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Processo n.º 782/2012
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A., assistente nos autos de processo comum n.º 95/09.7PCLRS.L1, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Loures, inconformado com a decisão de não pronúncia do arguido B., dela recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por Acórdão de 31 de maio de 2012, negou provimento ao recurso.
O assistente recorreu desta última decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), a fim de ver apreciada a inconstitucionalidade dos seguintes normativos legais:
a) artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal (CPP), «na interpretação (…) de que apenas os atos e diligências fixados na letra da lei como obrigatórios constituem nulidade de inquérito e/ou instrução invocável, sendo que o critério para o estabelecimento dos necessários é o discricionário do titular dos autos criminais em cada momento processual», por violação dos artigos 9.º. alínea b), 18.º, n.º 2, 20.º, nºs. 1, 4 e 5, 32.º, n.º 7, 202.º, n.º 2, 203.º e 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP); e
b) artigos 283.º, n.º 2, e 308.º, n.º 1, do CPP, «na interpretação (…) de que a prova indiciária recolhida tem que ter um especial índice de probabilidade de condenação em julgamento, beneficiando o arguido de toda e qualquer dúvida, de qualquer tipo, mesmo se esta pudesse ser afastada por diligências de prova não realizadas apesar de requeridas», por violação dos artigos 9.º, alínea b), 13.º, 18.º, n.º 2, 20.º, nºs. 4 e 5, 27.º, n.º 1, 32.º, n.º 7, 202.º, n.º 2, e 203.º da CRP.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por inobservância do ónus legal de prévia e adequada suscitação das questões de inconstitucionalidade, não admitiu o recurso, tendo o recorrente reclamado da respetiva decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da LTC, invocando, em síntese, que suscitou adequadamente perante o Tribunal da Relação, na respetiva motivação do recurso, as questões de inconstitucionalidade cuja apreciação agora reclama, pois que, contrariamente ao que se sustenta, sem fundamento, na decisão reclamada, concretizou devidamente quais as interpretações que, reportadas aos preceitos legais ora sindicados, reputava inconstitucionais.
O Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional defende ser de indeferir a presente reclamação, porquanto não se mostra efetivamente observado, pela forma adequada, o ónus legal de prévia suscitação (o recorrente não só não apresentou, quanto à primeira das enunciadas questões de inconstitucionalidade, uma «fundamentação minimamente concludente» para as suspeitas de inconstitucionalidade então manifestadas, como não concretizou, de forma particularmente evidente quanto à segunda questão de inconstitucionalidade, quais as específicas interpretações que reputava inconstitucionais), razão pela qual o Tribunal da Relação, sem incorrer em omissão de pronúncia, não apreciou tais questões. Por outro lado, sustenta ainda, o Tribunal recorrido não acolheu qualquer dos entendimentos que o reclamante integrou no objeto do recurso, pelo que, também com este fundamento, sempre seria de indeferir a reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
2. O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu indeferir o requerimento de interposição do recurso porque o recorrente se limitou «a afirmar, em abstrato, que uma dada ‘interpretação’ (…) se lhe afigura inconstitucional», não tendo, pois, observado, de uma forma funcionalmente apta, o ónus legal de prévia suscitação de que depende a interposição do recurso previsto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, enunciando perante o Tribunal recorrido questão de inconstitucionalidade suscetível de constituir objeto do recurso de constitucionalidade.
Insurge-se o reclamante, invocando que concretizou, em sede de motivação do recurso interposto da decisão de não pronúncia proferida pelo Tribunal da Relação, quais as interpretações que então reputou inconstitucionais, tendo também indicado, como lhe competia, quais as normas da Lei Fundamental que considerava terem sido por elas violadas, nada mais lhe sendo exigível para o efeito de interposição do recurso de constitucionalidade.
Como aflorado na decisão de que se reclama, na esteira do que o Tribunal Constitucional tem afirmado, a exigência de que a parte suscite perante o Tribunal recorrido a questão de inconstitucionalidade que, em ulterior recurso de constitucionalidade, pretende ver apreciada, assume um claro sentido funcional, pois que o que se pretende, dessa forma, garantir é que o Tribunal Constitucional funcione como verdadeira instância de recurso, reapreciando as decisões que, em matéria de inconstitucionalidade de determinada norma jurídica, as instâncias precedentes, por estarem em condições de o fazer, explícita ou implicitamente proferiram.
E sendo essa a teleologia implicada em tal pressuposto processual, essencial se torna aferir se a parte, no momento processual próprio, invocou perante o Tribunal recorrido questão de inconstitucionalidade que este estava obrigado a decidir, por clara enunciação da norma visada e das razões por que se entende que esta viola os princípios e normas constitucionais invocados.
Ora, analisando a motivação do recurso que o reclamante interpôs perante o Tribunal da Relação, de cuja decisão recorreu para o Tribunal Constitucional, facilmente se constata que não só não delimitou, com a clareza e rigor que lhe eram exigíveis, qual a interpretação que, fundada nos preceitos legais dos artigos 283.º, n.º 2, e 308.º, n.º 1, do CPP, considerava ofensiva da Constituição, como, tendo também invocado a inconstitucionalidade do artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP, interpretado no sentido de que «só os atos e diligências que a lei impõe na sua letra têm capacidade para gerar tal nulidade», não fundamentou, em ambos os casos, com um mínimo de apoio argumentativo, as suspeitas de inconstitucionalidade então manifestadas, o que se impunha, no caso, com particular acuidade, atento o conjunto múltiplo e heterogéneo de parâmetros de constitucionalidade que enunciou como objeto de violação.
Com efeito, e no que respeita ao conjunto normativo formado pelos citados artigos 283.º, n.º 2, e 308.º, n.º 1, do CPP, limitou-se o reclamante a impugnar a forma como o Tribunal de Primeira Instância ajuizou os indícios recolhidos da prática do crime imputado ao arguido, considerando, no essencial, que a lei apenas exige, para o efeito de sujeição do arguido a julgamento, a existência de indícios suficientes da prática, por este, do crime que lhe é imputado, não valendo, nessa fase processual prévia (instrução), atenta a natureza indiciária da prova exigida, o princípio do in dubio pro reo, que apenas opera em fase de julgamento em face do juízo de certeza de que depende a condenação do arguido (cf., em particular, conclusões X a XII da motivação do recurso de fls. 127).
Mas a esse propósito não enunciou claramente, em termos substancialmente equivalentes aos usados no requerimento de interposição do recurso, qual o preciso critério normativo que, cabendo ainda no balizamento interpretativo que o artigo 9.º do Código Civil consente, violava a Constituição, sendo certo que, como a jurisprudência constitucional tem salientado, apenas perante a delimitação positiva da interpretação alegadamente desconforme com a Lei Fundamental está o Tribunal recorrido obrigado a conhecer da questão de inconstitucionalidade que lhe respeita, não valendo como tal a mera defesa de uma dada interpretação da lei e a imputação de inconstitucionalidade à que lhe é contrária, sem clara e rigorosa definição substantiva do específico objeto normativo de uma tal censura constitucional.
Por outro lado, tendo o reclamante consubstanciado em moldes minimamente aceitáveis o entendimento do artigo 120.º, n.º 1, alínea d), do CPP, que ao Tribunal da Relação estava vedado aplicar, por inconstitucional (cf. conclusão II da motivação do recurso), não desenvolveu um mínimo de argumentação que suportasse tal conclusão, limitando-se, ao invés, a indicar um extenso elenco de preceitos constitucionais com diferentes áreas de intervenção tutelar, tal como, aliás, veio a fazer em relação àqueloutra questão de inconstitucionalidade que difusamente enunciou nas conclusões X a XII da motivação do recurso.
É, pois, de concluir que o reclamante, tal como sustentado pelo Tribunal recorrido, não observou o ónus de prévia suscitação de tais questões de inconstitucionalidade em moldes que permitissem a sua fundada e direcionada apreciação, pelo que não pode agora pretender que o Tribunal Constitucional, descaracterizando-se como instância de recurso, as aprecie ex novo.
3. Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 9 de janeiro de 2013. – Carlos Fernandes Cadilha – Maria José Rangel de Mesquita – Maria Lúcia Amaral.