Imprimir acórdão
Processo n.º 201/04
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. foi condenado, por acórdão de 18 de Julho de
2000, como autor de 3 crimes continuados de abuso sexual de crianças, previstos
e punidos pelos artigos 172.º, n.º 1, 30.º, n.º 2, e 79.º do Código Penal, nas
penas de 1 ano e 9 meses de prisão por cada um, e de um crime de abuso sexual de
crianças, previsto e punido pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, na pena
de 1 ano e 6 meses de prisão, e, em cúmulo, na pena única de 3 anos de prisão,
suspensa por 3 anos. Na sequência de recurso criminal apenas por ele interposto
para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em que pedia a anulação do julgamento
(“por violação dos princípios da continuidade da audiência e da defesa do
arguido”) e, subsidiariamente, a sua absolvição das indemnizações em que foi
condenado (ou a redução dos respectivos montantes), foi, por acórdão de 5 de
Abril de 2001 do STJ, anulada a sentença, “por não ter apreciado questões que
devia ter conhecido: (in)capacidade judiciária civil das demandantes e
(ir)regularidade das queixas criminais”, e, bem assim, a audiência de produção
de prova que a antecedeu, “por não repetição da prova volvida ineficaz por
excessiva descontinuidade da audiência”.
Na sequência da anulação assim decretada e do
novo julgamento realizado, foi, por acórdão de 3 de Abril de 2002 do Tribunal
Colectivo do Círculo Judicial de Loulé, o arguido condenado, pela prática de
três crimes de abuso sexual de menor na forma continuada, previstos e punidos
pelos artigos 172.º, n.º 1, 30.º e 79.º do Código Penal, nas penas de 3 anos de
prisão, 1 ano e seis meses de prisão e 1 ano e seis meses de prisão, e, em
cúmulo jurídico, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, tendo‑lhe sido
declarado perdoado um ano da pena de prisão nos termos do artigo 1.º, n.º 1, da
Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, ficando tal pena reduzida a 3 anos e 6 meses de
prisão; e tendo sido absolvido do último crime por que fora condenado no
anterior acórdão.
Do novo acórdão condenatório interpôs o arguido
recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo na respectiva motivação, além
de outra questão (ilegitimidade do Ministério Público e prescrição dos
procedimentos criminais por as queixas apenas terem sido apresentadas, no prazo
legal, pelas mães das vítimas, desacompanhadas dos pais destas), suscitado a
questão da violação da proibição da reformatio in pejus, em termos assim
sintetizados nas correspondentes conclusões:
“10.ª – Tendo somente o arguido recorrido de decisão que o
condenou e se na sequência desse recurso a audiência de prova vier a ser
anulada, na nova audiência a que se proceda o arguido não poderá ser condenado
em pena mais grave do que aquela que anteriormente lhe havia sido aplicada, sob
pena de violação dos direitos e garantias fundamentais do arguido, consagrados
no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República e artigo 61.º, n.º 1, alínea
h), do Código de Processo Penal, e ofensa do princípio da reformatio in pejus.
11.ª – O princípio da reformatio in pejus constitui uma
excepção ao regime dos efeitos das nulidades; isto é, em caso algum a sua
declaração poderá conduzir a um agravamento da pena que haja sido aplicada ao
arguido em julgamento anterior anulado.
12.ª – A não se entender que não são procedentes a invocada
ilegitimidade do Ministério Público e consequente prescrição do procedimento
criminal e a invocada inconstitucionalidade por violação dos direitos e
garantias do arguido e ofensa do princípio da reformatio in pejus, é
entendimento do arguido que a pena que ora lhe foi aplicada é exagerada, uma vez
que nesta 2.ª audiência de produção de prova provaram‑se menos factos e menos
crimes do que naquela que foi anulada, sendo certo que nesta o arguido havia
sido condenado em três anos de prisão suspensa na sua execução por igual
período, pelo que, a haver punição do arguido, a pena deve manter‑se naqueles
limites.
13.ª – O douto acórdão recorrido violou o disposto nos artigos
32.º, n.º 1, da Constituição da República, 178.º, n.ºs 1 e 2, e 113.º, n.ºs 3, 5
e 6, do Código Penal e 49.º, n.º 1, 61.º, n.º 1, alínea h), e 409.º, n.º 1, do
CPP.
14.ª – (…) O tribunal recorrido interpretou ainda o disposto
nos artigos 32.º, n.º 1, da Constituição da República e 61.º, n.º 1, alínea h),
e 409.º, n.º 1, do CPP no sentido de que tais disposições não serão violadas
quando em novo julgamento na sequência de anterior anulado, o arguido é punido
em pena mais grave do que no primeiro, quando, na verdade, a proceder‑se deste
modo estar‑se‑á a violar o disposto nos artigos 32.º, n.º 1, da Constituição da
República e 61.º, n.º 1, alínea h), do CPP.”
Por acórdão do STJ, de 9 de Abril de 2003, foi
negado provimento ao recurso, tendo, quanto à questão da violação da proibição
da reformatio in pejus, sido consignado o seguinte:
“E tendo‑se na devida atenção que somente o arguido interpôs
recurso do 1.º acórdão, como aliás ocorreu também em relação a este último, que
agora se aprecia, não deixa de apresentar‑se como de todo em todo
significativamente relevante interrogarmo‑nos sobre se, face ao disposto no
artigo 409.º, n.º 1, do CPP, poderá ele ver a sua situação penalizada e agravada
face à 1.ª decisão, não obstante a anulação do primeiro julgamento e a
realização de um novo julgamento.
Ora é inquestionável, e de todo incontornável, que foi o
próprio arguido quem «quis» e «provocou» a referida anulação, ao impugnar a 1.ª
decisão, e sem dúvida que o fez no seu exclusivo interesse, na expectativa de
poder vir a ser beneficiado com um novo julgamento.
Uma expectativa legítima, refira‑se, mas que não passava disso
mesmo, de uma mera expectativa, porquanto de modo nenhum podia ele ignorar, nem
minimizar, os possíveis contornos e as eventuais sequelas do novo julgamento por
si provocado e peticionado, natural e consequentemente não podendo deixar de
equacionar e de ficcionar como possível, aceitando e admitindo, uma outra
produção de prova, uma outra qualificação dos factos, um outro juízo e uma outra
decisão, punitiva ou absolutória.
Como, aliás, ocorreu no caso em apreço, com a sua absolvição do
crime atinente à menor (…), e uma outra punição no que concerne às demais
ofendidas.
E isto porquanto, no contexto concreto, lógico, natural e mesmo
literal de toda e qualquer anulação, porque indexada a um apagamento e vinculada
a um nada, face à inexistência de um qualquer referencial (condenação,
absolvição, quantum da pena, etc.) que, subsistindo, preexistisse a esse novo
julgamento e o condicionasse, não lhe era legítimo esperar que o tribunal não
fosse livre na nova apreciação da prova e no emitir de um juízo, naturalmente
novo e de modo nenhum predeterminado ou limitado pelo decidido no julgamento
anterior, aliás anulado, sendo que a decisão então proferida efectiva e
realmente desapareceu, inexistindo de todo em todo em si mesma, nos seus
contornos e nos seus efeitos.
Até porque, havendo anulação, nada subsiste do anulado que se
possa projectar no futuro, limitando ou condicionando.
Pelo que, o que se exara, é de todo incontornável que na
situação em análise não vinga nem pode vingar o disposto no artigo 409.º, n.º
1, do CPP, não assistindo pois qualquer razão ao recorrente, sendo ainda de se
acrescentar, sublinhando‑se, que o princípio da proibição da reformatio in
pejus, tal como lógica e naturalmente flúi do próprio preceito, economia do
mesmo e sua expressão literal, e ainda de todo em todo resulta do seu próprio
enquadramento sistemático (na parte dos recursos) e dos termos utilizados no
todo da sua própria compreensão e extensão («… o tribunal superior não pode
modificar ...»), não tem aplicação aquando da realização de um novo julgamento
devido a anulação do anterior em recurso interposto só pelo arguido e no seu
próprio interesse, mormente quando as razões que determinam tal anulação
abarquem a decisão na sua globalidade, e não apenas um qualquer quantum de pena,
ou uma parte limitada ou circunscrita da própria decisão.
Como no caso em apreço, diga‑se, face ao acórdão deste STJ de 5
de Abril de 2001 acima referenciado.
Pelo que, e concluindo, não nos merece qualquer censura ou
reparo o acórdão ora em análise, onde, aliás, não se vislumbra ter existido
violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 1, da CRP, 178.º, n.ºs 1 e 2, 113.º,
n.ºs 3, 5 e 6, do Código Penal e 49.º, n.º 1, 61.º, n.º 1, alínea h), e 409.º,
n.º 1, do CPP, considerando‑se, por outro lado, ajustadas, correctas, legais e
equilibradas as penas parcelares aplicadas ao recorrente no quadro
espácio‑temporal e concreto da factualidade dada como apurada e já fixada, e
relativa à autoria de 3 crimes continuados previstos e punidos pelos artigos
172.º, n.º 1, 30.º e 79.º do Código Penal, nos termos consignados no mesmo
acórdão, bem como a pena única alcançada, que de todo em todo se mantêm.”
Este acórdão tem aposto um voto de vencido (do
Cons. António Henriques Gaspar), quanto à questão ora em causa, do seguinte
teor:
“2. Não acompanho o decidido na parte em que se pronunciou,
rejeitando‑a, sobre a pretensão relativa à aplicação do princípio da proibição
da reformatio in pejus.
Na compreensão que faço sobre este princípio e sobre o seu
âmbito de intervenção, natureza e alcance, tal como acolhido no actual sistema
de processo penal, encontro uma conformação do instituto com um conteúdo
material de garantia, no sentido de maior intensidade e autonomia, assim se
integrando na lógica estruturante do processo penal moderno e sob a inspiração
dos princípios fundamentais do processo penal hoje geralmente aceites (cf.,
sobre a evolução do instituto da proibição da reformatio in pejus no século
passado, sempre no sentido de maior intensidade de garantia, o Parecer da Câmara
Corporativa, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 180, pág. 103 e
seguintes, e Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I volume, 1974, págs.
259 e seguintes.
O princípio da proibição da reformatio in pejus é actualmente
considerado como relevante constituto do processo justo (due process; fair
trial), do processo equitativo, em que se integram também os recursos, e
marcadamente conformado, na compreensão e dimensão, pela estrutura acusatória do
processo (estrutura acusatória que é mesmo constitucionalmente imposta como
garantia fundamental do processo criminal inscrita no artigo 32.º, n.º 5, da
Constituição).
E inteiramente ligado ao direito ao recurso, também com matriz
constitucional como uma das garantias de defesa («O processo criminal assegura
todas as garantias de defesa, incluindo o recurso» – artigo 32.º, n.º 1, da
Constituição, na redacção da revisão de 1997).
Na verdade, o princípio da acusação (subjacente à estrutura
acusatória do processo), que comanda todo o processo, impõe que nos casos em que
a acusação se conforma com uma decisão e o recurso é interposto apenas pelo
arguido (ou no interesse exclusivo deste), fiquem necessariamente limitados os
parâmetros da decisão, estabelecendo‑se com o recurso, em tais casos, uma
vinculação intraprocessual, no sentido em que o poder de decisão está doravante
intraprocessualmente condicionado à não alteração em desfavor do arguido.
A decisão, quando impugnada (unicamente) pelo arguido,
constitui o limite do conhecimento ou da jurisdição do tribunal ad quem, e
também por isso mesmo, para obviar à reformatio indirecta, limite à acusação,
conformação, rectius, à jurisdição do tribunal de reenvio, nos casos de
anulação ou de reenvio.
O recurso estabelece, assim, um limite à actividade
jurisdicional, constituído pelos termos e pela medida da condenação do arguido
(único) recorrente (cf., v. g., José Manuel Damião da Cunha, O Caso Julgado
Parcial, Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de
Estrutura Acusatória, 2002, págs. 240 e seguintes, 436 e 658 e seguintes).
O princípio do processo equitativo (enunciado no artigo 6.º,
n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e no artigo 14.º do Pacto
Internacional sobre os Direito Civis e Políticos, e particularmente densificado
pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) também impõe que
a proibição da reformatio in pejus seja avaliada e confrontada neste âmbito de
compreensão: a lisura, o equilíbrio, a lealdade tanto da acusação como da
defesa, que constituem, ao lado do contraditório, da igualdade de armas e da
imparcialidade do tribunal, momentos de referência da noção de processo
equitativo, impõem que o arguido, no caso de único recorrente e que usa o
recurso como uma das garantias de defesa constitucionalmente reconhecidas, não
possa ser, em nenhuma circunstância, surpreendido no processo com a decorrência
de uma situação desequilibrante; o recurso, inscrito como meio de defesa, não
pode, quando a acusação o não requerer, produzir, sem desconformidade
constitucional, um resultado de gravame (neste sentido interpreto a doutrina
subjacente à decisão do Tribunal Constitucional nos acórdãos n.ºs 499/97 e
498/98).
O princípio valerá, pois nenhuma razão material há para
distinguir, tanto para a reformatio directa como para a indirecta, sendo, por
isso, indiferente que o arguido tenha (ou também tenha) pedido no recurso a
anulação do julgamento ou o reenvio para outro tribunal.
3. A inclusão sistemática na norma do artigo 409.º do CPP no
regime dos recursos significa apenas que é aí o seu lugar de adequada inserção,
porque a questão apenas se suscita no caso de interposição de recurso. Mas não
significa que o princípio apenas constitua um princípio do recurso e não um
princípio do processo (cf. Damião da Cunha, citado, págs. 654‑658).
A interpretação que fez vencimento levou restritivamente ao pé
da letra o artigo 409.º, n.º 1, do CPP, não atendendo aos princípios que
conformam o instituto e necessariamente a interpretação sobre o âmbito da
proibição, acabando por permitir, contra a equidade do processo e a estrutura
acusatória (com o tribunal a substituir‑se, porventura, à omissão ou à plena
conformação da acusação), uma reformatio in pejus indirecta que a modelação
substancial do instituto não permite.
E leva também a uma incoerência sistémica: permitir ao tribunal
do reenvio (ou do novo julgamento) o que não é permitido ao tribunal de
recurso.
4. Esta posição, exclusivamente centrada na interpretação dos
princípios estruturantes do processo penal, e na consequente conformação do
instituto da proibição da reformatio in pejus, não significa, como é manifesto,
qualquer compromisso com a pena aplicada, que nesta interpretação não poderia
ter sido modificada in pejus.”
É contra este acórdão do STJ que vem
interposto, pelo arguido, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), o presente recurso, pretendendo ver
apreciada a questão da inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º, n.º
1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), da norma do artigo 409.º, n.º
1, do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretada no sentido de não
garantir ao arguido que a pena em que foi condenado não será agravada em novo
julgamento a que se proceda por o primeiro ter sido anulado na sequência de
recurso unicamente interposto pelo arguido.
O recorrente apresentou alegações, no termo das
quais formulou as seguintes conclusões:
“1.ª – O estatuído no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da
República Portuguesa de que «O processo penal assegura todas as garantias de
defesa, incluindo o recurso», significa que é o próprio processo que é garantia
de defesa do arguido, pelo que até ao trânsito em julgado tudo é processo.
E sendo assim, quando uma decisão do tribunal superior anula
uma audiência de julgamento, tal decisão não anula todo o processo mas apenas um
seu acto, mantendo‑se, assim, a dimensão fundamentalmente unitária dos direitos
de defesa do arguido.
2.ª – Consubstanciando o princípio da proibição da reformatio
in pejus um direito e uma garantia de defesa do arguido, consagrado
constitucionalmente, então ao arguido cabe exercitar todos esses direitos por
forma livre e isenta de coacções ou temores, em ordem a fazer valer a sua
liberdade posta em jogo por uma acusação do Ministério Público.
3.ª – Por outro lado, sendo um direito de defesa válido para
todo o processo, o princípio da proibição da reformatio in pejus jamais poderá
ser prejudicado pela anulação de um primeiro julgamento.
4.ª – E isto porque a pena anteriormente aplicada ao arguido
(num primeiro julgamento) vincula o tribunal e constitui caso julgado parcial
quanto à pena.
5.ª – Sendo assim, em segundo julgamento a que se proceda por
anulação do primeiro na sequência de recurso somente interposto pelo arguido, o
tribunal não poderá condenar em pena mais grave que aquela que inicialmente lhe
foi aplicada.
6.ª – Ao proceder desta forma, como aconteceu nos presentes
autos, o tribunal ofendeu de forma flagrante os direitos de defesa do arguido,
violando o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa.
7.ª – A interpretação que fez vencimento no acórdão do STJ
recorrido levou estritamente ao pé da letra o artigo 409.º do CPP, não atendendo
aos princípios que conformam o instituto da proibição da reformatio in pejus,
conduzindo a uma incoerência sistémica que é a de permitir ao tribunal de
reenvio (o do novo julgamento) o que não é permitido ao tribunal superior:
agravar pena aplicada ao arguido quando só este recorre.
8.ª – Tendo o Ministério Público se conformado com a pena que
foi aplicada ao arguido no primeiro julgamento (que viria a ser anulado), o
tribunal, ao aplicar ao arguido, em segundo julgamento, uma pena mais grave,
está, também, a violar o princípio da acusação e a estrutura acusatória do
processo penal, consagrada no mesmo artigo 32.º, n.º 5, da CRP.
9.ª – Na verdade, quando seja necessária uma audiência de
reenvio (na sequência de recurso interposto pelo arguido), o que se espera é que
o Ministério Público faça valer os concretos pontos de vista, presentes na
decisão judicial, que lhe mereceram concordância (pois caso contrário teria
recorrido) e, por isso, sustente – enquanto o seu dever de objectividade lho
permitir – aquela concreta decisão (e a pena nela estabelecida), que é o limite
da sua actuação (da acusação em reenvio) e, do mesmo modo, do tribunal (Damião
da Cunha, op. cit., pág. 659).
10.ª – O douto acórdão recorrido violou o disposto no artigo
32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, pelo que tal decisão é materialmente
inconstitucional.”
O representante do Ministério Público no
Tribunal Constitucional contra‑alegou, concluindo:
“1 – O disposto no artigo 409.º, n.º 1, do Código de Processo
Penal impede que, havendo recurso da decisão final apenas interposto pela
defesa, possa o arguido ver a sua situação agravada pelo Tribunal Superior.
2 – Tendo apenas o arguido recorrido de uma decisão final
proferida em primeira instância, sustentando e defendendo a anulação do
julgamento, que viria a ser decretada, não subsiste qualquer vinculação, para o
tribunal do novo julgamento, de não exceder, em caso de condenação, o limite da
sanção que havia sido aplicada no julgamento anulado.
3 – A anulação decretada, por iniciativa exclusiva do
arguido‑recorrente e a seu benefício, torna inexistente para todos os efeitos a
decisão condenatória produzida, incluindo o quantum da pena que lhe havia sido
aplicada.
4 – O âmbito da proibição da reformatio in pejus deve ser
delimitado na conexão entre as garantias de defesa e a realização da justiça,
não tendo havido lugar a qualquer interpretação da norma do n.º 1 do artigo
409.º do Código de Processo Penal que a inconstitucionalize face,
designadamente, ao disposto no artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da Lei Fundamental.
5 – Termos em que não deverá proceder o presente recurso.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. O princípio da proibição da reformatio in
pejus, apesar de não especificamente referido, de forma expressa, no texto da
CRP, encontra óbvio suporte constitucional, como este Tribunal reconheceu no
Acórdão n.º 499/97, ao referir:
“A proibição da reformatio in pejus justifica‑se fundamentalmente pela protecção
das garantias de defesa (cf. parecer da Câmara Corporativa, Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 180, 1968, pp. 103 e seguintes, no qual se discutem
as várias posições doutrinárias sobre o fundamento jurídico da reformatio in
pejus (cf. ainda Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, p. 259;
Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, 1967‑1968, p. 36; e Bettiol,
Instituições de Processo Penal, 1974, pp. 304‑313). Na realidade, a proibição da
reformatio in pejus foi referida no pensamento jurídico a fundamentações de
natureza diversa, desde as que são baseadas na estrutura do processo penal
(princípio do dispositivo para uns, estrutura do acusatório para outros) até às
que assentam em razões valorativas substanciais (iniquidade) ou, até, em razões
político‑criminais (favor rei). A esse tipo de razões, que pretendiam
justificar uma ampla proibição da reformatio, sempre que apenas houvesse
recurso de defesa ou no seu interesse, contrapôs Delitala os valores de justiça
limitativos da proibição da reformatio quando não estivesse apenas em causa
impedir uma modificação dos critérios do já decidido, mas corrigir erros na
aplicação do direito (cf. parecer citado, loc. cit., e ainda Germano Marques da
Silva, Curso de Processo Penal, III, 1994, p. 321).
Mas a conformação da proibição da reformatio in pejus, numa perspectiva
jurídica que pondere globalmente todos os fins do sistema, não deve, na
realidade, considerar apenas uma perspectiva de interesse do arguido, devendo,
por isso, o âmbito da proibição ser delimitado na conexão entre as garantias de
defesa e a realização da justiça.
Não decorre, obviamente, da Constituição uma proibição absoluta da reformatio in
pejus, pois isso seria conflituante com o direito ao recurso da acusação e com a
realização da justiça. Mas tem de ser garantida, num certo grau, a estabilidade
das sentenças judiciais. A sua revogabilidade não pode ser referida a um plano
de justiça absoluta, mas apenas ao plano do recurso e da recorribilidade (cf.
Bettiol, ob. cit., p. 307). O próprio direito ao recurso pressupõe a
verificação de requisitos determinados, os quais justificam uma reapreciação
dos factos provados ou do direito aplicado dentro da matéria recorrida, sendo o
recurso a emanação de um poder não ilimitado de controlo pelos tribunais
superiores das decisões proferidas em 1.ª instância.
Ora, a proibição da reformatio in pejus é reclamada pela plenitude das garantias
de defesa, quer porque a reformatio in pejus poderia surgir inesperadamente ou
de modo insusceptível a ser contraditada pela defesa, quer porque restringiria
gravemente as condições de exercício do direito ao recurso.
São, assim, princípios constitucionais, na sua concretização no sistema
jurídico, que exigem a configuração de uma certa medida de proibição de
reformatio in pejus (...).”
Confrontado, quer no processo em que proferiu o
citado Acórdão n.º 499/97, quer naquele em que emitiu o Acórdão n.º 498/98, com
a questão de saber se a interpretação da norma do artigo 409.º, n.º 1, do CPP
que admite a revogação pelo tribunal de recurso do perdão de pena concedido em
1.ª instância contraria as razões constitucionais para a proibição da reformatio
in pejus, o Tribunal Constitucional, em ambos ao arestos, respondeu
positivamente. Desde logo, entendeu não existir fundamento para subtrair a
aplicação e a revogação de perdões e amnistias, como benefícios não invocáveis
pelo arguido, ao contraditório e à estrutura acusatória do processo penal, como
acontece quando se admite a revogação oficiosa de um perdão aplicado na 1.ª
instância sem que essa aplicação tenha sido impugnada. E, além disso,
considerou, decisivamente, que essa aplicação não devia ser subtraída aos
mecanismos de recurso, e, para o que importava no caso, às limitações dos
poderes do tribunal de recurso, em causa na proibição da reformatio in pejus. Na
verdade, as razões que militam a favor da proibição da reformatio in pejus –
designadamente, a tutela do direito ao recurso – valem, com igual força, quer a
agravação das sanções resulte de um aumento das penas parcelares ou da pena
unitária aplicada, quer decorra da eliminação de uma atenuante ou da revogação
de um perdão, não se vislumbrando qualquer razão para, sob o ponto de vista da
protecção da possibilidade de recurso pelo arguido, tratar diversamente esta
última hipótese de alteração em sentido desfavorável ao arguido (reformatio in
pejus) das sanções constantes da decisão recorrida, admitindo a intervenção
oficiosa do tribunal com o resultado objectivo de agravação das “sanções
constantes da decisão recorrida” (na fórmula do artigo 409.º, n.º 1, do CPP)
apenas por ela ter como fundamento a aplicação ilegal de um perdão de pena pelo
tribunal recorrido – mas já não, por exemplo, a consideração, em violação da
lei, de uma circunstância atenuante por aquele tribunal. Isto, desde que,
obviamente, não exista recurso por parte da acusação ou que esse recurso haja
sido interposto no exclusivo interesse do arguido.
Como se referiu no Acórdão n.º 499/97, e o
Acórdão n.º 498/98 reiterou:
“(…) seria afectada a estrutura acusatória do processo se se
desligasse a revogação da medida de graça do recurso da acusação e se atribuísse
ao tribunal ad quem uma intervenção oficiosa com graves efeitos para a situação
do arguido (cf. Castanheira Neves, ob. cit., p. 36).
Por outro lado, e decisivamente, o ponto de vista segundo o qual a aplicação
das leis de amnistia estaria subtraída à proibição da reformatio in pejus
afecta, claramente, o direito ao recurso, ainda que se admita o exercício do
contraditório por meio diferente da via do recurso.
Com efeito, a possibilidade de uma revogação oficiosa de aplicação de uma
amnistia ou um perdão no âmbito de um recurso accionado pela defesa [ou,
dir‑se‑á, no exclusivo interesse da defesa] condiciona a interposição desse
recurso pelo arguido de modo intolerável, pois torna‑o profundamente arriscado,
afectando, consequentemente, a possibilidade de realização da justiça no caso
(...).
Não sendo concebível, no caso concreto, uma intervenção do tribunal superior sem
que houvesse sido interposto recurso pela defesa [ou pelo Ministério Público no
exclusivo interesse da defesa, que se deve para efeito da reformatio in pejus
equiparar ao recurso interposto pela defesa], a aceitação da revogação oficiosa
da reformatio in pejus perverteria a função de tal recurso. Deste modo, o
direito ao recurso, concebido como garantia de defesa consagrada no n.º 1 do
artigo 32.º da Constituição, torna inviável, por si só, a reformatio in pejus
oficiosa de uma decisão penal que aplicou um perdão. Mesmo que o contraditório
fosse garantido, estaríamos perante uma inconstitucionalidade material por
violação da referida garantia de defesa.”
Concluiu, assim o Tribunal Constitucional, que
a norma do artigo 409.º, n.º 1, do CPP, na interpretação segundo a qual a
proibição da reformatio in pejus aí prevista não abrange a agravação das sanções
constantes da decisão recorrida resultante da revogação do perdão de pena
concedido pela 1.ª instância, é inconstitucional, por violação do princípios da
plenitude das garantias de defesa, da garantia da estrutura acusatória do
processo e do direito ao recurso consagrados no artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP.
Posteriormente, no Acórdão n.º 291/2000, que,
em generalização dos juízos de inconstitucionalidade constantes dos Acórdãos
n.ºs 135/99, 324/99 e 522/99, declarou, com força obrigatória geral, a
inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, da norma do
artigo 440.º, n.º 2, alínea b), do Código de Justiça Militar, na parte em que
afasta a proibição da reformatio in pejus, prevista no n.º 1, quando o promotor
de justiça junto do tribunal superior se pronunciar, no visto inicial do
processo, pela agravação da pena aplicada ao arguido‑recorrente, o Tribunal
Constitucional considerou como parâmetros constitucionais violados quer
especificamente o direito ao recurso, hoje formalmente previsto no n.º 1 do
artigo 32.º da CRP, mas que decorria já da consagração do princípio da plenitude
das garantias de defesa, quer, mais genericamente, estas mesmas garantias de
defesa. Quanto ao primeiro fundamento, reconheceu que “a faculdade de recorrer
das decisões condenatórias é claramente condicionada num sistema em que a opção
do arguido pelo recurso implica um sério risco de prejuízo para a sua situação
jurídico‑penal”; na verdade, “um arguido que sabe que a sua pena pode vir a ser
agravada se interpuser recurso, tenderá a evitar o exercício do direito que lhe
cabe”, o que constitui “razão bastante (…) para que se aceite que a norma
impugnada viola nitidamente o direito ao recurso, ao admitir a reformatio in
pejus perante um recurso interposto apenas pelo arguido”. Mas acrescentou‑se que
“também pelo directo apelo à consagração constitucional destas garantias de
defesa, mesmo sem autonomização do direito ao recurso, se poderia chegar à
mesma conclusão” [citando‑se, neste sentido, os Acórdãos n.ºs 55/85, 61/88,
499/97, 498/88, 135/99, e a posição crítica de Figueiredo Dias (Direito
Processual Penal, Coimbra, 1974, pp. 260‑262) em relação ao artigo 667.º, § 1.º,
n.º 2, do Código de Processo Penal de 1929, na redacção resultante da Lei n.º
2139, de 14 de Março de 1969], fazendo, assim, decorrer a proibição da
reformatio in pejus do n.º 1 do artigo 32.º da CRP – “fonte autónoma de
garantias de defesa” –, uma vez que tais “garantias constitucionalmente
estabelecidas impõem, nesta matéria, uma limitação à efectivação do poder
punitivo do Estado (para o dizer como no Acórdão n.º 324/99)”.
2.2. Recordada a jurisprudência mais relevante
do Tribunal Constitucional sobre os fundamentos constitucionais do princípio da
proibição da reformatio in pejus, que, como se acabou de assinalar, não se
cingem à consideração do direito de recurso, mas se baseiam, mais amplamente, na
plenitude das garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar, cumpre
agora assinalar que a jurisprudência mais recente do STJ tem adoptado
orientação contrária à seguida no acórdão ora recorrido, aderindo antes à
posição sustentada no voto de vencido aposto a este acórdão, acima transcrito.
Nesta linha se inserem os acórdãos de 8 de
Julho de 2003, proc. n.º 2616/03, de 27 de Novembro de 2003, proc. n.º 3393/03,
e de 17 de Fevereiro de 2005, proc. n.º 4324/04 (todos com texto integral
disponível em www.dgsi.pt/jstj), cuja doutrina foi assim sumariada:
“1 – Decorre do princípio da proibição da reformatio in pejus
que, se em recurso só trazido pelo arguido, for ordenada a devolução do
processo, não poderá a instância vir a condenar o recorrente em pena mais grave
do que a infligida anteriormente.
2 – Tal compreensão daquele princípio integra o processo justo, o processo
equitativo, tributário da estrutura acusatória do processo, consagrada
constitucionalmente e do princípio da acusação, que impõe que nos casos em que a
acusação se conforma com uma decisão e o recurso é interposto apenas pelo
arguido, ou no seu interesse exclusivo, fiquem limitados os parâmetros da
decisão e condicionado no processo o poder de decisão à não alteração em
desfavor do arguido.
3 – O recurso estabelece, assim, um limite à actividade jurisdicional,
constituído pelos termos e pela medida da condenação do arguido (único)
recorrente, mesmo se o arguido tenha pedido no recurso a anulação do julgamento
ou o reenvio para outro tribunal, por se postularem as mesmas razões, sendo que
a solução contrária se traduziria em atribuir ao tribunal do reenvio (ou do novo
julgamento ou da devolução) poderes que não estavam cometidos ao tribunal de
recurso.”
No referido acórdão de 8 de Julho de 2003, tal
entendimento foi fundamentado com base nas seguintes considerações:
“Considera‑se que integra hoje o processo justo, o processo
equitativo, marcadamente conformado, na compreensão e dimensão, pela estrutura
acusatória do processo, consagrada constitucionalmente – artigo 32.°, n.º 5 –,
em que se integram também os recursos, igualmente com matriz constitucional como
uma das garantias de defesa – artigo 32.°, n.º 1.
O princípio da acusação, subjacente à estrutura acusatória do
processo, impõe que nos casos em que a acusação se conforma com uma decisão e o
recurso é interposto apenas pelo arguido, ou no seu interesse exclusivo, fiquem
necessariamente limitados os parâmetros da decisão, estabelecendo‑se com o
recurso, em tais casos, uma vinculação intraprocessual, no sentido de que fica
futuramente condicionado intraprocessualmente o poder de decisão à não
alteração em desfavor do arguido.
Nesse caso, a decisão constitui o limite do conhecimento ou da jurisdição do
tribunal ad quem, e também por isso mesmo, para obviar à reformatio indirecta,
limite à acusação, conformação, rectius, à jurisdição do tribunal de reenvio,
nos casos de anulação ou de reenvio.
O recurso estabelece, assim, um limite à actividade jurisdicional, constituído
pelos termos e pela medida da condenação do arguido (único) recorrente (cf., v.
g., José Manuel Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial – Questão da
Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura Acusatória, 2002,
págs. 240 e seguintes, 436 e 658 e seguintes).
Como se escreve no referido voto de vencido [do Cons. Henriques Gaspar no
acórdão ora recorrido], «o princípio do processo equitativo (enunciado no artigo
6.°, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e no artigo 14.º do
Pacto Internacional sobre os Direito Civis e Políticos, e particularmente
densificado pela jurisprudência da Tribunal Europeu dos Direitos do Homem)
também impõe que a proibição da reformatio in pejus seja avaliada e confrontada
neste âmbito de compreensão: a lisura, o equilíbrio, a lealdade tanto da
acusação como da defesa, que constituem, ao lado do contraditório, da igualdade
de armas e da imparcialidade do tribunal, momentos de referência da noção de
processo equitativo, impõem que o arguido, no caso de único recorrente e que
usa o recurso como uma das garantias de defesa constitucionalmente
reconhecidas, não possa ser, em nenhuma circunstância, surpreendido no processo
com a decorrência de uma situação desequilibrante; o recurso, inscrito como meio
de defesa, não pode, quando a acusação o não requerer, produzir, sem
desconformidade constitucional, um resultado de gravame (neste sentido
interpreto a doutrina subjacente à decisão do Tribunal Constitucional nos
Acórdãos n.ºs 499/97 e 498/98).»
A esta compreensão do princípio é indiferente que o arguido tenha (ou também
tenha) pedido no recurso a anulação do julgamento ou o reenvio para outro
tribunal, por se postularem as mesmas razões, sendo que a solução contrária se
traduziria em atribuir ao tribunal do reenvio (ou do novo julgamento) poderes
que não estavam cometidos ao tribunal de recurso.
A circunstância de a norma que contém a proibição da reformatio in pejus se
situar no domínio dos recursos só significa que, como se viu, esse problema só
surge no âmbito dos recursos, o que lhe não retira o carácter de princípio
processual (cf. Damião da Cunha, ob. cit., págs. 654‑658).”
A problemática subjacente a esta orientação
jurisprudencial foi desenvolvida no estudo de Jorge Dias Duarte, “Proibição de
reformatio in pejus, Consequências processuais” (Maia Jurídica – Revista de
Direito, ano I, n.º 2, Julho‑Dezembro de 2003, pp. 205‑221), em que se concluiu
que: “a actual compreensão do processo penal como um processo equitativo, em
que está constitucionalmente consagrada a estrutura acusatória do processo, com
pleno relevo do princípio da acusação, implica o entendimento da proibição de
reformatio não, apenas, como um princípio dos recursos, mas como um princípio de
todo o processo; de tal compreensão resulta nítida a conclusão de que,
interposto recurso apenas pelo arguido (ou pelo Ministério Público no exclusivo
interesse do arguido), tal recurso estabelece um limite à actividade
jurisdicional do tribunal ad quem, que, assim, não poderá alterar a decisão em
desfavor do arguido (repete‑se, único) recorrente; tal limite será plenamente
operante mesmo para os casos em que o arguido tenho suscitado uma questão que
implique a anulação do julgamento ou o reenvio para outro tribunal, que não
poderá(ão) condenar em pena mais grave do que aquele que é posta em causa no
recurso, pois esta é, aliás, a única forma a obviar à possibilidade da
reformatio indirecta, isto é, consiste na única forma de impedir que o tribunal
do novo julgamento ou de reenvio tenho mais poderes que o tribunal de recurso
não tinha”.
2.3. Entende‑se, com efeito, que as razões que
têm estado subjacentes à jurisprudência deste Tribunal Constitucional
relativamente à proibição da reformatio in pejus, referenciada em 2.1., implicam
que, também no presente caso, se emita um juízo de inconstitucionalidade, quer
com base em específica violação do direito de recurso, quer fundada numa mais
abrangente consideração da plenitude das garantias de defesa.
Na verdade, é igualmente inibidora do exercício
do direito de recurso a possibilidade de, embora por via indirecta (na
sequência de anulação do primeiro julgamento), o arguido, em situações em que é
o único recorrente (ou na situação equiparada de o Ministério Público interpor
recurso no exclusivo interesse da defesa), ver, a final, a sua posição agravada
com uma condenação mais pesada do que a inicialmente infligida, apesar de o
Ministério Público se haver conformado com esta.
O entendimento da proibição da reformatio in
pejus não apenas como dirigida ao tribunal de recurso, mas antes como um
princípio geral do processo criminal, encontra a sua base constitucional na
conjugação da plenitude das garantias de defesa, do princípio do acusatório e
das exigências do processo equitativo.
Nem se diga – como o fez o acórdão recorrido –
que não se justificaria esta especial protecção do arguido em casos, como o
presente, em que foi ele próprio que, no recurso interposto da decisão
condenatória, sugeriu a anulação do julgamento, pelo que “foi o próprio arguido
quem «quis» e «provocou» a referida anulação”, e que “de modo nenhum podia ele
ignorar, nem minimizar, os possíveis contornos e as eventuais sequelas do novo
julgamento por si provocado e peticionado, natural e consequentemente não
podendo deixar de equacionar e de ficcionar como possível, aceitando e
admitindo, uma outra produção de prova, uma outra qualificação dos factos, um
outro juízo e uma outra decisão, punitiva ou absolutória”. É que a extensão da
proibição da reformatio in pejus a casos de anulação do julgamento justifica‑se
justamente para possibilitar um exercício do direito de recurso pelo arguido, em
situações em que o Ministério Público se conformou com a primeira condenação,
sem as inibições e os constrangimentos que resultariam do risco de o arguido ver
a sua posição agravada, sendo, para este efeito, indiferente que tal
agravamento resulte directamente da exasperação da condenação operada pelo
tribunal de recurso, quer, indirectamente, da prolação de condenação mais
pesada em novo julgamento determinado pela anulação do primeiro.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação do
artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo
409.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de não
proibir o agravamento da condenação em novo julgamento a que se procedeu por o
primeiro ter sido anulado na sequência de recurso unicamente interposto pelo
arguido; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando‑se a reformulação da decisão recorrida, em conformidade com o
precedente juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 30 de Março de 2007.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos