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Processo n.º 540/05
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. interpôs recurso de revista do Acórdão da Relação de Guimarães que
confirmou a sentença proferida pelo Juiz do Círculo Judicial de Viana do
Castelo, na qual os réus, HERANÇA DE B., representada pela sua testamenteira C.,
também demandada a título pessoal, D., E., F. e mulher G., foram absolvidos dos
pedidos formulados pela autora (ora recorrente), pedidos estes que consistiam na
declaração de nulidade dos negócios pressupostos dos registos a que correspondem
as Aps. 14/160687 e 26/160996, relativas ao prédio descrito sob o nº
00281/160687 na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo, com o
cancelamento dos referidos registos, bem como na declaração de nulidade dos
negócios pressupostos dos registos a que correspondem as apresentações 21/041287
e 22/041287 do registo comercial, relativas à sociedade H., matriculada sob o
n.º 682 na Conservatória do Registo Comercial de Viana do Castelo, com o
cancelamento dos referidos registos, bem como na declaração de nulidade dos
negócios pressupostos dos registos a que correspondem as apresentações 21/041287
e 22/041287 do registo comercial relativas às sociedade H., matriculada sob o
n.º 682 na Conservatória do Registo Comercial de Viana do Castelo com o
cancelamento de tais registos.
Além do mais, a autora suscitou perante o Supremo Tribunal de Justiça as
seguintes questões:
“A aplicação do disposto nos artigos 364.º, 383.º, 386.º, 387.º e 875.º do
Código Civil na interpretação de que as públicas formas são títulos suficientes
para lavrar registos de factos que só podem ser celebrados por escritura pública
é inconstitucional por violar os princípios do estado Direito Democrático e da
Legalidade, consagrados, respectivamente, nos artigos 2º e 3º da Constituição.
A aplicação do disposto nos artigos 364.º, 383.º, 386.º, 387.º e 875.º do Código
Civil na interpretação de que as públicas formas são títulos suficientes para
provar o conteúdo de escrituras públicas cuja existência é posta em crise é
inconstitucional por ser violadora do princípio da legalidade e da tutela
jurisdicional efectiva.
A aplicação do disposto nos artigos arts. 80º do Código do Notariado e os arts.
36º, 46º e 875º do Código Civil na interpretação de que não exigível escritura
pública celebrada em Cartório Notarial Português para operar validamente a
transmissão de bens imóveis sitos em Portugal é inconstitucional por ser
violadora do artigo 3º da Constituição.
A aplicação do disposto nos artsº 350º, 386º e 387º do Código Civil, 7º do
Código de Registo Predial e 11º do Código do Registo Comercial, na interpretação
de que os RR beneficiam da presunção de que o direito de propriedade inscrito
existe na acção declarativa em que se pede o cancelamento dos mesmos, é
inconstitucional por ser violadora do artigo 20º da Constituição.
A recorrente alegou que a escritura não existia sendo certo que não podia
ser-lhe exigida a exibição do vazio.
Pelo que não apresentado nos autos documento idóneo que comprove a existência da
mesma, os RR. Não podem beneficiar da presunção registal que assim fica posta em
crise.”
Por acórdão de 19 de Abril de 3005, o Supremo Tribunal de
Justiça negou provimento ao recurso.
2. A autora interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82,
de 15 de Novembro, visando a apreciação da (in)constitucionalidade das seguintes
normas:
a) Dos artigos 364.°, 383.°, 386.°, 387.° e 875.° do Código Civil na
interpretação de que as públicas formas são títulos suficientes para lavrar
registos de factos que só podem ser celebrados por escritura pública;
b) Dos artigos 364.°, 383.°, 386.°, 387.° e 875.° do Código Civil na
interpretação de que as públicas formas são títulos suficientes para provar o
conteúdo de escrituras públicas cuja existência é posta em crise por uma das
partes em juízo;
c) Dos artigos 80.º do Código do Notariado e os artigos 36.°, 46.° e 875.° do
Código Civil na interpretação de que não é exigível escritura pública celebrada
em Cartório Notarial Português para operar validamente a transmissão de bens
imóveis sitos em Portugal.
Pelo despacho do relator de fls. 953-965, não impugnado, o
recurso foi rejeitado quanto às normas referidas nas antecedentes alíneas a) e
b), ordenando-se a apresentação de alegações apenas quanto à questão de
constitucionalidade referida na alínea c).
3. A recorrente alegou nos termos que constam de fls. 969-1007,
tendo concluído nos seguintes termos:
“I- A interpretação dos artigos 80° do Código do Notariado e os artsº 36°, 46° e
875° do Código Civil na interpretação de que não é exigível escritura pública
celebrada em Cartório Notarial Português para operar validamente a transmissão
de bens imóveis sitos em Portugal é violadora do princípio da legalidade inserto
no artigo 3° da Constituição da República Portuguesa.
II - O legislador português não pode assegurar a fé pública de todas as
repartições do mundo, mas apenas das quais acerca ele legisla, garantindo
determinados direitos como o de reclamação hierárquica previsto no artigo 138°
do Regulamento dos Serviços dos Registos e Notariado (e mesmo vigiando
determinados deveres, maxime em matéria disciplinar) sem os quais se esvazia o
conceito de “escritura pública” do artigo 875° do Código Civil português, o
qual, porque inserido noutro ordenamento jurídico, não é o mesmo que o conceito
de escritura pública do ordenamento jurídico brasileiro, nem do afegão, nem do
nipónico, nem do micronésio.
III - Só através da escritura do artigo 875° do Código Civil Português se podem
validamente transmitir os bens e direitos que a lei portuguesa lhes sujeita,
maxime, bens imóveis.”
IV - Em Portugal, a exigência de escritura pública no que respeita à
constituição e transmissão de direitos reais sobre bens imóveis sitos em
Portugal tem como escopo assegurar, não só a protecção dos particulares e
exigências de maior reflexão, mas também, e acima de tudo, o cumprimento da
legalidade na transmissão de bens imóveis.
V - O cumprimento da lei portuguesa quanto à transmissão de bens imóveis sitos
em Portugal, nomeadamente no que respeita à determinação exacta do seu objecto
(através das menções ao registo e à matriz, assim protegendo terceiros e a paz
social, designadamente em relações de vizinhança), à proibição de venda de
prédios em construção e ainda à cobrança e liquidação de impostos, só é
assegurado se tal transmissão for efectuada através de escritura pública
celebrada em Portugal, com a observância de todo o formalismo que lhe é
inerente.
VI - Entendimento contrário é susceptível de potenciar o forum shoping para
fugir ao cumprimento de formalidades exigidas pela lei portuguesa e até ao valor
dos nossos emolumentos.
VII - Mesmo que se celebre escritura pública em Portugal com falta de
observância de alguma formalidade exigível, dispõe o Estado Português de meios
para repor a situação de legalidade e, em caso disso, sancionar os infractores,
nomeadamente ao nível disciplinar e criminal. Tal não acontece se as escrituras
públicas de transmissão de imóveis sitos em Portugal puderem ser celebradas no
estrangeiro perante um “notário estrangeiro” ou um prestador de serviços que
cumpra funções análogas à do notário português.
VIII - Os artigos 80° do Código do Notariado e os artsº 36°, 46° e 875° do
Código Civil devem interpretar-se no sentido de que só escritura pública
celebrada em Cartório Notarial Português pode operar validamente a transmissão
de bens imóveis sitos em Portugal, sob pena de violação do princípio da
legalidade inserto no artigo 3° da Constituição .
IX - Nestes termos, deverá ser concedido provimento ao presente recurso de
constitucionalidade e julgada inconstitucional a interpretação levada a efeito
no acórdão sob recurso dos artigos 80º do Código do Notariado e os artsº 36°,
46° e 875° do Código Civil no sentido de que não é exigível escritura pública
celebrada em Cartório Notarial Português para operar validamente a transmissão
de bens imóveis sitos em Portugal, devendo ordenar-se a baixa dos autos para
reformar a decisão em conformidade com tal juízo.”
Por seu turno, os recorridos nas contra-alegações de fls.
1019-1036 sustentam, em conclusão:
“Conforme muito bem consta do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
“relativamente à escritura pública para a venda de imóveis, que a Recorrente vem
sustentar ter de ser lavrada por notário português, remete-se a mesma e sem
necessidade de outros considerandos, para o conteúdo dos artigos 36.º e 875.º do
Código Civil, atendendo a que, tendo sido observada na celebração do contrato em
causa a forma mais solene que é exigível no âmbito do direito substantivo, não
se compreende a impugnação por aquela ora deduzida”.
