de apreciação de questão civil essencial, concomitante com toda a
demais matéria e preceitos legais expressamente invocados, adulterou a
configuração dos elementos constitutivos dos ilícitos criminais indiciados, e
foi ela que sustentou também, aliada à demais matéria, o fundamento expresso do
recurso de inconstitucionalidade interpretativa colocado a juízo neste Tribunal,
mormente pela arguição de violação pelo Tribunal a quo do dever de aplicar a
lei, em contravenção aos imperativos constitucionais dos art. 202º, nºs 1 e 2, e
203º, como claramente expresso.
E com a declaração formal do seu inesperado, imprevisto, imprevisível ante o
reconhecido mérito jurídico do Venerando Tribunal a quo.
Tais derrogas relevantes, adulteradoras da matéria sub judice, provêm de
interpretada errada e deficiente, data venia, do conjunto e concomitância das
normas arguidas de inconstitucionalidade, o que carece de apreciação nesta sede
superior em conformidade com o direito de acesso à justiça previsto no art. 20º
da Constituição da República e, maxime, dos artºs 6º, 8º e 9º da Convenção para
a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, outorgada pelo
Estado Português e, em consequência, a elas sujeito.
O inusitado dessas derrogas coloca as questões novas e imprevistas na alçada
deste Tribunal, pelo que a doutíssima decisão sumária, deverá ser, como
requerido ab initio, sujeita a Conferência, e apreciada segundo as considerações
que se expressaram supra e constituem o fundamento da presente reclamação».
3 – O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional,
respondeu pelo seguinte modo:
“1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 – Na verdade – e ao contrário do que sustenta o reclamante –
dispôs de plena oportunidade processual para suscitar, durante o processo, em
termos processualmente adequados, a questão de constitucionalidade a que
reportou o seu recurso”.
4 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
«1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
na sua actual versão (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11
de Julho de 2006, pretendendo ver apreciada “a inconstitucionalidade da norma
contida no n.º 1 do artigo 308.º do Código de Processo Penal e, em consequência,
dos artigos 192.º, n.º1, alínea d), e 205.º, n.º 1, ambos do Código Penal, na
interpretação (...) de que, apesar da reconhecida violação da reserva da
intimidade da vida privada tutelada pelas normas dos artigos 75.º a 81.º do
Código Civil, o facto dessa devassa ser efectuada em juízo para defesa de
interesses civis em litígio, retira o elemento subjectivo do crime previsto e
punido pela sobredita alínea d) do n.º 1 do artigo 192.º do Código Penal e, por
isso, os indícios considerados bastantes para pronunciar as arguidas por
qualquer dos crimes imputados, a fortiori pelo crime do n.º 1 do artigo 205.º”,
pretextando que “uma tal interpretação dessa norma adjectiva, na sua
concomitância com as substantivas civis e penais referidas, viola os imperativos
do nº 1 do artigo 26º, dos nºs 1 e 2 do artigo 202º, e do artigo 203º, na sua
parte final, todos da Constituição da República Portuguesa”.
2 – O presente recurso foi admitido por despacho do tribunal a
quo. Esta decisão não vincula, todavia, o Tribunal Constitucional, como se prevê
no n.º 3 do art. 76.º da LTC. E porque se configura uma situação que se enquadra
na hipótese recortada no n.º 1 do art. 78.º-A da LTC passa a decidir-se
imediatamente.
3 – O objecto do recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da
Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, disposição esta que
se limita a reproduzir o comando constitucional, apenas se pode traduzir numa
questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) de que a decisão recorrida
haja feito efectiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do
aí decidido.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de
constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e
incidental) do recurso de constitucionalidade, tal como o mesmo se encontra
recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da
constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da
natureza da própria função jurisdicional constitucional (cf. Cardoso da Costa,
«A jurisdição constitucional em Portugal», in Estudos em homenagem ao Professor
Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, I,
1984, pp. 210 e ss., e, entre outros, os Acórdãos n.º 352/94, publicado no
Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994, n.º 560/94, publicado no
mesmo jornal oficial, de 10 de Janeiro de 1995 e, ainda na mesma linha de
pensamento, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República II Série, de
20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o
Acórdão n.º 192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de
2000).
Por outro lado, importa acentuar que, neste domínio da
fiscalização concreta de constitucionalidade, a intervenção do Tribunal
Constitucional se limita ao reexame ou reapreciação da questão de
(in)constitucionalidade que o tribunal a quo apreciou ou devesse ter apreciado.
Na verdade, a resolução da questão de constitucionalidade há-de
poder, efectivamente, reflectir-se na decisão recorrida, implicando a sua
reforma, no caso de o recurso obter provimento.
Tal só é possível quando a norma cuja constitucionalidade o
Tribunal Constitucional aprecie haja constituído a ratio decidendi da decisão
recorrida, ou seja, o fundamento normativo do aí decidido.
Concretizando, ainda, aspectos do seu regime, cumpre acentuar que, sendo o
objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído
por normas jurídicas que violem preceitos ou princípios constitucionais, não
pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em sim
própria, mesmo quando esta faça aplicação directa de preceitos ou princípios
constitucionais, quer no que importa à correcção, no plano do direito
infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no
que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado
às circunstâncias específicas do caso concreto (correcção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos
interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a
(in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos
que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol,
sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efectuada
pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao acto judicial de “aplicação”
a violação (directa) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe
a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efectuado
in concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não
incide sobre a correcção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a
conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida, cabendo
ao recorrente, como se disse, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º, o ónus de suscitar o problema de constitucionalidade
normativa num momento anterior ao da interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional [cf. Acórdão n.º 199/88, publicado no Diário da República II
Série, de 28 de Março de 1989; Acórdão n.º 618/98, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, remetendo para jurisprudência anterior (por
exemplo, os Acórdãos nºs 178/95 - publicado no Diário da República II Série, de
21 de Junho de 1995 -, 521/95 e 1026/9, inéditos e o Acórdão n.º 269/94,
publicado no Diário da República II Série, de 18 de Junho de 1994)].
A este propósito escreve Carlos Lopes do Rego («O objecto idóneo
dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade: as interpretações
normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional», in Jurisprudência
Constitucional, 3, p. 8) que “É, aliás, perceptível que, em numerosos casos –
embora sob a capa formal da invocação da inconstitucionalidade de certo preceito
legal tal como foi aplicado pela decisão recorrida – o que realmente se pretende
controverter é a concreta e casuística valoração pelo julgador das múltiplas e
específicas circunstâncias do caso sub judicio […]; a adequação e correcção do
juízo de valoração das provas e de fixação da matéria de facto provada na
sentença (…) ou a estrita qualificação jurídica dos factos relevantes para a
aplicação do direito […]».
Finalmente, deve referir-se que decorre, ainda, dos referidos
preceitos que a questão de inconstitucionalidade tenha de ser suscitada em
termos adequados, claros e perceptíveis, durante o processo, de modo que o
tribunal a quo ainda possa conhecer dela antes de esgotado o poder jurisdicional
do juiz sobre tal matéria e que desse ónus de suscitar adequadamente a questão
de inconstitucionalidade em termos do tribunal a quo ficar obrigado ao seu
conhecimento decorre a exigência de se dever confrontar a norma sindicanda com
os parâmetros constitucionais que se têm por violados, só assim se
possibilitando uma razoável intervenção dos tribunais no domínio da fiscalização
da constitucionalidade dos actos normativos.
É evidente a razão de ser deste entendimento: o que se visa é
que o tribunal recorrido seja colocado perante a questão da validade da norma
que convoca como fundamento da decisão recorrida e que o Tribunal
Constitucional, que conhece da questão por via de recurso, não assuma uma
posição de substituição à instância recorrida, de conhecimento da questão de
constitucionalidade, fora da via de recurso.
É por isso que se entende que não constituem já momentos
processualmente idóneos aqueles que são abrangidos pelos incidentes de arguição
de nulidades, pedidos de aclaração e de reforma, dado terem por escopo não a
obtenção de decisão com aplicação da norma, mas a sua anulação, esclarecimento
ou modificação, com base em questão nova sobre a qual o tribunal não se poderia
ter pronunciado (cf., entre outros, os acórdãos n.º 496/99, publicado no Diário
da República II Série, de 17 de Julho de 1996, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 33º vol., pp. 663; n.º 374/00, publicado no Diário da República
II Série, de 13 de Julho de 2000, BMJ 499º, pp. 77, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 47º vol., pp.713; n.º 674/99, publicado no Diário da República
II Série, de 25 de Fevereiro de 2000, BMJ 492º, pp. 62, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 45º vol., pp.559; n.º 155/00, publicado no Diário da República
II Série, de 9 de Outubro de 2000, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46º
vol., pp. 821, e n.º 364/00, inédito).
Por outro lado, importa reconhecer que não basta que se indique
a norma que se tem por inconstitucional, sendo, antes, necessário que se
problematize a questão de validade constitucional da norma (dimensão normativa)
através da alegação de um juízo de antítese entre a norma/dimensão normativa e
o(s) parâmetro(s) constitucional(ais), indicando-se, pelo menos, as normas ou
princípios constitucionais que a norma sindicanda viola ou afronta.
Tais exigências têm sido deveras reiteradas pela nossa
jurisdição constitucional.
De forma contínua e sistemática, tem este Tribunal estabelecido
que «“Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo
tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão
de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que
(...) tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um
segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem
suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte
o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a
norma ou princípio constitucional infringido.” Impugnar a constitucionalidade de
uma norma implica, pois, imputar a desconformidade com a Constituição não ao
acto de aplicação do Direito – concretizado num acto de administração ou numa
decisão dos tribunais – mas à própria norma, ou, quando muito, à norma numa
determinada interpretação que enformou tal acto ou decisão (cf. Acórdãos nºs
37/97, 680/96, 663/96 e 18/96, este publicado no Diário da República, II Série,
de 15-05-1996). [§] É certo que não existem fórmulas sacramentais para
formulação dos pedidos, nem sequer para suscitação da questão de
constitucionalidade. [§] Esta tem, porém, de ocorrer de forma que deixe claro
que se põe em causa a conformidade à Constituição de uma norma ou de uma sua
interpretação (...) – cf. o referido Acórdão n.º 618/98 e os acórdãos para os
quais remete.
4 – Ora, no caso sub judice, constata-se que o recorrente não
suscitou nos autos a questão de constitucionalidade que agora pretende ver
apreciada nem o Tribunal da Relação fez aplicação, como ratio decidendi, do
“critério” definido pelo recorrente no seu requerimento de interposição de
recurso para este Tribunal.
Vejamos.
4.1 – Nas alegações de recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de
Lisboa, o recorrente concluiu o seu discurso sustentando que:
“(...)
1. A douta decisão instrutória atenta, data venia, contra os direitos legais e
constitucionais do ora recorrente, mormente os de personalidade e reserva da
vida privada, perfilhando tese que reflecte a profunda crise de valores da
hodierna sociedade e colide com a lei vigente e os ancestrais usos e costumes do
nosso povo;
2. Na realidade, nas oito missivas manuscritas pelo recorrente e uma pagela de
cariz religioso dados como prova nuns autos cíveis pelas arguidas, a primeira a
destinatária dessas epístolas, a segunda sua ilustre advogada, se mostram
espelhados sentimentos, estados de alma e convicções religiosas do recorrente,
tutelados pelo direito à reserva da vida privada;
3. Sem que se possa dizer que tais valores a preservar o sejam também em relação
à destinatária dessas cartas e se o fossem sempre esta, voluntariamente, deles
abriu mão, podendo fazê-lo, mas não em relação ao prosador epistolar;
4. É que essas missivas, incluindo a pagela religiosa, pelo seu conteúdo e
natureza sempre são reveladoras de matéria de carácter que a lei preserva da
divulgação pública, através do dispositivo contido no art. 75º do Código Civil;
5. Sendo afastadas quaisquer dúvidas quanto a essa natureza reservada e
confidencial pela referência expressa à intimidade da vida privada contida no
texto do art. 77º da mesma lei substantiva;
6. E ainda que dúvidas houvesse sempre estariam elas resolvidas pela justa
expectativa do seu autor, o aqui recorrente, homem casado em primeiras e únicas
núpcias há 31 anos e sempre convivente com sua família, sem qualquer
interrupção, quanto à não divulgação de epístolas que pudessem colocar em crise
a boa harmonia familiar, como resulta da letra e do espírito do art. 78º do
referido Código Civil;
7. Diferente interpretação destas normas civis, emergente na douta decisão em
crise, violam o imperativo constitucional contido nos nºs 1 e 2 do art. 26º da
Constituição da República Portuguesa, o que aqui se invoca expressamente para os
efeitos da lei;
8. De resto, foi assim que em dois arestos do Venerando Tribunal da Relação de
Guimarães devidamente transitados em julgado – proc. nºs 404/02 e 192/03 ambos
da 2ª secção – as mesmas missivas em causa nestes autos foram julgadas
confidenciais, embora ali cometidas de não preenchedoras de condição bastante
para tipificar qualquer ilícito penal por terem sido utilizadas em defesa de
arguidos em processos penais, logo revestindo-se de um carácter de defesa de um
interesse superior na hierarquia dos valores e direitos legalmente protegidos;
9. Porém nestes autos afere-se a sua utilização abusiva em razão de defesa de
direitos e valores de natureza particular cuja tutela deveria ter sido efectuada
pelos meios processuais previstos na lei, nomeadamente através de processo de
suprimento de autorização estatuído no art. 1425º e seguintes do Código de
Processo Civil, se necessário em face de recusa do prosador;
10. As cartas e pagela religiosa em causa, mais que o seu suporte físico, são
constituídas pelo seu conteúdo efectivo o qual é especial propriedade
intelectual do seu autor e, referindo elas matéria de natureza confidencial que
as regras de experiência comum classificariam como, no mínimo, passíveis de que
este tivesse a expectativa de não revelação ou divulgação, pelo que a sua
utilização em processo cível em defesa de interesses particulares da arguida
Maria Fernanda Antunes, constitui um abuso de confiança depositado nela pelo
recorrente na medida em que se apropria do seu suporte material e conteúdo
intelectual não transladado para si, como se seu fosse, em exclusivo;
11. Esta apropriação ilegítima para posterior utilização em defesa civil,
consubstancia a prática, voluntária, de nove crimes de ABUSO DE CONFIANÇA
previsto e punido pelo nº 1 do art. 205º do Código Penal;
12. Pior, verifica-se pelo teor das declarações processuais que acompanhavam
tais documentos confidenciais, a artigos 21º e 22º da sua douta contestação na
acção cível onde foram dadas como prova, que em nada relevariam para a boa e
eficaz defesa, quer dela arguida Maria Fernanda, quer dos seus co-réus e filhos;
13. Uma vez que, assentando essa defesa num pretenso “relacionamento amoroso” a
provar pela utilização insistente da palavra “amor”, e a causa de pedir na
aludida acção cível na facturação resultante da prestação de serviços
profissionais do recorrente à primeira arguida e seus filhos, jamais este
pagamento poderia ser compensado por serviços sexuais, tampouco por se referir
também a terceiros (art. 851º, nº 1, CC) e não ter sido efectuada a declaração
de compensação de créditos segundo as regras do art. 848º, nº 1, do Código
Civil;
14. Não tendo eficácia uma tal defesa em juízo é ela supérflua e patentemente
destinada a, de forma astuciosamente camuflada, divulgar um pretenso
“relacionamento amoroso” que pudesse realizar intenção dolosa de vingança por
afectação da boa harmonia familiar do recorrente;
15. Tanto mais que, para além das sobreditas missivas e pagela, nenhuma prova
carreou sobre a existência de um qualquer “relacionamento amoroso” ao ponto de
ter ficado arredado da matéria provada nos referidos autos cíveis, como é
constatável da douta sentença neles proferida que maiores cuidados
investigatórios deveria ter requisitado;
16. Razão acrescida na necessária prova indiciária para fazer recair sobre as
arguidas o libelo de que sem consentimento do recorrente e com intenção de
devassar a sua vida privada, designadamente sexual, divulgaram em juízo, e dali
a terceiros, missivas de natureza confidencial, quer pela sua natureza, quer
pela justa expectativa do seu autor;
17. Sendo que a divulgação atinge já neste momento, com tendência a continuar,
vários processos civis, criminais e disciplinares, em, pelo menos, três
comarcas, por via da possibilidade legal de qualquer cidadão poder consultar e
extrair certidões, como resulta perfeito do dispositivo do art. 167º, nº 2, do
Código de Processo Civil;
18. Sendo que a arguida Cristina Lago Carvalho, pelos especiais conhecimentos de
direito em virtude da sua condição profissional de advogado, tinha obrigação de
fazer saber à arguida Maria Fernanda a ilicitude de tal prática, de não a
sancionar ou subscrever, segundo as regras do nº 2 do art. 485º do já invocado
Código Civil e as dos arts. 78º, alíneas a), b) e c) e 83º, nº 1, alínea c),
ambos do Estatuto da Ordem dos Advogados;
19. Ao contrário é esta especial arguida uma das utentes da divulgação como se
veio a dizer em sede de abertura de Instrução e foi olvidado pela douta decisão
instrutória;
20. Por este conjunto de razões as práticas imputadas indiciariamente às
arguidas constituem ilícitos criminais, os apontados e/ou outros que melhor
ciência adeque, bastando esses indícios para as submeter a julgamento, sem
prejuízo de defesa nos termos da lei;
21. Ao não pronunciar as arguidas o Tribunal a quo, recusou aplicar a lei
vigente a que deve submissão, designadamente o disposto no art. 308º, nº 1, do
Código de Processo Penal, e a assegurar assim a tutela dos direitos legais e
constitucionais do recorrente no que tange à ofensa da personalidade e à reserva
da vida privada, resultantes das normas plasmadas nos arts. 70º a 81º do Código
Civil e 26º, nºs 1 e 2, da Lei Fundamental;
22. Maxime, violando com isso os imperativos constitucionais emergentes dos nºs
1 e 2 do art. 202º e do art. 203º, ambos da Constituição da República Portuguesa
violação esta resultante da diferente interpretação dada às invocadas normas na
decisão recorrida, cuja verdadeira o recorrente tem pela reproduzida no conjunto
das presentes conclusões, arguindo essas inconstitucionalidades interpretativas
ad cautelam para todos os legais efeitos;
23. Carece, pois, por tudo isto, a douta decisão instrutória de que aqui se
recorre de revogação e substituição por outra que pronuncie as arguidas pelos
crimes indiciados, e/ou outros que se venham a mostrar adequados à realidade
penal, submetendo-as ao legal julgamento como de lei”.
4.2 – Por seu turno, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu as
questões levantadas pelo recorrente com base na seguinte fundamentação:
“(...)
2.1-O âmbito dos recursos encontra-se delimitado em função das questões
sumariadas pelo recorrente nas conclusões extraídas da respectiva motivação, sem
prejuízo, no entanto, das questões que sejam de conhecimento oficioso, cfr. se
extrai do disposto no art. 412º nº 1 e no art. 410º nºs 2 e 3 do Código de
Processo Penal (C.P.P.)
Isto, sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou
nulidades, designadamente dos vícios indicados no art. 410º, nº 2 do CPP[4].
Tais conclusões visam permitir ou habilitar o tribunal ad quem a conhecer as
razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida[5].
Assim, traçado o quadro legal temos por certo que as questões levantadas no
recurso são cognoscíveis no âmbito dos poderes desta Relação.
2.2-Está em apreciação e em síntese, a seguinte questão:
Há indícios suficientes para que as arguidas Maria Fernanda e Drª Cristina Lago,
sua mandatária forense, devam ser pronunciadas como autoras materiais do crime
de devassa da vida privada, p.p. no art. 192º do CP, face à junção a processo
cível das cartas do autor dirigidas àquela, com conteúdo confidencial e
respeitante a declarações do foro íntimo, amoroso e religioso, desnecessárias à
defesa desta e embora visando excepção invocada como prova de que o mandato cuja
retribuição ali se exigia não era oneroso?
E também pronunciadas deveriam sê-lo pela prática de um crime de abuso de
confiança p.p. nos termos do art. 205º nº 1 do CP?
2.3-Vejamos então:
No caso, discute-se se as cartas juntas ao processo cível em que a aqui arguida
era ré e autor o ora assistente, como prova da “amizade entre ambos”
justificativa da exclusão da remuneração de serviços deste àquela, contêm
matéria susceptível de constituir devassa da vida privada do recorrente e é isso
que importa apurar.
Ora bem!
A Constituição da república inclui o direito “à reserva da intimidade da vida
privada e familiar” (artigo 26º, nº 1), no núcleo fundamental dos direitos
liberdades e garantias.
Em consonância com isto, erigindo a reserva da vida privada em bem jurídico
penalmente protegido, prescreve o artigo 192º do Código Penal:
1 - Quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das
pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual:
[…]
d) Divulgar factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa; é
punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.
2 - O facto previsto na alínea d) do número anterior não é punível quando for
praticado como meio adequado para realizar um interesse público legítimo e
relevante.
Assim, no caso, são requisitos do crime de devassa da vida privada:
a) que tenham sido divulgados factos relativos à vida privada de alguém;
b) que essa divulgação tenha sido feita sem o consentimento desse alguém;
c) que essa divulgação tenha sido feita com intenção de devassar a vida privada
dessa pessoa, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual.
Quanto aos dois primeiros requisitos, não há dúvida de que as cartas juntas ao
processo se referem a factos e sentimentos da vida privada mais íntima do
assistente (também da arguida Maria Fernanda) e a sua junção foi feita sem o seu
consentimento tácito ou expresso.
E dúvidas também não temos em afirmar, ao contrário do decidido no despacho de
não pronúncia, que a divulgação consiste na saída da esfera de conhecimento do
conteúdo daquelas cartas por parte da destinatária para a esfera de conhecimento
de terceiros, podendo eles ser os intervenientes do processo cível, juízes,
funcionários judiciais ou outros que tivessem ou tenham acesso ao processo.
Divulgar consiste em tornar conhecido o que até aí não o era, publicitando-o, no
sentido ao menos de o revelar a outrém que não os conhecedores originais dos
factos.
E fazê-lo através de defesa em processo judicial não é excepção a tal conceito.
Quanto ao último requisito – intenção de devassar a vida privada do assistente:
Há que dizer, antes de mais, que estamos diante “de um daqueles crimes em que a
lesão do bem jurídico só é punida enquanto consequência “de uma direcção da
vontade hostil ao bem jurídico”, ou seja, exige-se um dolo específico, isto é, a
intenção de devassar a vida privada de alguém.
Note-se que a doutrina maioritária considera não ser punível o dolo eventual[6]
A alusão, no preceito transcrito, à intimidade da vida familiar ou sexual e a
doença grave tem finalidades meramente exemplificativas, pois a vida privada,
como é bom de ver, não se esgota nesses aspectos.
2.4- A doutrina costuma distinguir entre privacidade stricto sensu e intimidade
como constituindo duas esferas da privacidade latu sensu.
Como ensina Costa Andrade (R.L.J., 130º, págs. 382 e seguintes), a segunda – a
esfera da intimidade – corresponde ao último reduto do “right to be alone”. “A
sua preservação e salvaguarda constitui condição do livre desenvolvimento ético
da pessoa, estando, por isso, a coberto de toda a intervenção (pública ou
privada) e contando com uma tutela tendencialmente absoluta por parte da ordem
jurídica.
A intimidade está subtraída ao princípio geral da ponderação de interesses e, em
particular, à prossecução de interesses legítimos [...]. Para além disso, ela
configura uma barreira intransponível à exceptio veritatis, isto é, à prova da
verdade dos factos, em geral, admissível quando estão em causa atentados à honra
sob a forma de imputação de factos.
Como emanação que é do ser-pessoa, a esfera íntima assiste a todo o indivíduo,
quaisquer que sejam o seu estatuto e papéis sociais. [...] inclusivamente as
pessoas que fazem a história do seu tempo [...] quer dizer, as pessoas que
protagonizam a vida política, económica ou social ou brilham no mundo da
cultura, do espectáculo ou do desporto têm direito à inviolabilidade da
Intimsphäre.”
A primeira – a privacidade em sentido restrito – segundo o mesmo Autor,
“compreende os eventos ou vivências ainda pertinentes à pessoa como indivíduo,
mas exteriores à área nuclear da intimidade: onde a pessoa almoça e com quem,
onde passa férias, os negócios privados que faz, etc.
A sua densidade e extensão são decisivamente influenciadas pelo estatuto do
portador concreto, pela sua maior ou menor exposição aos holofotes da
publicidade. A privacidade – pelo menos a privacidade penalmente protegida –
tende a estreitar-se drasticamente, podendo mesmo ser nula quando estão em causa
as pessoas da Zeitgeschichte, as public figures.
Por outro lado, a privacidade é um valor susceptível de ponderação e exposto ao
sacrifício em nome da prossecução de interesses legítimos. Para além disso, ela
não configura limite bastante e intransponível à exceptio veritatis”.
Ainda segundo Costa Andrade (ob. e loc. citados[7]) o conceito de
privacidade/intimidade é eminentemente relativo – e variável, não sendo possível
referenciar um universo de eventos ou vivências invariável e definitivamente
pertinentes à privacidade /intimidade. Ou, noutros termos, não é possível
definir a área de reserva da vida privada como um espaço de conteúdo material
estabilizado e fixo e, como tal, estanque face ao domínio da publicidade.
2.5-A intimidade da vida privada de cada um, que a lei protege, compreende
aqueles actos que, não sendo secretos em si mesmos, devem subtrair-se à
curiosidade pública por naturais razões de resguardo e melindre, como os
sentimentos e afectos familiares, os costumes de vida e as vulgares práticas
quotidianas, a vergonha da pobreza e as renúncias que ela impõe e, até, por
vezes, o amor da simplicidade, a parecer desconforme com a grandeza dos cargos e
a elevação das posições sociais; em suma, tudo: sentimentos, acções e
abstenções, que podem ser altamente meritórios do ponto de vista da pessoa a que
se referem, mas que, vistos do exterior, tendem a apoucar a ideia que deles faz
o público em geral (Parecer da PGR no 121/80, de 23 de Julho de 1981- BMJ,
309-142);
“Esfera íntima da vida privada” constitui aquele sector da vida que se
desenvolve entre as paredes domésticas e no âmbito da família e considera o
direito da pessoa a conservar a discrição mesmo em tomo dos acontecimentos e do
desenvolvimento da sua vida como uma manifestação do “direito ao resguardo”
(diritto alia riservatezza) – De Cupis, “Os Direitos da Personalidade”, trad. de
Adriano Vera Jardim, e António Miguel Caeiro, Morais Editora, Lisboa, 1961,
págs. 142 e segs.;
Daqui dever limitar-se a determinação do conceito de “vida privada” do nº 3 do
artigo 35º da Constituição, à esfera da intimidade, ou seja, à esfera inviolável
e intangível da vida privada, protegida de intromissões por parte de
estranhos.[8]
2-6- As cartas dirigidas pelo recorrente à arguida Maria Fernanda não tinham
natureza declarada ou solicitadamente confidencial. Essa confidencialidade seria
antes implícita, já que nelas o recorrente manifestava sentimentos íntimos (de
amor e amizade, de prática e convicções religiosas) em pressuposição legítima de
reserva de não divulgação a terceiros, sobretudo sendo o recorrente casado, o
que a arguida sabia.
E essa expectativa era conhecida obviamente pela arguida porquanto se retira da
sua posição no processo cível que invocou ter existido entre ambos uma relação
de amizade obstaculizante do pedido do ali autor e ora queixoso recorrente.
Decorre do senso comum e das regras da experiência e também da boa convivência
social que havendo entre duas pessoas uma relação de amizade íntima ou mais do
que isso, a confiança recíproca seja uma regra a respeitar para a manutenção
dessa relação e que a mesma não seja violada.
Seja como for, tal confidencialidade impõe que o seu destinatário guarde reserva
sobre o seu conteúdo, não lhe sendo lícito aproveitar os elementos de informação
que a carta-missiva lhe tenha levado ao conhecimento – art. 75º do CC.
A sua publicação está sujeita ao consentimento do autor ou dependerá, se não for
obtido tal consentimento, do seu suprimento judicial – art. 76º do CC
Mesmo quando a carta não seja confidencial o seu destinatário só pode usar dela
em termos que não contrariem a expectativa do autor – art. 78º do CC.
2.7-O crime de devassa configura invariavelmente um crime de dano em todas as
suas modalidades, já que pressupõe a lesão efectiva do bem jurídico típico
(Costa Andrade, Comentário Conimbricense, 734)
A lesão ocorre invariavelmente com a divulgação dos conteúdos de reserva da vida
privada e tal divulgação ocorre quando o conhecimento dos mesmos é obtido por
terceiros que, sem tal divulgação, não teriam deles conhecimento por não lhes
ser legítimo ter-lhes acesso.
Posto isto, e indo numa direcção em parte diferente da argumentação do despacho
de não pronúncia, haverá preenchimento ainda assim do crime de devassa imputado
pelo recorrente? A questão só poderá resolver-se, em nosso entender, pela
detecção do elemento subjectivo.
A junção das cartas aos autos cíveis para as ali rés provarem que a dívida não
existia pois os serviços do autor teriam sido prestados por” amizade” pode ser
passível de ser considerada um excesso de defesa, um despropósito de mau gosto
ou mesmo até uma atitude reveladora de alguma falta de carácter. E isso,
considerando que as cartas juntas aos autos cíveis nem sequer visavam um fim
público mas privado, não sendo sequer de afastar a possibilidade de aquela
defesa poder ter sido consubstanciável através de outros meios menos lesivos das
expectativas legítimas do assistente em que o seu conteúdo nunca fosse revelado,
pelo menos sem o seu consentimento.
Embora tal atitude possa ser passível de desmerecimento ético, temos porém como
muito duvidoso que a arguida tivesse querido agir para causar dano directo ou
necessário ao assistente. Com exagero ou não na defesa, não se extrai dos autos
que a junção das cartas não visasse mais que provar o amor e amizade propalado
pelo assistente à arguida e que fosse essa a única razão para o exercício de um
mandato não oneroso insusceptível de ressarcimento ou retribuição por serviços
prestados no âmbito da relação entre ambos dotada daqueles sentimentos
(retribuídos ou não pela arguida)
Considerando a natureza da infracção e a falta de sinais e indícios claros de
intenção de devassa (dolo directo ou necessário) e aceitando como correcto no
plano dogmático que o dolo eventual não será cabível neste tipo de infracção,
então teremos de concluir que não há suficiência de indícios justificativos da
pronúncia.
Trata-se de uma infracção a levar à categoria dos “delitos de tendência”, em que
a “acção típica está subordinada à direcção da vontade do agente, que é o que
lhe confere o seu carácter particular ou especial perigosidade e em que a lesão
do bem jurídico “está no alvo da punição enquanto “consequência de uma direcção
da vontade hostil ao bem jurídico” (cfr Costa Andrade, op. Cit, p 735, § 24);
Ora, a defesa da arguida no processo cível, ainda que passível daquela crítica,
não foi inequivocamente dirigida à violação do referido bem jurídico em
hostilidade directa ou necessária no plano subjectivo jurídico-penal aludido. E
não havendo sinais suficientes de que essa actuação foi assim “dolosamente
“direccionada, sendo mais provável a absolvição por dúvidas que a condenação,
bem andou o despacho recorrido em não ter pronunciado a arguida, nessa parte,
ainda que aqui o digamos por razões não totalmente coincidentes.
2.8- Quanto ao crime de abuso de confiança
Para a verificação deste crime, cujos elementos constitutivos se encontram aliás
bem caracterizados no despacho recorrido, e por isso aqui se dão como
reproduzidos por economia de esforços, necessário se tornaria que houve
apropriação de coisa entregue por título não translativo de propriedade. E é
aqui que falha a argumentação do recorrente. Quando este enviou as cartas que
escreveu, dirigiu-as à Maria Fernanda sem qualquer nótula ou indicação de
devolução. E das regras da experiência que situações como esta, que ocorrem
milhares de vezes pelo mundo inteiro todos os dias, implicam sempre que os
destinatários sejam os receptores das cartas a eles dirigidas e façam delas o
que bem entenderem: guardem, arquivem, rasguem, destruam, etc. Passem pois a
agir como se proprietários fossem (usando-as, fruindo-as e delas dispondo,
salvas as restrições éticas, morais ou legais que lhes sejam oponíveis).
Além do mais, caberá aqui assinalar desde já que também o conteúdo intelectual
das missivas nunca poderia ser objecto de apropriação, tal como acontece com os
créditos e outros direitos em sentido não material (cfr. CP Conimbricense
anotado, J.F. Dias, pª 97, Coimbra Editora)
E assim sendo, a sua disposição material e de conteúdo, ao passar pela entrega à
arguida advogada, não seria senão mais do que um acto de poder da arguida
Fernanda sobre as cartas que passaram a ser legitimamente suas e que entendeu
dever usar para sua defesa em processo cível. Não se apropriou delas
ilegitimamente (recebeu-as gratuitamente endereçadas para si por liberalidade do
assistente) nem passou a usar ilicitamente do “dominus” sobre as ditas pois a
sua recepção voluntária sem cláusula de devolução ou de não apropriação foi
suficiente para a legítima integração patrimonial própria.
Bem decidiu pois, também neste particular, o despacho recorrido.
(...)”.
4.3 – Ora, como bem se vê, o recorrente não suscitou a constitucionalidade da
“norma” que agora coloca à apreciação do Tribunal, tendo, ao invés, em sede de
recurso, imputado directamente à decisão – juízo aplicativo – do tribunal a quo
a desconformidade com o diploma fundamental.
E nem se diga que o presente caso concreto configura uma
daquelas situações excepcionais ou anómalas nas quais o interessado não dispôs
de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes
referida ou não era exigível que o fizesse, designadamente por o tribunal a quo
ter efectuado uma aplicação de todo insólita e imprevisível.
De facto, pugnando o recorrente pela pronúncia das arguidas, não
seria inexigível que configurasse, no contexto do seu recurso, a questão do
preenchimento do elemento subjectivo do crime previsto no artigo 192.º do Código
Penal.
Como vem sendo reiterado por este Tribunal, deve entender-se que as partes, ao
encararem ou equacionarem na defesa das suas posições a aplicação das normas,
não estão dispensadas de entrar em linha de conta com o facto de estas poderem
ser entendidas segundo sentidos divergentes e de os considerar na defesa das
suas posições, aí prevenindo a possibilidade da (in)validade da norma em face da
lei fundamental.
Ou seja, entendendo-se que as partes têm um dever de prudência técnica na
antevisão do direito plausível de ser aplicado e, nessa perspectiva, quanto à
sua conformidade constitucional, o recorrente teve oportunidade para suscitar a
questão de constitucionalidade, tanto mais que a fundamentação que o recorrente
controverte se apresentava como sendo claramente plausível de ser mobilizada
pelo tribunal, tanto mais que a questão da “intenção de devassa da vida privada
fora expressamente equacionada no recurso para a Relação.
Por outro lado, importa também reconhecer que a norma “contida
no n.º 1 do artigo 308.º do Código de Processo Penal e, em consequência, dos
artigos 192.º, n.º1, alínea d), e 205.º, n.º 1, ambos do Código Penal, na
interpretação (...) de que, apesar da reconhecida violação da reserva da
intimidade da vida privada tutelada pelas normas dos artigos 75.º a 81.º do
Código Civil, o facto dessa devassa ser efectuada em juízo para defesa de
interesses civis em litígio, retira o elemento subjectivo do crime previsto e
punido pela sobredita alínea d) do n.º 1 do artigo 192.º do Código Penal (...)”
não foi aplicada como ratio decidendi pelo juízo recorrido.
Na verdade, na economia do decidido, não pode deixar de
reconhecer-se que o Tribunal da Relação não apreciou a questão da reserva da
intimidade da vida privada à luz dos dispositivos juscivilísticos que o
recorrente menciona, limitando-se a apurar, apenas e só, da existência – ou
inexistência – de indícios susceptíveis de conduzirem à pronúncia das arguidas.
Acresce a isto que o elemento subjectivo do crime não é afastado, qua tale, pelo
facto de estar em causa a defesa de interesses civis, mas, sem mais, por o
tribunal ter concluído pela “falta de sinais e indícios claros de intenção de
devassa (dolo directo ou necessário) (...) aceitando como correcto no plano
dogmático que o dolo eventual não será cabível neste tipo de infracção (...)”.
Ou seja, dito de outro modo, não foi, como diz o recorrente, “o
facto dessa devassa ser efectuada em juízo para defesa de interesses civis em
litígio, [que] retir[ou] o elemento subjectivo do crime”, mas é antes o facto de
não ter havido aquela intenção de devassa que afasta, independentemente da
ponderação dos interesses em jogo, o preenchimento do tipo.
5 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 UCs».
B – Fundamentação
5 – Antes de mais, cabe notar que o reclamante não refuta um
dos fundamentos da decisão sumária que só por si justifica o não conhecimento do
pedido: o de que as normas, cuja constitucionalidade se pretende que o Tribunal
Constitucional aprecie, não constituíram ratio decidendi do acórdão recorrido.
Na verdade, o acórdão da Relação não assentou na consideração
alegada pelo reclamante de que “o facto dessa devassa ser efectuada em juízo
para defesa de interesses civis em litígio retira o elemento subjectivo do crime
previsto e punido pela sobredita alínea d) do n.º 1 do artigo 192.º do Código
Penal (...)”, mas, antes, na de que faltavam “sinais e indícios claros de
intenção de devassa (dolo directo ou necessário) (...) aceitando como correcto
no plano dogmático que o dolo eventual não será cabível neste tipo de infracção
(...)”.
Dito de outro modo, a decisão da Relação resulta de um juízo de
ponderação probatória sobre os elementos de facto evidenciados pelas provas
existentes no processo ou de um juízo cognoscitivo-valorativo efectuado sobre as
provas recolhidas no processo – logo de natureza ou estrutura factual – e não da
assumpção de qualquer entendimento normativo nos termos do qual a junção a
processo civil de missivas ou cartas com conteúdo coberto pelo direito de
reserva de intimidade da vida privada arredava o elemento subjectivo da
infracção por cuja pronúncia o reclamante se batia no recurso.
Mas, independentemente desta razão, acresce que o reclamante
dispôs de inteira oportunidade para suscitar a questão de constitucionalidade,
tal qual a recortou no seu requerimento de recurso, como se afirma na decisão
reclamada e em contrário do que argumenta na sua reclamação.
Tal como defendeu, em síntese, no recurso para a Relação, a
existência de uma conexão necessária entre a existência de dolo por parte das
arguidas e a ilicitude da junção das missivas à acção cível, ilicitude esta
decorrente do facto de a revelação do seu conteúdo atentar contra os seus
direitos de personalidade e de reserva de intimidade à vida privada, bem poderia
o reclamante antecipar uma posição contrária à, por si, sustentada e suscitar a
questão de inconstitucionalidade de um tal entendimento.
Não se estaria, pois, perante qualquer interpretação
imprevisível ou insólita cuja antecipação não pudesse ser efectuada pelo
reclamante.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 17 de Janeiro de 2007
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos
[1] Página 9. § 5º.
[2] Página 12, § 6º.
[3] Acórdãos 61/92, 188/93, 569/95, 596/96, entre outros.
[4] vide Ac. STJ para fixação de jurisprudência 19.10.1995 publicado no DR, 1-A
Série de 28.12.95
[5] vide, entre outros, o Ao STJ de 19.06.96, BMJ 458, pág. 98 e o Ac. STJ de
13.03.91, proc° 416794, 3ª sec., tb cit° em anot. ao art. 412º do CPP de Maia
Gonçalves 12ª ed; e Germano Marques da Silva, Curso Proc° Penal, III, 2ª ed.,
pág. 335; e ainda jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Acs. do STJ de 16-11-95,
in BMJ 451/279 e de 31-01-96, in BMJ 453/338) e Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano
de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), bem como Simas Santos/
Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 74 e decisões ali
referenciadas.
[6] Cfr Comentário Conimbricense, Costa Andrade, 1999, p 735 e autores aí
citados (Jakobs 337; Zielinski, cit, STGB- Kommentar Bd 1, 495)
[7] Cfr. ainda anot ao art. 192º do CP, Comentário Conimbricense, Coimbra
Editora, 1999
[8] Cfr sobre a posição enunciada o Ac STJ 04/09/2003 (site da DGSI)