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Processo n.º 1101/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
A – Relatório
1 – A., melhor identificado nos autos, reclama para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 76.º, n.º 4, da Lei n.º 28/82,
de 15 de Novembro (LTC), do despacho que não lhe admitiu o recurso interposto
para este Tribunal do Acórdão de 26 de Outubro de 2006 proferido pelo Tribunal
da Relação de Lisboa.
2 – Com interesse para o caso sub judicio, resulta dos autos:
2.1 – O ora reclamante intentou contra a sociedade B., Lda.,
acção, com processo comum, pedindo que se declarasse ilícito o seu despedimento
e que se condenasse a ré a pagar-lhe; a) “a quantia de € 1.577,48, a título de
férias vencidas em 1.1.2003, 50% do subsídio de férias vencido em 1.1.2003 e €
754,24 de proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal, tendo
em conta o trabalho prestado em 2003; b) todas as retribuições vencidas e
vincendas até trânsito da sentença que decrete essa ilicitude; e, c) a
indemnização por antiguidade, conforme opção feita em audiência de julgamento”.
2.2 – Inconformado com a sentença que julgou a acção
improcedente e absolveu a ré dos pedidos, o autor apelou ao Tribunal da Relação
de Lisboa, argumentando, em síntese:
1) A sentença em crise viola a Lei ao violar o princípio do dispositivo,
ao negar ao processo disciplinar a nulidade insuprível invocada pelo Recorrente
e ao reconhecer justa causa despedimento aos factos provados nos autos.
2) Por isso deve ser revogada e substituída por outra que reconheça os
vícios apontados e faça improceder a justa causa invocada.
3) O que se pede ao Venerado Tribunal é uma valoração objectiva da
factualidade dada por provada, e de todos os elementos deste recurso e processo,
como é seu timbre, e que certamente deverão permitir concluir nos termos ora
expostos, porque são os do Direito.
4) A Nota de Culpa entregue ao Recorrente no decurso do processo
disciplinar padece efectivamente de nulidade por não descrição circunstanciada
quanto ao modo tempo e lugar dos factos e praticas imputadas ao Recorrente.
5) O Recorrente invocou esse vício na impugnação e na Resposta à Nota de
culpa, fazendo aí ver que não podia defender-se de uma realidade que não
conhecia e que não lhe era dada a conhecer nos termos exigidos pela sua entidade
patronal.
6) Contrariamente ao que a sentença em crise sustenta os factos
constantes dos artigos 11º, 27º, 31º, 35º a 44º da Nota de culpa não enunciam as
circunstâncias de modo, tempo e lugar em que terão sido praticados.
7) A Recorrida assentou neles todos para fundamentar o despedimento do
Recorrente, valorando-as para efeitos da justa causa invocada e dando-as
especificamente por provadas na sua decisão final.
8) A sentença em crise sustenta um entendimento que viola a Lei ao
entender que a consequência dos vícios invocados pelo Recorrente seria a mera
não atendibilidade dessa factualidade.
9) Conforme constitui jurisprudência uniforme e invocada, se da nota de
culpa não constarem factos concretos, é manifesto que a decisão de despedimento
na parte em que corresponde ao relato – não pode estar factualmente
fundamentada, devendo declarar-se a ilicitude do despedimento por nulidade do
processo disciplinar, nos termos do nº 8 a 10, do artigo 10º e nº 2 e 3 alínea
c) do art. 12º da LCCT.
10) A sentença em crise violou o princípio do dispositivo porque
fundamentou a existência de justa causa com base em pressupostos de facto e de
direito que são menos exigentes àqueles colocados pela própria Recorrida.
11) Se a entidade patronal entende que para a existência de justa causa é
necessária não só a condenação do trabalhador, mas também a existência de
evidentes reflexos negativos na realidade empresarial, que afectam
substancialmente o normal funcionamento da empresa, não pode o tribunal com o
primeiro desse pressupostos para entender verificar-se justa causa de
despedimento.
12) Caso tivesse cumprido com os deveres decorrentes do princípio invocado,
teria verificado que os pressupostos de facto e de direito colocados pela
Recorrida para a justa causa invocada não se verificavam, obrigando a julgar
improcedente essa mesma justa causa.
13) Os factos dados por provados, não são de molde algum de forma dar como
provada a existência de justa causa de despedimento.
14) Do conjunto de factos invocados pela Recorrida para o despedimento do
Recorrente e que esta na sua decisão final considerou todos provados, apenas
consegui provar dois, sendo que um deles já tinha visto extinta a sua relevância
disciplinar por prescrição.
15) Assim dos factos alegados na Nota de Culpa:
- Não se provou que o Recorrente não tivesse entregue cópia de sentença
condenatória;
- Não se provou que o Recorrente não tivesse informado da inibição de condenação
referida em a);
- Não se provou que o Recorrente tivesse continuado a conduzir ao serviço da
entidade patronal durante o período da inibição de condução;
- Não se provou que o Recorrente tivesse acompanhado um seu colega na filmagem
de instalações da Recorrida;
- Não se provou que o Recorrente actuava com o colega C. no sentido de tudo
fazerem para prejudicarem a Recorrida;
- Não se provou que o Recorrente tivesse alguma vez desrespeitado as ordens da
Recorrida, entrando no escritório do sócio gerente e aí, sentado nas cadeiras,
ter lido jornal;
- Não se provou que o Recorrente dormisse frequentemente (quase diariamente) no
local e dentro do horário de trabalho;
- Não se provou que o Recorrente lavasse a sua viatura particular dentro do
horário e local de trabalho, contra as ordens da Recorrida;
- Não se provou que o Recorrente tivesse lesado interesses patrimoniais sérios
da empresa;
- Não se provou que o Recorrente tivesse alguma vez incumprido com o seu horário
de trabalho, e
- Não se provou que o Recorrente elevasse a voz, respondendo de forma rebelde ao
sócio gerente da entidade patronal.
16) Verdadeiramente o que de importante para o processo se provou foi que
as suas funções não se resumiam nem de longe aos de motorista, e que no período
da inibição a Recorrida determinou que o Recorrente continuasse a efectuar
apenas as demais tarefas que não implicassem a condução de veículos.
17) Essas preenchiam o seu dia-a-dia laboral.
18) Assim foi durante mais de 60 dias, pois só ao fim desse período é que a
Recorrida instaurou ao Recorrente o processo disciplinar dos autos.
19) As funções que o Recorrente deixou de poder executar não
consubstanciavam sequer as funções essenciais do Recorrente na Recorrida, nem
consubstanciavam funções essenciais para a Recorrida, muito menos constituindo a
detenção de título habilitador à condução uma especial relevância para a sua
prestação laboral na Recorrida.
20) Prova evidente dessa realidade, é o facto provado de após o
despedimento do Recorrente a Recorrida não ter admitido outro trabalhador para o
substituir.
21) Tanto a garantia constitucional da estabilidade do emprego, como a
densificação do conceito legal de justa causa impedem que apenas com base nestes
factos seja possível legitimar o despedimento do Recorrente.
22) Efectivamente, quando se trata de actos da vida privada dos
trabalhadores, o próprio conceito de justa causa torna-se ainda mais exigente e
qualificado.
23) Toda a jurisprudência vai nesse sentido, tendo esse entendimento sido
reafirmado, entre outros, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 6 de
Junho de 2002.
24) O Recorrente não nega que sejam graves e culposos os factos praticados.
O que entende é que não tiveram quaisquer repercussões na empresa que tornassem
impossível a subsistência do contrato de trabalho.
25) A própria matéria de facto dada como provada atesta essa realidade».
2.3 – Por Acórdão de 16 de Outubro de 2006, o Tribunal da
Relação de Lisboa decidiu negar provimento ao recurso.
2.4 – Discordando desse entendimento, o reclamante interpôs
recurso para o Supremo Tribunal de Justiça – que não foi admitido por “o valor
da causa estar contido na alçada do Tribunal da Relação” –, e, nos termos do
disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, recorreu para o Tribunal
Constitucional “pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da norma do
artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 69-A/89, de 27 de Fevereiro, com a interpretação
com que foi aplicada na decisão recorrida”.
2.5 – Considerando que o recorrente “não suscitou a
inconstitucionalidade de uma norma, indicada em concreto, durante o processo e
que tenha sido aplicada na decisão”, o Desembargador Relator não admitiu o
recurso de constitucionalidade.
2.6 – Notificado dessa decisão, o recorrente deduziu a presente
reclamação, na qual invoca:
«1º
Conforme resulta dos autos, através de acórdão proferido pelo Venerado Tribunal
da Relação de Lisboa, foi decidido fazer improceder na totalidade o recurso de
apelação interposto pelo Recorrente,
2º
Mantendo intocada a sentença recorrida.
3º
Nesse mesmo acórdão os Venerados Desembargadores – em concreto relativamente à
noção de justa causa aplicável – sustentam o mesmo entendimento já perfilhado
pela decisão de 1ª instância.
4º
Efectivamente, segundo a interpretação perfilhada, bastou ao Venerado Tribunal
verificar a existência de um facto decorrente de um comportamento ilícito do
trabalhador praticado fora do local e horário de trabalho – inibição da
faculdade de condução – para, automaticamente diremos nós, dar como provada a
existência de justa causa, nos termos do art. 9º do DL 64-A/89 de 27/2.
5º
Perante o acórdão proferido, entendeu o Recorrente solicitar a aclaração do
mesmo ao Venerado Tribunal, nos termos seguintes:
Ademais, para além da manifesta violação da Lei em que entende o Recorrente
incorre o arresto em causa, entende igualmente o Recorrente que o mesmo perfilha
interpretação inconstitucional da noção de justa causa contida no artigo 53º da
CRP, já que com a tese perfilhada no acórdão em causa o venerado Tribunal acaba
por consagrar e legitimar o despedimento do Recorrente com base em justa causa
objectiva, fora dos casos legalmente previstos.
Efectivamente, segundo a interpretação perfilhada, bastou ao Tribunal recorrido
verificar a existência de um facto decorrente de um comportamento ilícito do
trabalhador praticado fora do local e horário de trabalho – inibição da
faculdade de condução – para dar como provada a existência de justa causa, nos
termos do art. 9º do DL 64-A/89 de 27/2.
Ora, a noção de justa causa legalmente prescrita, em obediência ao que tem sido
entendimento constitucional pacífico e que como tal se deve mostrar plasmado no
art. 9º do citado DL 64-A/89, de 27/2, exige para a sua verificação não apenas a
existência de um comportamento ilícito do trabalhador, mas também a existência
de um concreto reflexo desse comportamento na relação laboral, reflexo esse que
terá de ser de molde a tornar pratica e imediatamente impossível a manutenção do
vínculo laboral.
Para preenchimento desse requisito não basta a presunção de reflexos, mas a
concreta verificação de consequências do comportamento do trabalhador na relação
laboral.
Ora, no caso dos autos e em toda a matéria de facto dada como provada, tal
requisito não se mostra provado, e como tal preenchido, pelo que ao sancionar o
despedimento nos termos em que o fez, não deixou o venerado Tribunal de fazer
uma interpretação inconstitucional do preceito contido no artigo 9º do citado DL
nº 64-A/89, de 27/2.
A proceder o entendimento plasmado no acórdão, respeitante ao conceito de justa
causa, o julgador acrescentaria às formas legalmente previstas para cessação do
contrato de trabalho uma nova e de ocorrência automática:
- assim, bastaria – no caso de se tratar de um trabalhador
motorista – que o mesmo trabalhador tivesse sido condenado a uma inibição da
faculdade de conduzir para AUTOMATICAMENTE se considerar verificada justa causa
de despedimento.
No processo disciplinar a instaurar a esse trabalhador bastaria comprovar-se
esse facto para se permitir a aplicação dessa sanção disciplinar.
E, no processo judicial bastaria à entidade patronal a invocação dessa inibição
para que o tribunal confirmasse o despedimento perpetrado.
Por fim, como o venerado Tribunal o fez, presumia-se desse facto a violação de
deveres laborais, como o dever da confiança, o que seria suficiente para esse
efeito.
Manifestamente não é esse o sentido do direito fundamental consagrado na CRP e
no citado artigo 53º!
O Recorrente já suscitou essa realidade nas suas alegações de recurso, sem o
Tribunal verdadeiramente sobre a mesma se tivesse debruçado.
Assim, para todos os efeitos legais, suscita-se de novo esse vício do douto
acórdão, respeitosamente se requerendo que o venerado Tribunal esclareça o
entendimento perfilhado em confronto com os preceitos constitucionais ora
invocados.
E; não sendo sanado ou corrigido pelo venerado Tribunal o vício ora invocado,
estará igualmente legitimada a interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional. O recurso será interposto ao abrigo a alínea b) do nº 1 do art.
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei nº 85/89, de 7
de Setembro e pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, pretendendo-se ver
apreciada a constitucionalidade da norma do artigo 9º do DL nº 69-A/89, de 27/2,
com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida, ora retomada e
suscitada no recurso de apelação do Recorrente, e que desde já se requer seja
admitido, caso por alguma razão não seja admitido o recurso de revista ora
interposto.
6º
Requereu assim expressamente esclarecimentos relativamente ao entendimento
perfilhado em confronto com os preceitos constitucionais ora invocados,
interpondo simultaneamente o competente recurso.
7º
Em resposta ao seu requerimento, veio aquele Venerado Tribunal apenas sustentar
que o Recorrente não terá suscitado a questão da inconstitucionalidade durante o
processo,
8º
Pelo que, não se mostrando preenchido o fundamento da al. b) do nº 1 do art. 70º
da LCT, não admitiria o recurso interposto.
9º
Salvo o devido respeito, entende o Recorrente que se mostra cumprido o
fundamento da alínea b) do citado nº 1 do art. 70º, já que a questão da
inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo.
10º
E isto, essencialmente por duas ordens de razões.
11º
A primeira, porque muito embora o Recorrente a não tivesse nominado, logo no
recurso de apelação o Recorrente suscitou idêntica questão à apresentada em sede
justificação do recurso para o tribunal constitucional.
12º
Fê-lo ao longo do articulado da sua motivação de recurso, e em concreto quando
sob o ponto III – da sua fundamentação se refere à materialidade Da
improcedência da justa causa reconhecida pela sentença recorrida.
13º
É verdade que o Recorrente aí não identifica quaisquer preceitos constitucionais
violados ou suscita o entendimento que concretamente pretende ver discutido e
apreciado pelo meritíssimo Tribunal.
14º
Contudo, colocou nesse seu recurso idêntica questão à colocada em sede de
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, e à qual
o Venerado Tribunal, no despacho ora reclamado, não deixa de reconhecer
pertinência constitucional.
15º
Por outro lado, e em segundo lugar, verifica-se que o Recorrente suscitou a
inconstitucionalidade em causa durante o processo e antes que a decisão
proferida tivesse, de qualquer forma, transitado em julgado.
16º
Fê-lo, concretamente, naquele seu requerimento último, supra transcrito, através
do qual solicitou o esclarecimento referido, abordando precisamente a questão da
inconstitucionalidade da qual presente recorrer.
17º
Não pode assim deixar de se entender que se mostra cumprido o requisito da
alínea b) do nº1 do art. 70º a LTC,
18º
Impondo-se que seja admitido o recurso interposto.
19º
Por outro lado, verifica-se da factualidade exposta, que a questão ínsita ao
pedido de apreciação da inconstitucionalidade é de tal forma importante e
relevante,
20º
Que não pode deixar de merecer a apreciação do Tribunal Constitucional,
21º
Sob pena de, por razões puramente formais, permitir-se que permaneça na ordem
jurídica e aplicar-se a um concreto caso, um entendimento susceptível de
subverter – caso seja reconhecida a inconstitucionalidade invocada – os
alicerces fundamentais do ordenamento jus-laboral português.
22º
São pois essas as razões que respeitosamente se levam ao superior critério deste
Tribunal, e que o Recorrente entende são capazes de fazer proceder a sua
pretensão de recurso.
23º
Em cumprimento do disposto no nº 2 do art. 688º do CPC requer que a presente
reclamação seja instruída com certidão das suas alegações de recurso de
apelação, certidão do seu requerimento de esclarecimentos e de interposição de
recurso para o Tribunal Constitucional, além de certidão do despacho ora
reclamado.
Termos em que respeitosamente requer seja admitida e considerada procedente a
presente reclamação».
2.7 – Já neste Tribunal, o Representante do Ministério Público,
considerando a reclamação “manifestamente improcedente”, pugnou pelo seu
indeferimento.
B – Fundamentação
3 – Na essência, são três os argumentos que sustentam a
presente reclamação e que, na óptica do reclamante, justificam a admissibilidade
do recurso que interpôs para o Tribunal Constitucional.
Em primeiro lugar, entende o reclamante que “suscitou [durante
o processo] idêntica questão à apresentada em sede de justificação do recurso
para o Tribunal Constitucional”, apesar de aí “não identifica[r] quaisquer
preceitos constitucionais violados ou suscita[r] o entendimento que
concretamente pretende ver discutido e apreciado” neste Tribunal.
Em segundo lugar, o reclamante considera ter suscitado a
questão de constitucionalidade quando, no requerimento de fls..., solicitou ao
Tribunal da Relação um esclarecimento sobre “o entendimento perfilhado em
confronto com os preceitos constitucionais ora invocados”.
Por fim, sustenta que “a questão ínsita ao pedido de apreciação
de constitucionalidade é de tal forma importante e relevante que não pode deixar
de merecer a apreciação do Tribunal Constitucional.
Vejamos, então.
3.1 – O recurso em causa foi interposto ao abrigo do disposto no artigo 70.º,
n.º 1, alínea b), da LTC.
Para poder conhecer-se deste tipo de recurso, torna-se
necessário, a mais do esgotamento dos recursos ordinários e de que a norma
impugnada tenha sido aplicada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido, que
a inconstitucionalidade desta tenha sido suscitada durante o processo.
Como vem sendo reiterado por este Tribunal, a suscitação da questão de
inconstitucionalidade tem de traduzir-se numa alegação na qual se indique a
norma ou dimensão normativa que se tem por inconstitucional e se problematize a
questão de validade constitucional da norma (dimensão normativa) através da
alegação de um juízo de antítese entre a norma/dimensão normativa e o(s)
parâmetro(s) constitucional(ais), indicando-se, pelo menos, as normas ou
princípios constitucionais que a norma sindicanda viola ou afronta.
Nesse sentido, dir-se-á que «“Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma
jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é
colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para
decidir. Isto reclama, obviamente, que (...) tal se faça de modo claro e
perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada
interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a
Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa
incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou
princípio constitucional infringido.” Impugnar a constitucionalidade de uma
norma implica, pois, imputar a desconformidade com a Constituição não ao acto de
aplicação do Direito – concretizado num acto de administração ou numa decisão
dos tribunais – mas à própria norma, ou, quando muito, à norma numa determinada
interpretação que enformou tal acto ou decisão (cfr. Acórdãos nºs 37/97, 680/96,
663/96 e 18/96, este publicado no Diário da República, II Série, de 15-05-1996).
[§] É certo que não existem fórmulas sacramentais para formulação dos pedidos,
nem sequer para suscitação da questão de constitucionalidade. [§] Esta tem,
porém, de ocorrer de forma que deixe claro que se põe em causa a conformidade à
Constituição de uma norma ou de uma sua interpretação (...)» – cf., inter alia,
o Acórdão n.º 618/98 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt/).
3.2 – Projectando este entendimento no caso sub judicio, torna-se claro que o
reclamante não suscitou durante o processo qualquer questão de
constitucionalidade.
É certo que o reclamante questionou, no recurso para o Tribunal da Relação, a
“improcedência da justa causa reconhecida pela sentença recorrida”, mas fê-lo
sem controverter sub species constitutionis a bondade de qualquer critério
normativo, pelo que não podem dar-se por cumpridos os requisitos do recurso
interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.
Por outro lado, importa também reter que o objecto da fiscalização jurisdicional
de constitucionalidade é constituído apenas por normas jurídicas, não podendo o
Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre uma (eventual)
“inconstitucionalidade da decisão judicial”, como, de resto, tem sido
unanimemente acentuado pela jurisprudência deste Tribunal – cf. nesse sentido o
Acórdão n.º 199/88, publicado no DR II Série, de 28 de Março de 1989.
Por isso se reconhece que os recursos de constitucionalidade, embora interpostos
de decisões de outros tribunais, visam controlar o juízo que nelas se contém
sobre a violação ou não violação da Constituição por normas mobilizadas na
decisão recorrida como sua ratio decidendi ou seu fundamento normativo, não
podendo visar as próprias decisões jurisdicionais, identificando-se, nessa
medida, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objecto do
recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões
judiciais podem constituir objecto de tal recurso – cf., nestes exactos termos,
o Acórdão n.º 361/98 e, entre muitos outros, os Acórdãos nºs 286/93, 336/97,
702/96, 336/97, 27/98 e 223/03, todos disponíveis para consulta em
www.tribunalconstitucional.pt/ –, sendo que a nossa Constituição não configurou
o recurso de constitucionalidade como um recurso de amparo – ou de «queixa
constitucional» (Verfassungsbeschwerde, staatsrechtliche Beschwerde) – no âmbito
do qual fosse possível sindicar qualquer lesão dos direitos fundamentais, aí se
incluindo a possibilidade de conhecer, nesse âmbito, do mérito da própria
decisão judicial sindicanda.
Daí dizer-se, pois, que a “violação dos preceitos constitucionais”, imputada
directamente ao acto de concreta aplicação do direito, e não aos preceitos
legais aplicados pelas instâncias, não densifica nem traduz um problema de
constitucionalidade normativa susceptível de ser apreciado por este Tribunal. De
facto, uma coisa é reportar a inconstitucionalidade à concreta decisão
considerada como resultado de um momento de aplicação dos preceitos legais,
outra, bem diferente, é imputar à norma esse vício, identificando e isolando o
critério jurídico que aquela aplicação projecta, como momento normativo, numa
dada factualidade.
Nessa medida, será também de concluir que a questão relativa à “[in]existência
de justa causa” de despedimento, tal como a mesma foi levada ao conhecimento do
Tribunal da Relação, dizendo respeito a um problema de aplicação jurídica sem
que fosse controvertida a bondade constitucional de qualquer critério normativo
aí precipitado, não configura objecto idóneo do recurso de constitucionalidade.
3.3 – Igualmente improcedente é a argumentação do reclamante segundo a qual a
“questão de constitucionalidade” fora suscitada durante o processo em
requerimento onde solicitou à Relação esclarecimento sobre o decidido.
Na verdade, segundo a jurisprudência constante deste Tribunal (veja-se, por
exemplo, o Acórdão n.º 352/94, in Diário da República II Série, de 6 de Setembro
de 1994), é pacífico que a exigência de que a questão de constitucionalidade
seja equacionada durante o processo deve ser entendida, “não num sentido
meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à
extinção da instância)”, mas “num sentido funcional”, de tal modo “que essa
invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda
pudesse conhecer da questão”, “antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz
sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita”, por
ser este o sentido que é exigido pelo facto de a intervenção do Tribunal
Constitucional se efectuar em via de recurso, para reapreciação ou reexame,
portanto, de uma questão que o tribunal recorrido pudesse e devesse ter
apreciado (ver ainda, por exemplo, o Acórdão n.º 560/94, Diário da República,
II, de 10 de Janeiro de 1995, e ainda o Acórdão n.º 155/95, in Diário da
República, II série, de 20 de Junho de 1995).
É por isso que se entende que não constituem já momentos processualmente idóneos
aqueles que são abrangidos pelos incidentes de arguição de nulidades, pedidos de
aclaração e de reforma, dado terem por escopo não a obtenção de decisão com
aplicação da norma, mas a sua anulação, esclarecimento ou modificação, com base
em questão nova sobre a qual o tribunal não se poderia ter pronunciado (cf.,
entre outros, os acórdãos n.º 496/99, publicado no Diário da República II Série,
de 17 de Julho de 1996, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º vol., p. 663;
n.º 374/00, publicado no Diário da República II Série, de 13 de Julho de 2000,
BMJ 499º, p. 77, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47º vol., p.713; n.º
674/99, publicado no Diário da República II Série, de 25 de Fevereiro de 2000,
BMJ 492º, p. 62, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 45º vol., p. 559; n.º
155/00, publicado no Diário da República II Série, de 9 de Outubro de 2000, e
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46º vol., p. 821, e n.º 364/00, inédito).
Ora, não estando em causa a existência de uma situação anómala ou excepcional
que impossibilitasse a suscitação prévia da questão de constitucionalidade,
sempre seria de considerar-se extemporâneo o momento em que o reclamante invocou
tal questão.
Apesar disso, e em rigor, o certo é que nem nesse momento foi suscitada qualquer
questão de constitucionalidade de acordo com os parâmetros atrás definidos.
3.4 – Por fim, quanto ao último argumento invocado pelo reclamante, dir-se-á
apenas, reiterando o entendimento consignado no Acórdão n.º 496/06, disponível
em www.tribunalconstitucional.pt, que “o acesso aos tribunais não dispensa, num
Estado de direito, a existência de um conjunto de normas adjectivas cujo
cumprimento se encontra orientado para se alcançar a justa realização concreta
do direito”.
Em todo o caso, como se compreenderá, o requisito de que a questão de
constitucionalidade seja suscitada durante o processo, não constitui uma
exigência “puramente formal”, antes encontrando a sua razão de ser no nosso
sistema de controlo difuso da constitucionalidade das normas, no âmbito do qual
a intervenção do Tribunal Constitucional, em fiscalização concreta, limita-se ao
reexame ou reapreciação da questão de (in)constitucionalidade que o tribunal a
quo apreciou ou devesse ter apreciado - cf. sobre o sentido dessa exigência,
José Manuel Cardoso da Costa, «A jurisdição constitucional em Portugal»,
Separata dos Estudos em Homenagem ao Prof. Afonso Queiró, 2ª edição, Coimbra,
1992, pp. 51).
C – Decisão
4 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a
presente reclamação.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UCs.
Lisboa, 17 de Janeiro de 2007
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos