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Processo n.º 859/03
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
(Conselheiro Paulo Mota Pinto)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
1.1. A. interpôs recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça (STJ), de 22 de Maio de 2003, que negou provimento a
recurso de revista por ele interposto contra o acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa, de 21 de Maio de 2002, que, por seu turno, negara provimento a recurso
de apelação deduzido contra o despacho saneador proferido no 1.º Juízo das Varas
Cíveis da Comarca de Lisboa, que julgara improcedente a oposição, por embargos,
à execução contra ele instaurada pelo Instituto de Financiamento e Apoio ao
Desenvolvimento da Agricultura e Pescas (IFADAP).
No requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade, referiu o recorrente:
“2. Pretende‑se ver apreciada a inconstitucionalidade material e orgânica da
norma do n.º 2 do art. 53.º do Decreto‑Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro, que
determina a competência do Tribunal Cível de Lisboa para as acções de execução
instauradas pelo IFADAP em virtude do incumprimento pelos particulares
contraentes das obrigações para eles decorrentes dos (actos e) contratos de
atribuição das ajudas previstas naquele diploma, norma essa em que se funda
processualmente o presente processo de execução;
2.1. Pretende‑se ver apreciada a inconstitucionalidade material da referida
norma, na medida em que, constituindo a matéria litigiosa uma matéria
administrativa, isto é, que releva de relações jurídico‑administrativas, não se
vislumbra razão suficiente (não se inferindo do diploma e do seu preâmbulo, ou
de outro diploma legal conexo, qualquer justificação para tanto) para a
atribuição da referida competência aos tribunais cíveis, o que constitui
violação do artigo 212.º da Constituição, que consagra «os tribunais
administrativos como os tribunais comuns em matéria administrativa»;
2.2. E pretende‑se sobretudo ver apreciada a inconstitucionalidade orgânica da
mesma norma, na medida em que, mesmo que se aceite ser o domínio das subvenções
um daqueles casos de possível «atribuição pontual a outros tribunais do
julgamento (por outros processos) de questões substancialmente
administrativas» (Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa), dado estarmos
inequivocamente perante uma relação jurídico‑administrativa, sempre competiria
a decisão de excluir tal matéria da jurisdição dos tribunais administrativos e
fiscais à Assembleia da República através de lei, e não ao Governo por meio de
simples decreto‑lei não autorizado (como é o caso do Decreto‑Lei n.º 81/91, de
19 de Fevereiro), pelo que sempre estaremos perante uma violação, pelo n.º 2 do
artigo 53.º deste diploma legal, da alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da
Constituição, que comete à Assembleia da República a competência exclusiva em
matéria de organização e funcionamento dos tribunais.
3. Pretende‑se ver ainda apreciada a inconstitucionalidade da interpretação do
artigo 53.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro, no sentido de
o título executivo nele previsto, designadamente a certidão de dívida extraída
pelo IFADAP, dispensar os requisitos de natureza substancial como os consagrados
no artigo 46.º, alínea d), do Código de Processo Civil, e que determinam «os
limites da acção executiva, isto é, a extensão e o conteúdo da obrigação do
devedor e consequentemente até onde pode ir a acção do credor», designadamente a
razão da dívida ou as respectivas origens, requisito este cuja existência e
preenchimento se torna necessário para o cabal exercício do direito de defesa do
executado – sendo por isso inconstitucional o entendimento que considere
desnecessária a sua previsão legal, por violação do artigo 20.º da Constituição
(complementado pela norma materialmente constitucional do artigo 2.º do Código
de Processo Civil).”
Em 8 de Janeiro de 2004 foi proferida decisão
sumária no sentido do não conhecimento do recurso interposto: (i) quanto à
questão da inconstitucionalidade reportada ao n.º 2 do artigo 53.º do
Decreto‑Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro (diploma que veio promover a melhoria
da eficácia e das estruturas agrícolas, de acordo com regras comunitárias, e
previu ajudas agrícolas), segundo o qual “Para as execuções instauradas pelo
organismo pagador das ajudas é sempre competente o foro cível da comarca de
Lisboa”, por não ter sido aplicada pelo acórdão recorrido na dimensão
interpretativa que o recorrente reputou inconstitucional [o recorrente
considerava a norma material e organicamente inconstitucional na medida em que
fosse aplicável a relações jurídico‑administrativas, como entendia ser a dos
autos, mas o acórdão recorrido não acompanhou tal qualificação da relação
jurídica em causa, dizendo, antes, que em “tais contratos estabeleceu-se uma
relação jurídica de direito privado, não se devendo considerar acto
administrativo destacável a rescisão unilateral feita pelo IFADAP”, tendo, com
base nesta qualificação, entendido que o “conhecimento das invocadas
inconstitucionalidades está prejudicado pela solução dada, [de a] relação
contratual entre o IFADAP e o recorrente ter natureza privada”, daqui derivando
que o acórdão não teria aplicado a norma em questão a qualquer relação
jurídico‑administrativa]; e (ii) quanto à questão de inconstitucionalidade
reportada ao artigo 53.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 81/91, no sentido de o
título executivo nele previsto, designadamente a certidão de dívida extraída
pelo IFADAP, dispensar os requisitos de natureza substancial como os
consagrados no artigo 46.º, alínea d), do Código de Processo Civil, por tal
questão não ter sido suscitada perante o tribunal recorrido.
O recorrente conformou‑se com esta última
decisão, mas reclamou para a conferência contra a primeira, tendo tal
reclamação sido deferida pelo Acórdão n.º 457/2004, com base nas seguintes
considerações:
“Analisando o teor do requerimento de recurso, reconhece‑se,
efectivamente, que nele se pede que o Tribunal Constitucional aprecie a
constitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 53.º daquele Decreto‑Lei n.º
81/91, de 19 de Fevereiro, «que determina a competência do Tribunal Cível de
Lisboa para as acções de execução instauradas pelo IFADAP em virtude do
incumprimento pelos particulares contraentes das obrigações para eles
decorrentes dos (actos e) contratos de atribuição das ajudas previstas naquele
diploma, norma essa em que se funda processualmente o presente processo de
execução», sem se definir como elemento da dimensão ou interpretação normativa a
apreciar a qualificação como jurídico‑administrativa da relação litigiosa em
causa. Esta qualificação é, antes, na óptica do requerimento de recurso, um
fundamento para a inconstitucionalidade, quer material, quer orgânica, defendida
pelo recorrente, e não um elemento integrante da dimensão normativa a apreciar
(caso em que, efectivamente, esta não teria sido aplicada pelo tribunal
recorrido). Não pode, pois, manter‑se a decisão reclamada, na medida em que esta
partiu do princípio de que a dimensão normativa impugnada se referia apenas à
competência dos tribunais cíveis para determinadas acções relativas a relações
que se qualificavam como jurídico‑administrativas.
Por outro lado, se, como no presente caso, a decisão da questão de
constitucionalidade depende – como pode depender – de uma determinada
qualificação da relação em causa, à luz dos parâmetros constitucionalmente
relevantes, nada obsta a que o Tribunal Constitucional, para decisão de tal
questão de constitucionalidade, se pronuncie sobre a qualificação relevante para
este efeito.
A presente reclamação é, pois, de deferir, revogando‑se a decisão reclamada e
ordenando‑se a produção de alegações.”
1.2. Nas alegações de recurso, em que requer a
declaração da “inconstitucionalidade material e orgânico‑formal da norma do n.º
2 do artigo 53.º do Decreto‑Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro, com fundamento,
respectivamente, na violação do n.º 3 do artigo 212.º e da alínea p) do n.º 1 do
artigo 165.º, ambos da Constituição”, o recorrente formulou as seguintes
conclusões:
“1. DA QUALIFICAÇÃO DA RELAÇÃO JURÍDICA CONTROVERTIDA.
A) No presente recurso, uma vez circunscrito este à impugnação da norma do n.º 2
do artigo 53.º do Decreto‑Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro, segundo a qual
«Para as execuções instauradas pelo organismo pagador das ajudas é sempre
competente o foro cível da comarca de Lisboa» – norma ao abrigo da qual o
Supremo Tribunal de Justiça se considerou competente em razão da matéria para
decidir enquanto instância de recurso a presente causa, são essencialmente duas
as questões suscitadas no presente recurso;
B) A primeira questão é uma questão prejudicial levantada pelo facto de não ter
o recorrido Acórdão do STJ qualificado a relação jurídica em causa como uma
relação jurídico‑administrativa, como na opinião do recorrente deveria, tendo‑a
antes qualificado como relação jurídico‑privada;
C) Qualificada a dita relação como jurídico‑administrativa, há que saber se, e
tendo em conta a regra do n.º 3 do artigo 212.º da CRP, que atribui aos
Tribunais Administrativos e Fiscais a competência para ajuizar dos litígios
emergentes das relações jurídico‑administrativas, se pode ou não o legislador –
no caso o legislador do Decreto‑Lei n.º 81/91 – incluir na competência dos
tribunais cíveis o julgamento das acções executivas relativas aos contratos de
ajuda celebrados pelo IFADAP com particulares e aos actos de execução dos mesmos
contratos (designadamente dos actos‑sanção por incumprimento do contrato);
D) Por fim, há ainda que saber se apenas o legislador «por excelência» ou «por
natureza» (a Assembleia da República) tem poderes para dispor nessa matéria de
repartição de competências entre os tribunais comuns e os tribunais
administrativos e fiscais, já não sendo permitido fazê‑lo ao legislador «por
empréstimo» ou «por atribuição» (ao Governo) sem autorização parlamentar;
E) No que respeita à qualificação da relação jurídica controvertida, afigura‑se
evidente que estamos perante um típico contrato administrativo no domínio da
chamada administração prestativa ou constitutiva, ou de subvenção, atendendo
aos factores de administratividade que nele se podem surpreender;
F) Nomeadamente, são de considerar os «poderes exorbitantes do direito privado
(cláusulas exorbitantes ou cláusulas de Direito Administrativo)» que
«correspondem à previsão de momentos de autoridade» e que são «insusceptíveis de
constar num contrato de direito privado», como é o caso da previsão, no n.º 1 do
artigo 53.º do Decreto‑Lei n.º 81/91, da prática pela Administração de um
verdadeiro acto administrativo na execução contratual e das demais cláusulas
exorbitantes que constam do próprio contrato (a saber, das que atribuem ao
IFADAP poderes de modificação e rescisão unilateral);
G) Com efeito, o facto de o n.º 1 do artigo 53.º atribuir o carácter de título
executivo às certidões de dívida emitidas pelo organismo pagador permite
concluir que o acto que impõe o pagamento das respectivas obrigações pecuniárias
é um acto administrativo;
H) Mas ainda que se entendesse que as ditas actuações consubstanciam meras
declarações negociais, tal facto não exclui a natureza administrativa dos
contratos, uma vez que uma previsão como essa não poderia figurar num contrato
em que a Administração não actuasse nessa qualidade;
I) Revestindo o contrato em análise no caso sub judicio natureza
administrativa, os litígios emergentes da respectiva execução, onde se incluem
as acções executivas instauradas pelo organismo pagador das ajudas ao
beneficiário qualificam‑se como emergentes de relações
jurídico‑administrativas, integrando, por isso, o âmbito de competência
reservada da jurisdição administrativa, nos termos do n.º 3 do artigo 212.º;
J) Assim sendo, as relações jurídicas constituídas ao abrigo do n.º 1 do artigo
53.º do Decreto‑Lei n.º 81/91, e configuradas nos termos deste preceito legal,
chamam – enquanto relações jurídico‑administrativas – à colação o n.º 3 do
artigo 212.º da CRP, artigo da lei fundamental que define o âmbito de
competência exclusiva dos tribunais administrativos e fiscais, reclamando esta
conexão o confronto entre o mesmo preceito legal e o dito normativo
constitucional.
2. A QUESTÃO DA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DA NORMA DO N.º 2 DO ARTIGO 53.º
DO DECRETO‑LEI N.º 81/91.
K) Desde a Revisão Constitucional de 1989 entendem algumas das mais autorizadas
vozes da doutrina juspublicística o existir uma reserva constitucional absoluta
de jurisdição administrativa que não contempla outras excepções que não as
consagradas na própria Constituição;
L) Sendo tal doutrina de subscrever, o facto é que o Tribunal Constitucional
tem adoptado uma posição de maior flexibilidade, admitindo desvios à regra
consagrada no n.º 3 do artigo 212.º da Constituição;
M) Mas ainda que se admita a possibilidade de excepções a tal regra, crê o
recorrente não caber o regime especial da ora impugnada norma do n.º 2 do artigo
53.º do Decreto‑Lei n.º 81/91 nessa possibilidade;
N) Com efeito, e como é pacifico, integram o núcleo duro da jurisdição
administrativa de todo em todo insusceptível de serem entregues à jurisdição dos
tribunais cíveis as questões típicas da justiça administrativa, em que se
destacam os recursos contenciosos contra actos administrativos lesivos e as
acções fundadas em interesses legalmente protegidos;
O) Pois bem, no caso sub judicio, não obstante situarmo‑nos presuntivamente no
domínio da administração prestativa ou constitutiva, é difícil conceber um acto
mais lesivo do que o previsto no n.º 1 do artigo 53.º do Decreto‑Lei n.º 81/91 –
acto esse que na situação em apreço (e independentemente da medida de razão que
pudesse assistir ao técnico do IFADAP que entendeu não ter o recorrente
executado o projecto de investimento da forma adequada) causará (transitando em
julgado decisão judicial que lhe seja desfavorável) a pura e simples
insolvência do recorrente, atento o montante em jogo e a inexistência de fortuna
pessoal que lhe permita fazer frente;
P) Ora, a excepção injustificadamente aberta pelo impugnado n.º 1 do artigo 53.º
do Decreto‑Lei n.º 81/91 tem como consequência a maior ou menor aleatoriedade
dos resultados do controlo jurisdicional exercido, seja com prejuízo para o
interesse público, seja (e aqui a consequência é mais grave, num Estado
Constitucional de Direito como o nosso, cuja ordem política assenta no respeito
e garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais – artigo 2.º da
CRP) com prejuízo para os direitos dos particulares (como aconteceu no presente
processo);
O) O objectivo da Revisão Constitucional de 1997, ao instituir uma ordem
jurisdicional autónoma, visou precisamente consagrar a existência de órgãos
jurisdicionais dotados de uma particular sensibilidade para as razões de
interesse público, com uma competência especializada dirigida à apreciação de
conflitos colocados em termos de Direito Administrativo;
R) No caso sub judicio, só na aparência é que estamos numa zona de fronteira
entre o direito administrativo e o direito privado, em que a Administração se
socorra do instrumento contratual e se coloque numa posição de tendencial
paridade com o particular no domínio a tanto propício da administração
prestativa ou constitutiva – e que portanto possa consubstanciar uma justificada
excepção ou desvio à regra da exclusividade da competência dos tribunais
administrativos em matéria administrativa;
S) Ao invés, estamos perante um contrato de adesão, em que nenhuma das cláusulas
é negociável, e em que a administração não assume outra «obrigação» que não a
da prévia outorga da subvenção para custear um projecto de investimento agrícola
– «contrato» esse que prevê a pesada pena (a aplicar por acto administrativo
«definitivo e executório») de uma «devolução» da totalidade do dinheiro
inicialmente entregue se até ao final da execução do projecto o técnico
encarregado da vistoria entender que o particular incumpriu qualquer das
condições técnicas de execução do mesmo;
T) Por esta razão, a norma do n.º 2 do artigo 53.º do Decreto‑Lei n.º 81/91
padece de uma inconstitucionalidade material por violação do n.º 3 do artigo
212.º da CRP, a qual deve ser declarada por este Alto Tribunal.
3. A QUESTÃO DA INCONSTITUCIONALIDADE ORGÂNICA DA NORMA DO N.º 2 DO ARTIGO 53.º
DO DECRETO‑LEI N.º 81/91.
U) A norma impugnada dispõe sobre a matéria de repartição de competências entre
os tribunais cíveis e os tribunais administrativos e fiscais, ao determinar que
o julgamento das acções executivas relativas aos contratos de ajuda celebrados
pelo IFADAP com particulares e aos actos de execução dos mesmos contratos
(designadamente dos actos‑sanção por incumprimento do contrato), é da
competência dos tribunais cíveis;
V) Nos termos da alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição é da
competência exclusiva da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo,
legislar sobre a «organização e competência dos tribunais e do Ministério
Público e estatuto dos respectivos magistrados, bem como das entidades não
jurisdicionais de composição de conflitos»;
W) A norma do n.º 2 do artigo 53.º do Decreto‑Lei n.º 81/91, embora procedendo à
alteração da distribuição de competências entre ordens jurisdicionais – ao
retirar da jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir
determinadas questões que à partida lhe estão cometidas, atribuindo‑as aos
tribunais cíveis – é uma norma emanada pelo Governo, em matéria da exclusiva
responsabilidade da Assembleia da República, sem a devida lei de autorização
legislativa que legitimasse a sua produção;
X) Nesta medida, ao versar sem a necessária habilitação sobre matérias
constitucionalmente reservadas à Assembleia da República, a norma do n.º 2 do
artigo 53.º do Decreto‑Lei n.º 81/91 viola claramente a reserva relativa
pertença daquele órgão de soberania, pelo que padece do vício de
inconstitucionalidade orgânico‑formal, por violação do disposto na alínea p) do
n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.”
O recorrido não apresentou contra‑alegações.
Não tendo logrado vencimento o projecto de
acórdão inicialmente apresentado, operou‑se mudança do relator.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. O Decreto‑Lei n.º 81/91, de 19 de
Fevereiro, veio estabelecer no seu artigo 1.º que “a acção comum instituída pelo
Regulamento (CEE) n.º 797/85, do Conselho, de 12 de Março, que visa a melhoria
da eficácia das estruturas agrícolas, é aplicada em Portugal nos termos daquele
regulamento e deste diploma”. Com vista a regular a cobrança de dívidas ao
organismo pagador das ajudas (designadamente, de “ajudas aos investimentos nas
explorações agrícolas”), dispõe o artigo 53.º do referido diploma o seguinte:
“1. Constituem títulos executivos as certidões de dívida emitidas pelo organismo
pagador das ajudas.
2. Para as execuções instauradas pelo organismo pagador das ajudas é sempre
competente o foro cível da comarca de Lisboa.
3. É concedida ao organismo pagador das ajudas a isenção de custas e do
pagamento de preparos nos processos judiciais em que seja interveniente.”
Este diploma foi editado pelo Governo, “nos
termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição”, correspondente ao
actual artigo 198.º, n.º 1, alínea a), isto é, com invocação da competência
constitucional do Governo de “fazer decretos‑leis em matérias não reservadas à
Assembleia da República”.
Sendo a “organização e competência dos
tribunais” matéria reservada à exclusiva competência da Assembleia da República
(artigo 168.º, n.º 1, alínea q), da CRP, na versão decorrente da revisão de
1989, vigente à data da publicação do Decreto‑Lei n.º 81/91, a que corresponde o
artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da actual versão), e sendo inquestionável que a
definição do tribunal competente em razão da matéria para conhecer de
determinados litígios cabe inequivocamente nessa reserva, a admissibilidade da
intervenção legislativa do Governo dependia do carácter não inovatório dessa
intervenção.
Na tese do recorrente, esse carácter inovatório
– que determinaria a inconstitucionalidade orgânica da norma impugnada –
derivava do entendimento de que tal norma viera transferir para a “jurisdição
comum” a competência para conhecimento de um litígio que anteriormente cabia à
jurisdição administrativa, por estar em causa uma “relação jurídica
administrativa”, por ser emergente de um “contrato administrativo”. É esta mesma
natureza administrativa da relação em causa que, por seu turno, sustenta a tese
da inconstitucionalidade material, de acordo com uma leitura do artigo 212.º,
n.º 3, da CRP (correspondente ao artigo 214.º, n.º 3, na versão emergente da
revisão constitucional de 1989) segundo a qual seria constitucionalmente vedada
a atribuição a tribunais não administrativos da competência para conhecer
litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.
2.2. Surge, assim, como prioritária, quer na
perspectiva da inconstitucionalidade orgânica, quer na perspectiva da
inconstitucionalidade material, a qualificação, como administrativa ou como não
administrativa, da relação jurídica estabelecida entre o recorrente e o IFADAP.
Trata‑se de qualificação a que este Tribunal
compete proceder, não lhe sendo imposta a aceitação da qualificação efectuada
pelo acórdão recorrido, justamente porque, como se reconheceu no citado Acórdão
n.º 457/2004, que deferiu reclamação parcial da decisão sumária de não
conhecimento do recurso, “a qualificação como jurídico‑administrativa da
relação litigiosa em causa (…) é, antes, na óptica do requerimento de recurso,
um fundamento para a inconstitucionalidade, quer material, quer orgânica,
defendida pelo recorrente, e não um elemento integrante da dimensão normativa a
apreciar”, pelo que, “se, como no presente caso, a decisão da questão de
constitucionalidade depende – como pode depender – de uma determinada
qualificação da relação em causa, à luz dos parâmetros constitucionalmente
relevantes, nada obsta a que o Tribunal Constitucional, para decisão de tal
questão de constitucionalidade, se pronuncie sobre a qualificação relevante para
este efeito”.
Ora, seja qual for o critério que se adopte
para a qualificação dos contratos como administrativos, há que concluir, face ao
regime legal aplicável e ao clausulado concretamente estabelecido, que reveste
essa natureza o contrato celebrado entre o recorrente e o IFADAP. Trata‑se de um
acordo de vontades em que uma das partes é uma pessoa colectiva de direito
público, dotada de autonomia administrativa e financeira e património próprio
(artigo 1.º dos Estatutos do IFADAP, aprovados pelo Decreto‑Lei n.º 414/93, de
23 de Setembro), a quem são conferidos poderes de direito administrativo, entre
os quais a competência para emitir actos administrativos e celebrar contratos
administrativos como meio de prosseguir as suas atribuições, que consistem na
promoção do desenvolvimento da agricultura e das pescas, bem como do sector
agro‑industrial, em especial através de esquemas de financiamento, directo ou
indirecto, às referidas actividades (artigo 5.º dos referidos Estatutos). Na
situação específica em causa, trata‑se de contrato celebrado no âmbito de gestão
de fundos públicos, inserida na actividade mais ampla de fomento de determinados
interesses públicos, designadamente através da atribuição de ajudas pelo IFADAP
aos particulares (no caso, ao ora recorrente), para que estes invistam nessas
mesmas estruturas.
Acresce que, no âmbito da regulamentação legal
e convencional do contrato, são consagradas cláusulas exorbitantes,
inadmissíveis num contrato de direito privado (isto é, de cláusulas apenas
concebíveis numa relação jurídica em que pelo menos uma das partes é a
Administração intervindo nessa qualidade), como a atribuição ao IFADAP de
poderes de acompanhamento, fiscalização e controlo de programas e projectos
apoiados por ajudas nacionais ou comunitárias (artigo 5.º, n.º 2, alínea e), dos
Estatutos) ou do poder de unilateralmente rescindir ou modificar o contrato no
caso de incumprimento pelo beneficiário de qualquer das suas obrigações
(cláusula F1 do contrato).
Porém, decisivo no sentido da
administratividade da relação em causa é a atribuição da natureza de títulos
executivos às certidões de dívida emitidas pelo organismo pagador das ajudas
(n.º 1 do artigo 53.º do Decreto‑Lei n.º 81/91), o que constitui um indício
sólido de que estamos diante de um acto administrativo praticado na execução de
um contrato, resultando, por outro lado, da conjugação dos artigos 52.º e 53.º
do Decreto‑Lei n.º 81/91 que nos deparamos nesta hipótese com a determinação
autoritária do pagamento de determinada quantia em consequência do exercício de
um poder sancionatório. Na verdade, a atribuição de um poder com tal conteúdo à
Administração constitui um factor determinante para a conclusão pela
administratividade dos contratos em causa: trata‑se manifestamente de um poder
outorgado à entidade administrativa, exorbitante do direito privado e que
releva da respectiva supremacia jurídico‑pública. Na relação constituída, o
contraente público detém o poder de praticar actos administrativos no âmbito da
execução do contrato que celebrou com o particular, o que não sucederia se
estivéssemos no horizonte de um contrato de direito privado.
2.3. Assente que reveste natureza
jurídico‑administrativa a relação jurídica de que emergiu o presente processo,
há que atentar, agora, no alcance de que se revestiu, na revisão constitucional
de 1989, a par da consagração da jurisdição administrativa como uma jurisdição
obrigatória (e não meramente facultativa, como até então ocorrera), a definição
do âmbito material dessa jurisdição.
Como se referiu no acórdão do Tribunal dos
Conflitos, de 14 de Março de 1996, processo n.º 296 (Apêndice ao Diário da
República, de 28 de Novembro de 1997, pág. 22, Boletim do Ministério da Justiça,
n.º 455, pág. 222, e Acórdãos Doutrinais, n.º 415, pág. 891):
“(...) face a essa norma (artigo 214.º, n.º 3, da Constituição,
na redacção da revisão de 1989), já tem sido entendido não ser lícito ao
legislador ordinário atribuir aos tribunais administrativos competência para
julgar outras questões ou atribuir o conhecimento de questões de natureza
administrativa a outros tribunais (cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra,
1993, pág. 814; cf. também Rui Chancerelle de Machete, «A Constituição, o
Tribunal Constitucional e o Processo Administrativo», em Tribunal
Constitucional, Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional, Coimbra,
1995, pág. 160). No primeiro sentido, cf. o acórdão do Supremo Tribunal
Administrativo, de 10 de Maio de 1994, recurso n.º 32 422, que julgou
inconstitucional, por violação do citado artigo 214.º, n.º 3, da Lei
Fundamental, o n.º 1 do artigo 36.º do Regulamento do Serviço de Registo de
Imprensa, aprovado pela Portaria n.º 640/76, de 26 de Outubro, que atribuía
competência aos tribunais administrativos para conhecerem dos recursos das
decisões que recusassem os registos ou determinassem o seu cancelamento, por
se entender que tais decisões, visando essencialmente a defesa de direitos
privados, não criam, modificam ou extinguem relações jurídicas administrativas.
No segundo sentido, cf. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 8 de
Julho de 1993, recurso n.º 30 099, que julgou inconstitucional, por violação do
mesmo artigo 214.º, n.º 3, as normas dos artigos 26.º da Lei n.º 37/81, de 3
de Outubro, e 38.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 322/82, de 12 de Agosto, que
atribuíam ao Tribunal da Relação de Lisboa competência para conhecer dos
recursos dos actos relativos à atribuição, aquisição ou perda da nacionalidade
portuguesa, por se haver entendido que estes actos são materialmente
administrativos.
Não parece, porém, ser a melhor leitura do aludido preceito
constitucional ver nele consagrada uma reserva material absoluta de
jurisdição atribuída aos tribunais administrativos, no duplo sentido de que, por
um lado, os tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito
administrativo, e de que, por outro lado, só eles poderão julgar tais questões.
Como refere José Carlos Vieira de Andrade (Direito
Administrativo e Fiscal, Lições ao 3.º Ano do Curso de 1995/96, Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, págs. 10 a 12):
«A melhor doutrina (...) parece ser, no entanto, a que não lê o
referido preceito constitucional como um imperativo estrito, contendo uma
proibição absoluta, mas (em nosso juízo, sem sequer forçar o texto), como uma
regra definidora de um modelo típico, susceptível de adaptações ou de desvios
em casos especiais, desde que não fique prejudicado o núcleo caracterizador do
modelo.
De facto, o preceito constitucional, introduzido na revisão de
1989, explica‑se historicamente pela intenção de consagrar a ordem judicial
administrativa como uma jurisdição própria, ordinária, e não como uma
jurisdição especial ou excepcional em face dos tribunais judiciais, na linha da
alteração do artigo 211.º, que deixou de considerar os tribunais
administrativos como tribunais facultativos.
Assim, o preceito contém a mera definição da área própria (do
âmbito‑regra) da ‘nova’ ordem judicial administrativa e fiscal no contexto da
organização dos tribunais, sem com isso pretender necessariamente estabelecer
uma reserva material absoluta.
Dessa definição do âmbito‑regra (que corresponde à justiça
administrativa em sentido material) deriva para o legislador ordinário
tão‑somente a obrigação de respeitar o núcleo essencial da organização material
das jurisdições (...).
Mas só isso: não fica proibida a atribuição pontual a outros
tribunais do julgamento (por outros processos) de questões substancialmente
administrativas, sendo certo que essas ‘remissões’ orgânico‑processuais
(muitas delas tradicionais) podem ter justificações diversas, devendo, por
isso, incluir‑se na margem de escolha política e, portanto, de liberdade
constitutiva própria do poder legislativo.
Por outro lado, aquele preceito serve ainda para delimitar o
sentido da parte final do n.º 1 do artigo 213.º (continuado no artigo 66.º do
Código de Processo Civil), que atribui aos tribunais judiciais uma competência
jurisdicional residual, de modo que uma questão de natureza administrativa
passa a pertencer à ordem judicial administrativa quando não esteja
expressamente atribuída a nenhuma jurisdição.
(...)
Por fim, uma interpretação tão rigorosa implicaria a
inconstitucionalização – ou, pelo menos, suscitaria dúvidas e questões sobre
a constitucionalidade – de leis importantes e de práticas de longa tradição,
designadamente em matéria de polícia judiciária, contra‑ordenações e de
expropriações por utilidade pública, uma revolução que só deveria operar‑se se
tivesse sido claramente assumida pela revisão constitucional.
Em resumo, o preceito constitucional visa apenas consagrar os
tribunais administrativos como os tribunais comuns em matéria administrativa.»
No sentido da constitucionalidade da atribuição aos tribunais
judiciais de competência para conhecerem das impugnações das decisões
administrativas aplicativas de coimas, cf. Joaquim Pedro Formigal Cardoso da
Costa, «Recurso para os Tribunais Judiciais da Aplicação de Coimas pelas
Autoridades Administrativas», em Ciência e Técnica Fiscal, n.º 366, págs.
39-69.
Também José Manuel Sérvulo Correia («A Arbitragem Voluntária
no Domínio dos Contratos Administrativos», em Estudos em Memória do Professor
Doutor João de Castro Mendes, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
Lisboa, 1995, pág. 254, nota 34) sustenta que «O preceito constitucional citado
[artigo 214.º, n.º 3] deve ser lido (...) como indicação de uma regra geral que
o legislador ordinário poderá pontuar de excepções desde que com isso não
esvazie do seu âmago essencial a competência dos tribunais administrativos».
No mesmo sentido já decidiu este Tribunal dos Conflitos, no
acórdão de 12 de Maio de 1994, processo n.º 266, onde se escreveu:
«A Constituição da República Portuguesa, na versão resultante
da Lei de Revisão Constitucional n.º 1/89, de 8 de Julho, partindo da unidade
do sistema judiciário, instituiu várias ordens ou categorias de tribunais –
artigo 211.º –, cada um deles consagrado como órgão de soberania – artigo
205.º, n.º 1 –, e a cada categoria ou ordem atribuindo, explicitamente ou
implicitamente, espaço de jurisdição devidamente delimitado, não em função de
uma estrita e absoluta especialização, que funciona apenas como critério
indicativo, mas em obediência a critérios organizacionais e de racionalidade
na distribuição das matérias respeitantes à administração da justiça, por
intermédio da actividade específica dos juízes, função do Estado pertencente,
em globo, à função judicial e ao poder soberano dos tribunais – artigos 213.º,
214.º, 215.º e 216.º –.
Todas as jurisdições, assim criadas, são, no plano
constitucional e abstractamente, de igual dignidade e competência
técnico‑jurídica no respectivo âmbito material – artigo 205.º, n.ºs 1 e 2 –,
todos os tribunais e juízes de tribunais estaduais gozam das mesmas garantias
de imparcialidade e independência – artigos 206.º e 218.º –.
Entre as jurisdições instituídas, com organização
constitucionalmente estabelecida, surge a jurisdição administrativa e fiscal,
com estatuto autónomo e com competência específica, nos termos do disposto no
artigo 214.º, n.º 3, para: ‘o julgamento das acções e recursos contenciosos que
tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas e fiscais’.
Nenhuma dúvida, portanto, que à jurisdição administrativa cabe
o julgamento de questões, em termos decisórios finais, com força de caso
julgado material, prevalecente e imperativo, conforme ao disposto no artigo
208.º, n.º 2, da Constituição, que tenham por objecto ‘dirimir litígios
emergentes de relações administrativas ...’, sem quaisquer limitações ou
restrições de ordem constitucional.
(...)
Há que fixar‑se, pois, como ponto de partida incontestável,
que, em princípio, cabe aos tribunais da jurisdição administrativa o
julgamento de quaisquer acções que tenham por objecto dirimir litígios
emergentes das relações jurídicas administrativas.
Em princípio, dissemos, porque nada obsta, de acordo com os
indicados preceitos constitucionais, como acima advertimos, que o legislador
ordinário possa, ressalvadas as matérias de natureza criminal, no uso do seu
poder conformador concreto do interesse público, atribuir a uma jurisdição a
competência de julgar sobre ‘matérias’ que, em principio e em geral, caberiam a
outras jurisdições, conforme ao critério de especialização, meramente
indicador e operacional, na repartição das competências das várias ordens de
tribunais que instituiu.
Resulta isso da filosofia subjacente ao sistema judicial
unitário constitucionalmente instituído e do disposto no artigo 168.º, n.º 1,
alínea q), da Constituição, onde se consagra a reserva relativa da Assembleia
da República para legislar sobre ‘Organização e competência dos tribunais e do
Ministério Público ...’.
Sendo, pois, exacto que ao definir a competência da jurisdição
administrativa reportando‑a às relações jurídicas administrativas, ou seja, ao
círculo de interesses que se jogam no âmbito do direito aplicável à
Administração Pública, abrangendo as relações jurídicas, que nasçam e se
desenvolvam sob a égide do direito administrativo, já não sob a égide do
direito público em geral, como se dizia antes, caberá, naturalmente, aos
tribunais administrativos a apreciação e julgamento de todos os litígios
originados no âmbito da administração pública, globalmente considerada, com
excepção dos que o legislador ordinário tenha expressamente atribuído, ou venha
a atribuir, a outra jurisdição.
É isto, aliás, que dizem os artigos 3.º, 4.º, n.º 1, alínea g),
e 51.º, n.º 1, alínea f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais,
ao estabelecer que ‘incumbe aos tribunais administrativos e fiscais, na
administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses
legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos
de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas
administrativas e fiscais’, salvo os que forem excluídos por lei e os recursos
e as acções pertencentes ao contencioso administrativo para que não seja
competente outro tribunal.
Por outras palavras, aos tribunais administrativos está
atribuída a jurisdição comum em matéria administrativa.
A eles pode‑se aplicar, devidamente adaptado, o artigo 66.º do
Código de Processo Civil: as causas, em matéria de administração pública, que
não sejam atribuídas por lei a outra jurisdição são da competência dos
tribunais administrativos – cf. Vital Moreira e J. J. Gomes Canotilho, na
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, pág. 214.
E há bastantes exemplos da aplicação desta doutrina, a
começar pela cláusula geral da alínea g) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto
dos Tribunais Administrativos e Fiscais, no direito positivo português recente.
Recordam‑se os mais importantes: processos eleitorais
relativos à eleição do Presidente da República, da Assembleia da República,
das Assembleias Regionais e dos órgãos do poder local, de deputados ao
Parlamento Europeu, actos da Comissão Nacional de Eleições ou de outros órgãos
da administração eleitoral – artigos 225.º, n.º 2, alínea c), da Constituição,
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro –,
atribuídas ao Tribunal Constitucional; o julgamento, em via de recurso, dos
actos administrativos aplicativos de coimas, em processo
contra‑ordenacional, está atribuído aos tribunais comuns – Decreto-Lei n.º
433/82, de 27 de Outubro; os actos de aplicação de penas disciplinares aos
juízes dos tribunais judiciais estão atribuídos ao Supremo Tribunal de Justiça
– Lei n.º 21/85, de 30 de Julho; a fiscalização financeira jurisdicionalizada
dos partidos políticos está atribuída ao Tribunal Constitucional – Lei n.º
72/93, de 30 de Novembro, etc. »
Registe-se, por último, que o Tribunal Constitucional já
decidiu não ser inconstitucional a norma do artigo 61.º, n.º 1, do Decreto-Lei
n.º 48 953, de 5 de Abril de 1969, na redacção do Decreto-Lei n.º 693/70, de 31
de Dezembro, que atribui competência aos tribunais fiscais para a cobrança
coerciva de todas as dívidas de que seja credora a Caixa Geral de Depósitos e as
suas instituições anexas, mesmo que não esteja em causa uma relação
administrativa ou fiscal: cf. Acórdãos n.ºs 371/94 e 372/94, de 11 de Maio de
1994 (publicados no Diário da República, II Série, n.ºs 204 e 207, de 3 e 7 de
Setembro de 1994, págs. 9231 e 9346, respectivamente), n.º 417/94, de 18 de Maio
de 1994, n.ºs 508/94 e 509/94, de 14 de Julho de 1994 (publicados no Diário da
República, II Série, n.ºs 286 e 287, de 13 e 14 de Dezembro de 1994, págs. 12
517 e 12 612, respectivamente), n.º 579/94, de 26 de Outubro de 1994, e n.ºs
610/94, 629/94 e 630/94, de 22 de Novembro de 1994.”
Do exposto retira‑se que, a par da
possibilidade de o legislador ordinário atribuir pontualmente a tribunais não
administrativos o conhecimento de litígios emergentes de relações jurídicas
administrativas, desde que tais “desvios” se mostrem providos de fundamento
material razoável e desde que, pelo seu número ou importância, não esvaziem do
seu âmago essencial a competência dos tribunais administrativos [entendimento
este que tem sido adoptado pelo Tribunal Constitucional, designadamente nos
Acórdãos n.ºs 746/96, 965/96, 347/97, 253/98 e 458/99], resulta da revisão
constitucional de 1989 que a jurisdição administrativa passou a ser a
jurisdição “comum” para o conhecimento de litígios emergentes de relações
jurídicas administrativas: assim, enquanto anteriormente, nos casos em que não
resultava expressamente da lei qual a jurisdição competente para decidir
determinada causa, se entendia que eram competentes os “tribunais judiciais”,
depois da revisão constitucional de 1989, não existindo norma legal a definir
concretamente qual a jurisdição competente, há que indagar qual a natureza da
relação jurídica de que emerge o litígio e, se se concluir que possui natureza
administrativa, então impõe-se o reconhecimento de que competente é a
jurisdição administrativa, como jurisdição “comum” para a apreciação dos
litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.
Reiterando a formulação de José Carlos Vieira
de Andrade (A Justiça Administrativa, 8.ª edição, Coimbra, 2006, p. 114), o
artigo 212.º, n.º 3, da CRP serve ainda para delimitar o sentido da parte final
do n.º 1 do artigo 211.º da CRP (“os tribunais judiciais são os tribunais comuns
em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não
atribuídas a outras ordens judiciais”), continuado no artigo 66.º do Código de
Processo Civil (“São da competência dos tribunais judiciais as causas que não
sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”), que atribui aos tribunais
judiciais uma competência jurisdicional residual, de modo que uma questão de
natureza administrativa passa a pertencer à ordem judicial administrativa
quando não esteja expressamente atribuída a nenhuma jurisdição. É esta também a
posição de Sérvulo Correia (Direito do Contencioso Administrativo, I vol.,
Lisboa, 2005, p. 586), que, apesar de entender que a Constituição não impõe uma
reserva material absoluta da jurisdição administrativa, mas tão‑só uma reserva
tendencial (“visto que o preceito constitucional deve ser lido como indicação de
uma regra geral que o legislador ordinário poderá pontuar de excepções, desde
que com isso não esvazie do seu âmago a competência dos tribunais
administrativos e de que para tanto exista fundamento material razoável, ou
seja, outros valores ou interesses constitucionalmente razoáveis”), sublinha que
“a Constituição atribui ao juiz administrativo o papel de juiz comum ou
ordinário da justiça administrativa, cabendo‑lhe, sem necessidade de atribuição
específica, a competência para julgar os litígios emergentes das relações
jurídicas administrativas”.
2.4. Revertendo ao caso dos autos, pode, desde
logo, entender‑se que a competência da jurisdição administrativa e fiscal para
a cobrança coerciva de dívidas a pessoas colectivas públicas encontra suporte
nos artigos 62.º, n.º 1, alínea c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e
Fiscais (Decreto‑Lei n.º 129/84, de 27 de Abril) [correspondente à alínea o) do
mesmo preceito, na redacção dada pelo Decreto‑Lei n.º 229/96, de 29 de
Novembro], e no artigo 144.º do Código de Processo das Contribuições e
Impostos, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 45 005, de 27 de Abril de 1963
[correspondente ao artigo 233.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo
Tributário, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 154/91, de 23 de Abril].
Mas mesmo que se entenda, como se entendeu no
Acórdão n.º 90/2004, que a atribuição dessa competência dependeria da existência
de uma lei especial que tal previsse, o certo é que, de acordo com a posição
exposta no ponto precedente, com a entrada em vigor da revisão constitucional de
1989, passaram os tribunais administrativos a ser competentes, como tribunais
“comuns” para o conhecimento de litígios emergentes de relações jurídicas
administrativas, para o tipo de execuções como a ora em causa.
Assim, a edição do Decreto‑Lei n.º 81/91
(posterior à revisão constitucional de 1989, o que não acontecia com o
Decreto‑Lei n.º 96/87, de 4 de Março, sobre que recaiu o citado Acórdão n.º
90/2004), com a norma do seu artigo 53.º, n.º 2, implicou uma alteração da regra
da competência material dos tribunais, o que só podia ser efectivado pelo
Governo se dispusesse de autorização legislativa, no caso inexistente.
Conclui‑se, pois, que a norma em causa padece
de inconstitucionalidade orgânica, tornando‑se, assim, desnecessária a
apreciação da questão da ocorrência também de inconstitucionalidade material.
3. Decisão
Em face do exposto, acorda‑se em:
a) Julgar organicamente inconstitucional, por
violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea q), da Constituição da República
Portuguesa, na versão decorrente da revisão de 1989, a norma constante do artigo
53.º, n.º 2, do Decreto‑Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro, que determina a
competência dos tribunais civis (“o foro cível da comarca de Lisboa”) para as
execuções instauradas pelo Instituto de Financiamento e Apoio ao Desenvolvimento
da Agricultura e Pescas (IFADAP), organismo pagador das ajudas previstas nesse
diploma, em virtude do não cumprimento pelos particulares dos respectivos
contratos de atribuição; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso,
determinando‑se a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o
precedente juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 23 de Março de 2007.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Benjamim Silva Rodrigues
Maria Fernanda Palma (Vencida pelo essencial das razões constantes da declaração
de voto do primitivo relator, Conselheiro Mota Pinto).
Paulo Mota Pinto (Vencido, nos termos da declaração de voto que junto)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido em conformidade com o projecto de acórdão que, enquanto relator,
apresentei, e no qual se propunha a seguinte fundamentação da decisão de não
inconstitucionalidade da norma em causa:
«1.O Decreto-Lei nº 81/91, de 19 de Fevereiro, veio estabelecer no seu artigo
1.º que “a acção comum instituída pelo Regulamento (CEE) n.º 797/85, do
Conselho, de 12 de Março, que visa a melhoria da eficácia das estruturas
agrícolas, é aplicada em Portugal nos termos daquele regulamento e deste
diploma”. Com vista a regular a cobrança de dívidas ao organismo pagador das
ajudas (designadamente, de “ajudas aos investimentos nas explorações
agrícolas”), dispõe o artigo 53.º do referido diploma o seguinte:
“Artigo 53.º
Processo judicial
1. Constituem títulos executivos as certidões de dívida emitidas pelo organismo
pagador das ajudas.
2. Para as execuções instauradas pelo organismo pagador das ajudas é sempre
competente o foro cível da comarca de Lisboa.
3. É concedida ao organismo pagador das ajudas a isenção de custas e do
pagamento de preparos nos processos judiciais em que seja interveniente.”
É a apreciação das alegadas inconstitucionalidades material e orgânica da norma
que se contém no n.º 2 deste artigo 53.º que constitui o objecto do presente
recurso.
2.Começando pela questão da inconstitucionalidade orgânica, recorde-se que
questão próxima da que está em causa no presente processo – então a da
inconstitucionalidade orgânica da norma do n.º 5 do artigo 18º do Decreto-Lei
n.º 96/87, de 4 de Março, por violação do disposto no artigo 168º, n.º 1, alínea
q) da Constituição [hoje, 165º, n.º 1, alínea p)] – foi objecto de apreciação
pelo Tribunal Constitucional no caso decidido pelo Acórdão n.º 90/2004
(publicado no Diário da República, II série, de 16 de Março de 2004, e
disponível em www.tribunalconstitucional.pt), cujo juízo foi, aliás, reiterado
pelas decisões sumárias n.ºs 164/2004 e 409/2004 (igualmente disponíveis naquele
“sítio” da Internet). Confrontado com um juízo de recusa de aplicação por
inconstitucionalidade orgânica, assente, no essencial, em fundamentação
semelhante à adoptada pelo ora recorrente, o Tribunal Constitucional concluiu
nas referidas decisões que a norma então em causa (artigo 18.º, n.º 5, do
Decreto-Lei n.º 96/87, de 4 de Março, “na parte em que atribui competência
executiva, exclusiva, aos tribunais do foro da comarca de Lisboa”) não enfermava
do referido vício, pelas razões seguintes:
“[…]
3.1. Neste contexto, importa analisar se o normativo cuja desaplicação se
efectivou no despacho sub iudicio se configura como inovatório relativamente às
regras da competência material dos tribunais, matéria essa que,
indiscutivelmente, ao tempo da edição do diploma em que tal normativo se insere,
constituía [como aliás constitui hoje – cfr. alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º
da vigente versão da Lei Fundamental] reserva relativa de competência
legislativa da Assembleia da República, de harmonia com a alínea q) do n.º 1 do
artigo 168.º da Constituição, na versão decorrente da Lei Constitucional n.º
1/82, de 30 de Setembro.
Estipulam, para o que ora releva, os números 2, 4 e 5 do referido artigo 18.º:
Artigo 18.º
(Reembolso)
1
–......................................................................................
2 – No caso de incumprimento pelos beneficiários, o gestor do programa
notificará os infractores para, no prazo de 30 dias, restituírem os montantes já
recebidos a título de ajudas, acrescidos de juros à taxa legal desde a data em
que estas importâncias foram colocadas à sua disposição, sem prejuízo da
aplicações de outras sanções previstas na lei.
3 –
.....................................................................................
4 – Constituem títulos executivos as certidões de dívida emitidas pelo organismo
encarregado da execução do programa ou subprograma ao abrigo do qual a ajuda foi
concedida.
5 – As execuções instauradas pelo Ministério Público ao abrigo deste artigo,
para as quais é sempre competente o foro da comarca de Lisboa, iniciam-se pela
penhora.
Ora, do regime constante do então (ou seja, à data da prolação do despacho
recorrido) vigente Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado
pelo Decreto‑Lei n.º 129/84, de 27 de Abril), não se pode concluir que a
totalidade das acções executivas destinadas à obtenção de dívidas devidas ao
Estado ou a outras pessoas colectivas públicas, fundadas em título executivo
extrajudicial – certidão de dívida emitida pelo Estado ou outras pessoas
colectivas públicas –, seja da competência dos tribunais administrativos ou
fiscais.
Na verdade, e talqualmente assinala a entidade recorrente na sua alegação, da
conjugação das normas vertidas na alínea c) do n.º 1 do artigo 62.º do Estatuto
dos Tribunais Administrativos e Fiscais [na redacção anterior à conferida pelo
Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro, que é a que releva, atenta a data da
edição do diploma em que se incorpora a norma em apreço, sendo que, de todo o
modo, mesmo depois daquela redacção é o mesmo o sentido da alínea o) do n.º 1 do
citado artigo 62.º] e no artigo 144.º do Código de Processo das Contribuições e
Impostos [que era o vigente à data anteriormente referida, mantendo-se regra de
conteúdo idêntico na alínea b) do n.º 2 do artigo 233.º do Código de Processo
Tributário], resulta que a competência atribuída aos tribunais tributários de 1ª
instância para a cobrança coerciva de dívidas a pessoas de direito público está
dependente da existência de uma lei que tal preveja, salvo quanto à cobrança das
custas e multas aplicadas pelos tribunais administrativos e fiscais.
Sendo assim, e se não houver acto legislativo específico que preveja que a
cobrança coerciva de determinados créditos detidos pelo Estado ou outras pessoas
colectivas públicas é da competência dos tribunais fiscais (e isso
independentemente da natureza material de onde emerge a obrigação que, por
incumprida, deu origem ao crédito), resulta claro que essa competência incumbe
aos tribunais judiciais, por força do artigo 14.º da então vigente Lei n.º
38/87, de 23 de Dezembro – Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (e o mesmo se
passa hoje com o n.º 1 do artigo 18.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro; cfr.,
na actual versão da Constituição, a parte final do n.º 1 do artigo 211.º) –,
sendo certo que, em 1987 (data da edição do Decreto-Lei n.º 96/87), não estavam
os tribunais administrativos dotados, pelo Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais que então regia, de competência para a execução dos
créditos titulados pelo Estado e outra pessoas colectivas públicas, fundadas no
título executivo extrajudicial acima indicado, e ainda que decorrente de
negócios jurídicos bilaterais de natureza administrativa.
Neste contexto, no particular da atribuição de competência aos tribunais da
ordem dos tribunais judiciais, a norma em apreciação mais não faz do que,
tautologicamente, reafirmar uma regra que já se surpreendia no ordenamento
jurídico vigente à data da edição do Decreto‑Lei n.º 96/87, pelo que nada de
inovatório foi por ela trazido (cfr., por entre outros, os Acórdãos deste
Tribunal n.ºs 502/97 e 588/99, publicados na II Série do Diário da República de,
respectivamente, 4 de Novembro de 1988 e 20 de Março de 2000, onde se concluiu
que se uma norma atinente à competência material dos tribunais, norma essa
emitida pelo Governo a descoberto de autorização parlamentar, não revestir
carácter inovatório, não incorrerá ela no vício de inconstitucionalidade
orgânica).”
Esta posição é transponível para o presente caso, quanto à questão da
conformidade do n.º 2 deste artigo 53.º do Decreto-Lei n.º 81/91, de 19 de
Fevereiro, com o princípio da reserva constitucional em matéria de organização e
competência dos tribunais, consagrado na alínea p) do n.º 1 do artigo 165º da
Constituição.
Com efeito, a norma aplicada nos autos não é inovadora, no sentido de intervir
na definição da competência dos tribunais, de modo a que daí resulte alteração
das competências legalmente definidas, pois, como este Tribunal afirmou no
transcrito Acórdão n.º 90/2004, a atribuição de competência aos tribunais da
ordem dos tribunais judiciais correspondia ao regime geral, que resultava do
artigo 14.º da então vigente Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, não se
podendo “concluir que a totalidade das acções executivas destinadas à obtenção
de dívidas devidas ao Estado ou a outras pessoas colectivas públicas, fundadas
em título executivo extrajudicial – certidão de dívida emitida pelo Estado ou
outras pessoas colectivas públicas –, [fosse] da competência dos tribunais
administrativos ou fiscais”.
É, evidentemente, irrelevante para a questão de constitucionalidade orgânica o
facto de, quando foi proferida a decisão ora recorrida, em 22 de Maio de 2003,
estar ou não já em vigor o artigo 4.º, n.º 1, alínea f), do novo Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais – que só iniciou a sua vigência no dia 1 de
Janeiro de 2004. Esta circunstância apenas poderia afectar a solução no plano do
direito ordinário, mas, de todo o modo, não interferiria com a competência
legislativa do Governo para aprovação do Decreto-Lei n.º 81/91, que se determina
pela distribuição constitucional de competências no momento em que a norma foi
emitida.
3.A este respeito da distribuição constitucional de competências, defende-se, em
parecer junto aos autos (subscrito por José Carlos Vieira de Andrade) que é
determinante para se considerar existir alteração da matéria da competência dos
tribunais, pelo diploma em apreço, o facto de, na segunda revisão
constitucional, o texto da Lei Fundamental ter sido alterado no sentido de
expressamente consagrar a existência de tribunais administrativos e fiscais.
Na verdade, a Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de Julho, deu nova redacção ao
artigo 211.º da Constituição [hoje, artigo 212.º], passando a prever a
existência – ao lado do Tribunal Constitucional, dos Tribunais Judiciais, do
Tribunal de Contas e dos Tribunais Militares – do Supremo Tribunal
Administrativo e dos “demais tribunais administrativos e fiscais” (n.º 1, alínea
c)). E, além disso, a II revisão constitucional aditou um novo artigo 214.º à
Constituição, em cujo n.º 3 se previu que “Compete aos tribunais administrativos
e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto
dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e
fiscais”.
Entende-se, porém, que desta revisão constitucional não resultou logo, só por
si, uma alteração das competências legalmente estabelecidas – independentemente
do problema de saber se certas normas ficaram, ou não, feridas de superveniente
inconstitucionalidade material – para todas as acções, incluindo as execuções
(acções executivas como a que está em causa) emergentes de relações qualificadas
como jurídico-administrativas.
Ora a resposta à suscitada questão da inconstitucionalidade orgânica, agora em
apreço, depende justamente de saber se o artigo 53.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º
81/91 veio alterar a ordem de competência dos tribunais anteriormente
estabelecida, ou apenas repetiu o que resultava do regime geral em vigor à data
da sua aprovação. Este Tribunal tem, pois, de preliminarmente averiguar se o n.º
2 deste artigo 53.º do Decreto-Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro, tem
efectivamente carácter inovatório, se altera a distribuição de competências
pré-estabelecida. E respondida negativamente esta questão (cf. o n.º anterior),
não relevam, em sede de apreciação da inconstitucionalidade orgânica da norma do
n.º 2 deste artigo 53.º do Decreto-Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro, as
alterações introduzidas no parâmetro de constitucionalidade.
4.No que concerne à questão da inconstitucionalidade material da norma do n.º 2
do artigo 53.º daquele Decreto-Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro, por violação
do disposto no artigo 212.º, n.º 3, da Constituição, impõe-se uma nota prévia,
para salientar que não cabe na competência do Tribunal Constitucional, restrita
à apreciação da questão de constitucionalidade da norma impugnada, apreciar o
acerto da decisão recorrida no plano do direito infraconstitucional,
designadamente no que respeita à qualificação como de direito privado ou de
direito público da relação jurídica controvertida, que teve origem nos contratos
de atribuição de ajudas celebrados entre recorrente e recorrido (incluindo o
problema de saber se, após a entrada em vigor do novo ETAF, subsiste a vigência
de normas avulsas atributivas de competência aos tribunais comuns em situações
que poderiam cair na competência da jurisdição administrativa e fiscal segundo
as novas regras de repartição das jurisdições). Decisivo, para o que cabe na
competência deste Tribunal em sede de recurso de constitucionalidade, é apenas
que a norma do n.º 2 do artigo 53.º do Decreto‑Lei n.º 81/91, de 19 de
Fevereiro, integre a ratio decidendi da decisão recorrida.
Uma leitura do artigo 212.º, n.º 3, da Constituição apegada ao seu texto
(“Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e
recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das
relações jurídicas administrativas e fiscais”) poderia eventualmente levar a uma
conclusão no sentido da inconstitucionalidade. Nas palavras de Gomes Canotilho e
Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra,
1993, pág. 814):
“(…) a letra do preceito constitucional parece não deixar margem para excepções,
no sentido de consentir que estes tribunais possam julgar outras questões ou que
certas questões de natureza administrativa possam ser atribuídas a outros
tribunais. E se é certo que o primeiro ponto não causa dificuldade, já o segundo
as levanta, visto não serem poucas as áreas em que a lei tradicionalmente confia
a outros tribunais a competência para o julgamento de questões que em princípio
se devem ter por administrativas (...). Por isso, melhor se diria que estes
tribunais são os tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal, à imagem
da norma relativa aos tribunais judiciais (artigo 213º, n.º 1), mas só
forçadamente é que o presente texto consente tal interpretação.”
5.No acórdão n.º 372/94 (publicado no Diário da República, II Série, de 7 de
Setembro de 1994), o Tribunal Constitucional fez a síntese do seu entendimento
em relação ao que então estava nesse aresto em causa, que eram “as funções em
matéria de contencioso administrativo atribuídas aos tribunais militares por
diplomas ordinários”. Invocando o Acórdão n.º 81/86 (publicado nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, vol. 7.º, tomo I, págs. 103 e segs.), escreveu-se nesse
Acórdão n.º 372/94:
“Sendo os tribunais órgãos de soberania, quer vistos estes no seu conjunto, quer
cada um de per si, detêm eles a competência que, quer directa, quer
implicitamente, lhes seja conferida pela Constituição;
Quando essa competência lhes advenha da lei ordinária, torna-se necessário que a
lei fundamental, de igual modo, directa ou indirectamente, conceda autorização
para tanto ou remeta para tal lei a fixação da competência;
Sempre que a Constituição, ela mesma, defina a competência de determinada
categoria de tribunais, há que concluir que na mão do legislador ordinário não
pode ficar o poder de alargar essa competência a áreas que na lei básica se não
prevêem;
Mesmo nos casos em que a Constituição autoriza que seja a lei ordinária a
definir a competência da referida categoria ou remeta para a mencionada lei tal
definição, sempre deverá ela respeitar as competências que o diploma básico
entendeu consagrar no seu texto para as restantes categorias;
As funções inseridas na competência autorizada ou remetida, quanto à sua
definição, para a lei ordinária, de todo o modo, terão que conformar-se «com a
natureza e função geral de cada uma» das categorias dos tribunais;
É «razoável e é lógico» que, ao tratar de tribunais especificamente
vocacionados, ou seja, de categorias especiais de tribunais, a Constituição se
ocupe da respectiva definição de competência (ainda que, para determinadas áreas
concretas, possa devolver para a lei ordinária essa definição), sob pena de, não
o fazendo, se postarem eles como tribunais sem funções específicas, o que
redundaria numa sua existência sem significado, já que, perante o sistema
jurídico vigente, delas se ocupariam os tribunais judiciais mercê da sua
competência genérica;
Constituindo, no fundo, a atribuição de competências especificas a categorias
especiais de tribunais uma limitação ou «compressão da competência dos tribunais
de vocação genérica», tem de haver, para tanto, uma «explícita autorização
constitucional» (mesmo que sendo esta constituída pela remissão para a lei).”
Posteriormente, pode ler-se no acórdão n.º 607/95 (publicado no Diário da
República, II Série, de 15 de Março de 1996):
“A existência dos tribunais administrativos e fiscais – que era facultativa
(‘Podem existir tribunais administrativos e fiscais [...]’, dispunha o n.º 2 do
artigo 212.º, na redacção de 1982) –, após a revisão constitucional de 1989,
passou a ser constitucionalmente obrigatória.
Aos tribunais administrativos compete, assim, a justiça administrativa, que o
mesmo é dizer que lhes cabe o julgamento das acções e dos recursos destinados a
dirimir os conflitos emergentes de relações jurídico-administrativas. Ou seja: a
Constituição comete-lhes a resolução das controvérsias nascidas de relações
jurídicas administrativas, dos litígios emergentes de relações jurídicas que
sejam de direito administrativo (relações jurídicas administrativas públicas ou
em que um dos sujeitos, pelo menos, actue na veste de autoridade pública, munido
de um poder de imperium, com vista à realização do interesse público legalmente
definido)”.
Este Tribunal Constitucional já se pronunciou, pois, no sentido de que a norma
do actual artigo 212.º, n.º 3, da Constituição (introduzido em 1989 como artigo
214.º, n.º 3) consagra uma cláusula de reserva material da competência dos
tribunais administrativos, atribuindo-lhes competência para dirimir os litígios
emergentes das relações jurídicas administrativas, reserva, essa, que não pode
ser esvaziada, sob pena de inconstitucionalidade material.
6.Mais recentemente, o Tribunal Constitucional perfilhou uma leitura do texto
constitucional em causa que consente excepções a tal reserva material de
competência – assim, nos acórdãos n.ºs 746/96, 965/96 e 347/97 (publicados,
respectivamente, no Diário da República, II Série, de 4 de Setembro de 1996, 21
de Dezembro de 1996 e de 25 de Julho de 1997). Neste último acórdão
enumeraram-se diversas situações em que se atribuía competência aos tribunais
judiciais para apreciação de questões administrativas (como por exemplo o
julgamento de recursos de aplicação de coimas, de recursos de decisões
administrativas em matéria de patentes, certos casos de contencioso de actos dos
conservadores e notários, e ainda, embora em termos não inteiramente análogos,
do recurso das decisões do Conselho Superior da Magistratura).
Este entendimento foi reiterado nos acórdãos n.ºs 253/98 e 458/99, no sentido de
inexistência de uma reserva absoluta e esgotante de matérias substancialmente
administrativas aos tribunais administrativos, não sendo proibida
constitucionalmente uma atribuição pontual e justificada a outros tribunais da
competência para conhecer de questões substancialmente administrativas. Lê-se no
primeiro daqueles arestos:
“[…]
A partir do acórdão n.º 371/94 (in Diário da República, II Série, nº 204, de 3
de Setembro de 1994), de forma cautelosa, o Tribunal Constitucional sustentou
que todos os elementos disponíveis apontavam «para interpretar o artigo 214.º,
n.º 3, da Constituição [hoje, artigo 212.º, n.º 3] como direccionado ao
julgamento das acções e recursos que versem sobre relações jurídicas
administrativas e fiscais litigiosas, não podendo a lei ordinária extravasar
para outra coisa que não sejam tais relações, mas sem que isso signifique que,
de todo em todo, se tenha impedido relegar para a mesma lei qualquer parcela
definidora ou integradora da competência dos tribunais administrativos e
fiscais, no que toca a processos executivos» (estava em causa uma execução
instaurada nos tribunais fiscais pela Caixa Geral de Depósitos, antes da
passagem desta instituição à forma de sociedade anónima regida pelo direito
privado; no mesmo sentido, vejam-se os acórdãos n.ºs. 372/94, no mesmo Diário,
n.º 207, de 7 de Setembro de 1994, 508/94 e 509/94, ainda no mesmo Diário, n.ºs.
286 e 287, de 13 e 14 de Dezembro de 1994, respectivamente).
E com base em posições doutrinais sustentadas a propósito do sentido daquele n.º
3 do art. 214.º, o Tribunal Constitucional acolheu a ideia de que os tribunais
administrativos e fiscais não teriam, em absoluto, jurisdição exclusiva no
tocante às relações administrativas e fiscais. Assim, a propósito da competência
dos tribunais comuns para o processo de expropriação por utilidade pública, o
Tribunal Constitucional decidiu que não havia qualquer inconstitucionalidade da
norma atributiva dessa competência, baseando-se na tradição jurídica existente
de intervenção dos tribunais judiciais nesse domínio:
«Em síntese: sem se tomar posição quanto à consagração ou não aí de uma reserva
material absoluta de jurisdição, o certo é que o sentido do n.º 3 do artigo
214.º da Constituição é o de que ele foi pensado para a fase declarativa da
apreciação de acções e recursos administrativos, sendo este o ‘núcleo
caracterizador do modelo’, na expressão de Vieira de Andrade.» (esta orientação
foi seguida nos acórdãos n.ºs 799/96, 927/96, 965/96, 1102/96 e 65/97, de que
está publicado apenas o terceiro, in Diário da República, n.º 296, de 33 de
Dezembro de 1996)” (itálico aditado)
A orientação jurisprudencial acolhida, por último, no Acórdão 458/99 deve ser
transposta para o presente caso, nele se concluindo que, aliás, “uma
interpretação em sentido contrário do texto constitucional implicaria, nas
palavras de Vieira de Andrade, (…) a inconstitucionalização – ou, pelo menos,
suscitaria dúvidas e questões sobre a constitucionalidade – de leis importantes
e de práticas de longa tradição, designadamente em matéria de política
judiciária, contra-ordenações e expropriações por utilidade pública, uma
revolução que só poderia operar-se se tivesse sido claramente assumida pela
revisão constitucional.”
7.Na verdade, não pode considerar-se desprovida de qualquer justificação, do
ponto de vista do legislador, a atribuição de competência aos tribunais
judiciais para conhecer das execuções instauradas pelo organismo pagador,
destinadas a efectivar as consequências do não cumprimento de contratos de
atribuição de ajudas celebrados ao abrigo do Regulamento (CEE) n.º 797/85, do
Conselho, de 12 de Março, e do Decreto‑Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro, acções
em que apenas se exige o pagamento de determinada quantia em dinheiro.
Não obstante tratar-se da regulamentação de matérias de interesse público, como
sejam a melhoria da eficácia das estruturas agrícolas nacionais, dir-se-á que,
pelo menos em matérias em que existe uma tradição jurídica – e cfr. os artigos:
10.º do Decreto-Lei n.º 187/86, de 14 de Julho; 18.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º
96/87, de 4 de Março; 14.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 341-A/86, de 8 de Outubro;
54.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 79‑A/87, de 18 de Fevereiro; 18.º, n.º 5, do
Decreto-Lei n.º 96/87, de 4 de Março; 12.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 259-A/87,
de 26 de Junho; 16.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 399/87, de 31 de Dezembro; 8.º,
n.º 4, do Decreto-Lei n.º 395/88, de 8 de Novembro; 9.º, n.º 5, do Decreto-Lei
n.º 459/88, de 14 de Dezembro; 9.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 464/88, de 15 de
Dezembro; 11.º, n.º 7, do Decreto-Lei n.º 5/89, de 6 de Janeiro; 19.º, n.º 3, do
Decreto-Lei n.º 394/90, de 11 de Dezembro; 10.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º
443/91, de 16 de Novembro; 8.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 31/94, de 5 de
Fevereiro; 10.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 150/94, de 25 de Maio; 8.º, n.º 3, do
Decreto-Lei n.º 189/94, de 5 de Julho; e, mais recentemente, o artigo 16.º do
Decreto‑Lei n.º 163-A/2000, de 27 de Julho, o artigo 12.º do Decreto-Lei n.º
224/2000, de 9 de Setembro, e o artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 8/2001, de 22 de
Janeiro – e onde, além disso, concorrem razões que têm a ver com uma mais fácil
e célere defesa dos direitos (ainda que, neste caso, de uma entidade pública
pagadora das ajudas), nada obsta se siga a solução legislativa de atribuir à
jurisdição comum competência para julgamento de questões que materialmente são
de direito administrativo.
Independentemente de um eventual paralelo com outras situações em que se atribui
competência aos tribunais judiciais para apreciação de questões administrativas,
que não mereceram censura de inconstitucionalidade por este Tribunal, o que é
certo é que as referidas possíveis justificações para a interpretação da norma –
e sem que caiba aqui apreciar se ela se revela como a melhor no plano
infra-constitucional –, e o seu limitado âmbito, permitem considerar que a
subtracção à jurisdição administrativa (e a correspondente atribuição aos
tribunais judiciais) da competência para execuções como a que está em questão
nos presentes autos não representa só por si um esvaziamento, ou sequer, uma
afectação do núcleo essencial de competências dessa jurisdição, que pudesse e
devesse (eventualmente) ter-se por desconforme com a Constituição – não sendo
nesse plano da distribuição de competências irrelevante a consideração da
lesividade do acto exequendo em razão das suas consequências para o património
do recorrente.
Por tudo isto se entende que não existe impedimento constitucional à atribuição
pontual e justificada da competência aos tribunais judiciais para a apreciação e
julgamento – enquanto órgão jurisdicional independente e imparcial – das
execuções instauradas pelo IFADAP, organismo pagador das ajudas, em virtude do
não cumprimento pelos particulares dos respectivos contratos de atribuição.»
Concluindo-se pela inexistência de inconstitucionalidade orgânica ou material no
n.º 2 do artigo 53.º daquele Decreto Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro, teria,
pois, por estas razões, negado provimento ao presente recurso.
Paulo Mota Pinto