Imprimir acórdão
Processo n.º 1/2012
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. A 15 de novembro de 2010, e em conformidade com o decidido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 279/2010, foi A. notificado para, na sua qualidade do vogal do Conselho de Administração da B., SGPS, SA, apresentar, no prazo de trinta dias, a declaração de património, rendimento e cargos sociais relativa aos anos de 2007, 2008 e 2009. A notificação advertia para o cominado no nº 1 do artigo 3.º da Lei nº 4/83 (Lei do Controlo da Riqueza dos Titulares de Cargos Públicos), segundo o qual, e em caso de incumprimento doloso do dever de que se era notificado, se incorreria em “declaração de perda de mandato, demissão ou destituição judicial”.
Por, nos trintas dias seguintes, não ter sido apresentada qualquer declaração nem justificada a não apresentação, o Ministério Público propôs uma ação junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, pedindo que se declarasse a destituição de A. do cargo de vogal do Conselho de Administração da B., SGPS, SA. A ação foi proposta ao abrigo do disposto nos artigos 1.º e 3.º da Lei do Controlo da Riqueza dos Titulares de Cargos Públicos (Lei nº 4/83, de 2 de abril, alterada pelas Leis nºs 38/83, de 25 de outubro, 25/85, de 18 de agosto, e 19/2008 de 21 de abril), em conjugação com os artigos 11.º e 15.º da Lei da Tutela Administrativa (Lei nº 27/96, de 1 de agosto) e os artigos 46.º, 99.º e 191.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).
O Tribunal Administrativo de Círculo, por decisão proferida a 9 de abril de 2011, julgou procedente a ação e, em consequência, declarou a destituição de A. do cargo de vogal do Conselho de Administração da B., SGPS, SA.
A. recorreu então para o Tribunal Central Administrativo Sul.
2. Nas alegações de recurso, sustentou quatro questões essenciais: primeira, a da nulidade da citação [do réu para contestar a ação]; segunda, a da incompetência absoluta da jurisdição administrativa para conhecer do pedido; terceira, a do erro na forma do processo (questão subsidiária, a levantar caso se não acolhesse o argumento principal, segundo o qual a jurisdição administrativa seria incompetente em função da matéria); quarta, a da não aplicação ao recorrente do dever de apresentação da declaração de rendimentos.
No âmbito da terceira questão, relativa à forma de processo (o que implicava a aplicação ao caso do disposto no artigo 99.º do CPTA, sobre tramitação dos processos de contencioso eleitoral) disse o recorrente:
“Aliás, a interpretação e aplicação do artigo 99.º, nº 2, do CPTA, no sentido adotado pela decisão recorrida, de não serem admissíveis alegações apesar de ter sido produzida prova com a contestação, é claramente violadora do direito à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º, nº 4, da Constituição, o que desde já se alega.”
A nenhuma destas questões deu razão o Tribunal Central Administrativo Sul que, por acórdão de 30 de junho de 2011, negou provimento ao recurso, confirmando integralmente a sentença recorrida.
Quanto à questão atrás transcrita, relativa à interpretação e aplicação do artigo 99.º, nº 2 do CPTA, disse especificamente o TCA:
Alega o Recorrente que o Tribunal deveria ter dado ao ora Recorrente a oportunidade de apresentar as suas alegações, uma vez que este juntou prova com a respetiva contestação, e, não o tendo feito omitiu uma formalidade que a lei lhe impunha e que podia influenciar na decisão da causa, produzindo, portanto, tal omissão, de acordo com o artigo 201.º, nº 1, do CPC, nulidade processual que contamina os termos subsequentes que dela dependam absolutamente, incluindo a sentença recorrida.
O art.º 99.º, nº 2 do CPTA prevê que só são admissíveis alegações no caso de ser requerida ou produzida prova com a contestação.
Sobre este preceito escrevem Mário Aroso de Almeida e C.A. Fernandes Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2.ª ed. Revista – 2007, pág. 488-489: “Ao tornar a admissibilidade das alegações dependente do facto de ter sido requerida ou produzida prova com a contestação, o legislador pretende sublinhar que as alegações apenas deverão ter lugar quando possuam um efeito útil, isto é, quando as partes não tenham podido tomar posição, num momento anterior, sobre os elementos da prova que entretanto tenham sido juntos ao processo. Isto sucede se a prova for junta ou requerida com a contestação, visto que o autor, ao elaborar a sua petição, ainda não tem acesso a essa prova. Ao contrário, se a prova for junta com a petição, a entidade demandada poderá sobre ela pronunciar-se, em observância do princípio do contraditório, na sua contestação”.
Conforme decorre da posição destes Autores a admissibilidade de alegações neste processo visa assegurar o contraditório ao autor da ação, já que este não teria outra forma de se pronunciar sobre a prova requerida ou junta com a contestação.
Ora, visando assegurar-se o princípio do contraditório (ao autor) não há para o réu qualquer preterição do seu direito a uma tutela jurisdicional efetiva, já que este tem conhecimento da prova por si oferecida, tendo podido aduzir toda a argumentação a ela respeitante na contestação.
Assim sendo, a verificar-se a preterição de uma formalidade, nos termos do art.º 201.º, n.º 1 do CPC, a mesma apenas poderia ser invocada pelo autor (pois apena este pode ser considerado interessado na observância da mesma), o que não aconteceu no caso concreto, pelo que, atento o disposto no art.º 203.º, nº 1 do CPC não procede tal nulidade.
3. Desta decisão do TCA Interpôs A., ao abrigo do disposto no artigo 150.º do CPTA, recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo, o qual não foi admitido por decisão proferida a 20 de outubro de 2011. O recorrente arguiu ainda a nulidade desta decisão, pedido esse que foi desatendido a 22 de novembro; e, depois disso, interpôs o presente recurso para o Tribunal Constitucional.
4. No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, disse o recorrente que o recurso vinha interposto do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 9 de abril de 2011; que era colocado ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de novembro: LTC); e que nele se pedia que o Tribunal apreciasse três questões de constitucionalidade: (i) a relativa à norma constante do artigo 99.º, nº 2, do CPTA, interpretada e aplicada no sentido de não serem admissíveis alegações apesar de ter sido produzida prova com a contestação; (ii) a relativa à norma decorrente das disposições conjugadas dos artigos 150.º, nº 1, 198.º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, e 279.º, alínea b), do Código Civil, interpretada e aplicada no sentido de não ser possível configurar um caso de nulidade de citação a partir da circunstância de se aferir o último dia do prazo de contestação, não com base na efetivação do respetivo registo postal, mas com base na aposição do carimbo do tribunal na peça processual; (iii) a relativa à norma decorrente do artigo 198.º, nº 4, do Código de Processo Civil, interpretada e aplicada no sentido de que o encurtamento em um dia de um prazo de contestação de cinco dias não pode prejudicar a defesa do citado.
Em relação a cada uma destas três “normas”, alegava-se inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 20.º, nº 4, da Constituição.
5. Por despacho da relatora no Tribunal Constitucional, o recurso foi admitido apenas quanto à questão enunciada em (i), tendo sido considerado que, em relação às demais, se não verificavam os respetivos pressupostos de admissibilidade.
Na sequência deste despacho – e, portanto, apenas quanto à primeira questão de constitucionalidade – apresentaram no Tribunal alegações o recorrente, e, enquanto recorrido, o Ministério Público.
6. Veio o primeiro, antes do mais, identificar o objeto do recurso, tornando claro que [só] discutia perante o Tribunal Constitucional a interpretação dada pela decisão recorrida à norma constante do nº 2 do artigo 99.º do CPTA, nos termos da qual não seriam admissíveis alegações, apesar de ter sido produzida prova com a contestação.
De seguida, apresentou as razões pelas quais impugnava tal interpretação, que, no seu entender, teria sido obtida por meios hermenêuticos que, para além de não serem permitidos pelo disposto no nº 3 do artigo 9.º do Código Civil, se afastariam dos métodos impostos pelo princípio da interpretação conforme à Constituição. E, fixando-se neste segundo aspeto do problema - o único relevante para a discussão da questão de constitucionalidade – concluiu do seguinte modo:
1.ª A interpretação da noma constante do artigo 99.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, no sentido de não serem admissíveis alegações, apesar de ter sido produzida prova com a contestação, ou de as alegações apenas serem admissíveis, naquele caso, no interesse do autor, colide frontalmente com a formulação da referida norma, onde pode ler-se que «só são admissíveis alegações no caso de ser requerida ou produzida prova com a contestação» e viola o direito à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.° da Constituição.
2.ª Em primeiro lugar, o artigo 99.º n.º 2, não consagra um simples direito de resposta à contestação, que poderia fundar a interpretação normativa em crise, no sentido de a respetiva previsão servir apenas o interesse do autor, quando o réu apresente prova na contestação, mas antes de uma verdadeira fase de alegações que incide, entre outros, sobre a prova produzida, e que não teve discussão em juízo, fase essa que, por definição, aproveita a ambas as partes no processo, sobretudo se se tiver em conta o reduzido prazo para contestação.
3.ª Em segundo lugar, a interpretação normativa questionada desrespeita o princípio da proporcionalidade, ínsito na própria ideia de processo equitativo: (i) na vertente da adequação, na medida em que o objetivo da celeridade processual, alegadamente subjacente àquela interpretação, teria sido conseguido através da instituição de um simples direito de resposta à contestação a favor do autor, sem se consagrar uma fase de alegações que, por definição, deve beneficiar ambas as partes; ii) na dimensão da necessidade, pois não se compreende que possa pôr em causa o objetivo da celeridade processual a previsão de um prazo de alegações, no interesse de ambas as partes, fixado por lei em cinco dias; (iii,) na dimensão da proporcionalidade em sentido estrito, uma vez que a celeridade processual que se ganha com a amputação eventual de um prazo de alegações de cinco dias é claramente sobrepujada pelo interesse do réu, e presumivelmente do próprio autor, em discutir mais aprofundadamente a prova por si apresentada e assim poder influenciar o desfecho do processo a seu favor.
4.ª Em terceiro lugar, a interpretação normativa questionada deixa o réu à mercê do autor que poderá, só ele, arguir a nulidade da falta de alegações, caso o desfecho do processo lhe venha a ser desfavorável, violando assim claramente a ideia de igualdade de armas ou igualdade processual.
5.ª Nem se diga, em sentido contrário ao exposto, que se a previsão de uma fase de alegações fosse estabelecida no interesse de ambas as partes, deveria essa fase ocorrer não apenas quando seja produzida prova com a contestação, mas também com a petição inicial, pois, para além do prazo de contestação ser mais curto do que o da propositura da ação, só a produção de prova com a contestação indicia a existência de uma factualidade controvertida relativamente à qual se justifica a discussão jurídica que é própria de uma fase de alegações.
6.ª A interpretação normativa do artigo 99.°, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, no sentido de apenas serem admissíveis alegações, quando tenha sido produzida prova com a contestação, no interesse do autor, é, pois, claramente contrária ao disposto no artigo 20.° da Constituição, que consagra o direto à tutela jurisdicional efetiva, pelo que a decisão recorrida não pode subsistir.
7. O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional, por seu turno, começou as suas contra-alegações colocando uma questão prévia que, a ser acolhida, implicaria uma decisão de não conhecimento do objeto do recurso por parte do Tribunal.
3. Tal como resulta da decisão recorrida, a “interpretação normativa” impugnada não consta, simplesmente, do artigo 99.º (Tramitação), n.º 2, do CPTA.
Consta, antes, das disposições conjugadas dos artigos 99.º, n.º 2, do CPTA e 201.º (Regras gerais sobre a nulidade dos atos), n.º 1, do CPC. E foi assim formada, justamente, para resolver uma questão suscitada pelo ora recorrente, a “nulidade processual por falta de alegações”.
O ponto é sobremaneira relevante, pois é esta última disposição que determina os critérios que permitem aquilatar se houve, ou não, no caso concreto, detrimento para o bom exame da causa e em consequência, julgar se foram lesados os interesses da parte.
4. Finalmente, cumpre notar que esta combinação normativa foi construída com base, e em torno, de um caso jurídico com características específicas.
Assim, em rigor, a decisão recorrida, de “interpretação”, transita para “aplicação” de norma. Sendo este o caso, de “aplicação de norma”, o recurso de constitucionalidade não teria objeto idóneo, pois o mesmo recurso está, com se sabe circunscrito a “normas” e “interpretações normativas” e não a “aplicações normativas” – respeita, por outras palavras, a “normas” (lato sensu) e não a “atos judiciais”.
No entanto, e após o levantamento da questão, o Ministério Público pugnou, num juízo de mérito, pela não inconstitucionalidade. Fê-lo nos seguintes termos:
1.ª) A decisão recorrida não viola o direito de defesa e ao contraditório do ora recorrente (e R. na ação), que nos autos deduziu as suas razões de facto, esgrimiu os argumentos de direito e ofereceu os seus meios de prova, pelo que é insofismável que exercitou, em toda a sua extensão, tal direito subjetivo fundamental de defesa e ao contraditório.
2.ª) A decisão recorrida não viola, igualmente, o direito subjetivo fundamental à “igualdade processual”, pois, a mais de ter lançado mão das referidas faculdades processuais de defesa, o ora recorrente gozou vantagens de a sua contestação e, bem assim, de o documento que apresentou, não poderem ter sido processualmente examinados e, sendo caso, rebatidos pelo A., pois a concreta marcha do processo não o permitiu.
3.ª) O presente tipo de recurso de constitucionalidade tem uma função predominantemente “subjetiva”, sendo evidente que, na concreta tramitação dos autos, não houve qualquer lesão do direito subjetivo fundamental da ora recorrente ao “processo equitativo”.
Importa apreciar e decidir.
II - Fundamentação
8. Para que melhor se compreenda a questão que se coloca ao Tribunal torna-se necessária uma prévia referência ao quadro de direito ordinário do qual ela emerge.
A Lei nº 4/83, de 2 de abril (Controlo da Riqueza dos Titulares de Cargos Públicos), dispõe, na sua atual redação (artigo 3.º, nº 1):
Em caso de não apresentação das declarações previstas nos artigos 1.º e 2.º, a entidade competente para o seu depósito notificará o titular de cargo a que se aplica a presente lei para a apresentar no prazo de 30 dias consecutivos, sob pena de, em caso de incumprimento culposo (…), incorrer em declaração de perda de mandato, demissão ou destituição judicial.
Por estar sujeito, em função do cargo que ocupava, ao dever de apresentação de declaração de rendimentos, foi o recorrente no presente processo de tal notificado pela entidade competente. A notificação advertia-o para a cominação legal em caso de incumprimento no prazo de 30 dias. No entanto, tal prazo decorreu sem que houvesse apresentação de declaração ou justificação para a sua não apresentação. Foi na sequência deste facto que o Ministério Público propôs ação junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, pedindo, nos termos do artigo 3.º da Lei nº 4/83, de 2 de abril, declaração de destituição do cargo.
A Lei nº 4/83, de 2 de abril, não identifica a forma do processo que deve ser seguida para que se obtenha, em caso de incumprimento doloso do dever de apresentação da declaração de rendimentos, a “destituição judicial” a que se refere o nº 1 do seu artigo 3.º. No entanto, o Ministério Público intentou a ação junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, seguindo a forma dos processos urgentes prevista no Título IV do Código de Processo nos Tribunais Administrativos: mais precisamente, a prevista na Secção I (contencioso eleitoral) do seu Capítulo I (das impugnações urgentes).
A escolha desta forma do processo resultou de uma certa interpretação do sistema legal. A Lei nº 27/96, de 1 de agosto (Lei da Tutela Administrativa) dispõe, no nº 1 do seu artigo 11.º, que as decisões de perda de mandato e de dissolução de órgãos autárquicos ou de entidades equiparadas são da competência dos tribunais administrativos de círculo, esclarecendo o nº 2 que as correspondentes ações devem ser interpostas pelo Ministério Público. Sobre o regime processual que deve ser seguido nas ações para declaração de perda de mandato dispõe por seu turno o artigo 15.º da mesma lei, que, para além de lhes atribuir caráter urgente (nº 1), determina, quanto a alegações e prazos (nº 5): [é ] aplicável a alegações e prazos o preceituado nos nºs 2 e 3 do artigo 60.º do Decreto-lei nº 267/85, de 16 de julho.
O Decreto-lei nº 267/85, de 16 de julho, fixou a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA). No seu artigo 60.º, a LPTA regulava a tramitação dos processos de contencioso eleitoral. Revogada que foi a LPTA pela Lei nº 15/2002, de 22 de fevereiro, que aprovou o Código de Processo nos Tribunais Administrativos, entendeu-se (ainda com apoio nos artigos 46.º e 191.º do mesmo Código) que as remissões feitas pelo artigo 15.º da Lei da Tutela Administrativa quanto à tramitação dos processos de contencioso eleitoral deveriam agora valer para os nºs 2 e 3 do artigo 99.º do CPTA.
É, pois, graças a todo este processo interpretativo que o Ministério Público intenta ação no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, ao abrigo das disposições conjuntas dos artigos 1.º e 2.º da Lei do Controlo da Riqueza dos Titulares de Cargos Políticos (Lei nº 4/83, de 2 de abril), dos artigos 11.º e 15.º da Lei da Tutela Administrativa (Lei nº 27/96, de 1 de agosto) e dos artigos 46.º, 99º, e 191.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Mais especificamente, é ainda por causa desta interpretação que se segue no processo a tramitação fixada pelo artigo 99.º do CPTA.
9. Tudo isto é contestado pelo recorrente nas instâncias. Como atrás se relatou, o que nelas se discutiu foi (para além da questão substantiva de saber se o recorrente estaria ou não sujeito ao dever de apresentação da declaração de rendimentos) a questão adjetiva de saber se seria competente em função da matéria a jurisdição administrativa, e se seria ou não idónea a forma de processo seguida.
Mas a toda esta discussão – e às razões pelas quais nunca quanto a ela obteve o recorrente ganho de causa – é naturalmente alheio o Tribunal Constitucional, quando chamado a intervir, por via de recurso, em processo de controlo concreto da constitucionalidade de normas. Neste contexto, e para efeitos do juízo que se há de proferir, releva apenas o problema de constitucionalidade que foi identificado pelo recorrente no pedido endereçado ao Tribunal. E esse pode ser equacionado do seguinte modo:
Uma vez aplicado ao caso (mal ou bem: a questão é, agora, indiferente) o nº 2 do artigo 99.º do CPTA, que diz que na tramitação dos processos de contencioso eleitoral só são admissíveis alegações no caso de ser requerida ou produzida prova com a contestação, o tribunal a quo não notificou o recorrente para apresentar alegações, apesar de este ter junto, com a contestação, documento que, no seu entender, continha prova quanto a factos por si alegados no respetivo articulado.
Ao assim proceder, o tribunal recorrido estribou-se numa certa interpretação do nº 2 do artigo 99.º do CPTA, nos termos da qual a admissibilidade das alegações, nesta forma de processo, visaria, apenas, assegurar o contraditório do autor da ação, por ser esta a única oportunidade que o mesmo teria para se pronunciar sobre a prova requerida ou junta com a contestação. Como, no caso, não estaria em causa a necessidade de assegurar o contraditório do autor da ação, entendeu o juiz a quo que nenhuma razão haveria para que nele o tribunal se entendesse vinculado a ordenar a produção de alegações, não obstante a redação literal do nº 2 do artigo 99.º do CPTA.
Avaliar do acerto desta interpretação é tarefa que, naturalmente, se não inclui no âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional: a resposta à questão de saber se, ao atribuir este sentido ao preceito legal, o juiz da causa deixou de cumprir o nº 3 do artigo 9.º do Código Civil, segundo o qual na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, não a tem que dar a jurisdição constitucional. O que cabe a esta última é apenas a resolução da questão de saber se ao conferir este sentido ao disposto no nº 2 do artigo 99.º do CPTA a decisão recorrida violou, como sustenta o recorrente, o nº 4 do artigo 20.º da Constituição da República.
10. Nenhum motivo há para que o Tribunal não responda à questão de constitucionalidade que, desta forma, lhe foi colocada. Com efeito, não parece que procedam as questões prévias colocadas pelo Ministério Público nas suas contra-alegações, questões essas que, a serem acolhidas, levariam naturalmente (embora tal não seja expressamente dito no articulado apresentado pelo Ministério Público) a uma decisão de não conhecimento por parte do Tribunal.
Antes do mais, não parece que proceda o argumento segundo o qual o recorrente não identificou corretamente a norma aplicada pela decisão recorrida, cuja inconstitucionalidade, alegada durante o processo, pede agora que o Tribunal Constitucional julgue.
Como se sabe, o Tribunal Constitucional só pode, por via de recurso, proferir juízo sobre a validade constitucional de uma norma se essa mesma norma tiver sido desaplicada pelo tribunal a quo com fundamento na sua inconstitucionalidade, ou, caso tal não suceda, se essa mesma norma tiver sido aplicada pelo tribunal a quo, não obstante ter sido alegada, pela parte no processo, a sua inconstitucionalidade. É o que decorre da Constituição (artigo 280.º, nº 1) e da lei (artigo 70.º, nº 1, da LTC). A identidade entre as duas normas - entre aquela que foi aplicada ou desaplicada pelo tribunal a quo e aquela outra cuja validade se pede, em recurso, que o Tribunal Constitucional aprecie – forma assim um pressuposto ineliminável do recebimento do pedido em processos de fiscalização concreta da constitucionalidade. É que, a inexistir tal identidade (o que sempre ocorrerá, se o tribunal a quo decidir com fundamento em outra norma, que não aquela cuja apreciação for pedida), o juízo proferido pelo Tribunal Constitucional tornar-se-á inútil, visto que não terá virtualidade para reformar ou mandar reformar a decisão recorrida “em conformidade com o julgamento sobre a questão de constitucionalidade” (artigo 80.º, nº 2 da LTC).
Sustenta o representante do Ministério Público no Tribunal que é precisamente o que se passa no presente caso, uma vez que, nele, a “interpretação normativa” impugnada não consta, simplesmente, do artigo 99.º do CPTA (como o indica o recorrente no requerimento de interposição do recurso), mas antes das disposições conjugadas desse mesmo preceito e do artigo 201.º. nº 1, do CPC, relativo às regras gerais sobre a nulidade dos atos.
Não parece, porém, que proceda a objeção.
Na verdade, foi por o juiz a quo ter imputado ao artigo 99.º do CPTA o sentido que lhe atribuiu que se entendeu não haver lugar à nulidade prevista no nº 1 do artigo 201.º do CPC. A decisão recorrida assentou numa razão determinante, e essa não decorreu de nenhuma particular interpretação da norma do Código de Processo Civil. Foi antes a especial “leitura” feita, in casu, da norma do Código de Processo nos Tribunais Administrativos que determinou, de forma consequencialmente neutra, a não aplicação do regime processual civil de nulidades. Dizendo de outro modo: foi porque se entendeu que as alegações a que se refere o nº 2 do artigo 99.º do CPTA só seriam admissíveis para assegurar o contraditório do autor (não sendo portanto admissíveis, apesar [de o réu] ter produzido prova com a contestação) que se concluiu não ocorrer no caso preterição de nenhuma formalidade prescrita por lei, nos termos do nº 1 do artigo 201.º do CPC. Sob o ponto de vista hermenêutico, o processo decisório seguido pelo tribunal a quo foi concluído sem que o regime de nulidades previsto no Código de Processo Civil (ou, melhor, a sua específica interpretação) cumprisse nele alguma função autónoma. O disposto no nº 1 do artigo 201.º do CPC foi aplicado enquanto mera consequência neutra da “leitura” feita de outra norma, “leitura” essa que consumiu toda a especial “dimensão interpretativa” que a normatividade do caso encerra. É por isso que não pode sustentar-se a inutilidade do juízo do Tribunal pelo simples facto de o objeto do recurso ter sido delimitado sem a inclusão do regime de nulidades. Na realidade, essa inclusão não era necessária. Não sendo a aplicação daquele regime mais do que uma consequência valorativamente neutra do sentido que se der à norma do artigo 99.º, n º 2 do CPTA, qualquer juízo que sobre esta última norma venha a recair – seja ele de inconstitucionalidade, seja ele de não inconstitucionalidade – terá sempre a virtualidade de reformar ou confirmar a sentença recorrida.
Do que acaba de dizer-se resulta, também, a improcedência da segunda objeção feita pelo Ministério Público ao recebimento do pedido. Não há dúvida que, no caso, foi aplicada pelo tribunal comum uma norma, com certa interpretação, cuja inconstitucionalidade a parte no processo antes arguira. A questão chega ao Tribunal tal como a prefigura o artigo 280.º, nº 1, alínea b) da CRP e o artigo 70.º, nº 1, alínea b) da LTC. Importa, por isso, dar-lhe resposta.
11. As normas de direito processual não são nunca, qualquer que seja a forma de processo, constitucionalmente indiferentes. Como o Tribunal tem dito inúmeras vezes (vejam-se, por exemplo, os Acórdãos nºs 271/95, 335/95, 508/92 ou 413/2010), embora o legislador ordinário goze de amplo espaço de liberdade na conformação das regras de processo, essa liberdade é desde logo limitada pelo simples facto de ser através dessas regras que se concretiza um dos elementos essenciais do Estado de direito: o direito de acesso ao Direito e aos tribunais, de modo que possam vir a ser efetivamente tutelados pelo Estado as posições jurídico-subjetivas que o seu ordenamento reconheça. Assim, e antes do mais, é ordenado em conformidade com a Constituição o processo que não obstaculize à realização, em tempo côngruo, desse objetivo. Dizer isto é, no entanto e como se sabe, ainda dizer pouco.
À parte o processo penal, que tem, pela sua mais próxima conexão com o valor da liberdade, a vinculação especialmente densa que lhe confere o artigo 32.º da CRP, todas as demais formas de processo se encontram sujeitas à necessidade de cumprir as exigências que decorrem do nº 4 do artigo 20.º da CRP: o legislador que as conforma tem portanto que assegurar que através delas se possa exercer o direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com a observância dos princípios da imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e o resultado de umas e outras. (Acórdão nº 444/91, em DR II, de 2 de abril de 1992, p. 3137).
Se isto é assim em relação ao processo civil, declarativo ou executivo, também o é quanto ao processo administrativo. As injunções dirigidas ao legislador ordinário nos nºs 4 e 5 do artigo 268.º da CRP não visam mais do que garantir que, também no domínio das ações e recursos que tenham por objetivo dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, disponham as pessoas de meios processuais justos e equitativos, porque conformes às exigências constantes do artigo 20.º da Constituição. A longa persistência de um contencioso limitado à anulação de atos administrativos, que durante décadas modelou a estrutura essencial da nossa justiça administrativa, levou à especificação das normas constitucionais sobre processo administrativo, hoje constantes – depois de sucessivos aperfeiçoamentos, alcançados nas revisões constitucionais de 1982, 1989 e 1997 – dos nºs 4 e 5 do artigo 268.º; mas, no essencial, o que essas especificações pretenderam não foi mais do que impor ao legislador ordinário um programa de transformação do processo administrativo, para que este, deixando de ser o processo próprio de um contencioso limitado, se moldasse de acordo com as exigências de uma ordem constitucional que se pauta pelo princípio do processo justo e equitativo.
12. Estas exigências não impedem que, ao conformar o processo administrativo, o legislador identifique formas especiais de processos urgentes, que, em função da premência da tutela, propiciem a rápida composição material dos litígios. Ponto é que sob a capa formal da urgência se não contrarie o núcleo essencial do processo equitativo; e, para tanto, duas exigências devem sempre, nestas formas de processo, ser satisfeitas. A primeira diz respeito à justificação material da “urgência”. Onde tudo é urgente nada é urgente: a especial forma de processo administrativo que é pensada para dispensar uma tutela principal em tempo curtíssimo, sendo, pela natureza das coisas, excecional, não deve aplicar-se a domínios da vida que dela não necessitem. A segunda exigência diz respeito à preservação do princípio essencial do processo equitativo. Por mais célere que seja a tramitação, o que se terá sempre que assegurar é que, durante o processo, cada uma das partes possa oferecer as suas razões de facto e de direito, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário, e discretear sobre o resultado de umas e outras. Como o processo urgente não pode deixar de ser equitativo, a sua tramitação também não pode deixar de incluir uma fase que propicie o correto funcionamento das regras do contraditório.
A norma sob juízo decorre de uma certa interpretação que foi conferida a uma das disposições do artigo 99.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. O artigo 99.º insere-se no Título IV do Código, relativo aos processos urgentes e, dentro dele, no Capítulo I, dedicado às impugnações urgentes. A primeira impugnação urgente que o CPTA regula é a impugnação de atos administrativos em matéria eleitoral: a secção I deste capítulo integra as normas sobre contencioso eleitoral, definindo o artigo 97.º o seu âmbito, o artigo 98.º os seus pressupostos e o artigo 99.º a sua tramitação, formando um sistema regulador que, como já se viu, é largamente oriundo da LPTA.
Pela sua própria natureza, o contencioso eleitoral requer um processo urgente. Sobre a adequação entre forma e matéria de processo não pode haver, neste domínio, lugar a dúvidas. Isto mesmo decorre da abundante jurisprudência do Tribunal sobre o tema, onde se tem salientado que, sendo o processo eleitoral decisivamente marcado pela urgência e celeridade, o contencioso que lhe diz respeito não pode deixar de ser orientado pela disciplina rigorosa no cumprimento dos [muito curtos] prazos legais, sob pena de se tornar inviável o calendário fixado para os diversos atos que integram o processo eleitoral. (Vejam-se, entre muitos outros, os Acórdão nºs 287/2002, 427/2005, 1/2006 e 471/2008).
Por outro lado, o artigo 99.º, ao regular a tramitação do processo, prevê que se lhe aplique a marcha própria da ação administrativa especial, o que, ao incluir necessariamente a resposta dada pela contestação à petição inicial, não deixa de acomodar o processo às exigências fundamentais do princípio do contraditório. A limitação, que é posta pelo nº 2 do referido artigo, à existência de uma fase ulterior de alegações, bem como o prazo apertado de cinco dias para a apresentação de contestação, fixado pela alínea a) do seu nº 1, são em si mesmas concretizações da especial natureza urgente do processo. Se não existissem, a tramitação do processo seria a fixada para o regime geral, não marcado pela urgência da emissão de uma decisão de mérito. A essência do regime urgente reside, portanto, precisamente aqui: no prazo apertado que é dado para a apresentação da contestação, que, ao invés de ser de 30 dias (como sucede no regime geral: artigo 81.º, nº 1) é apenas de 5; na possibilidade de não serem admitidas alegações, que, ao invés de só serem dispensadas se o autor, com a anuência expressa ou tácita do réu, o requerer em petição inicial (como sucede no regime geral: artigos 78.º, nº 1, e 83.º, nº 2), só são admissíveis no caso de ser requerida ou produzida prova com a contestação. A redução forte do prazo de apresentação da contestação visa garantir a celeridade do processo; a restrição imposta à admissibilidade das alegações visa garantir a sua simplificação. São, portanto, estas, especialidades do regime de tramitação que conferem a esta forma de processo a sua singularidade. Sem elas, a legítima escolha do legislador ordinário, de incluir, entre os diferentes tipos de processos administrativos, formas de processo funcionalizadas à obtenção urgente de decisões de mérito, ficaria esvaziada de sentido.
13. É neste contexto que deve ser avaliada a norma sub judicio.
Alega o recorrente que a interpretação dada pela decisão recorrida ao disposto no nº 2 do artigo 99.º do CPTA - segundo a qual as alegações só são aí previstas no interesse do autor, pelo que não são admissíveis ainda que o réu produza prova com a contestação – viola o princípio constitucional do processo equitativo, previsto no nº 4 do artigo 20.º da Constituição. E isto numa dupla perspetiva: objetivamente, porque a dispensabilidade das alegações, assim delimitada, contraria em si mesma o conceito constitucional de processo equitativo, tal como ele decorre do referido preceito constitucional; subjetivamente, porque com ela se afeta de forma desproporcionada o direito de cada um a um processo justo, direito esse que o artigo 20.º também consagra
Não parece, contudo, que assim seja.
Não o é, seguramente, se se tiver em conta – abstraindo das peculiaridades da norma do caso - o fim para o qual foi pensado, no Código de Processo nos Tribunais Administrativos, esta forma especialíssima de processo urgente. O artigo 99.º do CPTA regula, como vimos, a tramitação dos processos de contencioso eleitoral. Pela própria natureza das matérias sobre as quais incide, o contencioso eleitoral requer formas céleres e simplificadas de processo, que permitam a obtenção em curto espaço de tempo de uma decisão de mérito. As regras especiais de tramitação que no referido artigo se consagram são claramente funcionalizadas à obtenção desse objetivo, legítimo, de simplificação e rapidez processual. Compreendida neste contexto a admissibilidade restrita da fase de alegações, nada permite concluir que tal restrição, por si só, comprometa a observância do disposto no nº 4 do artigo 20.º da CRP: como o nº1 do artigo 99.º do CPTA garante que, salvas as especialidades de regime no mesmo artigo prescritas, se aplica ao processo a marcha da ação administrativa especial, garantida fica a resposta dada pela contestação à petição inicial (artigos 78.º e ss. do CPTA), pelo que sempre terão as partes a possibilidade de, em iguais condições, apresentar as suas razões de facto e de direito, produzir as suas provas e discretear sobre o valor de umas e de outras. A interpretação segundo a qual, neste tipo de processo, a fase de alegações só ocorre quanto tal tiver efeito útil – o que acontecerá naturalmente se na contestação se aduzirem novos dados, de facto e de direito, desconhecidos do autor no momento da petição inicial, uma vez que só assim se confrontarão as partes com elementos instrutórios por elas não examinados – não invalida a conclusão a que acima se chegou. Na verdade, decorrendo do conceito constitucional de processo equitativo (cfr. supra, ponto 11), precisamente, a obrigação do legislador ordinário de conformar a tramitação processual de modo a conferir, em condições iguais às “partes” no processo, a possibilidade de apresentar as razões próprias e de examinar e controverter as razões alheias, não é a norma sub judicio que lesa essa obrigação, uma vez que ela é já cumprida com a apresentação da contestação.
Pode invocar-se que, se assim é sob o ponto de vista objetivo, não o será necessariamente sob o ponto de vista subjetivo. É o que ainda sustenta o recorrente, quando alega que a interpretação impugnada, ao fazer depender a admissibilidade das alegações da necessidade de assegurar o contraditório do autor, afeta de forma desproporcionada o direito de cada um (no caso, do réu) a um processo equitativo.
Não restam dúvidas de que o nº 4 do artigo 20.º da CRP, para além de consagrar um princípio (objetivo), contém também um radical subjetivo: se o legislador ordinário está obrigado a conformar as normas de processo de modo a que elas propiciem uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com a observância dos princípios da imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e o resultado de umas e outras, tal sucede porque as pessoas têm o direito, fundamental, a que assim seja. Este direito é no entanto limitável, e deve ser limitado sempre que tal se mostre necessário para assegurar outros valores ou interesses constitucionalmente protegidos.
Como já vimos, as vinculações a que está sujeito o legislador ordinário quando conforma as normas de processo administrativo não excluem a possibilidade de consagração de processos urgentes. No caso do contencioso eleitoral, tal possibilidade converte-se, pela natureza das coisas, em inevitabilidade, uma vez não poder deixar de ser urgente a emissão de uma decisão de mérito quando está em causa a garantia jurisdicional da regularidade dos procedimentos eleitorais. Como é escusado sublinhar a intensidade e o peso do “valor” ou “interesse” constitucional que, aqui, justifica a simplificação do processo, parece claro que não é desproporcionada a medida relativa à admissibilidade estrita da fase de alegações, que, ao inscrever-se no âmago da natureza especial da tramitação urgente, aparece como o meio adequado, necessário e proporcional – em suma: equilibrado – para realizar o fim que a medida serve.
É certo que a “norma do caso” implica uma particularidade até agora não considerada. Esta forma especial de tramitação foi usada, com a interpretação estrita sobre a admissibilidade das alegações, em um processo estranho ao contencioso eleitoral, por força da remissão dinâmica que as instâncias fizeram, e que acima se descreveu, das normas da Lei da Tutela Administrativa para o artigo 99.º do CPTA. Mas não estando em causa, no presente recurso, o exame da constitucionalidade desse processo interpretativo, e restringindo-se a norma questionada à interpretação dada ao nº 2 do artigo 99.º do CPTA, sempre se dirá que todas as considerações que atrás se fizeram mantêm a toda a sua validade, apesar de não terem tido em conta a particularidade, atrás mencionada, da norma sub judicio.
Com efeito, e sob o ponto de vista objetivo, nenhuma razão há para que se altere a conclusão a que acima se chegou. Como então se disse, a existência, durante o processo, da fase da contestação, cumpre por si só as exigências que decorrem do conceito constitucional de processo equitativo. Mas, mesmo que assim se não considerasse – e se admitisse portanto que fora afetado no caso o direito de cada um ao processo devido – sempre haveria que concluir que a afetação, pelo seu sentido e medida, se não mostraria nem inadequada, nem desnecessária, nem desproporcionada face à finalidade que serve. Recorde-se que, no caso, a tramitação simplificada que o artigo 99., nº 2, do CPTA prevê foi aplicada – com a leitura que o tribunal a quo fez do preceito – a um processo destinado à obter a declaração judicial da destituição de cargo público por incumprimento do dever de apresentação da declaração de rendimentos e património, nos termos da Lei de Controlo da Riqueza dos Titulares de Cargos Políticos; e que o foi depois de ter sido certificado jurisdicionalmente (através de um processo tramitado com todas as garantias de defesa) a existência do dever e o seu âmbito subjetivo de incidência.
III - Decisão
Assim, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
a) não julgar inconstitucional a norma constante do nº 2 do artigo 99.º do CPTA, na interpretação segunda a qual não são admissíveis as alegações do réu, apesar de este ter produzido prova com a contestação;
b) não conceder provimento ao recurso, fixando-se em 25 (vinte e cinco) unidades de conta a taxa de justiça.
Lisboa, 10 de Janeiro de 2013. – Maria Lúcia Amaral – José da Cunha Barbosa – Maria João Antunes (com declaração quanto ao conhecimento) – Maria de Fátima Mata-Mouros (com declaração quanto à fundamentação) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida quanto à questão do conhecimento do objeto do recurso, por entender que o tribunal recorrido não aplicou, como ratio decidendi, a norma cuja apreciação foi requerida.
Conhecendo da questão de saber se verificava ou não a nulidade processual invocada pelo recorrente (artigo 201.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – CPC), na medida em que este alegava não lhe ter sido dada oportunidade de apresentar as suas alegações, tendo juntado prova com a contestação (artigo 99.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos - CPTA), o Tribunal Central Administrativo Sul aplicou necessariamente norma do regime de nulidades. Julgou improcedente a nulidade, por a mesma não poder ser invocada pelo recorrente (réu), por não poder ser considerado interessado na observância da formalidade em causa, uma vez que a admissibilidade de alegações visa assegurar o contraditório ao autor da ação (artigos 99.º, n.º 2, do CPTA e 201.º, n.º 1, e 203.º, n.º 1, do CPC).
Maria João Antunes
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Não acompanhei o acórdão na parte em que considera que a existência, durante o processo de contencioso eleitoral, da fase da contestação, cumpre por si só as exigências que decorrem da obrigação constitucional de processo equitativo contida no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
2. O direito de acesso aos tribunais, na sua dimensão de acesso a um processo justo ou equitativo, tem sido definido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, como sendo «um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com a observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras» (cfr., entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 86/88, 444/92, 473/94 e 413/10, disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt; sublinhado nosso).
3. Para aferir do respeito por este entendimento no caso, temos que analisar o regime legal em presença estabelecido no CPTA para o processo contencioso eleitoral. De acordo com este regime, sempre que seja requerida prova, por qualquer das partes, e o juiz não indefira o requerimento (cfr. artigo 90.º, n.º 2), segue-se uma fase instrutória que é necessariamente posterior aos articulados e poderá justificar, ou não, a abertura subsequente da fase de alegações. Em ordem a simplificar o processado à luz da urgência que o justifica, a lei dispensa a verificação da fase de alegações no caso de apenas o autor apresentar prova. Caso seja o réu a requerer ou juntar prova, deve abrir-se necessariamente a fase de alegações. É nesta fase que se concretiza o direito das partes a «discretear sobre o valor e resultado» das provas apresentadas, em especial, as apresentadas pelo réu.
4. Diante deste desenho definido para o processado, não é possível afirmar que pelo facto de ter sido garantida a apresentação de contestação, a interpretação dada ao artigo 99.º, n.º 2 do CPTA pelo Tribunal a quo não restringiu o direito ao processo equitativo imposto pela Constituição.
Com efeito, no processo de contencioso eleitoral, independentemente da questão do direito do autor a se pronunciar sobre as provas apresentadas pelo réu, o direito do réu a alegar sobre o valor e resultado das provas não é cumprido na contestação, quando as provas a conhecer são apresentadas com este articulado. De acordo com a disciplina legal prevista para a tramitação deste processo, no caso de com a contestação ser oferecida prova, só em fase ulterior se abre o momento para a produção de alegações, uma fase especificamente prevista para o efeito e sujeita à disciplina geral prevista para a produção de alegações, sendo a defesa a última a alegar (cfr. artigo 91.º, n.º 4, e 99.º, n.º 3, alínea a) do CPTA).
O regime assim estabelecido na lei não permite, pois, afirmar que, com a contestação, o réu vê garantida a oportunidade de alegar sobre a prova. Bem pode acontecer que, por estratégia processual, o réu reserve parte da argumentação para a fase posterior de alegações.
5. Só assim não será se o réu for alertado pelo juiz, ao definir a disciplina do processo, designadamente com a adoção da norma aqui em apreciação. Uma disciplina que, todavia, e diferentemente do que se verificou nos autos, terá de ficar devidamente definida em momento necessariamente anterior ao previsto para a apresentação da contestação, sem o que o réu não terá possibilidade de cumprir a regra que desconhece, sendo, nessa medida, prejudicado no seu direito de alegar.
Como sublinhado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 437/94, «A violação do direito à tutela jurisdicional efetiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efetivos para os seus interesses (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pp. 162 e 164 e Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, pp. 82 e 83)» (disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
6. Sem prejuízo desta divergência, por considerar que existe uma compressão do direito do réu ao processo equitativo, acompanho a decisão quando conclui que, na situação que se configura nos presentes autos de fiscalização concreta de constitucionalidade, esta compressão não se revela inadequada, desnecessária ou desproporcionada face às finalidades de simplificação e urgência que serve, num processo, como o do caso, que visa obter a declaração judicial da destituição de cargo público por incumprimento do dever de apresentação da declaração de rendimentos e património, em que o referido incumprimento foi antecipadamente certificado num processo jurisdicional tramitado com todas as garantias de defesa. Tendo havido uma compressão do referido direito do réu, ela não atingiu, todavia, o núcleo essencial das garantias que caracterizam o processo equitativo, designadamente na sua dimensão de garantia de existência de contraditório.
Maria de Fátima Mata-Mouros