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Processo nº 482/12
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. interpôs recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, do acórdão proferido em 1 de março de 2012 pelo Tribunal Central Administrativo Sul. O acórdão recorrido, revogando sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, indeferiu o pedido da recorrente de intimação do Ministério da Educação e Ciência para admitir a sua matrícula no curso de medicina ao abrigo do regime especial instituído pelo Decreto- Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro.
Tendo o recurso de constitucionalidade sido admitido e prosseguido, a recorrente alegou e concluiu nos seguintes termos:
'[...]
O presente recurso resume-se a uma questão muito simples:
Saber se é inconstitucional a norma relativa ao regime especial de acesso ao ensino superior constante do art. 10.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro, quando interpretada no sentido de excluir do seu âmbito de aplicação os candidatos que, concluíram o curso de ensino secundário num país estrangeiro no ano letivo imediatamente anterior ao da apresentação do requerimento de inscrição e matrícula, onde residiram por mais de dois por se encontrarem a acompanhar um familiar em missão oficial, mas que, ainda que por alguns dias apenas, à data de apresentação daquele requerimento já haviam voltado a residir em Portugal.
II. A resposta a esta questão está obviamente ligada à interpretação da norma em causa.
III. Scire leges non hoc est verba earum tenere, sed vim ac potestatem. Conhecer as leis não é saber as suas palavras, mas a sua força e o seu sentido (Celso, D.I, 3, 17).
IV. O art. 10.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99 dá acesso especial ao ensino superior a uma série de cidadãos que, «à data de apresentação do requerimento de matrícula e inscrição, se encontrem há mais de dois anos em país estrangeiro» e que «à data de apresentação do requerimento de matrícula e inscrição, tenham residência permanente há mais de dois anos nesse país estrangeiro».
V. A lei exige, evidentemente, que os dois anos letivos imediatamente anteriores ao requerimento o de matrícula e inscrição, e que incluem o momento da candidatura, tenham sido passados no estrangeiro em certas condições.
VI. À data da candidatura, a Recorrente tinha residência no estrangeiro, nas condições legais, há mais de dois anos letivos. Tinha no ano letivo então em curso (e que só acabaria na véspera do início do ano letivo seguinte) e tivera nos dois anos anteriores a esse.
VII. É claro que a Recorrente já tinha regressado a Portugal, porque as aulas já tinham acabado e estava de férias escolares, e o seu pai, que era quem estava ao serviço do Estado português, regressaria definitivamente uns dias depois (também antes do dia de entrega da candidatura), mas a sua residência permanente no estrangeiro ocupou todo o tempo de aulas (e exames, etc.) do ano letivo em cujo termo a Recorrente se candidatou ao ensino superior (e dos dois anos anteriores, claro).
VIII. A interpretação que a Recorrente defende tem o mínimo de correspondência verbal exigido pelo art. º 2 do Código Civil, embora não inclua a ideia disparatada de que no momento em que os documentos de candidatura são entregues o candidato em férias escolares tenha de continuar a residir no estrangeiro.
IX. O tribunal a quo não fez o esforço de perceber a regra do art. 10.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99. Se tivesse feito, teria visto que essa regra não se compõe de palavras arbitrárias, mas antes consagra requisitos que fazem pleno sentido no quadro geral deste diploma, mormente, quando faz depender o acesso ao regime especial, além do mais, dos dois seguintes requisitos cumulativos:
— O requerente tem de ter passado mais de dois anos letivos no estrangeiro ao serviço do Estado português ou acompanhando familiar ao serviço do Estado português.
— E esses dois anos letivos têm de incluir o momento da candidatura ao ensino superior, ou seja, o candidato não pode ter deixado passar novo ano letivo, desde o seu regresso, antes de se candidatar.
X. Estes requisitos são bons de compreender no quadro da prevenção daqueles casos em que, por abuso ou fraude à lei, os candidatos se colocassem propositadamente sob a égide do regime especial, no lugar de acederem via regime geral.
XI. Pelo contrário, não se compreende que a residência no estrangeiro que tenha incluído todo o período de aulas e exames do ano letivo ainda tivesse de incluir o próprio impulso formal do processo administrativo de candidatura.
XII. A cessação da missão do pai da Recorrente antes dela se candidatar à universidade não faz ignorar o afastamento do país por dois anos letivos, sendo que esse é o pressuposto essencial em que assenta o regime jurídico controvertido.
XIII. A situação de desvantagem que o regime especial visa compensar já se encontrava concretizada quando ela concorreu à universidade e não desapareceu por a missão do pai ter terminado 10 dias antes da candidatura.
XIV. Por outro lado, o facto de a Recorrente poder, em teoria, aceder ao ensino superior via regime geral não constitui de per si motivo impeditivo do acesso pelo regime especial invocado. Desde logo, porque não existe regra legal que o impeça e, se assim fosse, nenhum candidato poderia aceder pelos regimes especiais, visto que, em teoria, todos poderiam aceder pelo regime geral. Para além de que estaria a concorrer em condições de desvantagem face aos demais candidatos.
XV. A situação da Recorrente tem um traço distintivo: foi afastada de Portugal em virtude da nomeação do seu pai para missão no estrangeiro, o que representa, aos olhos do legislador, uma situação de desvantagem face aos demais candidatos ao ensino superior.
XVI. Aquela nomeação confere estatuto especial à Recorrente porque, ao mesmo tempo que afasta qualquer suspeita de abuso ou fraude no acesso ao ensino superior, legitima uma prerrogativa de ingresso sem estar sujeita às limitações quantitativas do regime geral.
XVII. Os princípios da justiça e da igualdade são relevantes para este caso enquanto elementos interpretativos que o tribunal a quo não podia deixar de ter em conta para perceber a regra do art. 10.º, uma vez que são precisamente razões de justiça e de igualdade que estão na base dos regimes especiais de acesso ao ensino superior.
XVIII. Em suma, a interpretação correta do art. 10.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99, é a seguinte:
— O candidato pelo regime especial de acesso tem de ter passado mais de dois anos letivos no estrangeiro ao serviço do Estado português ou acompanhando familiar ao serviço do Estado português.
— Esses dois anos letivos têm de incluir o momento da candidatura ao ensino superior português, ou seja, o candidato, desde o seu regresso e antes de se candidatar, não pode ter deixado passar novo ano letivo (nem novo período de aulas num ano letivo).
XIX. Esta interpretação é a única que dá sentido, dá vim ac potestatem, ao referido art. 10.º e assim é a única que obedece à presunção de que «o legislador consagrou as soluções mais acertadas» (art. 2º, n.º 3, do mesmo Código Civil). Para além de que evita situações de abuso e fraude à lei no acesso ao ensino superior por este regime especial.
XX. Já a interpretação do art. 10.º acolhida pelo tribunal a quo é inconstitucional.
XXI. A ideia de igualdade, maxime de igualdade no acesso ao ensino superior, é transversal ao sistema educativo nacional (ver arts. 2.º, n.º 2, 12.º, n.º 2, alínea a), e n.º 6 da LBSE e arts. 73º, n.º 1, e 74.º, n.º 1 Constituição) e até serve de fundamento à criação de regimes especiais ou privilegiados de acesso, como forma de eliminar desigualdades ou desvantagens prévias de determinado conjunto de candidatos (ver o Decreto-Lei n.º 393 A/99 e, a seu propósito, o Parecer da Procuradoria Geral da República, n.º 110/2003, in DR, 11, n.º 28, de 03.02.2004, p. 1924 ss.)
XXII. A criação de um regime especial como o que resulta da norma do art. 10. Decreto-Lei n.º 393-A/99, na dimensão interpretativa dada pelo tribunal a quo, viola o princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei (art. 13., n.º 1 da Constituição) e o direito a uma efetiva igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior (arts. 74º, n.º 1 e n.º 2, alínea d), e 76., n.º 1 da Constituição).
Termos em que se requer seja:
a) Julgada inconstitucional a norma constante do art. 10.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro, quando interpretada no sentido de excluir daquele regime especial de acesso ao ensino superior o candidato que concluiu o curso de ensino secundário num país estrangeiro no ano letivo imediatamente anterior ao da apresentação do requerimento de inscrição e matrícula, onde residiu por mais de dois por se encontrar a acompanhar um familiar em missão oficial, mas que, ainda que por alguns dias apenas, à data de apresentação daquele requerimento já tenha voltado a residir em Portugal e/ou cujo familiar já tenha terminado aquela missão, e
b) Consequentemente, dado provimento ao recurso...'
O Ministério da Educação e Ciência contra-alegou e conclui nos termos seguintes:
'1. Das conclusões do presente recurso, que delimitam o seu objeto (cfr. artigo 684º, nº 3 do C.P.C.) resulta que a questão a decidir é saber se viola ...o princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei (art. 13, nº. 1 da Constituição) e o direito a uma efetiva igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior (arts. 749, nºs. 1 e 2, alínea d), e 76, nº 1 da Constituição) a norma do artigo 10º do Decreto-Lei nº 393-A/99, de 2 de outubro, interpretada no sentido de excluir do seu âmbito de aplicação o candidato ao ensino superior, residente em Portugal à data da apresentação do requerimento de inscrição e matrícula, titular de curso do ensino secundário concluído no estrangeiro, onde residiu por mais de dois anos a acompanhar o seu pai, aí deslocado em missão oficial, também já terminada naquela data.
2. O acesso ao ensino superior pode ter lugar pelo regime geral ou pelos regimes especiais:
3. No regime geral as vagas são limitadas e os candidatos selecionados através da prestação de provas de ingresso ou, em sua substituição, através de exames finais, e ordenados de acordo com a classificação obtida, determinada segundo os critérios legalmente definidos (cf. Decreto-Lei nº. 296-A/98, de 25.09, alterado pelos Decretos-Leis nºs 99/99, de 30.03, e 26/2003, de 7.02).
4. Nos regimes especiais, os candidatos têm garantido o acesso ao ensino superior e ao estabelecimento de ensino pretendido, o que constitui vantagem concedida tendo em atenção situações especiais, pelo que se exige o cumprimento de todos os requisitos legalmente previstos.
5. No caso do regime especial pelo qual a Recorrente pretendia aceder ao ensino superior, previsto no artigo 10º do D.L. nº. 393-A/99, os candidatos têm que ser (1) familiares de cidadão português há mais de dois anos colocado em país estrangeiro na qualidade de funcionário público, em missão oficial, (2) titulares de curso de ensino secundário estrangeiro completado em país estrangeiro que aí constitua habilitação académica suficiente para ingresso no ensino superior oficial em curso congénere do curso para o qual requereram a matrícula, ou titular de curso de ensino secundário português completado em país estrangeiro, no qual comprovem aprovação nas disciplinas do ensino secundário correspondentes às provas de ingresso exigidas no ano em causa; e (3) à data de apresentação do requerimento de matrícula e inscrição ter residência permanente há mais de dois anos nesse país estrangeiro (cfr. artigos 10º e 5º do DL 393-A/99).
6. A Recorrente residiu com o seu pai, funcionário público, em missão oficial no estrangeiro, entre 1 de agosto de 2008 e 31 de julho de 2011 (factos números 1 e 2 do julgamento da matéria de facto), período durante o qual completou o curso do ensino secundário belga (factos números 3 e 4 do julgamento da matéria de facto), regressando a Portugal em 15.07.2011 (facto número 6 do julgamento da matéria de facto), onde requereu a matrícula e inscrição no curso de Medicina no dia 10/08/2011 (facto número 7 do julgamento da matéria de facto). Assim,
7. Na data em que apresentou o requerimento de inscrição e matrícula no curso de Medicina, a Recorrente não residia no estrangeiro há quase um mês, nem o seu pai aí se encontrava em missão oficial há, aproximadamente, dez dias.
8. Numa perspetiva sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (cit. do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 218/2012, de 26.04.2012, Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha, Proc. nº. 197/2012).
9. A inconstitucionalidade da interpretação acolhida do artigo 10º do D.L. nº. 393-A/99, por violação do ... princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei (art. 13, nº 1 da Constituição) e o direito a uma efetiva igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior (arts. 742, nº. 1 e nº. 2, alínea d) e 76, nº 1 da Constituição) (cit. conclusão XXII) só se poderia colocar, ou por instituir regime especial sem justificação bastante, ou por não incluir no seu âmbito situações para as quais também se verifica a justificação que levou a institui-los.
10. Ao contrário do que a Recorrente sustenta, e salvo o devido respeito por opinião contrária, o regime previsto no citado artigo 10º não resulta dos candidatos terem sido afastados ... de Portugal em virtude da nomeação do seu pai para missão no estrangeiro, o que representa, aos olhos do legislador, uma situação de desvantagem face aos demais candidatos ao ensino superior (cit. conclusão XV).
11. A ser assim, o regime teria de ser aplicável também aos candidatos residentes no estrangeiro, familiares de trabalhadores portugueses aí deslocados, mas que não fossem funcionários públicos, ou sendo funcionários públicos, aí se não encontrassem em missão oficial, o que não sucede, podendo estes candidatar-se apenas pelo regime geral. Deste modo,
12. É na interpretação sustentada pela Recorrente que a norma seria manifestamente inconstitucional por violação do princípio da igualdade (cfr. artigos 13, 73º, nº. 1 e 74º, nº. 1 da Constituição), ao tratar de forma diferente os funcionários públicos em missão no estrangeiro e seus familiares das demais pessoas que, por razões profissionais, suas ou dos seus familiares, se tiveram de afastar do território nacional, pois
13. O fim prosseguido pelo legislador ao estabelecer o regime especial em questão foi conceder uma regalia para funcionários públicos, em missão oficial no estrangeiro, de forma a compensar a penosidade causada pela ausência do País, tornando assim mais atrativa a aceitação dessa missão.
14. Não há assim violação possível do princípio da igualdade: os candidatos em situação igual à da Recorrente não têm acesso pelo regime especial em causa e, todos os que por ele acederam, estavam em situação que preenchia todos os requisitos que o legislador erigiu como determinantes, o que não sucedia com a Recorrente.
15. Os requisitos exigidos não são distinções discriminatórias, desigualdades materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional: por definição, ao consagrar um regime especial, em atenção a circunstâncias especiais, tem de ser definida a distinção entre aqueles que dele beneficiam e os outros, no caso o candidato residir no estrangeiro com funcionário público português, aí colocado em missão oficial. Tanto assim que,
16. A solução de considerar que se deveria exigir apenas a conclusão do ensino secundário no ano letivo anterior — que não é interpretação, porque não tem na letra da lei qualquer correspondência — preconizada pela Recorrente e qualificada como a única conforme à Constituição, introduz uma desigualdade sem justificação em relação a todos os demais candidatos do regime geral, incluindo aqueles que também terminaram o ensino secundário no estrangeiro por os seus familiares não funcionários públicos em missão oficial aí residirem. Com efeito,
17. A Recorrente, à data em que apresentou a sua candidatura ao ensino superior, já não residia no estrangeiro e o seu pai já havia terminado a missão oficial que ali o conduzira (factos provados, números 1 a 7 da decisão em 1 instância). Pelo exposto,
18. O artigo 10º do Decreto-Lei nº. 393-A/99 não padece dos vícios que a Recorrente lhe atribui, devendo em consequência o presente recurso ser julgado improcedente, com o que se fará a costumada justiça.'
Cumpre decidir.
II. Fundamentos
2. O acórdão recorrido, em provimento de recurso interposto pelo Ministério da Educação e Ciência (Ministério da Educação), revogou a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que intimara aquele Ministério a admitir o ingresso da ora Recorrente no curso de mestrado integrado de medicina, no ano letivo de 2011/2012, mediante a atribuição de uma vaga por via do regime especial de acesso ao ensino superior criado pelo Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro. Este diploma estabelece regimes especiais de acesso e ingresso no ensino superior destinados a estudantes que reúnam condições habilitacionais e pessoais específicas que o legislador entendeu justificarem um tratamento privilegiado relativamente ao regime geral.
O art.º 3.º do referido diploma enumera um conjunto de situações de índole bastante diversificada. Podem beneficiar de condições especiais de acesso nos termos nele fixados os estudantes que se encontrem numa das seguintes situações:
a) Funcionários portugueses de missão diplomática portuguesa no estrangeiro e seus familiares que os acompanhem;
b) Cidadãos portugueses bolseiros no estrangeiro ou funcionários públicos em missão oficial no estrangeiro e seus familiares que os acompanhem;
c) Oficiais do quadro permanente das Forças Armadas Portuguesas, no âmbito da satisfação de necessidades específicas de formação das Forças Armadas;
d) Estudantes bolseiros nacionais de países africanos de expressão portuguesa, no quadro dos acordos de cooperação firmados pelo Estado Português;
e) Funcionários estrangeiros de missão diplomática acreditada em Portugal e seus familiares aqui residentes, em regime de reciprocidade;
f) Atletas praticantes com estatuto de alta competição ou integrados no percurso de alta competição a que se refere o Decreto-Lei n.º 125/95, de 31 de maio, alterado pelo Decreto-Lei n.º 123/96, de 10 de agosto, regulado pela Portaria n.º 947/95, de 1 de agosto;
g) Naturais e filhos de naturais do território de Timor Leste.
A norma que foi objeto de interpretações divergentes e que, na interpretação que prevaleceu no acórdão recorrido, constitui objeto do presente recurso de fiscalização de constitucionalidade, está inserta no art.º 10.º do diploma, cujo teor se transcreve (em itálico o segmento normativo sobre que incide a controvérsia):
Artigo 10º
Âmbito
São abrangidos pelo regime da alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º os cidadãos portugueses e seus familiares que os acompanhem que, à data de apresentação do requerimento de matrícula e inscrição, se encontrem há mais de dois anos em país estrangeiro na qualidade de bolseiros, ou equiparados, do Governo Português, na qualidade de funcionários públicos em missão oficial no estrangeiro ou na de funcionários portugueses da União Europeia, e que, cumulativamente:
a) Sejam titulares de:
i) Curso de ensino secundário estrangeiro completado em país estrangeiro que aí constitua habilitação académica suficiente para ingresso no ensino superior oficial; ou
ii) Curso de ensino secundário português completado em país estrangeiro;
b) À data de apresentação do requerimento de matrícula e inscrição tenham residência permanente há mais de dois anos nesse país estrangeiro.
Considerou a Administração que o facto de o pai da recorrente ter terminado a missão oficial no estrangeiro em 31 de julho de 2011 e de a recorrente ter regressado a Portugal em 15 de julho de 2011 implicava que esta não preenchesse o requisito de residir no estrangeiro à data (10 de agosto de 2011) de apresentação do requerimento de inscrição no ensino superior, imposto pela al. b) do artigo 10.º e, consequentemente, não pudesse considerar-se abrangida pela alínea b) do artigo 3º do Decreto- Lei n.º 393-A/99. Segundo o Ministério da Educação, ao exigir que «à data de apresentação do requerimento de matrícula o candidato tenha residência permanente há mais de dois anos nesse país estrangeiro», o artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99 não permitiria que um candidato, que preenchesse os restantes requisitos exigidos naquela disposição mas que tivesse regressado a Portugal (ou cujo seu familiar tenha terminado a missão oficial) entre a data de conclusão do ensino secundário, completado nesse ano letivo, e a data de apresentação do requerimento, beneficiasse da possibilidade de inscrição no ensino superior público português ao abrigo daquele regime especial de acesso.
Na intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias a Recorrente sustentou que essa exigência tinha de ser interpretada como impondo que não haja lapso de tempo escolar entre a conclusão do curso de ensino superior no país estrangeiro e a matrícula na Universidade. Alegou então a Recorrente, que esta era a única interpretação do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99 conforme à Constituição, porque só assim seria possível respeitar o princípio da igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior e o conteúdo essencial do direito à educação que o regime especial se destina a realizar. Só esta interpretação do requisito da residência permite tratar de forma idêntica todos os candidatos que, por razões de interesse nacional, residiram de forma permanente no estrangeiro durante mais de dois anos, e aí concluíram o ensino secundário no ano letivo que antecede aquele a que concorrem ao ensino superior, não tendo tido oportunidade de prestar as provas de ingresso no ensino superior através do regime geral em condições idênticas às dos candidatos residentes em Portugal.
Esta argumentação, julgada procedente pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, foi recusada pelo Tribunal Central Administrativo. Segundo o acórdão recorrido, 'a circunstância de a requerente ter regressado a Portugal, 10 dias antes de ter formalizado a sua candidatura ao ensino superior, e de, nessa data, já não ter residência permanente na Bélgica, arreda-a do âmbito de aplicação daquele artigo 10º e exclui-a do benefício concedido pelo Decreto-Lei n.º 393- A/99, de 02.10, ou seja não lhe permite usufruir dos regimes especiais de acesso ao ensino superior. Mas essa circunstância tanto poderia ocorrer se aquele número de dias fosse 1, ou os 10 do caso em apreço, ou 20, ou mais. O legislador estabeleceu de forma clara e precisa um limite temporal que exclui a situação em que se deixe de ter residência permanente - nem que seja por um dia - no país estrangeiro, aferida pela data de apresentação do requerimento de matrícula e inscrição'.
3. Não cabe na competência deste Tribunal tomar posição sobre qual a melhor interpretação deste preceito ou sobre a justeza da sua aplicação face às circunstâncias do caso, sendo no âmbito deste recurso improdutivas as considerações feitas pela recorrente e recorrido a tal propósito. Ao Tribunal apenas compete decidir, com afinamentos a que oportunamente se procederá, se é inconstitucional a norma constante da al. b) do art. 10.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro, quando interpretada no sentido de excluir do seu âmbito de aplicação os candidatos que, concluindo o curso de ensino secundário num país estrangeiro no ano letivo imediatamente anterior àquele para que requerem inscrição e matrícula, onde residiram por mais de dois por se encontrarem a acompanhar um familiar em missão oficial, à data de apresentação daquele requerimento já haviam voltado a residir em Portugal, por a comissão ter cessado.
4. Sustenta a recorrente que a exigência de que a deslocação do familiar em missão e a residência no estrangeiro do candidato perdurem à data da formulação do requerimento de inscrição e matrícula constitui uma exigência arbitrária, sem conexão material com a razão de ser da concessão deste regime especial e, por via disso, conducente a que estudantes na mesma situação quanto ao período de frequência e conclusão do ensino secundário no estrangeiro, e quanto à inerente impossibilidade ou dificuldade de realização dos exames de ensino secundário e provas de ingresso em Portugal para se candidatarem pelo regime geral, vejam a sua pretensão ser objeto de tratamento de sentido oposto em função de um fator sem relação material com a razão que justifica a concessão de tal regime especial de acesso ao ensino superior. Haveria na norma assim interpretada a violação do princípio da igualdade - do princípio geral da igualdade previsto no n.º 1 do art.º 23.º e do princípio da igualdade de acesso ao ensino superior previsto no n.º 1 do art.º 76.º da Constituição - por conduzir a uma diferenciação de tratamento arbitrária de pessoas na mesma situação relevante. Vale por dizer que solução normativa considerada violaria o princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio, sendo esta a dimensão do princípio que importa considerar.
Em traços gerais, sobre o entendimento do Tribunal acerca desta vertente do princípio da igualdade, mantém-se válidas as seguintes considerações do acórdão n.º 232/2003 (disponível, como a demais jurisprudência citada, em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/.
'Assente a possibilidade de estabelecimento de diferenciações, tornar-se-á depois necessário proceder ao controlo das normas sub judicio, feito a partir do fim que visam alcançar, à luz do princípio da proibição do arbítrio (Willkürverbot) e, bem assim, de um critério de razoabilidade. Com efeito, é a partir da descoberta da ratio da disposição em causa que se poderá avaliar se a mesma possui uma “fundamentação razoável” (vernünftiger Grund), tal como sustentou o “inventor” do princípio da proibição do arbítrio, Gerhard Leibholz (cf. F. Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio da igualdade, Coimbra, 1989, pp. 419ss). Essa ideia é reiterada entre nós por Maria da Glória Ferreira Pinto: “[E]stando em causa (...) um determinado tratamento jurídico de situações, o critério que irá presidir à qualificação de tais situações como iguais ou desiguais é determinado diretamente pela 'ratio' do tratamento jurídico que se lhes pretende dar, isto é, é funcionalizado pelo fim a atingir com o referido tratamento jurídico. A 'ratio' do tratamento jurídico é, pois, o ponto de referência último da valoração e da escolha do critério” (cf. Princípio da igualdade: fórmula vazia ou fórmula 'carregada' de sentido?, sep. do Boletim do Ministério da Justiça, nº 358, Lisboa, 1987, p. 27). E, mais adiante, opina a mesma Autora: “[O] critério valorativo que permite o juízo de qualificação da igualdade está, assim, por força da estrutura do princípio da igualdade, indissoluvelmente ligado à 'ratio' do tratamento jurídico que o determinou. Isto não quer, contudo, dizer que a 'ratio' do tratamento jurídico exija que seja este critério, o critério concreto a adotar, e não aquele outro, para efeitos de qualificação da igualdade. O que, no fundo, exige é uma conexão entre o critério adotado e a 'ratio' do tratamento jurídico. Assim, se se pretender criar uma isenção ao imposto profissional, haverá obediência ao princípio da igualdade se o critério de determinação das situações que vão ficar isentas consistir na escolha de um conjunto de profissionais que se encontram menosprezados no contexto social, bem como haverá obediência ao princípio se o critério consistir na escolha de um rendimento mínimo, considerado indispensável à subsistência familiar numa determinada sociedade” (ob. cit., pp. 31-32).
Também a jurisprudência constitucional se orienta nesse sentido. Assim, o Tribunal Constitucional alemão já teve ensejo de afirmar que “(...) um tratamento arbitrário é aquele que (...) não é compreensível por uma apreciação razoável das ideias dominantes da Lei Fundamental” (42 BVerfGE 64, 74) e que “[A] máxima da igualdade é violada quando para a diferenciação legal ou para o tratamento legal igual não é possível encontrar um motivo razoável, que surja da natureza das coisas ou que, de alguma outra forma, seja compreensível em concreto, isto é, quando a disposição tenha de ser qualificada como arbitrária” (1 BVerfGE 14, 52; mais recentemente, cf. 12 BVerfGE 341, 348; 20 BVerfGE 31, 33; 30 BVerfGE 409, 413; 44 BVerfGE 70, 90; 51 BVerfGE 1, 23; 60 BVerfGE 101, 108).
Caminhos idênticos foram percorridos pelo Tribunal Constitucional português (a título meramente exemplificativo, cf. os Acórdãos nºs 44/84, 186/90, 187/90 e 188/90, in AcTC, 3º vol., pp. 133ss, e 16ºvol., pp. 383 ss, 395ss e 411ss, respetivamente). No Acórdão nº 39/88, o Tribunal teve ocasião de dizer: “[O] princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja, proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo constitucionalmente relevantes (...)” (in AcTC, 11º vol., pp. 233ss). E, curiosamente, também nos Estados Unidos se alude à necessidade de, no estabelecimento de diferenciações, obedecer a um cânone de razoabilidade (reasonableness) (cf. J. Tussman e J. tenBroek, “The equal protection of the laws”, California Law Review, nº 37, 1949, p. 344, cit. por Gianluca Antonelli, “La giurisprudenza italiana e statunitense sul principio di solidarietà”, Studi parlamentari e di politica costituzionale, nºs. 125-126, 1999, p. 89; sobre o princípio da razoabilidade na jurisprudência norte-americana, cf. Giovanni Bognetti, “Il principio di ragionevolezza e la giurisprudenza della Corte Suprema degli Stati Uniti”, in AA.VV., Il principio di ragionevolezza nella giurisprudenza della Corte Costituzionale. Riferimenti comparatistici, Milão, 1994, pp. 43ss).
Neste domínio em especial, merece destaque a evolução da jurisprudência constitucional italiana que, tendo firmado em termos absolutos a ideia da discricionariedade do legislador (sentenzenºs 28/1957 e 56/1958), veio pouco depois indagar se uma dada lei se apresentava “destituída de qualquer justificação” e se a mesma detinha uma “razão idónea” (sentenza nº 46/1959). Na sentenza nº 15/1960, a Corte disse que era sua jurisprudência constante considerar que “(...) o princípio da igualdade é violado mesmo quando a lei, sem um motivo razoável, procede a um tratamento diverso de cidadãos que se encontram em situação idêntica”. A doutrina, de seu lado, não andou longe destas asserções: já Mortati afirmava, por exemplo, que o legislador tinha “a obrigação de não violar as leis da lógica” (Istituzioni di diritto pubblico, Pádua, 1958, p. 715; mais recentemente, cf. a mesma obra, 9ª ed., atualizada, Pádua, 1976, pp. 1412ss). Mais tarde, Carlo Lavagna teve a perceção clara da necessidade do recurso a um princípio de razoabilidade ? que definiu como “la utilizzazione razionale dei contesti umani nella costruzione di norme sulla base delle prescrizioni-fonte” ? e enunciou os diversos critérios da sua ponderação: a correspondência (corrispondenza), o juízo sobre a finalidade (giudizio sulle finalità), a pertinência (pertinenza), a congruência (congruità) meios/fins, a coerência (coerenza), a evidência (evidenza) e, enfim, a motivação (motivazione) (cf. “Ragionevolezza e legittimità costituzionale”, in Studi in memoria di Carlo Esposito, vol. III, Pádua, 1973, pp. 1573ss). De igual modo, Vezio Crisafulli reconheceu que o Tribunal, ao indagar de eventuais violações do princípio da igualdade, fá-lo, designadamente, com base numa “cláusula geral de razoabilidade” (cf. Lezioni di diritto costituzionale, tomo II, 5ª ed., revista e atualizada, Pádua, 1984, p. 372). Contrariando a tese do “racional como razoável” (Aulis Aarnio), Gustavo Zagrebelski veio distinguir a ideia de racionalidade ? que, em seu entender, corresponderia à coerência lógica ? da ideia de razoabilidade, estando esta ligada a uma adequação aos valores de justiça que funciona primacialmente como um vínculo negativo do legislador [cf. La giustizia costituzionale, 2ªed., Bolonha, 1988, pp. 147ss; idem,“Su tre aspetti della ragionevolezza”, in AA.VV., Il principio..., cit., pp.179ss, em esp. pp. 181-184 (onde parece aproximar os conceitos de razoabilidade e racionalidade)]. E, justamente naquele primeiro sentido ? isto é, no sentido de uma racionalidade coerente ?, aludiu o Tribunal Constitucional italiano, na sua sentenza nº 204/1982, a um“cânone geral de coerência” (generale canone di coerenza) [cf., sobre a evolução jurisprudencial do Tribunal Constitucional italiano, A. Agrò, “Commento all’art 3 Cost.”, in G. Branca (org.), Commentario della Costituzione, vol. I, Bolonha e Roma, 1975, pp. 141ss; Paolo Barile, “Il principio di ragionevolezza nella giurisprudenza della Corte Costituzionale”, in AA.VV., Il principio..., cit., pp. 21ss; Livio Paladin, “Ragionevolezza (principio di)”, in Enciclopedia del Diritto – Aggiornamento, vol. I, Milão, 1997, em esp. pp. 900ss].
Destaque-se, por outro lado, que também a jurisprudência do Conselho Constitucional francês fez referência à necessidade de o legislador se nortear por critères rationnels et objectifs. Particularmente no que respeita ao princípio da igualdade perante os encargos públicos, o Conselho admitiu a introdução de discriminações, desde que as mesmas se fundassem em critérios objetivos e racionais ? cf. as decisões 83-164 DC de 29-12-1983, 89-270 DC de 29-12-1989 e 91-298 DC de 24-7-1991, cits. por Louis Favoreu, “Conseil Constitutionnel et ragionevolezza: d’un rapprochement improbable à une communicabilité possible”, in AA.VV., Il principio..., cit., p. 224.
Interessa assinalar, por fim, que a mais recente jurisprudência do Bundesverfassungsgericht procura, de certo modo, superar os limites estreitos da teoria da proibição do arbítrio, aumentando, de certo modo, a “densidade do controlo” (Kontrolldichte), por meio de uma nova fórmula do seguinte teor: “[E]sta norma constitucional (o artigo 3º, nº 1) obriga a tratar de modo igual todos os homens perante a lei. Consequentemente, este direito fundamental é sobretudo violado se um grupo de destinatários da norma em comparação com outros destinatários da norma é tratado de modo diferente, sem que existam entre os dois grupos diferenças de tal natureza (Art) e de tal peso (Gewicht) que possam justificar o tratamento desigual” (cf. F. Alves Correia, ob. cit., p. 425; v., ainda, Dian Schefold, “Aspetti di ragionevolezza nella giurisprudenza costituzionale tedesca”, in AA.VV., Il principio..., cit., pp. 121ss)'.
5. O n.º 1 do art.º 76.º da Constituição determina que o regime de acesso à Universidade e demais instituições de ensino superior garante a igualdade de oportunidades e a democratização do sistema de ensino, devendo ter em conta as necessidades em quadros qualificados e a elevação do nível educativo, cultural e científico do país. Ao nível infraconstitucional, o sistema de ingresso comporta um regime geral ou regime regra (Decreto-Lei n.º 296-A/98, de 25 de setembro, alterado por último pelo Decreto-Lei n.º 90/2008, de 30 de maio) e regimes especiais (Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro, alterado por último pelo Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro).
Como se disse no Parecer n.º 110/2003, da Procuradoria-Geral da República, publicado no DR-2ª Série, de 3 de fevereiro de 2004, em traços gerais, o acesso ao ensino superior, segundo o regime geral obedece aos seguintes princípios: democraticidade, equidade e igualdade de oportunidades; objetividade dos critérios utilizados para a seleção e seriação dos candidatos; universalidade de regras para cada um dos subsistemas de ensino superior. Na concretização destes princípios, o ingresso no ensino superior público obtém-se através de um concurso de âmbito nacional (com exceções de âmbito que não importa considerar: art.º 27.º, n.º2, do Decreto Lei n.º 393-A/99) para as vagas fixadas para cada par estabelecimento/curso (numerus clausus), sempre, através da prestação de provas de ingresso, devidamente reguladas (artigos 16.º a 20.º do Decreto-Lei n.º 26/2003, de 7 de fevereiro) ou, em sua substituição, através de exames finais, também devidamente disciplinados (artigo 20.º-A, do mesmo diploma). De notar, porém, que o regime regra comporta uma diferenciação entre os candidatos tendente a proporcionar igualdade de oportunidades a algumas categorias de estudantes ('descriminação positiva'), mediante a fixação de 'contingentes especiais' (art.º 28.º, al. a), do Decreto-Lei n.º 393-A/99 e Regulamento do Concurso Nacional, que para o ano letivo de 2011-2012 constava da Portaria n.º 258/2011, de 14 de julho de 2011) . Designadamente, é contemplada com a fixação de contingentes especiais, dentro dos limites quantitativos globais para cada par estabelecimento/curso, a situação dos candidatos (I) oriundos dos Açores, (II) oriundos da Madeira, (III) emigrantes portugueses e seus familiares, (IV) militares em regime de contrato e (V) portadores de deficiência física e sensorial.
Além do regime geral, o legislador criou regimes especiais para algumas situações que se entendeu exigirem tratamento mais favorável, afastando-se do regime geral, designadamente no que se refere às provas exigidas para ingresso e à sujeição ao concurso nacional para as vagas existentes. Na verdade, o Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro, prevê uma pluralidade de situações para as quais se estabeleceu um regime destinado a facultar o ingresso a estudantes que reúnem condições habilitacionais e pessoais específicas e que, segundo o preâmbulo do diploma, de outro modo dificilmente poderiam aceder ao ensino superior português (cfr. art.º 3.º do diploma, acima transcrito).
Todavia, ao estabelecer estes regimes especiais, o legislador não visou, apenas, a proteção dos estudantes que integram as diversas categorias. Visou também, com cada um delas, prosseguir, facilitar ou eliminar obstáculos à prossecução de um determinado interesse público. Em alguns deles, de natureza predominantemente política (v.gr. estudantes bolseiros nacionais de países africanos de expressão portuguesa, funcionários estrangeiros de missão diplomática acreditada em Portugal e seus familiares aqui residentes e naturais de Timor Leste e seus familiares). Noutros, um interesse público específico de ordem administrativa (diplomatas, funcionários em missão, desportistas de alta competição). No caso dos 'funcionários públicos em missão oficial no estrangeiro e seus familiares que os acompanhem' cria-se um incentivo (ou minora-se um contramotivo) à aceitação de missões no estrangeiro, potencialmente geradoras de uma situação desvantajosa para os estudantes deslocados. Daí, como argumenta o recorrido, que este regime contemple, apenas, os funcionários em missão e seus familiares e não todos aqueles que se desloquem para o estrangeiro no exercício da atividade profissional, como teria de acontecer se a razão de ser deste regime fosse apenas o de compensar a situação resultante do afastamento do interessado da frequência do ensino secundário no território nacional (Como se referiu já, essa outra situação geral dos que se deslocam para o estrangeiro para exercício de uma atividade económica obtém a proteção conferida pelo estabelecimento de contingentes especiais para emigrantes, menos vantajosa do que aquela que no caso está em consideração).
Deste modo, o requisito de que a missão oficial e a residência do interessado no estrangeiro abranjam o momento da apresentação do requerimento de inscrição e matrícula por este regime especial não pode dizer-se absolutamente estranho à razão de ser global do regime instituído. Sendo a missão oficial a causa do afastamento do interessado do sistema de ensino em Portugal que constitui o facto gerador da situação que se quis compensar mediante este regime especial, a conexão entre a duração da missão no estrangeiro e o tratamento mais favorável no acesso ao ensino universitário não é, em si mesmo, um critério arbitrário. A missão no estrangeiro dura por certo prazo, até determinada data. Nesta perspetiva, poderia defender-se que ainda nos situamos no domínio das opções cobertas pela discricionariedade legislativa que não cabe à justiça constitucional censurar, por não lhe competir substituir as opções do legislador por outras que melhor prossigam o interesse público, que possam considerar-se de maior correção no plano da técnica jurídica, ou que sejam globalmente mais justas.
6. Afigura-se, todavia, que se impõe uma análise mais fina que conduz a diferente resultado. Efetivamente, um critério aparentemente neutro pode afetar de modo desproporcionado uma parte dos sujeitos de determinada categoria. Um critério objetivo, como o da duração da missão oficial no estrageiro, pode conduzir a que estudantes que, por virtude dessa deslocação, se encontram nas mesmas condições substanciais quanto à escolaridade no estrangeiro e à relação com o ensino secundário em Portugal - a consequência ou o efeito potencialmente desvantajoso da deslocação para o estrangeiro por razões de interesse público que se quis compensar - obtenham tratamento diferente no acesso ao ensino superior a abrigo desse regime especial. É uma ocorrência com algum paralelismo com o que se sucede nas chamadas 'discriminações indiretas'.
Com efeito, os estudantes que acompanham familiares em missão no estrangeiro e aí concluem o ensino secundário (ou equivalente) ficam em condições não inteiramente comparáveis com aqueles que se apresentam ao concurso de acesso ao ensino superior com o ensino secundário concluído em Portugal, designadamente quanto ao conteúdo e sistema de avaliação e critérios de classificação. É essa a situação de desvantagem que se pretende compensar, mediante o regime especial em causa. Se o ensino secundário no estrangeiro é concluído no ano letivo que imediatamente antecede aquele em que pesses candidatos pretendem inscrever-se no ensino superior, será particularmente difícil, senão impossível em muitos casos, submeter-se às provas que assegurem a titularidade do ensino secundário português ou às provas de ingresso exigidas.
Ora, dois estudantes que concluam o ensino secundário no país onde o seu familiar presta serviço no ano letivo que imediatamente antecede aquele em que pretendem matricular-se no ensino superior estarão na mesma situação se o termo de comparação forem os fatores de desvantagem relativamente ao concurso nacional de acesso, independentemente da relação entre a data do requerimento de inscrição e matrícula e o termo da missão oficial ou do regresso a Portugal. Coeteribus paribus, o tempo que decorre após a conclusão desse ano letivo no estrangeiro - em geral, um período curto quando se trata de países do mesmo hemisfério - e a apresentação do requerimento é um fator neutro. Nestas circunstâncias, o termo da missão no estrangeiro e o regresso a Portugal não influem na situação geradora de desvantagem relativa suposta pelo legislador ou nos seus efeitos, nem permitem aos interessados nenhuma ação própria suscetível de colmatar as desvantagens concursais que estão na base da instituição deste regime especial. Foi por causa da missão oficial que o estudante se deslocou para o país estrangeiro e aí conclui o curso de ensino secundário no ano que imediatamente antecede aquele em que pretende ingressar no ensino superior, não sendo a situação de desvantagem daí potencialmente resultante modificada pela cessação da comissão ou da residência no estrangeiro ocorrida entre esses dois eventos.
Deste modo, a exigência de que a missão oficial ou a residência no estrangeiro, verificando-se no momento da conclusão do ensino secundário, perdure até ao momento da apresentação do requerimento de inscrição e matrícula no ensino superior introduz, relativamente aos candidatos a que se refere a alínea b) do art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99, uma diferenciação sem justificação razoável. Não estando aqui em apreciação o estabelecimento deste regime especial, o critério temporal definido pela norma em análise gera efeitos desproporcionais na delimitação do universo de beneficiários desse regime, excluindo dele indivíduos que estão na mesma situação de outros que a ele são admitidos face à razão material que justifica o tratamento mais favorável concedido a esta categoria de candidatos.
Assim, tem de concluir-se que a norma viola o princípio da igualdade consagrado no n.º 1 do art.º 13.º da Constituição.
III. Decisão
Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do n.º 1 do art.º 13.º da Constituição, a norma constante da al. b) do art. 10.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro, quando interpretada no sentido de excluir, do âmbito de aplicação deste regime especial de acesso ao ensino superior, os candidatos que pretendam dele beneficiar no ano letivo imediatamente posterior àquele em que concluíram o curso de ensino secundário num país estrangeiro, e relativamente aos quais se verifique a cessação da missão oficial, ou da residência nesse país, entre a data da conclusão do curso de ensino secundário e a apresentação do requerimento de inscrição e matrícula;
b) Determinar a reforma do acórdão recorrido em conformidade com o agora decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 6 de dezembro de 2012. – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria José Rangel de Mesquita – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.