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Processo n.º 715/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal
Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão sumária, nos termos do n.º 1 do artigo
78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC):
“1. A., melhor identificado nos autos, foi julgado na 6ª Vara Criminal de
Lisboa, tendo sido condenado por acórdão de 20 de Fevereiro de 2004, proferido
nos autos de processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo nº 94/03, pela
prática de: – um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo
300.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal de 1982, actualmente, previsto e
punido pelo artigo 205.°, n.ºs 1 e 4, alínea b), do Código Penal, na pena de
quatro anos e seis meses de prisão; - um crime de burla agravada, previsto e
punido pelos artigos 217.°, n.º 1, e 218.°, n. ° 2, alínea a), do Código Penal,
na pena de cinco anos e seis meses de prisão; - um crime de falsificação de
documento particular, previsto e punido pelo artigo 256.°, n.º 1, alínea b), do
Código Penal, na pena de um ano de prisão; e de – um (único) crime de
falsificação de documentos, referente a três cheques, previsto e punido pelo
artigo 256°, n.ºs 1, alínea a), e 3, com referência ao artigo 30.°, n.º 1, do
Código Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão.
Em cúmulo jurídico destas penas, após realização de um cúmulo intercalar das
penas relativas aos crimes de falsificação de documentos, para aplicação do
perdão de 1 ano de prisão concedido pela Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, foi
condenado na pena única de oito anos de prisão.
Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por
acórdão de 15 de Dezembro de 2005, concedeu provimento parcial ao recurso,
condenando-o pela prática dos mesmos crimes, mas nas seguintes penas parcelares:
- de três anos e seis meses de prisão (para o crime de abuso de confiança); – de
quatro anos de prisão (para o crime de burla agravada); – de nove meses de
prisão (para o crime de falsificação de documento particular simples); e – de um
ano e seis meses de prisão (para o crime de falsificação de documentos
agravado).
Em cúmulo jurídico destas penas, após aplicação do perdão concedido pela Lei n.º
29/99, de 12 de Maio, em relação aos crimes de falsificação de documentos, foi a
pena única fixada em cinco anos de prisão.
2. Ainda inconformado recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça,
pedindo a revogação do acórdão da Relação e o reenvio dos autos para novo
julgamento, suscitando questões de constitucionalidade, com os fundamentos
constantes da respectiva motivação que condensou nas seguintes conclusões [segue
transcrição]:
«1.ª Recorre-se do acórdão proferido pela Relação que não confirmou o acórdão
condenatório proferido pela primeira instância.
2.ª O artigo 400°, n.º 1, alínea f), quando prevê que confirma decisão recorrida
acórdão que condena em pena diversa da proferida pela primeira instância
mediante acórdão que enferma de nulidades e desatende outras nulidades que
haviam sido suscitadas, além de modificar o adquirido quanto à matéria de facto,
e é por isso irrecorrível, é materialmente inconstitucional, por violação do
artigo32°, n.º 1 da CRP [direito ao recurso].
3.ª O aresto recorrido enferma de omissão de pronúncia [artigo 379°, n.º 1,
alínea e) do CPP], ao não ter conhecido a questão concreta que o arguido
suscitara nas conclusões 31.ª e 32.ª, por remissão para os artigos 102° a 107 da
motivação, a qual é relevante para a decisão da causa, o que o faz enfermar de
nulidade.
4.ª O acórdão recorrido enferma, salvo o merecido respeito, de erro de Direito,
por omissão de pronúncia, pois que não conheceu uma questão de
constitucionalidade material que foi submetida a julgamento em recurso e que é
relevante para a boa decisão da causa [a do artigo 127° do CPP em conjugação com
o artigo 163° do CPP], o que implica violação do artigo 379°, n.º 1, alínea c)
do CPP e concomitante nulidade.
5.ª O aresto recorrido, ao ter considerado [página 35] que a valoração dos
documentos aqui em apreço [os de fls. 2471-2476] ser «viável (...)
independentemente da sua leitura ou expressa referência em audiência ao abrigo
do excepcionado no n.º 2 do art.° 355°» [do CPP], enferma de erro de Direito,
pois que o citado artigo 355° exige que a prova documental seja examinada em
audiência, através da sua menção individualizada e expressa, de modo a que possa
ser possibilitada aos sujeitos processuais a oportunidade de sobre ela se
poderem pronunciar.
6.ª O aresto recorrido, ao ter considerado [página 35] que a valoração dos
documentos aqui em apreço [os de fls. 2471-2476] ser «viável (...)
independentemente da sua leitura ou expressa referência em audiência ao abrigo
do excepcionado no n.º 2 do art.° 355°» [do CPP], enferma de erro de Direito,
pois que o citado artigo 355° exige que a prova documental seja examinada em
audiência, através da sua menção individualizada e expressa, de modo a que possa
ser possibilitada aos sujeitos processuais a oportunidade de sobre ela se
poderem pronunciar.
7.ª O aresto em recurso ao pura e simplesmente recusar-se a entrar em tal
questão [página 36], suscitada pelo recorrente, o do cumprimento do artigo 163°,
n.º 2 do CPP, enferma de erro de pronúncia, nos termos do artigo 379°, n.º 1,
alínea c) do CPP
8.ª O aresto recorrido enferma de erro de Direito quando interpreta e aplica o
artigo 163°, n.º 2 do CPP como se ele dispensasse os juízes de fundamentarem
especificadamente a sua divergência face às conclusões do juízo pericial só por
alcançarem conclusão diversa com o recurso a diversos meios de prova.
9.ª [Reitera-se, por cautela que] é materialmente inconstitucional, por violação
do artigo 32°, n.º 1 da CRP o artigo 127° da CRP quando prevê que o princípio da
livre apreciação da prova permite a valoração dos depoimentos do assistente e
das testemunhas em sentido contrário ao declarado pêlos mesmos e posterga o
artigo 163° do CPP, ao infirmar a prova pericial.
10.ª O aresto recorrido, mau grado se lhe reconhecer preocupação de
magnanimidade, enferma ainda de erro de Direito, por violação dos artigos 71°,
n.º 1, 72° e 40° do Código Penal, quando não valorou circunstâncias [dadas como
provadas] que militariam no sentido de uma pena concreta mais benigna, mais
perto do limite mínimo, dados os seguintes factos (i) ausência de antecedentes
por parte do arguido (ii) circunstância de ter a seu cargo filho de tenra idade
(iii) o banco para que trabalhava não haver apresentado queixa nem processo
disciplinar (iv) o arguido haver voluntariamente abandonado as funções que
exercia (v) desempenhar trabalho como professor (vi) ser funcionário respeitado.
(...)»
O Ministério Público respondeu, pugnando pela inadmissibilidade do recurso, com
os seguintes argumentos [segue transcrição das conclusões]:
«1.ª Nos termos dos art°s 400°, n. 1, f) do CPP, não cabe recurso do acórdão da
Relação que confirma a sentença condenatória proferida em lª instância que
condena arguido pela prática de crime com moldura penal abstracta não superior a
8 anos de prisão (a “dupla conforme”).
2.ª Configura situação de dupla conforme (para efeitos do segmento normativo
ínsito na alínea f) do n. 1 do art° 4000 CPP), o acórdão da Relação que mantém a
condenação do arguido por todos os crimes, limitando-se a proceder a uma redução
de cada uma das penas parcelares (in mellius) e, consequentemente, a igual
redução da pena unitária, por força do respectivo cúmulo jurídico.
3.ª Um recurso interposto para o STJ deve especificar as razões de discordância
com o decidido na Relação, não podendo circunscrever-se a renovação da
argumentação já aduzida inicialmente para aquele Tribunal, sem qualquer
novidade, sob pena de equivaler a falta de motivação, conducente à sua rejeição.
4.ª O Acórdão recorrido não enferma de insuficiências (omissão de pronúncia),
nulidades ou irregularidades, pelo que não merece qualquer censura, devendo ser
mantido e confirmado nos seus precisos termos, assim negando-se provimento ao
recurso do arguido.»
O Procurador-Geral Adjunto no Supremo Tribunal de Justiça, acompanhando a
posição expendida pelo Ministério Público junto da Relação, emitiu parecer no
sentido da rejeição do recurso, por inadmissibilidade, tendo sido ouvido o
recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo
Penal, que respondeu sustentando a recorribilidade do acórdão da Relação.
3. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 28 de Junho de 2006, decidiu
rejeitar o recurso com os seguintes fundamentos:
«II. Está em causa a admissibilidade do recurso interposto do acórdão da Relação
de Lisboa com fundamento no disposto no artigo 400.°, n.° 1, alínea f), do
Código de Processo Penal.
Nos termos deste preceito, não é admissível recurso de acórdãos condenatórios
proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão da primeira
instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não
superior a 8 anos, mesmo em caso de concurso de infracções.
O recorrente foi condenado pela prática de um crime de crime de abuso de
confiança punível com prisão de 1 a 8 anos, de um crime de burla agravada,
punível com prisão de 2 a 8 anos, de um crime de falsificação de documento
particular, punível com prisão até 3 anos ou com pena de multa, e de um crime de
falsificação de documentos agravado, punível com prisão de 6 meses a 5 anos ou
com multa de 60 a 600 dias.
A Relação, confirmando a condenação pela prática dos crimes, reduziu as penas
parcelares e únicas.
Não se levantam dúvidas de que se a Relação se limitasse a confirmar nos seus
precisos termos a decisão da a instância, não era admissível recurso para o
Supremo.
O que o recorrente controverte, defendendo a posição contrária na resposta à
suscitação da questão prévia, é a interpretação do referido preceito no sentido
de se considerar que a confirmação da condenação in mellius, não constituindo
uma confirmação tout court da decisão da 1ª instância, conduz à
inadmissibilidade do recurso. A nossa posição sobre tal questão vai no sentido
da inadmissibilidade do recurso.
O que subjaz à consagração da dupla conforme no preceito em causa como
impeditiva do recurso para o Supremo, é a circunstância de, em processos por
crimes puníveis com prisão até 8 anos, se ter alcançado com a decisão da relação
confirmativa da decisão da 1.ª instância um grau de certeza de uma boa decisão
da causa que não justifica o arrastamento do processo por via de um novo
recurso, na busca de outra solução.
Tratando-se de um recurso interposto apenas pelo arguido da decisão condenatória
proferida na 1ª instância, a condenação do recorrente na relação em pena
inferior à aplicada nessa instância significa que, como aconteceria com a
manutenção da mesma pena, se realizou o objectivo do legislador ao estruturar o
referido regime de limitação da possibilidade de um novo recurso.
Com efeito, se está vedado ao recorrente interpor recurso do acórdão da relação
que confirma a decisão da primeira instância em toda a sua extensão, em processo
por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a 8 anos, por maioria
de razão lhe estará vedada essa possibilidade no caso se a relação, mantendo a
condenação pela prática do mesmo crime, reduzir a pena aplicada na 1ª instância.
Seria um manifesto ilogismo admitir a solução contrária.
Assim, é de considerar que a circunstância de ter havido uma redução de penas
não afasta a dupla conforme que o artigo 400.°, n.º 1, alínea f), do Código de
Processo Penal consagra.
Neste sentido se tem pronunciado a uma só voz, segundo cremos, este Supremo
Tribunal — acórdãos de 30-10-2003, proc. n.º 2921/03, de 04‑05‑2005, proc. n.º
555/05, de 19-07-2005, proc. n.º 2643/05, de 21-12- 2005, proc. 3259/05, de
02-02-2006, proc. 2786/05, e de 18-05-2006, entre outros.
E o Tribunal Constitucional já considerou conforme à Constituição a
interpretação da norma em causa «no sentido de que é inadmissível recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça de acórdão condenatório proferido, em recurso pela
relações, que confirmem (mesmo que parcialmente, desde que in mellius) decisão
da 1ª instância, quando o limite máximo da moldura penal dos crimes,
individualmente considerados, por que o arguido foi condenado, não ultrapasse 8
anos de prisão» (ac. n.º 2/2006, de 03-O 1-2006, proc. 954/05).
Argumenta o recorrente na resposta à suscitação da questão da inadmissibilidade
do recurso que está em causa também a existência de questões relacionadas com
nulidades cometidas pela Relação, matéria em que nem sequer houve ainda uma
convergência conforme das duas instâncias. Todavia, a lei não exige coincidência
em toda a linha do tratamento de todas as questões nos arestos em causa, mas
apenas coincidência na decisão propriamente dita
E, face à inadmissibilidade do recurso, poderia o recorrente arguir as nulidades
do acórdão, perante o Tribunal da Relação, nos termos do artigo 668.°, n.º 3, do
Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.° daquele diploma.
Assim, a apreciação de nulidades de acórdão da Relação não impunha a necessidade
de existência de recurso para este Supremo Tribunal.
E não é caso de violação de qualquer preceito constitucional, dado que a
Constituição, no seu artigo 32.°, não garante um terceiro grau de jurisdição. Em
suma, é de considerar que a Relação confirmou uma decisão da 1ª instância,
proferida em processo por crimes puníveis com pena de prisão não superior a 8
anos, numa situação de dupla conforme.
Consequentemente, do acórdão da mesma não cabe recurso para este Supremo
Tribunal.
A decisão que o admitiu não vincula este Tribunal – artigo 414.°, n.º 3, do
Código de Processo Penal.
Por força do disposto no artigo 420.°, n.º 1, segunda parte, do Código de
Processo Penal, o recurso deve ser rejeitado.»
4. É deste aresto que vem interposto pelo arguido o presente recurso para o
Tribunal Constitucional, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da
Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, tendo por objecto a apreciação da
constitucionalidade da norma do “artigo 400°, n.º 1, alínea f) [do Código de
Processo Penal], quando prevê que confirma decisão recorrida acórdão que condena
em pena diversa [ainda que mais benigna] da proferida pela primeira instância
mediante acórdão que enferma de nulidades e desatende outras nulidades que
haviam sido suscitadas, além de modificar o adquirido quanto à matéria de facto,
e é por isso irrecorrível”, que o recorrente entende violar o direito ao recurso
consagrado no artigo 32º nº1 da Constituição.
5. O preceito do Código de Processo Penal do qual o recorrente extrai a norma
impugnada é do seguinte teor:
ARTIGO 400.°
(Decisões que não admitem recurso)
1. Não é admissível recurso:
(…)
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que
confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja
aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de
infracções;
(…)»
Considera o recorrente que o entendimento sufragado no aresto recorrido, no
sentido de que o acórdão da Relação que condena em pena diversa, ainda que mais
benigna do que a imposta na 1ª instância, que enferma de nulidades, desatende
nulidades que haviam sido suscitadas e que modificou o adquirido quanto à
matéria de facto, constitui uma decisão condenatória confirmativa da decisão da
1ª instância para os efeitos da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de
Processo Penal, é inconstitucional por violar o direito ao recurso consagrado no
artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
No caso dos autos o acórdão da Relação condenou o recorrente pela prática dos
mesmos crimes com que aquele foi sentenciado na 1ª instância com alterações
pontuais da matéria de facto que considerou irrelevantes para o enquadramento
jurídico-penal e limitou-se a graduar a medida concreta da pena em termos mais
favoráveis ao arguido, reduzindo as penas parcelares aplicadas a cada um desses
crimes e a pena única, sem alterar a fundamentação essencial da condenação, por
concluir que apenas se impunha efectuar algum ajuste “no que concerne à fixação
do quantum das penas ...”
E, foi neste contexto que o aresto recorrido entendeu aplicável ao caso a norma
em apreço, considerando que a circunstância de ter havido uma redução de penas
não afasta a dupla conforme que o artigo 400º, nº1, alínea f) do Código de
Processo Penal, consagra, não sendo, pois, admissível o recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça.
Deste modo o objecto do recurso deverá ser delimitado à norma da alínea f) do
nº1 do artigo 400º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que
não é recorrível o acórdão da relação (proferido em recurso em processo por
crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos) que,
mantendo a qualificação jurídico-penal dos factos, reduz a medida concreta das
penas parcelares e unitária em que o arguido foi condenado em 1ª instância.
6. Justifica-se que, no caso, se profira decisão sumária, ao abrigo do n.º 1 do
artigo 78.º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, por se considerar a questão a
decidir como simples face à jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a
matéria.
Na verdade, não só é já vasta a jurisprudência constitucional Tribunal sobre a
questão da inadmissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, em
aplicação da alínea f) [bem como da alínea e)] do n.º 1 do artigo 400.º do
Código de Processo Penal, embora noutras dimensões interpretativas que não a
questionada nestes autos (vejam-se, a este propósito, os acórdãos n.ºs 189/2001,
de 3 de Maio, 369/2001, de 19 de Julho, 435/2001, de 11 de Outubro, 451/2003, de
14 de Outubro, 490/2003, de 22 de Outubro, 102/2004, de 11 de Fevereiro,
610/2004, de 19 de Outubro, e 104/2005, de 25 de Fevereiro (disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt), como também, mais recentemente, este Tribunal
se pronunciou sobre a constitucionalidade do artigo 400º, n.º 1, alínea f), do
Código de Processo Pena, numa dimensão normativa idêntica à dos presentes autos,
tendo decidido que este preceito, “interpretado no sentido de que o acórdão
proferido em recurso pelas relações confirma a decisão de 1.ª instância quando
mantém os factos provados e a qualificação jurídica, não obstante reduzir a
medida concreta das penas parcelares e unitária, revogando parcialmente a
decisão de 1.ª instância”, não era inconstitucional, o que sucedeu no acórdão nº
32/2006, de 11 de Janeiro (ainda inédito, mas disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
7. Conforme se escreveu neste aresto:
« … há um ponto que ressalta dessa jurisprudência e que se afigura decisivo para
a resolução da presente questão de constitucionalidade, é que a Constituição não
garante, em processo penal, um terceiro grau de jurisdição, isto é, a
possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, relativamente a
quaisquer questões. Sobre este aspecto, disse o Tribunal no mencionado Acórdão
n.º 189/2001:
“[…]
Embora o direito de recurso conste hoje expressamente do texto constitucional, o
recurso continua a ser uma tradução das garantias de defesa consagradas no n.º 1
do artigo 32º (O processo criminal assegura todas as garantias de defesa,
incluindo o recurso). Daí que o Tribunal Constitucional não só tenha vindo a
considerar como conformes à Constituição determinadas normas processuais penais
que denegam a possibilidade de o arguido recorrer de determinados despachos ou
decisões proferidas na pendência do processo (v.g., quer de despachos
interlocutórios, quer de outras decisões, Acórdãos n.ºs 118/90, 259/88, 353/91,
in Acórdãos do Tribunal Constitucional, n.ºs 15º, pg. 397; 12º, pg. 735 e 19º,
pg. 563, respectivamente, e Acórdão n.º 30/2001, sobre a irrecorribilidade da
decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação
particular quando o Ministério Público acompanhe tal acusação, ainda inédito),
como também tenha já entendido que, mesmo quanto às decisões condenatórias, não
tem que estar necessariamente assegurado um triplo grau de jurisdição, assim se
garantindo a todos os arguidos a possibilidade de apreciação da condenação pelo
STJ (veja-se, neste sentido, o Acórdão n.º 209/90, in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 16º. V., pg. 553).
Uma tal limitação da possibilidade de recorrer tem em vista impedir que a
instância superior da ordem judiciária accionada fique avassalada com questões
de diminuta repercussão e que já foram apreciadas em duas instâncias. Esta
limitação à recorribilidade das decisões penais condenatórias tem, assim, um
fundamento razoável.
[…]
O artigo 400º do CPP foi alterado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, diploma
que veio introduzir modificações no processo penal e deu à alínea f) a redacção
que ainda mantém. De acordo com a proposta de revisão do processo penal (Lei n.º
157/VII, Diário da Assembleia da República, IIª Série-A, n.º 27, de 28 de
Janeiro de 1998), as modificações introduzidas na legislação processual penal
visavam obter melhorias nos objectivos de economia processual, de eficácia e de
garantia, que já informavam a anterior regulamentação.
Assim, e nos termos da exposição de motivos daquela proposta de lei,
introduziram-se modificações destinadas a dar mais consistência e eficácia aos
meios disponíveis, de entre elas se assinalando as de maior relevo para o caso:
pretendeu-se restituir ao STJ a função de tribunal que apenas conhece de
direito, mas com excepções; manteve-se a tramitação unitária dos recursos, mas
sem haver um único modelo de recurso; faz-se um uso discreto do princípio da
«dupla conforme», harmonizando objectivos de economia processual com a
necessidade de limitar a intervenção do STJ a casos de maior gravidade;
retoma-se a ideia da diferenciação orgânica, apenas fundada no princípio de que
os casos de pequena e média gravidade não devem, por norma, chegar ao Supremo
Tribunal de Justiça, etc. (cf. Sobre esta matéria, Maia Gonçalves, Código de
Processo Penal Anotado, 12ª Edição, pg. 754).
[…]
Como já se referiu, mesmo em processo penal, a Constituição não impõe ao
legislador a obrigação de consagrar o direito de recorrer de todo e qualquer
acto do juiz e, mesmo admitindo-se o direito a um duplo grau de jurisdição como
decorrência, no processo penal, da exigência constitucional das garantias de
defesa, tem de aceitar-se que o legislador penal possa fixar um limite acima do
qual não seja admissível um terceiro grau de jurisdição: ponto é que, com tal
limitação se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido.
Ora, no caso dos autos, o conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido
consiste no direito a ver o seu caso examinado em via de recurso, mas não
abrange já o direito a novo reexame de uma questão já reexaminada por uma
instância superior.
Existe, assim, alguma liberdade de conformação do legislador na limitação dos
graus de recurso. No caso, o fundamento da limitação – não ver a instância
superior da ordem judiciária comum sobrecarregada com a apreciação de casos de
pequena ou média gravidade e que já foram apreciados em duas instâncias – é um
fundamento razoável, não arbitrário ou desproporcionado e que corresponde aos
objectivos da última reforma do processo penal.
[…].”
No também já referido Acórdão n.º 451/2003 reitera-se, com particular clareza,
que à questão de saber “[…] quais os limites de conformação que o artigo 32.º
n.º 1 da CRP impõe ao legislador ordinário, em matéria de recurso penal” deve
responder-se “no sentido de não haver vinculação a um triplo grau de jurisdição
e de ser constitucionalmente admissível uma restrição ao recurso se ela não for
desrazoável, arbitrária ou desproporcionada”.
Partindo, portanto, do pressuposto de que o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição,
quando estabelece que “o processo criminal assegura todas as garantias de
defesa, incluindo o recurso”, não consagra a garantia de um triplo grau de
jurisdição em relação a quaisquer decisões penais condenatórias, o que tem de
perguntar-se é se será desrazoável, arbitrário ou desproporcionado não admitir o
recurso para o Supremo nos casos, como o dos autos, em que a Relação mantém os
factos provados e a qualificação jurídica, não obstante reduzir a medida
concreta das penas parcelares e unitária (esta última para sete anos), revogando
parcialmente a decisão de 1.ª instância.
Dito de outro modo: a questão de inconstitucionalidade colocada pelo recorrente
não pode ser resolvida com a mera invocação da garantia de um terceiro grau de
jurisdição, pois que, não podendo essa garantia ser reconhecida em todos os
casos, tal resolução exige necessariamente a ponderação da razoabilidade,
arbitrariedade ou desproporcionalidade da não admissão desse terceiro grau, no
caso concreto.
Ora, realizando tal ponderação, dir-se-á que não é constitucionalmente
censurável que a exclusão do terceiro grau de jurisdição resulte de se
“qualificar como confirmatório da decisão condenatória, proferida em 1ª
instância, o acórdão da Relação que – sem qualquer alteração ou convolação dos
fundamentos essenciais ou substanciais – se limite, em mera «redução
quantitativa», a atenuar a medida concreta da pena aplicada ao arguido,
reduzindo a que lhe havia sido cominada na 1ª instância, por diversa
reponderação do quadro de circunstâncias atenuantes”.
E dir-se-á também que não é desrazoável tratar do mesmo modo os casos em que a
Relação, aplicando pena não superior a oito anos, confirma totalmente a decisão
da 1.ª instância, e os casos em que a Relação, aplicando pena não superior a
oito anos, reduz a pena aplicada pela 1.ª instância.
Como sublinha o Ministério Público nas contra-alegações:
“[…]
Seria, aliás, numa perspectiva teleológica ou funcional, aberrante que o arguido
pudesse aceder ao Supremo para rediscutir, v.g., uma possível atenuação da pena
de 5 anos de prisão que a Relação lhe aplicou, reduzindo a que lhe fora cominada
na 1ª instância – estando-lhe, todavia, vedado tal acesso se a Relação
[certamente por lapso, refere-se «se o Supremo»] se tivesse limitado a manter,
integral e estritamente, a sentença que o havia condenado, por exemplo, na pena
de 7 anos de prisão. Na verdade, tal solução legislativa, a existir, careceria
provavelmente de suporte material adequado, originando uma evidente e
inquestionável disfuncionalidade, traduzida em vedar injustificadamente o
acesso, em via de recurso, ao Supremo Tribunal de Justiça ao arguido que tivesse
sido condenado pelas instâncias em pena mais gravosa – permitindo tal acesso num
caso de «redução quantitativa» de tal pena privativa da liberdade, realizada em
seu benefício na 2ª instância.
[…].”».
Estes fundamentos são, pois, inteiramente aplicáveis ao caso dos autos, em que,
à semelhança da situação decidida no acórdão nº 32/2006, a decisão da Relação
condenou o recorrente pela prática dos mesmos crimes, mas reduzindo as penas
parcelares e a pena única aplicadas.
8. Resta acrescentar que a circunstância de o acórdão da Relação se pronunciar,
pela primeira vez, sobre a questão das nulidades da decisão de 1ª instância e de
se pretender discutir nulidades que se imputam a esse próprio acórdão, que o
recorrente inclui na dimensão normativa que considera violar o n.º 1 do artigo
32.º da Constituição, não impõe a abertura de recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça.
Como se disse no acórdão n.º 390/2004, publicado no Diário da República, II
Série, de 7 de Julho de 2004:
“ […. ] não decorre forçosamente da garantia constitucional de um duplo grau de
jurisdição que haja de ser sempre admissível o recurso para o tribunal superior
nos casos em que o tribunal de recurso se pronuncie, pela primeira vez, sobre
questões que influam na decisão da causa (ressalvando-se o recurso de
constitucionalidade para o órgão jurisdicional específico não enquadrado na
hierarquia dos tribunais) ou nos de, ao proferir a decisão, incorrer na violação
de lei processual ou procedimental que seja sancionada com o estigma da
nulidade.
Nada impõe que se leve a autonomização da questão da nulidade da decisão em
relação à questão de fundo tão longe que seja constitucionalmente exigível a
existência de um 2º grau de jurisdição especificamente para esta questão,
considerando o regime de arguição e conhecimento das nulidades em processo penal
por via de recurso, a possibilidade de arguir as nulidades perante o órgão que
proferiu a decisão, quando aquele recurso não existir, e, como no presente caso,
a existência de duas decisões concordantes em sentido condenatório (o Tribunal
da Relação confirmou a decisão da 1ª instância nesse sentido).
É claro que o legislador poderia, na sua discricionariedade legislativa, admitir
esse recurso, mesmo nas hipóteses em que o fundamento deste resida na arguição
de nulidades processuais, assim ampliando o âmbito material do direito de
recurso, mas a sua inadmissibilidade não será constitucionalmente intolerável.
Nesta perspectiva, poder-se-á dizer que, em caso de recurso relativo a decisão
condenatória, seja com fundamento em nulidades processuais, seja com fundamento
em erros de julgamento atinentes ao fundo da causa, o seu objecto apelante de um
terceiro grau de jurisdição será sempre o acórdão condenatório em si próprio. É
certo que, quando o fundamento do recurso se consubstancie em uma causa de
nulidade do acórdão condenatório, não poderá afirmar-se ter sido exercida a
garantia do duplo grau de jurisdição por uma forma definitiva. Mas uma tal
situação apenas demanda, numa perspectiva de garantia constitucional do acesso
aos tribunais que o recorrente convoca (art.º 20º da CRP), que esse mesmo grau
de jurisdição se possa (deva) pronunciar de modo formalmente válido sobre o
objecto do recurso. Nesta perspectiva ganha todo o sentido a possibilidade de o
tribunal recorrido poder suprir as nulidades e de o tribunal ad quem apenas
conhecer delas quando, sendo admissível o recurso, aquele o não tenha feito ou
não as haja atendido (art.º 379º, n.º 2, e 414º, n.º 4, do CPP; cf., no domínio
do processo civil, o art.º 668º, n.º 3 do Código de Processo Civil). Deste modo,
a apreciação de nulidades de acórdão condenatório não postula a necessidade de
existência de mais um grau de recurso. A reclamação perante o órgão
jurisdicional que exerce o segundo grau de jurisdição configura-se, assim, como
um instrumento jurídico adequado de garantir o acesso aos tribunais, na sua
dimensão de direito a obter uma decisão formalmente válida, que é a dimensão que
o recorrente aqui questiona.
Aliás, admitindo-se a constitucionalidade das normas que prevêem a existência
apenas de um duplo grau de jurisdição, mesmo quando está em causa a “bondade” do
julgamento efectuado, maiores razões existem para não se terem por desconformes
com a Lei Fundamental aquelas disposições que limitam o recurso ao mesmo segundo
grau de jurisdição em caso de existência de nulidades da decisão, que advêm
essencialmente da violação de regras processuais ou procedimentais, quando está
aí garantido o direito de reclamação para apreciação dessas nulidades para o
órgão jurisdicional que exerceu o último grau de jurisdição.
E para a conclusão que se assume não vale invocar como pretensos lugares
paralelos as hipóteses em que a lei processual admite que o fundamento de
nulidade possa constituir o único fundamento do recurso, como será seguramente o
caso contemplado no n.º 2 do art.º 310º do CPP (despacho que indefere a arguição
de nulidade traduzida em a decisão instrutória pronunciar o arguido por factos
que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério
Público ou do assistente ou no requerimento da acusação), e poderá também
acontecer em recursos interpostos de decisão proferida em 1ª instância, conforme
decorre do art.º 379º do CPP.
Em qualquer dessas situações a opção legislativa nada tem que ver com o
reconhecimento, no caso, de uma garantia de um duplo grau de jurisdição
relativamente ao fundamento de recurso traduzido na alegação de nulidades. Na
primeira situação, o que se verifica é apenas a admissibilidade de um duplo grau
de jurisdição relativamente a um despacho cujo conteúdo não deixa de coenvolver
uma restrição ou limitação aos direitos fundamentais do arguido, traduzido na
pronúncia por factos que constituem uma alteração substancial em relação aos
imputados na acusação, para além de uma ofensa ao direito de defesa. Na segunda
hipótese, a alegação da nulidade como fundamento eventualmente único do recurso
é feita dentro da admissibilidade geral do segundo grau de jurisdição sobre a
causa.”
9. Em face do exposto, ao abrigo n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei nº 28/82, de 15
de Novembro, decide-se julgar improcedente o recurso.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 unidades de
conta.”
2. O recorrente reclamou desta decisão, ao abrigo do n.º 3 do
artigo 7.º-A da LTC, em termos que as conclusões dessa reclamação sintetizam do
seguinte modo:
1.ª O artigo 78°-A, números 1, 3 e 4 da Lei do TC é materialmente
inconstitucional quando prevê que o exame de legalidade da decisão sumária seja
efectuado por um colectivo de juízes que integre o juiz autor da decisão em
exame, por violação dos artigos 292°, n.° 2; 203°, 204°, 32°, n.° 1; 27°, n.° 1
e 20°, n.° 1 da CRP.
2.ª A argumentação da decisão sumária deve, salvo o merecido respeito,
improceder, improcede, pois (i) Se está em causa um «terceiro grau de
jurisdição» é porque a lei processual penal [através do citado artigo 400°, n.°
1, alínea f) do CPP] o permite [em nome das garantias de defesa e da segurança
jurídica] em caso de não haver dupla conforme nos anteriores julgamentos (ii)
argumentar com a ausência de garantia a esse exame pelo STJ no caso de
inexistência de dupla conforme significaria pura e simplesmente admitir que o
recurso seria um favor concedido aos recorrentes, uma graça excepcional que o
sistema jurídico lhes facultaria quando, na verdade, mais não se trata do que a
tradução de uma regra geral com assento constitucional, o da articulação do
direito à defesa [artigo 32°, n.° 1 da CRP] com a necessidade de segurança
[artigo 27°, n.° 1 da CRP], no quadro do direito de acesso aos tribunais [artigo
20°, n.° 1 da CRP] e (iii) não se invoque que toda a argumentação fica
descaracterizada ante o facto de a ausência de dupla conforme ficar prejudicada
ante o facto de a segunda decisão, emitida pela Relação, significar uma
atenuação da pena concreta, pois que, como se disse já nestes autos, tal sugere
precisamente a ausência de conformidade das instâncias em relação à própria
valoração da culpa e medida da pena, tudo questões de Direito que é lícito ao
STJ sindicar, porventura em medida mais benigna.
Nestes termos (i) deve ser declarada a inconstitucionalidade material do artigo
78°-A, números 1, 3 e 4 da Lei do TC e em consequência julgada a reclamação da
decisão sumária em conferência por colectivo de juízes no qual não tenha
intervenção o juiz que prolatou tal decisão (ii) caso assim se não entenda, deve
ser atendida a reclamação e revogada a mesma decisão, fazendo o recurso seguir
os seus termos até final.”
O Ministério Público respondeu a esta reclamação nos termos
seguintes:
“1- A questão de constitucionalidade formulada pelo recorrente é claramente
improcedente já que a participação do relator na conferência que dirimiu a
reclamação deduzida contra a decisão sumária não afronta os princípios
constitucionais elencados pelo recorrente.
2 - Na verdade, no nosso ordenamento adjectivo sempre se admitiu que o juiz que
participou em certa decisão possa integrar o órgão que irá reapreciar as
questões suscitadas – nomeadamente, que constituam objecto de incidentes
pós-decisórios, sem que tal procedimento traduza uma reapreciação, em via de
recurso, da matéria que constitui objecto do processo.
3 - E sendo evidente que a maioria de tal órgão jurisdicional colegial é que irá
dirimir as questões suscitadas pela parte.
4 - Por outro lado – e no que toca ao mérito da reclamação deduzida – as
considerações do reclamante em nada abalam os fundamentos da decisão reclamada,
assente em firme e reiterada jurisprudência acerca do âmbito,
constitucionalmente imposto, do acesso, em via de recurso, ao Supremo Tribunal
de Justiça.
3. Cumpre começar por apreciar a “questão prévia” colocada pelo
recorrente da inconstitucionalidade do regime constante dos n.ºs 1, 3 e 4 do
artigo 78.º-A da LTC que, a proceder, levaria a que no julgamento da reclamação
(da substância da reclamação) não pudesse intervir o juiz que proferiu a decisão
reclamada. Apesar da referência ao regime daqueles três números do artigo
78.º-A, a norma que o recorrente põe verdadeiramente em causa é, apenas, a do
n.º 3 desse artigo 78.º-A na medida em que estabelece que o juiz que proferiu a
decisão sumária integre o colégio que vai apreciar a reclamação.
A possibilidade de o relator proferir a decisão singular a que
se refere o artigo 78.º-A da LTC, pondo liminarmente termo ao recurso, quer por
falta dos pressupostos ou requisitos de que depende o seu prosseguimento, quer
por se tratar de questão simples ou manifestamente infundada, constitui um
importante instrumento de agilização dos recursos de constitucionalidade. Da
decisão do relator cabe reclamação para a conferência, constituída pelo
presidente ou pelo vice-presidente, pelo relator e por outro juiz da respectiva
secção (n.º 3 do artigo 78.º-A). Se não houver unanimidade dos três juízes
intervenientes quanto à decisão da reclamação, a decisão cabe ao pleno da secção
(composta pelo relator e mais quatro juízes (artigos 78.º-A, n.º 4 e 41.º da
LTC).
Está, assim, assegurada, seja pela unanimidade em conferência,
seja pela maioria de vencimento se tiverem de intervir todos os juízes da
secção, a possibilidade de o interessado obter a mesma expressão concordante de
votos no sentido da decisão que seria necessária para julgar o recurso se não
existisse este expediente de decisão singular pelo relator. Neste aspecto, as
expectativas das partes, designadamente quanto a ver o recurso colegialmente
examinado pelo verdadeiro titular do poder jurisdicional estão perfeitamente
tuteladas.
Com efeito, a reclamação para a conferência é o meio normal de
reacção contra os despachos do relator, sendo corolário da ideia de que o
verdadeiro titular do poder jurisdicional nos tribunais superiores é o órgão
colegial (cfr. ARMINDO RIBEIRO MENDES, Recursos em Processo Civil, pág. 135). E,
entre nós, o juiz designado como relator é sempre membro da formação de
julgamento e intervém no acórdão em que a conferência aprecia a reclamação de
decisões por si proferidas, quer a decisão singular que é objecto desse pedido
de reapreciação resulte dos tradicionais poderes de preparar o processo para
julgamento, quer consista no exercício dos mais alargados poderes que, após a
reforma de 1995-1996 do Código de Processo Civil, se lhe reconhecem de decidir
quaisquer questões prévias ou incidentais, bem como o próprio julgamento do
recurso quando este seja manifestamente infundado ou verse sobre questões
simples ou repetitivas. Neste aspecto, a norma do n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC
nada tem de anómalo ou de novo no panorama do direito processual,
designadamente, de configuração dos meios de impugnação e de organização e
funcionamento dos órgãos judiciais de natureza colegial.
Esta intervenção do relator não contende com nenhuma das normas
e princípios constitucionais que o recorrente invoca.
Designadamente, é manifestamente improcedente a afirmação de
que o regime jurídico em causa atenta contra a missão fundamental assinalada aos
tribunais pelo n.º 2 do artigo 202.º da Constituição de “assegurar a defesa dos
direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”. Chamados a
reexaminar a questão que foi objecto de decisão do relator, os juízes que
intervêm na conferência, decidem segundo a lei e a sua consciência, sem
obediência a ordens ou instruções e sem outro objectivo ou finalidade senão a
aplicação do direito ao caso concreto.
Por outro lado, não vem a propósito falar de violação do artigo
204.º da Constituição, que é norma atributiva de poder de apreciação da
constitucionalidade nos feitos submetidos a julgamento, não parâmetro de
aferição de legitimidade constitucional das soluções normativas postas em
confronto com a Constituição no exercício desse poder (salvo, obviamente, se se
tratar de norma que disponha sobre os poderes de apreciação da
inconstitucionalidade nos feitos submetidos a julgamento). E não se vislumbra a
que venha a referência ao n.º 2 do artigo 292.º da Constituição, suspeitando-se
que se trate de lapso, para o qual não se encontram, porém, no contexto do
requerimento elementos de superação.
Também é inadequada a invocação do n.º 1 do artigo 27.º da
Constituição a propósito do que agora se discute, porque a norma em causa não
contende com o direito à liberdade ou segurança. E também não restringe ou de
qualquer modo afecta o direito de acesso aos tribunais (n.º 1 do artigo 20.º da
CRP), nem colide com a imposição constitucional de que o processo criminal
assegure todas as garantias defesa, incluindo o recurso. Está em causa uma norma
relativa ao processo de recurso de constitucionalidade, não matéria respeitante
à “constituição penal” ou às garantias constitucionais do processo criminal.
É incontestável que a imparcialidade dos juízes é um princípio
constitucional, quer se conceba como uma dimensão da independência dos tribunais
(artigo 203.º da CRP), quer como elemento da garantia do “processo equitativo”
(n.º 4 do artigo 20.º da CRP). Importa que o juiz que julga o faça com isenção e
imparcialidade e, bem assim, que o seu julgamento, ou o julgamento para que
contribui, surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial.
E também é certo que a intervenção decisória sucessiva do mesmo juiz integra o
universo das hipóteses abstractamente susceptíveis de lesar esse princípio e,
por isso, de configurar um impedimento objectivo.
Não é porém qualquer intervenção decisória anterior que pode objectivamente pôr
em crise a confiança numa decisão imparcial. Como se salientou no acórdão n.º
324/2006, www.tribunalconstitucional.pt.:
“Em diversos casos a lei de processo civil prevê que se peça essa nova
ponderação ao juiz que decidiu. Assim sucede, por exemplo, quando se admitem
reclamações, em geral; ou, em particular, quando se arguem nulidades perante o
tribunal que julgou, quando se requer a reforma da decisão, ou quando se
interpõe recurso de agravo. Em todos estes casos a lei quer essa reponderação,
considerada vantajosa por comparação com a hipótese de ser um juiz alheio ao
processo a tomar a nova decisão.
Por um lado, pretende-se que seja o mesmo juiz porque é ele que conhece
globalmente o processo, o que beneficia, quer a adequação da decisão sobre a
questão parcelar, quer a celeridade processual; por outro lado, não se considera
que o juiz possa ser determinado na sua nova decisão por pré-juízos formados
quando proferiu a primeira, já que não há mudança de qualidade na intervenção
que possa fazer duvidar da independência na segunda intervenção.
Não há manifestamente razão para lançar sobre os juízes a dúvida sobre a sua
imparcialidade quando são chamados a reponderar uma decisão”.
A argumentação do recorrente parece assentar no equívoco de identificar a
reclamação dos despachos do relator para a conferência com um recurso, hipótese
que a alínea e) do n.º 1 do artigo 122.º do Código de Processo Civil inclui na
lista dos impedimentos porque, aí sim, a solução diversa contrariaria,
manifestamente, a razão de ser da admissibilidade do recurso.
Esta razão não está presente relativamente ao meio processual que agora está em
causa. A reclamação das decisões do relator para a conferência, anda que numa
classificação que use como critério a identidade orgânica do decisor se
apresente como meio impugnatório (estruturalmente) híbrido, é funcionalmente bem
diferente do recurso, sendo um verdadeiro pedido de reponderação, a que se
procede na mesma instância e com a mesma latitude de apreciação da decisão
reclamada. Como começou por referir-se, a reclamação para a conferência
destina-se a obter que a decisão final sobre a questão provenha do verdadeiro
titular do poder jurisdicional nos tribunais superiores. Que essa decisão se
atinja pela via de reapreciação de uma decisão anterior, em vez de ser produto
de uma deliberação primária do colégio judicante na base de um projecto de
acórdão (ou memorando) apresentado pelo relator, em nada se apresenta como
susceptível de colidir com a exigência de que a decisão da questão submetida a
apreciação resulte da consideração de todos os aspectos processualmente
relevantes e apenas desses. Não há objectivamente razão para considerar que o
relator não procede, na preparação dessa decisão e na subsequente deliberação,
com a mesma disposição de aplicar o direito ao caso concreto que teria se
estivesse a exercer a sua competência de apresentar um projecto para decisão
primária pelo órgão colegial. Nem que os demais juízes que intervêm deixem de
possuir a disposição ou capacidade necessárias para proceder a um exame autónomo
das razões aduzidas pelo reclamante. Como todos os pedidos de reponderação, aí
onde as disposições processuais a admitam (e note-se a tendência para o
alargamento dessa via de realização da justiça – n.º 2, do artigo 669.º do
CPC), a reclamação para a conferência repousa no pressuposto, indispensável ao
funcionamento dos tribunais num Estado de Direito em que o estatuto dos juízes
está dotado das necessárias garantias de independência e organização, de que o
juiz possui em permanência a humildade e fortaleza de ânimo necessárias para
examinar novos argumentos ou argumentos apresentados de modo mais convincente.
Pode até dizer-se que, por esta via, o interessado sai beneficiado porque dispõe
de uma oportunidade mais de convencer a formação de julgamento das suas razões.
Aliás, no caso é suficiente que as razões do reclamante convençam um dos juízes
que integram a conferência para intervir o pleno da secção.
Tanto basta, por não se considerar infringida nenhuma das
normas constitucionais indicadas pelo reclamante, para julgar improcedente a
questão de constitucionalidade suscitada, não recusando aplicação às normas dos
n.ºs 1, 3 e 4 do artigo 78.º-A da LTC (cfr., no mesmo sentido, acórdãos n.º
486/2006 e n.º 616/2006).
4. Quanto ao fundo, o reclamante alega, em síntese, que se a
lei permite um terceiro grau de jurisdição em caso de não haver 'dupla conforme'
é porque entendeu que, embora com limitações cognitivas, a incerteza e
insegurança jurídicas decorrente de uma ausência de uniformidade valorativa das
instâncias exigiria um novo exame pelo Supremo Tribunal de Justiça. Seria isso
imposto pela articulação do direito à defesa (artigo 32.º, n.º 1, da CRP), com a
necessidade de segurança (artigo 27.º, n.º 1, da CRP), no quadro do direito de
acesso aos tribunais (artigo 20.º, n.º 1 da CRP).
Esta argumentação é improcedente.
Salientando que não lhe cabe a apreciação do acerto da decisão
no plano da mera interpretação da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código
de Processo Penal, o Tribunal lembra que, em conformidade com a jurisprudência
posta em evidência na decisão reclamada, toda no sentido de que o artigo 32.º,
n.º 1, da Constituição, quando estabelece que “o processo criminal assegura
todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”, não consagra a garantia de
um triplo grau de jurisdição em relação a quaisquer decisões penais
condenatórias, o que tem de perguntar-se é se será desrazoável, arbitrário ou
desproporcionado não admitir o recurso para o Supremo nos casos, como o dos
autos, em que a Relação mantém os factos provados e a qualificação jurídica, não
obstante reduzir a medida concreta das penas parcelares e unitária (esta última
para sete anos), revogando parcialmente a decisão de 1.ª instância.
Ora a menor certeza na aplicação do direito ao caso que possa imputar-se à
inexistência de uma rígida 'dupla conforme' nas instâncias não tem
constitucionalmente que ser superada pelo acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.
Não podendo essa garantia ser reconhecida em todos os casos, tal resolução exige
necessariamente a ponderação da razoabilidade, arbitrariedade ou
desproporcionalidade da não admissão desse terceiro grau, na hipótese normativa
considerada. E, repete-se, não é constitucionalmente censurável que a exclusão
do terceiro grau de jurisdição resulte de se “qualificar como confirmatório da
decisão condenatória, proferida em 1ª instância, o acórdão da Relação que – sem
qualquer alteração ou convolação dos fundamentos essenciais ou substanciais – se
limite, em mera «redução quantitativa», a atenuar a medida concreta da pena
aplicada ao arguido, reduzindo a que lhe havia sido cominada na 1ª instância,
por diversa reponderação do quadro de circunstâncias atenuantes. Não é
desrazoável, quer reservar a possibilidade de recurso para Supremo para os casos
mais graves em função da medida da pena quer, num sistema assim concebido,
tratar do mesmo modo os casos em que a Relação, aplicando pena não superior a
oito anos, confirma totalmente a decisão da 1.ª instância e os casos em que a
Relação, aplicando pena não superior a oito anos, reduz a pena aplicada pela 1.ª
instância.
Improcede, pois, a reclamação, confirmando-se a decisão
reclamada que corresponde a jurisprudência firme e reiterada acerca do recurso
para o Supremo Tribunal de Justiça em terceiro grau de jurisdição em matéria
penal.
5. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o
reclamante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco)
unidades de conta.
Lisboa, 17 de Janeiro de 2007
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício