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Processo n.º 1015/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.O representante do Ministério Público junto do Tribunal do Trabalho de Setúbal
interpôs, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, recurso para este Tribunal
da decisão proferida em 6 de Novembro de 2006 pelo Tribunal do Trabalho de
Setúbal, nos autos de processo especial por acidente de trabalho em que figura
como sinistrado A., que recusou, com fundamento em inconstitucionalidade
material, a aplicação da norma constante do artigo 2.º, n.º 1, alínea e), do
Código das Custas Judiciais, “na medida em que, consagrando embora uma isenção
de custas relativamente aos sinistrados em processos de acidente de trabalho
quando representados pelo Ministério Público, a não consagra relativamente aos
que sejam patrocinados por advogado”, por a entender violadora do “princípio da
igualdade consagrado no art.º 13.º, n.º 1, da Constituição”. Pode ler-se nessa
decisão:
«Consagra o art.º 2.º, n.º 1, al. e), do CCJ, na redacção que lhe foi conferida
pelo DL n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, uma situação de isenção de custas para
os sinistrados em acidente de trabalho, quando representados ou patrocinados
pelo Ministério Público.
Solução esta consideravelmente diversa da anterior, porquanto a versão do CCJ
aprovada pelo DL n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, concedia, no respectivo art.º
2.º, n.º 1, al. l), tal isenção a todos os sinistrados em acidente de trabalho,
fossem eles patrocinados, ou não, pelo Ministério Público.
O preâmbulo do DL n.º 324/2003, afirma a intenção de redução das situações de
isenção de custas, consagrando «o princípio geral de que, salvo ponderosas
excepções, todos os sujeitos processuais estão sujeitos ao pagamento de custas,
independentemente da sua natureza ou qualificação jurídicas e desde que possuam
capacidade económica e financeira para tal, sendo as excepções a esta regra
equacionadas, sem qualquer prejuízo para os interessados, em sede de apoio
judiciário.»
Sendo esta a justificação para a redução das situações de isenção de custas –
sendo que o próprio Estado e demais entidades públicas também se viram privados
de tal benesse – dificilmente se compreende a diferenciação consagrada no novo
art.º 2.º, n.º 1, al. e), do CCJ.
Certo que se pode alegar uma diferente (inferior) capacidade económica dos
sinistrados patrocinados pelo MP, aliada à função social da isenção concedida.
No entanto, não se pode presumir, sem mais, a inferior capacidade económica dos
representados ou patrocinados pelo MP, tanto mais que o próprio preâmbulo afirma
que o local adequado de tratamento dessa questão reside no regime do apoio
judiciário. Com efeito, poderemos ter sinistrados com boa ou razoável capacidade
económica, beneficiando de isenção de custas, simplesmente porque se aperceberam
que serão patrocinados, gratuitamente, pelo MP, enquanto que teremos sinistrados
com menor capacidade económica que, optando pela constituição de um advogado da
sua confiança, se verão confrontados com a obrigação de pagamento de custas.
Por outro lado, a presunção de uma (eventual) situação de maior carência
económica por parte dos sinistrados, subjacente à isenção consagrada quando
representados pelo Ministério Público, não se compatibiliza com a solução para
as demais acções laborais (não infortunísticas) em que o trabalhador, não
obstante esse patrocínio, não goza de idêntica isenção.
Esta circunstância leva-nos a concluir que, na verdade, não será essa presumida
incapacidade económica a razão justificativa da isenção consagrada no preceito
em questão.
A ratio do preceito apenas poderá assentar na natureza dos interesses em
discussão nos processos emergentes de acidente de trabalho, de natureza não
apenas privada, mas também pública (atente-se que se está perante direitos de
natureza indisponível e processos de natureza obrigatória) e na função social
dessa isenção, natureza e função essas que se verificam, de igual modo, quer nos
sinistrados patrocinados pelo Ministério Público, quer nos patrocinados por
mandatário judicial.
Note-se que o processo especial emergente de acidente de trabalho visa, também,
o restabelecimento do estado de saúde do sinistrado, a sua recuperação para a
vida activa e a reparação da perda da sua capacidade de trabalho (e,
consequentemente, da sua capacidade económica).
Ou seja, e considerando a ratio da referida isenção, não vemos, na verdade, que
a mesma constitua diferente e válida justificação do diferente tratamento legal
concedido pelo art.º 2.º, n.º 1, al. e), do CCJ. Não se nega que o Estado tem o
direito de exigir o pagamento de custas judiciais, restringindo substancialmente
as situações de isenção, e relegando todas as situações de insuficiência
económica para o regime do apoio judiciário. No entanto, ao conceder isenções de
custas, deverá sempre fazê-lo em situação de igualdade, de modo que, pessoas na
mesma situação jurídica, recebam o mesmo tratamento.
Acresce que, atento o interesse, não apenas privado ou particular do sinistrado
em acidente de trabalho, mas também o de natureza ou ordem pública que lhe
subjaz e de onde decorre, designadamente, a indisponibilidade dos respectivos
direitos e a obrigatoriedade de acção, mal se compreenderia (nem se
compatibilizaria) que, por falta de cumprimento da legislação sobre custas,
designadamente no que se reporta à omissão de pagamento de taxas de justiça
inicial e subsequente, pudesse ver-se inviabilizado o andamento ou
prosseguimento de acção, declarativa ou executiva (cfr., quanto a esta,
designadamente, o disposto no art.º 90.º, n.º 4, do CPTrabalho), emergente de
acidente de trabalho.
O princípio da igualdade constitucionalmente consagrado não impede um diferente
tratamento perante situações diferentes; no entanto, impede tal diferença
relativamente a situações idênticas ou que assentam em análogos pressupostos.
Afigura-se-nos, pois, que a norma constante do art.º 2.º, n.º 1, al. e), do CCJ,
na sua redacção actual, na medida em que, consagrando embora uma isenção de
custas relativamente aos sinistrados em processos de acidente de trabalho quando
representados pelo Ministério Público, a não consagra relativamente aos que
sejam patrocinados por advogado, é inconstitucional por violação do princípio da
igualdade consagrado no art.º 13.º, n.º 1, da Constituição.
Deste modo, recusando o segmento daquela norma, que concede a isenção de custas
apenas aos sinistrados «representados ou patrocinados pelo Ministério Público»,
concedo a isenção de custas peticionada pelo sinistrado, com dispensa da
respectiva taxa de justiça.»
Lê-se no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade:
«O Ministério Público vem, nos autos acima identificados, ao abrigo do disposto
no art.º 75.º-A da Lei n.º 28/82, de 15/11, interpor recurso do despacho
proferido em 6/11/2006, constante de fls. 13 a 15 dos autos, para o Tribunal
Constitucional.
Aquela decisão é recorrível por efeito da aplicação do art.º 70.º, alínea a), da
citada Lei n.º 28/82, de 15/11 – pois recusa a aplicação de norma legal com
fundamento em inconstitucionalidade.
A norma cuja aplicação se recusa é a do art.º 2.º, n.º 1, alínea e), do Código
das Custas Judiciais, na redacção introduzida pelo DL n.º 324/2003, de 27/12.»
2.No Tribunal Constitucional foi determinada a produção de alegações, concluindo
o representante do Ministério Público:
«1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada
O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da
decisão, proferida pelo Tribunal do Trabalho de Setúbal, nos autos de processo
especial por acidente de trabalho em que figura como sinistrado A., que
desaplicou, com fundamento em inconstitucionalidade material, decorrente de
violação do princípio da igualdade, a norma decorrente do preceituado no artigo
2.º, n.º 1, alínea e), do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto‑Lei
n.º 324/2003, enquanto nele se determina a sujeição a custas dos sinistrados em
processos de acidente de trabalho, desde que não patrocinados no processo pelo
Ministério Público.
Sobre questão análoga à dos autos pendem os processos n.ºs 602/06, da 2.ª
Secção, e 962/06, da 3.ª Secção.
A versão anterior do Código das Custas Judiciais estabelecia que os sinistrados
em acidente de trabalho beneficiavam da isenção subjectiva prevista no artigo
2.º, n.º 1, alínea l); porém, a versão actualmente em vigor, aprovada pelo
Decreto-Lei n.º 324/2003, reformulou tal regime, apenas prevendo a dita isenção
subjectiva para os sinistrados em acidente de trabalho “quando representados ou
patrocinados pelo Ministério Público”: não sendo esta, como se referiu, a
situação processual dos autos, o decaimento do trabalhador requerente levaria a
que devesse suportar as custas da eventual sucumbência na acção para efectivação
da responsabilidade emergente de acidente de trabalho.
Afigura-se que, em rigor, podem formular-se duas questões de
inconstitucionalidade em torno do regime legal desaplicado na decisão recorrida:
─ será violador de alguma norma ou princípio constitucional – acesso à justiça e
direito à assistência e justa reparação dos sinistrados – a eliminação da
isenção subjectiva outrora concedida ao trabalhador/sinistrado em termos
absolutos, isto é, independentemente da forma como se apresenta a litigar (por
si, através de mandatário ou mediante actuação do Ministério Público)?
─ violará o princípio da igualdade a disparidade de tratamento, quanto a custas
que a lei vigente estabelece, conforme o trabalhador seja ou não representado ou
patrocinado pelo Ministério Público?
Começando por este parâmetro, afigura-se que – ao contrário do que se decidiu no
despacho recorrido – não pode considerar-se solução arbitrária ou discricionária
a que se traduz em isentar de custas o trabalhador/sinistrado nos casos em que o
mesmo seja representado ou patrocinado pelo Ministério Público.
Trata-se, afinal, de manter, nesta sede, um regime idêntico ao que há muito
vigorava em sede de representação de incapazes e ausentes, estabelecendo a
versão anterior à actual do Código das Custas Judiciais uma isenção subjectiva
de custas para os incapazes ou pessoas equiparadas, representados pelo
Ministério Público (artigo 2.º, n.º 1, alínea i)) – e que o legislador, ao
editar o actual Código das Custas Judiciais, tratou de eliminar, ao restringir a
isenção subjectiva (artigo 2.º, n.º 1, alínea a)) ao Ministério Público, nas
acções “em que age em nome próprio, na defesa dos direitos e interesses que lhe
são confiados por lei”.
O fundamento substancial desta isenção – estabelecida a favor de pessoas a que o
Estado deve especial protecção – é facilmente explicável, pretendendo o
legislador obstar a que tais pessoas – a que o Estado deve particular
assistência e protecção – possam ser oneradas em função do “eventum litis”, do
resultado da acção, eventualmente ligado à própria eficácia da actuação
processual do Ministério Público. Não sendo naturalmente fácil determinar em que
medida é que o eventual decaimento do representado ou patrocinado na causa pelo
Ministério Público se pode dever a circunstâncias fortuitas ou a uma actuação
processual, porventura deficiente ou menos eficaz, do próprio Ministério Público
representante, terá o legislador avisadamente considerado que, nestes casos, se
não justificaria onerar o incapaz (ou, no caso dos autos, o
trabalhador/sinistrado) com as custas inerentes ao eventual decaimento numa
causa iniciada pelo Ministério Público e cuja actividade processual foi
suportada plenamente na actuação de um órgão do próprio Estado, o qual iria
embolsar as custas correspondentes à improcedência, total ou parcial, da
pretensão deduzida.
A circunstância de certa parte ser ou não representada ou patrocinada no
processo por um órgão de Estado – que, além de prosseguir directamente o
interesse público, deve zelar pelos interesses das pessoas a que o Estado deve
(até constitucionalmente) protecção – não pode considerar-se um factor
irrelevante no que toca à eventual dispensa de tributação em custas –
afigurando-se-nos, nesta perspectiva, perfeitamente conforme aos princípios
constitucionais o regime que dispensa o trabalhador/sinistrado do pagamento de
custas quando seja o Ministério Público a actuar processualmente no seu
interesse (e sendo certo que, a nosso ver, tal actuação processual visa
realizar, não apenas o interesse subjectivo do trabalhador sinistrado, mas o
próprio interesse – objectivo e público – na tutela e assistência adequada às
vítimas de acidentes laborais).
Mais duvidosa é a questão de constitucionalidade consubstanciada na eliminação
legal da isenção subjectiva que, desde sempre, vigorava para os trabalhadores –
vítimas de acidentes laborais, mesmo que não representados judiciariamente pelo
Ministério Público.
É certo que – vendo as coisas apenas na óptica do direito de acesso à justiça –
nada obstaria a que os sinistrados – que, em regra, estarão em situação de
manifesta carência económica, como consequência da privação da capacidade
laboral – pudessem requerer o apoio judiciário, nos termos gerais, obtendo por
essa via a dispensa do pagamento das custas que fossem devidas: afigura-se,
porém, que a oficiosidade e informalidade que sempre caracterizaram o processo
por acidente laboral – de natureza “obrigatória” e versando sobre direitos até
certo ponto “indisponíveis”, como nota a decisão recorrida – são dificilmente
conciliáveis com o ónus de (sem qualquer prévia advertência) o
trabalhador/sinistrado ter de requerer atempadamente à Segurança Social o
reconhecimento da situação de carência económica que o afecta, como condição
para alcançar a dispensa do pagamento das custas originadas por um possível
decaimento no processo.
Não nos parece que tal solução legal – assente decisivamente na eliminação da
isenção subjectiva de que justificadamente beneficiava o trabalhador/sinistrado
– seja compatível com o direito fundamental de assistência e justa reparação que
o artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa concede
aos trabalhadores que sejam vítimas de acidente laboral.
Na verdade, tal direito à assistência e justa reparação – para além do eventual
patrocínio oficioso pelo Ministério Público – deve conduzir a que se não faça
recair desproporcionadamente sobre o sinistrado o risco de decaimento,
decorrente da improcedência do pedido formulado – levando o Estado a cobrar
custas, quando está em causa o interesse do sinistrado, a quem é devida uma
especial e particular protecção e, por essa via, inibindo-o de exercitar o seu
direito à justa reparação.
Tal norma constitucional impõe ao Estado a criação – manutenção – de
instrumentos que assegurem uma adequada assistência e justa indemnização aos
trabalhadores vítimas de acidente de trabalho – tendo a jurisprudência
constitucional extraído consequências relevantes de tal princípio, nomeadamente
em sede de admissibilidade ou inadmissibilidade de remição de pensões.
Desde logo, será instrumento relevante deste “direito à assistência” a
possibilidade de ser requerida a actuação processual pertinente ao órgão do
Estado encarregado de zelar pelos direitos e interesses das pessoas a que o
Estado deve protecção.
Não podendo, porém, impor-se aos trabalhadores sinistrados o “monopólio” ou
exclusividade da sua representação judiciária através do Ministério Público
(cfr. acórdão n.º 190/92), será incompatível com tal direito fundamental à
assistência e justa reparação a pretensão de passar a tributar os processos de
acidente de trabalho quando o trabalhador opte por exercitar pessoalmente o que
supõe ser o seu direito, prescindindo do patrocínio ou representação através do
Ministério Público – colocando-o em risco de ter de suportar as custas, sempre
que a pretensão deduzida não venha a obter total provimento.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1 – É materialmente inconstitucional, por violação do direito à assistência e
justa reparação devida aos trabalhadores, vítimas de acidente laboral, o regime
normativo, constante do artigo 2.º, n.º 1, alínea e), do Código das Custas
Judiciais em vigor, segundo o qual não goza da isenção subjectiva o trabalhador
sinistrado, não representado ou patrocinado pelo Ministério Público, que – não
tendo requerido oportunamente apoio judiciário – venha a decair em processo
emergente de acidente de trabalho.
2 – Termos em que deverá, embora por diferente fundamento
jurídico‑constitucional confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado
pela decisão recorrida.»
Por sua vez, conclui o recorrido:
«a) O Código de Custas Judiciais, ao limitar a isenção subjectiva de custas
concedida aos sinistrados num acidente de trabalho àqueles que sejam
patrocinados pelo Ministério Público, viola o princípio da igualdade
estabelecido no art.º 13.º da Constituição da República.
b) Já que nenhuma razão razoável e lógica se vislumbra, à luz dos princípios
constitucionais, para restringir tal benefício apenas a uns sinistrados do
trabalho, retirando-o a outros, quando é certo que se encontram todos numa mesma
situação de crise pessoal e social e com a mesma indispensabilidade de recurso
aos Tribunais.
c) Por outro lado, a disposição do Código de Custas Judiciais em causa, ao
estabelecer como traço distintivo de atribuição da isenção subjectiva de custas
o facto de se estar ou não representado pelo Ministério Público, vem também
limitar a liberdade de escolha de patrocínio, pois sobrecarrega com um ónus
material, que ao outro isenta, o patrocínio por advogado, condicionando, assim,
inequivocamente, o exercício de tal liberdade.
d) Por tal, o segmento da referida disposição legal no segmento em que restringe
só aos sinistrados patrocinados pelo Ministério Público o benefício de isenção
de custas, para além de violar o princípio da igualdade, violenta ainda o
princípio da livre escolha de patrocínio por advogado, inscrito no n.º 2 do
art.º 20.º da Constituição da Republica.
e) Desse modo, a douta decisão recorrida não merece qualquer censura pelo facto
de ter desaplicado, por considerá-lo materialmente inconstitucional, o segmento
das alíneas e) do n.º 1 do art.º 2.º do Código de Custas Judiciais que limita a
isenção subjectiva de custas nela fixadas ao sinistrados laborais que estejam
representados pelo Ministério Público.
Termos em que, deve ser confirmada a douta decisão recorrida no seu julgamento
sobre a inconstitucionalidade material daquele preceito, como é de justiça.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3.A questão que se discute no presente recurso de fiscalização concreta da
constitucionalidade é a da conformidade constitucional da norma extraída da
alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º do Código das Custas Judiciais, na redacção
introduzida pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, “na medida em que,
consagrando embora uma isenção de custas relativamente aos sinistrados em
processo de acidente de trabalho quando representados pelo Ministério Público, a
não consagra relativamente aos que sejam patrocinados por advogado”, com o
princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República
Portuguesa.
Ora, sobre questão substancialmente idêntica à ora em apreço, já se pronunciou o
Tribunal Constitucional. Com efeito, pelo Acórdão n.º 109/2007, tirado em 15 de
Fevereiro de 2007, no processo n.º 602/06, da 2.ª Secção, este Tribunal decidiu
no sentido da inexistência de inconstitucionalidade naquele artigo 2.º, n.º 1,
alínea e), na dimensão em causa (tendo igualmente apreciado a norma extraída dos
artigos 8.º, alínea d), e 2.º, n.º 1, alínea e), a contrario, ambos do Código
das Custas Judiciais, enquanto estabelece sempre o valor da pensão anteriormente
fixada como critério de determinação do valor das custas do incidente de revisão
de incapacidade, nos casos em que o trabalhador sinistrado, não patrocinado pelo
Ministério Público, não haja formulado um pedido de valor certo e determinado
para o pretendido agravamento da incapacidade – norma que não vem impugnada no
presente recurso). Esse Acórdão n.º 109/2007 teve, na parte que ora interessa,
os seguintes fundamentos:
«[…]
4. Centremo-nos, para já, no confronto da norma referida [a norma extraída das
disposições conjugadas dos artigos 8.º, alínea d), e 2.º, n.º 1, alínea e), a
contrario, ambos do Código das Custas Judiciais, na medida em que prevêem a
condenação em custas do trabalhador não patrocinado no processo pelo Ministério
Público no incidente de revisão de incapacidade e que não haja formulado um
pedido de valor certo e determinado para o pretendido agravamento da
incapacidade, considerando então como valor do incidente o valor da pensão
anteriormente fixada] com o princípio da igualdade, que constitui um dos
fundamentos do juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida –
assente, recorde-se, na violação da “imposição constitucional da igualdade de
tratamento (artigo 13.º, n.º 2, da CRP), além da violação do direito à
assistência das vítimas de acidente de trabalho (artigo 59.º, n.º 1, alínea f),
da CRP) e da igualdade de exercício do patrocínio forense enquanto essencial à
administração da justiça (artigo 208.º da CRP)”.
Entende-se, porém, que a isenção de custas do trabalhador sinistrado, nos casos
em que o mesmo seja representado pelo Ministério Público (não sendo esta,
advirta-se, a situação dos autos) não viola o princípio da igualdade, consagrado
no artigo 13.º da Lei Fundamental, na comparação entre os trabalhadores que
beneficiam do patrocínio do Ministério Público em contraste com os que dele não
beneficiam.
Como este Tribunal tem repetidamente afirmado, “o princípio da igualdade, como
parâmetro de apreciação da legitimidade constitucional do direito
infra‑constitucional, impõe que situações materialmente semelhantes sejam
objecto de tratamento semelhante e que situações substancialmente diferentes
tenham, por sua vez, tratamento diferenciado”; mas “tal não significa (…) que
não exista uma certa margem de liberdade na conformação legislativa das várias
soluções concretamente consagradas, e até que não se reconheça a possibilidade
de o legislador consagrar, em face de uma dada categoria de situações, uma
solução que se afaste da solução prevista para outras constelações de casos
semelhantes”, desde que seja “identificável um outro valor, também ele com
ressonância constitucional, que imponha ou, pelo menos, justifique e torne
razoável a diferenciação” (cf. Acórdão n.º 113/2001, publicado no Diário da
República, II Série, de 24 de Abril de 2001).
Ora – pode dizer-se –, o patrocínio do Ministério Público tem características
que o distinguem do patrocínio por advogado ou da não constituição de advogado,
uma vez que o Ministério Público exerce um papel legalmente vinculado, por um
lado, à defesa das pessoas a que o Estado deve, por imperativo constitucional,
especial protecção e, por outro, aos critérios de legalidade e objectividade que
são suporte de toda a sua actividade, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, do
Estatuto do Ministério Público.
Onde, a propósito do regime de custas nos tribunais, deverão relevar situações
diferenciadas, objectiva ou subjectivamente, hão-de ser estabelecidas, por opção
do legislador, no exercício da sua liberdade de conformação (e com respeito pelo
princípio da igualdade), as excepções ao princípio geral de que os sujeitos
processuais estão sujeitos ao pagamento de custas. Correspondendo ou não à
melhor solução – aspecto que não cabe ao Tribunal Constitucional avaliar –, a
distinção de tratamento do trabalhador, consoante se apresente ou não
representado pelo Ministério Público, é, assim, susceptível de encontrar um
fundamento razoável, justamente, nos parâmetros que devem guiar a actuação deste
último.
5. Suscita-se, também, a questão da conformidade com outras normas e princípios
constitucionais da eliminação da isenção do pagamento de custas por parte do
trabalhador sinistrado que, pessoalmente ou através de mandatário, requer
incidente de revisão da sua incapacidade, não o fazendo, portanto, representado
pelo Ministério Público. Atente-se que, no presente caso, não está em causa tal
eliminação, em geral, nas causas emergentes de acidente de trabalho, mas tão-só
a tributação nas custas originadas pelo decaimento no incidente de revisão da
incapacidade requerido pelo trabalhador sinistrado, não representado pelo
Ministério Público.
O Ministério Público sustentou, neste Tribunal, que a norma questionada é
inconstitucional, na medida em que o trabalhador não patrocinado pelo Ministério
Público no incidente de revisão de incapacidade, e que não haja formulado um
pedido de valor certo e determinado para o pretendido agravamento da
incapacidade, é condenado em custas tendo sempre por base, enquanto valor do
incidente, o valor da pensão anteriormente fixada, já que esta norma violaria o
direito dos trabalhadores, vítimas de acidente laboral, a “assistência e justa
reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional”,
consagrado na alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição.
Entende-se, porém, que tal imputação de inconstitucionalidade é improcedente
quanto à questão da eliminação da isenção de custas em si mesma, e mesmo não
tendo esta questão de ser decidida com base no facto de os representados pelo
Ministério Público se encontrarem, ou não, via de regra, em situação de carência
económica (para o que, aliás, o instituto mais adequado é o do apoio
judiciário).
Na verdade, de entre as características do patrocínio do Ministério Público num
processo como aquele que está em causa ressalta a circunstância de esse
patrocínio ser subsidiário, significando isso que só é exercido se e enquanto o
trabalhador sinistrado não constituir advogado, seja através de mandato, seja
através do recurso à nomeação de patrono oficioso através do mecanismo do apoio
judiciário (cfr. Acórdão n.º 190/92, publicado no Diário da República, II Série,
de 18 de Agosto de 1992, que julgou inconstitucional a norma do artigo 8.º do
Código de Processo do Trabalho, interpretada no sentido de não ser legalmente
possível a nomeação de advogado oficioso em processo de trabalho).
Em casos como o dos presentes autos, em que estamos perante um incidente de
revisão de incapacidade porque o estado clínico do trabalhador vítima do
acidente de trabalho se alterou para pior, a legitimidade activa cabe ao
trabalhador sinistrado (neste sentido, v. Cecília Meireles, «Processo de
acidentes de trabalho – os incidentes – ideias para debate», Centro de Estudos
Judiciários, Prontuário de Direito do Trabalho, Coimbra Editora,
Setembro‑Dezembro de 2004, p. 92), pelo que o Ministério Público assume o
patrocínio caso este lho solicite.
Ora, tendo o trabalhador, ainda que por omissão, (voluntariamente) escolhido não
solicitar ao Ministério Público que assuma o patrocínio, a aplicação da regra
geral de que as custas devem ser suportadas pela parte que a elas houver dado
causa, consagrada no artigo 446.º do Código de Processo Civil, não pode logo, só
por si, considerar-se violadora do direito dos trabalhadores, vítimas de
acidente laboral, a “assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente
de trabalho ou de doença profissional”.
A respeito deste direito fundamental, afirmou-se no Acórdão n.º 599/04
(disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
“[…]
A norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, prevendo um
direito (com a configuração dos direitos económicos, sociais e culturais), não
contém uma garantia de um direito a uma prestação por parte do Estado, em todos
os casos de acidentes de trabalho ou doença profissional. Aquele está vinculado
a prever, por via legislativa, a obrigação de reparação e a assistência, nestes
casos, por parte da entidade patronal (ou de outra entidade que se lhe
substitua), podendo, mesmo, admitir-se que a introdução de um sistema de
garantia estatal do pagamento das referidas indemnizações por acidentes de
trabalho resulta, ainda, da satisfação deste dever de protecção.
Mas o âmbito deste sistema de garantia podia ser determinado pelo Estado, em
consonância com a avaliação das respectivas possibilidades e das necessidades
[…]. Isto, em consonância com a subordinação da concretização dos direitos
sociais em questão a uma apreciação, de natureza fundamentalmente política, dos
meios disponíveis e das necessidades existentes (como se exprime na fórmula da
sujeição desses direitos a uma “reserva do possível”).”
Neste sentido, também a não isenção de custas do trabalhador, vítima de acidente
de trabalho, que optou por dar origem ao incidente de revisão de incapacidade
sem estar representado pelo Ministério Público estaria ainda dentro do âmbito da
liberdade de conformação do legislador.
É certo que o preceito da alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição
impõe ao Estado a criação de instrumentos que assegurem uma adequada assistência
e uma justa reparação aos trabalhadores vítimas de acidente de trabalho – cfr. o
Acórdão n.º 150/2000, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, em que se
ponderou que a existência de um regime excepcional de responsabilidade civil no
que aos acidentes de trabalho diz respeito aparece como plenamente justificada,
tendo em consideração a dimensão social de que se reveste a regulação jurídica
das matérias laborais, à luz da necessidade de estabelecer regimes que assegurem
uma adequada protecção dos trabalhadores, designadamente perante as respectivas
entidades patronais, e, entre outros, o Acórdão n.º 578/2006, igualmente
disponível em www.tribunalconstitucional.pt, que julgou inconstitucional, por
violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, a norma do artigo
56.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, interpretada
no sentido de impor a remição obrigatória total, isto é, independentemente da
vontade do titular, de pensões atribuídas por incapacidades parciais permanentes
superiores a 30% ou por morte. Mas, devendo tal direito ser perspectivado à luz
do direito à segurança social (neste sentido, Jorge Miranda/Rui Medeiros,
Constituição Portuguesa anotada, tomo I, anotação VIII ao artigo 59.º, p. 611),
não se concebe como inconciliável com tal preceito constitucional fazer recair
sobre o trabalhador sinistrado, na situação específica do incidente de revisão
da incapacidade, o pagamento das custas em caso de indeferimento do incidente
por ele requerido.
A imposição do pagamento de custas não viola, pois, só por si, o direito dos
trabalhadores vítimas de acidente de trabalho a assistência e a uma justa
reparação.
Acresce que, no aspecto da não isenção de custas, não se vê também como possa
tal norma violar autonomamente o direito de acesso ao direito e aos tribunais,
previsto no n.º 1 do artigo 20.º da Lei Fundamental, considerando, por um lado,
o que este Tribunal afirmou já no (anteriormente citado) Acórdão n.º 190/92 –
concretamente, que a existência, em abstracto, de um regime de patrocínio pelo
Ministério Publico não impede que os trabalhadores possam socorrer‑se do
patrocínio oficioso assegurado por advogado, no âmbito do regime geral de apoio
judiciário, se reunirem as condições legais para beneficiarem desse regime –, e,
por outro lado, as notas que caracterizam o incidente de revisão de incapacidade
e que o diferenciam do processo principal por acidente de trabalho.
[…]»
4.Estas considerações devem ser reiteradas no presente caso, em que está em
causa igualmente a norma da alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º do Código das
Custas Judiciais, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27
de Dezembro, “na medida em que, consagrando embora uma isenção de custas
relativamente aos sinistrados em processo de acidente de trabalho quando
representados pelo Ministério Público, a não consagra relativamente aos que
sejam patrocinados por advogado”.
Pelos fundamentos transcritos, há, pois, que conceder provimento ao presente
recurso.
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 2.º, n.º 1, alínea e),
do Código das Custas Judiciais, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º
324/2003, de 27 de Dezembro, na medida em que, consagrando uma isenção de custas
relativamente aos sinistrados em processo de acidente de trabalho quando
representados pelo Ministério Público, a não prevê para os que sejam
patrocinados por advogado;
b) Consequentemente, conceder provimento ao presente recurso e determinar
a reformulação da decisão recorrida, em conformidade com o presente juízo sobre
as questões de constitucionalidade.
Lisboa, 28 de Março de 2007
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração
de voto aposta ao Acórdão n.º 109/2007).
Rui Manuel Moura Ramos