E, continuando a transcrição do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça,
“no que se refere à arguida inconstitucionalidade, por violação do art.º 3.º da
Lei Fundamental, da não exigibilidade de escritura pública celebrada em
Portugal, para a venda de imóveis sitos em território nacional”... “sempre se
dirá que, no âmbito da soberania do Estado Português não se mostra
constitucionalmente instituída a proibição da celebração em país estrangeiro de
contratos com exequibilidade em Portugal, desde que, para tal, seja observada a
forma legalmente exigível e os mesmos não se mostrem violadores dos princípios
informadores da ordem jurídica nacional”,
Verifica-se que a escritura pública celebrada no Brasil em nada afecta o
princípio da legalidade, porquanto o formalismos legal foi cumprido no negócio
em causa.
Importará, finalmente, considerar o artigo 3.º da Constituição da República
Portuguesa, que, nas alegações da Recorrente, supostamente terá sido violado
pela interpretação sufragada pelas Instâncias, todavia não vemos de que forma a
soberania e a legalidade a que essa norma constitucional alude terão sido
violadas.
Entendendo os Recorridos que a interpretação posta em crise é conforme a esse e
aos restantes artigos da Constituição, dado que não viola a soberania do Estado
Português, nem a legalidade imposta, porquanto é a soberania do Estado Português
e a legalidade imposta por essa soberania que impõe que o negócio se realize por
escritura pública e foi isso mesmo que ocorreu.
Para além disto, o intérprete tem de presumir que o legislador consagrou as
soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados
(artigo 9.º Código Civil), pelo que se o legislador fixou como forma exigível
para a validade de um negócio a escritura pública e não subordinou essa validade
a qualquer outra exigência, teremos de entender – como entenderam as Instâncias
– que o formalismo está cumprido e nada mais poderá ser exigido.
Aliás, o que violaria preceitos constitucionais, nomeadamente os artigos 14.º
(protecção de portugueses no estrangeiro), na medida em que lhes vedaria a
celebração de negócios que envolvessem os seus bens imóveis em território
nacional, nos termos admitidos pelo direito internacional privado e 62.º
(direito do propriedade privada), seria a interpretação do sentido da
inconstitucionalidade das normas em apreço.
Pois, na prática, impediria as pessoas de celebrarem negócios, quando o artigo
62.º da Constituição da República Portuguesa estabelece que “A todos é garantido
o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos
termos da Constituição”.
Ora, a transmissão operada por escritura pública em nada violou direitos, nem
obrigações das pessoas.
Aliás, note-se que a Recorrente não indica – nem poderia indicar –, de que forma
alegadamente teria sido prejudicada pela realização da escritura pública no
Brasil... Limita-se, isso sim, a invocar um alegado vício formal, a fim de
tentar obter um proveito absolutamente injustificado, anular um negócio
realizado há mais de 20 anos, entre pessoas que já faleceram.
Veja-se, a propósito, que a Recorrente sustentou, inicialmente, que não havia
negócio, que a escritura não existia, o que as Instâncias nunca concederam, que
se houvesse era nulo, enfim levantou todas as hipóteses até chegar à
inconstitucionalidade das normas aplicáveis ao caso, ou seja, tentou de todas as
formas possíveis colocar em crise uma situação, quando sabe não ter qualquer
fundamento para tal.
A este propósito deveremos salientar, e isso consta do autos, o tempo que a
Recorrente/Autora aguardou até se decidir a intentar a acção que veio a culminar
no presente recurso, que apenas intentou depois de todos os intervenientes no
negócio terem falecido e mais de 15 anos depois de concluído o dito negócio...
São todas estas questões que subjazem ao presente recurso e que esse Venerando
Tribunal não poderá deixar de considerar, de forma a poder proferir uma decisão
justa e adequada à situação em causa.
Nesta conformidade, não se mostra ferida de inconstitucionalidade, por violação
do art.º 3.º da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dos
artigos 80.º do Código do Notariado e 36.º, 42.º e 875.º do Código Civil segundo
a qual a transmissão de bens imóveis sitos em Portugal não tem obrigatoriamente
de ser efectuada mediante escritura pública outorgada em Cartório Português.”
4. Cumpre proceder a mais rigorosa delimitação do objecto do
presente recurso.
Efectivamente, a definição do objecto de recurso efectuada pela recorrente
excede, quanto à base legal de que foi extraída e quanto à enunciação do seu
alcance, a norma ou sentido normativo de que o acórdão recorrido fez aplicação
para decidir a questão da validade da transmissão do imóvel.
A recorrente diz ser inconstitucional a norma dos artigos 36.º, 46.º e 875.º do
Código Civil e do artigo 80.º do Código do Notariado, interpretados no sentido
de que não é exigível escritura pública celebrada em cartório notarial português
para operar validamente a transmissão de bens imóveis sitos em Portugal, por
violação do princípio da legalidade inserto no artigo 3.º da Constituição. Esta
questão de constitucionalidade foi enxertada numa acção em que se questiona a
validade de um contrato de compra e venda de um imóvel sito em Portugal,
celebrado entre residentes no Brasil, mediante escritura lavrada em cartório
notarial brasileiro. O acórdão recorrido considerou que o contrato não enferma
de vício de forma, com a seguinte fundamentação: “ relativamente à escritura
pública para venda de imóveis, que a recorrente vem sustentar ter de ser lavrada
por notário português, remete-se a mesma e sem necessidade de outros
considerandos, para o conteúdo dos artigos 36.º e 875.º do Código Civil,
atendendo a que, tendo sido observada na celebração do contrato a forma mais
solene que é exigível no âmbito do direito substantivo, não se compreende a
impugnação por aquela deduzida”. Nada mais se disse sobre a questão de a
escritura ter de ser lavrada em cartório notarial português ou perante
autoridade consular portuguesa.
Como se vê, a questão da validade formal do negócio foi
decidida apenas com invocação do disposto nos artigos 36.º e 875.º do Código
Civil, não tendo sido retirado critério de decisão do caso, nem sequer
implicitamente, dos demais preceitos que a recorrente identifica (Aliás, à data
da celebração do contrato a indicação dos actos relativamente aos quais era
exigida escritura pública constava do artigo 89.º do Código do Notariado então
vigente e não do artigo 80.º, que é o preceito correspondente do actual Código
do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto).
Por outro lado, a decisão recorrida não aprecia a validade
formal de todo e qualquer acto ou negócio jurídico susceptível de operar a
transmissão de bens imóveis sitos em Portugal, mas apenas de um desses negócios
típicos, o contrato de compra e venda.
Por último, importa ter presente que ao Tribunal Constitucional
apenas compete apreciar a conformidade à Constituição da norma ou normas que
tenham sido efectivamente aplicadas, como ratio decidendi, pelo tribunal que
proferiu a decisão recorrida, e não censurar essa decisão no plano da
conformação da causa e da aplicação do direito ordinário, designadamente quanto
à identificação e pertinência das questões em que se enxerta o incidente de
inconstitucionalidade e à determinação e interpretação das fontes normativas à
luz das quais a controvérsia deva ser resolvida.
Assim, o presente recurso tem por objecto a apreciação da
constitucionalidade da norma extraída dos artigos 36.º e 875.º do Código Civil,
interpretados no sentido de que para a validade do contrato de compra e venda de
bens imóveis sitos em Portugal não se exige que a escritura pública que o titula
seja celebrada em cartório notarial português. Foi apenas a questão da
necessidade de intervenção ou não de oficial público português na elaboração da
escritura, enquanto pertinente ao problema da validade do negócio, que o Supremo
Tribunal de Justiça considerou que tinha para resolver e fê-lo por aplicação dos
referidos preceitos legais e somente desses, dando por assente que a escritura
celebrada no Brasil satisfaz o conceito de escritura pública do artigo 875.º do
Código Civil. O Supremo Tribunal de Justiça considerou que, mesmo sendo
aplicável a lei portuguesa, a exigência de forma solene estabelecida por este
preceito legal para a validade dos contratos de compra e venda de bens imóveis
estava satisfeita mediante a escritura celebrada em cartório notarial
brasileiro, que qualificou como escritura pública para efeito deste último
preceito. Designadamente, está fora do âmbito do presente recurso averiguar qual
a lei efectivamente aplicável à substância do negócio ou ao seu efeito
translativo da propriedade, bem como a qualificação do instrumento negocial como
escritura pública para efeito do citado artigo 875.º do Código Civil. Este
Tribunal não é instância de reapreciação do modo como os restantes tribunais
aplicam o direito infra‑constitucional (cfr., por exemplo, o acórdão n.º 44/85,
publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º Vol., págs., 403-409, onde
se escreveu que “o dado normativo a ser submetido ao parâmetro constitucional
chega já definido ao Tribunal Constitucional, não lhe cabendo pô-lo em causa”).
Pela mesma razão, não cabe ao Tribunal Constitucional averiguar se, face ao
direito de conflitos e aos termos da causa, a questão da necessidade ou não de
intervenção de oficial público português interessa ao estatuto do contrato ou ao
estatuto real (inserida, já não nas condições de validade formal do contrato e
nos seus efeitos obrigacionais, mas nos seus efeitos reais, a transferência da
propriedade), porque o acórdão recorrido não contém qualquer referência a este
problema jurídico, nem menciona o artigo 46.º do Código Civil na sua base legal
de fundamentação.
Afinal, a crítica da recorrente não incide propriamente sobre a
norma de conflitos, sobre o momento remissivo, mas sobre a norma do artigo 875.º
do Código Civil na medida em que, na interpretação adoptada pelo acórdão
recorrido, não exige que a escritura pública aí referida seja celebrada em
cartório notarial português ou perante oficial público nacional.
5. O artigo 36.º do Código Civil – deve assinalar-se que o
contrato é anterior à entrada em vigor, na ordem interna, da Convenção de Roma
sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, a que Portugal aderiu através
da Convenção Relativa à Adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa à
Convenção sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais (Convenção do Funchal,
de 18 de Maio de 1992), aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia
da República n.º 3/94, publicada no Diário da República, I Série-A, de 3 de
Fevereiro de 1994, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º
1/94, de 3 de Fevereiro. – dispõe o seguinte:
“1. A forma da declaração negocial é regulada pela lei aplicável à substância do
negócio; é, porém, suficiente à observância da lei em vigor no lugar em que é
feita a declaração, salvo se a lei reguladora da substância do negócio exigir,
sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda
que o negócio seja celebrado no estrangeiro.
2. A declaração negocial é ainda formalmente válida se, em vez da forma
prescrita na lei local, tiver sido observada a forma prescrita pelo Estado para
que remete a norma de conflitos daquela Lei, sem prejuízo do disposto na última
parte do número anterior.”
E o artigo 875.º do mesmo Código estabelece que “[o] contrato
de compra e venda de bens imóveis só é válido se for celebrado por escritura
pública”.
Na regra geral do n.º 1 do artigo 36.º (o n.º 2 do artigo 36.º
não vem ao caso) admite-se a aplicação alternativa de (uma de) duas leis quanto
à forma da declaração negocial. Em princípio, deve aplicar-se a lei reguladora
do próprio negócio; mas considera-se suficiente a lei do lugar em que é feita a
declaração, acolhendo-se assim a regra locus regit actum, com o escopo de
favorecer a validade formal do negócio. Mas, não se trata de uma pura conexão
alternativa (LUIS LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, Vol. I, pág. 292
e Vol. II, pág. 159). Há uma reserva a favor da lei da substância, que surge na
norma de conflitos com a estrutura de excepção à aplicabilidade da lei do lugar
da celebração, e que consiste em ressalvar a hipótese de a lei reguladora da
substância do negócio exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância
de determinada forma, ainda que o negócio seja celebrado no estrangeiro. Como
diz BAPTISTA MACHADO, Lições de Direito Internacional Privado, 3ª edição
actualizada, pág. 355, “ao proceder assim tal lei [ a lei da substância do
negócio] revela preocupações ligadas com o regime da própria substância do
negócio, entendendo a formalidade exigida como uma formalidade ad substantiam
(como uma forma intrínseca)”.
Como é sabido, as exigências de forma do negócio jurídico podem
desempenhar uma pluralidade de funções: facilitação da prova, tutela do
consentimento, controlo da legalidade do acto, a sua publicidade ou, até, o
cumprimento das leis fiscais. Pode justificar-se, quando se pretende assegurar o
controlo da legalidade do acto ou o cumprimento de obrigações fiscais, não só
que se exija forma autêntica, mas ainda que o negócio seja celebrado perante
oficial público do próprio Estado. Independentemente de saber se, pela
relevância dos direitos reais sobre imóveis, em cuja regulação se reflectem
importante aspectos da organização económico-social do Estado, entrando em jogo
relevantes interesses públicos no domínio das políticas económicas, sociais e
ambientais, poderia justificar-se, em desvio da regra geral inclinada ao
favorecimento do negócio, uma opção como aquela que a recorrente defende, o
facto é que não é das atribuições do Tribunal apreciar se o legislador,
privilegiando uns interesses em detrimento de outros, fez o melhor uso da
discricionariedade legislativa, nem censurar a interpretação adoptada pelos
tribunais da causa, mas somente verificar se a norma ou normas que constituem
objecto do recurso, com o sentido com que foram aplicadas pela decisão
recorrida, violam as regras e princípios constitucionais indicados ou quaisquer
outros que o Tribunal entenda pertinentes (artigo 79.º-C da LTC).
6. Tendo isto presente, nada se vislumbra no parâmetro
constitucional indicado pela recorrente, que é o princípio da legalidade
afirmado no artigo 3.º da Constituição, que permita pôr em crise a validade da
solução normativa questionada.
Na verdade, como dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, pág. 214, apesar da
epígrafe, o objecto principal do artigo 3.º da Constituição é a afirmação do
princípio da constitucionalidade, ou seja, o princípio de que num Estado
constitucional é a Constituição que rege o Estado, pois que: (a) define as
formas de exercício da soberania (n.º 1); (b) subordina o Estado a si mesma (n.º
2); (c) constitui parâmetro de aferição da validade dos actos dos órgãos do
Estado (n.º 3). A expressão 'legalidade democrática', que aparece em várias
outras disposições do texto constitucional, designadamente nos artigos 199.º,
alínea f), 202.º, n.º 2, 219.º, n.º 1 e 272.º, n.º 1, em contextos
significativos particulares de especial investidura de órgãos e instituições do
Estado no dever de a defender, seguindo os mesmos autores, 'não se apresenta de
fácil apreensão quanto ao seu sentido rigoroso, mas parece que o melhor
significado que lhe cabe é o que abrange não apenas as regras do Estado de
direito democrático a que se refere o n.º 2 [crê-se que quererá dizer-se o
artigo 2.º], mas também a ideia da submissão das autoridades públicas à lei em
geral, de acordo com o princípio da legalidade ou, mais amplamente o princípio
da juridicidade'.
Ora, a norma que reconhece validade a contratos de compra e
venda de imóveis celebrados por escritura pública no estrangeiro não contende
com este imperativo de subordinação dos órgãos do Estado ao princípio da
jurisdicidade e à observância das regras jurídicas emanadas das fontes
constitucionalmente legitimadas. A eventual aplicação de uma norma de direito
estrangeiro pelos tribunais nacionais, em virtude do funcionamento das regras ou
princípios de direito internacional privado, a que pertence regular os conflitos
de competência entre ordens jurídicas diversas, é sempre o resultado de uma
fonte de direito constitucionalmente reconhecida, seja a norma remissiva de
fonte interna, seja de fonte convencional. A dificuldade prática em controlar a
observância de certos requisitos do contrato ou o cumprimento de determinadas
exigências, designadamente fiscais ou de legalidade administrativa, por virtude
de negócio não ter sido celebrado perante oficial público funcionalmente
obrigado a proceder à respectiva verificação sob pena das correspondentes
sanções, é inerente à aceitação de que as relações jurídicas plurilocalizadas
não sejam reguladas, ou não sejam reguladas em todas as questões jurídicas que
suscitam, pela lei portuguesa, e em nada colide com a sujeição dos órgãos do
Estado à legalidade democrática.
De todo o modo, deve lembrar-se que pelo menos alguns dos
riscos para exigências de ordem pública ou de insegurança jurídica, com que a
recorrente abstractamente esgrime, são prevenidos pelas normas de direito
internacional privado que previnem a fraude à lei (artigo 21.º do Código Civil)
e a violação da ordem pública internacional (artigo 22.º do Código Civil).
Assim, não se vislumbrando de que modo o princípio
constitucional de que o Estado se subordina à Constituição e se funda na
legalidade democrática, consagrado no n.º 2 do artigo 3.º da Constituição, impõe
que a validade ou a eficácia do contrato de compra e venda de imóveis sitos no
território nacional tenha necessariamente de depender de ter sido celebrado em
cartório notarial português (ou perante oficial público consular nacional com
funções notariais), a questão de constitucionalidade colocada tem de ser julgada
improcedente.
7. Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e condenar
a recorrente nas custas, com 25 (vinte e cinco) unidades de conta de taxa de
justiça, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
Lisboa, 21 de Março de 2007
Vítor Gomes
Bravo Serra
Gil Galvão
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício