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Processo nº 350/2007.
3ª Secção.
Relator: Conselheiro Bravo Serra.
1. Inconformado com o acórdão proferido em 14
de Outubro de 2004 pelo Tribunal da Relação de Lisboa – acórdão esse que negou
provimento ao recurso interposto pelo arguido A. do aresto lavrado em 4 de Março
de 2004 pelo tribunal colectivo do Tribunal de comarca de Vila Praia da Vitória,
o qual, pelo cometimento de factos que foram subsumidos à autoria material de
dois crimes de homicídio qualificado, previstos e puníveis pelos artigos 131º e
132º, números 1, alíneas d), g) e i), e 2, ambos do Código Penal, o condenou na
pena de única de 25 anos de prisão – recorreu o mesmo arguido para o Supremo
Tribunal de Justiça.
Na motivação adrede apresentada, o arguido
formulou as seguintes «conclusões»: –
“1 – Vem o presente recurso interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação
de Lisboa que rejeitou – por manifestamente improcedente – o recurso interposto
do acórdão proferido pelo tribunal de primeira instância e que condenou o
recorrente na pena de 25 anos de prisão, por dois crimes de homicídio
qualificado, p. e p. pelos art.ºs 131 e 132°, n.º 1 e 2, al.s d), g) e i), ambos
do Código Penal;
2 – O douto acórdão proferido pelo tribunal de 1.ª instância é, desde logo, nulo
por deficiência da gravação, da documentação em acta das declarações orais
proferidas em sede de audiência de julgamento;
3 – Na verdade, foi ordenada a documentação em acta da prova produzida em
audiência de julgamento, nos termos dos artºs 363º do CPP;
4 – No actual sistema processual penal português há duplo grau de jurisdição,
donde o TRL tem o dever de julgar de facto e de direito, desde que estejam
reunidos os pressupostos legais, sendo o mais importante o estabelecido na al.
a) do artº 431º do CPP;
5 – Como ensina o Professor Figueiredo Dias, o fim do processo penal é a
descoberta da verdade e a realização do direito e não a obtenção de uma decisão
transitada em julgado, como defendia J. Goldschmidt.;
6 – O tribunal da primeira instância, deve julgar de facto e de direito;
7 – A gravação da prova é absolutamente necessária para que o tribunal da 1ª
instância julgue de facto e para que o tribunal superior, o da Relação
competente, exerça o poder de controlo da boa decisão, da justiça;
8 – No caso concreto, a gravação da prova apresenta várias deficiências.
Conforme resulta das transcrições juntas aos autos, há imensas perguntas e
respostas que são ‘imperceptíveis’, como está assinalado;
9 – Pelo que, nem o tribunal de 1ª instância teve a possibilidade de julgar a
prova produzida correctamente, porque não gravada, nem o TRL podia julgar de
facto por deficiência das gravações;
10 – Todavia, independentemente da motivação de recurso ter observado ou não o
disposto no artº 412º do CPP, o TRL tinha o dever de julgar de facto, porque
tendo sido gravada a prova oral produzida em audiência, manda o artº 431º al. a)
do CPP que o TRL tinha o dever de julgar de facto, porque a tanto obriga o fim
do processo penal, a descoberta da verdade e a realização da justiça;
11 – O legislador delineou, desenhou um sistema de recursos de facto e de
direito, pelo que o TRL tem de cumprir a lei, aceitando a separação de poderes
imposta pela CRP;
12 – E, a verdade é que, a transcrição tem de ser certificada pelo tribunal, nos
termos do artº 101º nº 2 do CPP, sendo certo que as gravações são parte
integrante da acta da audiência. E estando esta deficiente deveria ter sido
ordenada a repetição da prova de modo a combater as deficiências da gravação,
por força do artº 10 1º nº 2 do CPP e por força do direito ao recurso da matéria
de facto e de direito, consagrado no actual regime processual penal;
13 – Sendo certo que o Tribunal tem de assegurar a realização de um julgamento
justo e equitativo, conforme artº 6º da CEDH;
14 – Apesar das resistências ao actual modelo ele tem de ser observado. Não há
lugar a alegações de que a gravação não permite colher os ‘tiques’, os
‘silêncios’, os ‘olhares’ e por aí fora.
15 – Cremos que o Tribunal de1ª Instância deveria ter ordenado a repetição da
prova como ainda recentemente foi feito na 5ª Vara Criminal de Lisboa, no
Processo Vale e Azevedo;
16 – Verifica-se assim uma nulidade, a do artº 119º al. e) do CPP, porque com a
gravação deficiente o tribunal de 1ª instância não tem os elementos de prova
necessários para julgar de facto, e furta-se ao controlo do TR, ao controlo do
recurso da matéria de facto.
17 – Tal deficiência não consubstancia uma mera irregularidade, dependente de
arguição, segundo o regime do artº 123º do CPP, mas vai mais além, sendo
nulidade absoluta, porque por falta de controlo do tribunal da 1ª instância o
TRL não pode julgar de facto, como lhe impõe o artº 431º al. a) do CPP;
18 – No caso dos autos, há do ponto de vista formal a situação do artº 431º al.
a) do CPP, porque toda a prova está nos autos, mas por deficiência da gravação,
essa prova não pode ser julgada pelo TR de Lisboa, embora o devesse ser;
19 – Aliás, o TRL em alguns casos julgou de facto apesar de não ter sido
cumprido o convite a aperfeiçoamento da motivação, como o foi o referido no
art.º 29º da motivação do presente recurso;
20 – Cremos que o STJ pode conhecer desta deficiência, conforme resulta dos acs.
Sumariado no BMJ, 397, 346; Ac. STJ [ ] 19/11/1989, AJ. Nº 4, 4, e outros
sumariados na anotação ao artº 431º do CPP por Maia Gonçalves, 15ª Ed. 2005. 21
– Para além desta nulidade o acórdão recorrido sofre do vício de contradição
insanável da fundamentação;
22 – Efectivamente, o tribunal deu como provado que o recorrente: ‘introduziu-se
nas instalações do ‘Centro de Inspecções’ e encontrou a Paula Ferreira num
corredor perto da entrada para uma casa de banho. ‘ E deu como não provado que:
‘O arguido conseguiu entrar no ‘Centro de Inspecções’, pois a porta
encontrava-se parcialmente aberta’;
23 – Ora se não foi dado como provado que o recorrente conseguiu entrar no
‘Centro de Inspecções’ está em contradição ter sido dado como provado que ele
ali se introduziu;
24 – Cumpria ao tribunal explicar e provar quanto ao modo de entrada do
recorrente no ‘Centro de Inspecções’;
25 – Se se dá como provado que ele entrou e não provado que se conseguiu
introduzir por a porta se encontrar parcialmente aberta, então o tribunal tem de
convencer o int[é]rprete dos passos que deu para chegar a uma conclusão e
afastar a outra sem dar uma versão alternativa;
26 – Do acórdão não resulta como entrou não entrando;
27 – Verifica-se pois a nulidade do artº 410º nº 2 al. b) do CPP;
28 – Da Nulidade do Acórdão por Violação das Regras de Competência do Tribunal:
29 – Depois do STJ ter julgado nulo o acórdão do TRL, foi mandado por este
baixarem os autos à primeira instância para observar o contraditório sobre os
registos telefónicos, sobre esta prova documental, que foram tidas em
consideração para condenar o recorrente mas não constavam, da acusação;
30 – O recorrente faltou ao julgamento, por estar doente, com depressão
reactiva, conforme atestados médicos juntos aos autos a Fls 1530 a 1533 e o
Tribunal da 1ª Instância decidiu deslocar-se a casa do recorrente e interrogá-lo
sem que o Tribunal se tivesse socorrido de médico para confirmar a doença;
31 – Apesar do atestado médico de Fls. 1530 atesta que o arguido estava sedado
‘sedação significativa’ e com ‘Depressão Reactiva’;
32 – Julgando o Tribunal que a Depressão não impedida o recorrente de prestar
declarações, conforme resulta da acta da audiência de julgamento de 13.10:2005;
33 – Todavia, o Tribunal julgou assim por total desconhecimento da medicina,
pois a depressão reactiva é a mais grave das depressões conduzindo muitas vezes
ao suicídio, vg. A título de exemplo a obra de Carlos palma, Testemunho de um
doente: ‘Ag[ro]fobia, Depressão, Pânico, Doença Bipolar’ ou a obra ‘A Depressão’
escreve o Prof. António Coimbra de Matos, ou obra ‘Ansiedade e. Depressão’ da
autoria de Stuart a. Montgomery;
34 – Ouvido o arguido em audiência de 13.10.2005 temos mais uma vez que o
‘imperceptível’ é dominante, não sabendo nós o que o recorrente disse, e não
podendo o tribunal de 1ª instância julgar, nem o TR julgar;
35 – O tribunal não podia ter assumido posição contrária ao atestado porque não
tem conhecimentos científicos para tanto;
36 – Claro que o tribunal já tinha condenado, não estava a fazer novo julgamento
como, aliás erroneamente disse o recorrente porque estava e não apenas a compor
o ramalhete;
37 – O tribunal ‘a quo’ violou o disposto no artº 163º do CPP pelo que é nula a
prova obtida através de declarações do recorrente, prestadas na sua residência;
38 – O erro de julgamento é patente, pois o que o tribunal disse e está
transcrito supra, da acta indicada no artº 45º desta motivação, de 13/10/2005
está em total oposição com a ciência médica;
39 – Aliás, quem conhece a obra do Prof. Pedro Polónio sabe que a depressão
reactiva é a mais grave das depressões;
40 – Da Prova Produzida em Audiência resulta que o Digno Magistrado do M.º P.º
não tem conhecimentos de armas e sobre armas de caça, de molde a habilitá-lo a
fazer a instância que fez ao arguido;
41 – Isto porque o magistrado do Mº Pº, não se coibiu de dizer que a arma de
caça tiros – com canos paralelos – fotografada a Fls. 228 dos autos – não era a
melhor;
42 – As armas de caça de dois tiros, sobretudo as de canos paralelos são as
espingardas de caça por excelência. Aquelas que todo o caçador típico, clássico,
tradicional gosta de usar, ao contrário do defendido pelo digno magistrado do
M.ºP.º;
43 – Por outra via, nenhum espanto pode causar o facto de haver vestígios nos
bolsos do sobretudo;
44 – Basta ter manuseado os cartuchos para ficarem partículas dos componentes do
explosivo;
45 – Quem dispara com um amigo uma arma de caça não tem de estar em galochas ou
em fato de combate;
46 – Por outra via, a arma deve estar desmanchada quando é guardada;
47 – O vestígio de sangue é estranho e só pode ter ocorrido por contaminação com
sangue das vítimas existente na P J;
48 – Quanto aos três registos de chamadas para a mulher o que temos a dizer é
que hoje o telemóvel é um vício e a explicação dada pelo arguido é totalmente
aceitável e credível;
49 – Inconstitucionalidade da Norma do artº 123º do CPP:
50 – Já vimos que as transcrições da prova documentada em acta são deficientes,
impedindo com rigor de julgar a prova produzia, pois face ao princípio do duplo
grau de jurisdição, quando há gravação não pode haver lugar a julgamento por
apontamentos;
51 – Quando interpretada a norma do artº 123º do CPP no sentido de ser mera
irregularidade a deficiência da gravação da prova oral produzi [d]a em
audiência, a norma do artº 123º do CPP sofre do v[í]cio de inconstitucionalidade
material por violação da normas do artº 32º nº 1 e 5 do CPP e artº 6º da CEDH, o
que expressamente se arg[ú]i;
52 – O tribunal ‘a quo’ interpretou as normas dos artºs 431º° al. a), 101º nº 2,
119º al. e), 123º,363º, 410, nº 2 al. b), todas do CPP, e artºs 32º nº 1 e 5 da
CRP e artº 6º da CEDH, no sentido de dever não conhecer de facto e de manter a
condenação do recorrente, quando as deveria ter interpretado no sentido
contrário;
53 [–] O acórdão recorrido sofre ainda do v[í]cio de nulidade do artº 379º nº 1
al. C) do CPP.”
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de
30 de Novembro de 2006, negou provimento ao recurso, alterando, porém, a
qualificação jurídica dos factos, que subsumiu como integrando o cometimento de
dois crimes de homicídio qualificado, previstos e puníveis pelo artº 132º, nº 2,
alínea d), do Código Penal, impondo ao arguido a pena única de vinte anos de
prisão.
Nesse acórdão, no que ora releva, foi escrito,
a dado passo: –
“(…)
15.1. O recorrente começa por levantar a questão da deficiência das gravações da
prova produzida em audiência de julgamento, invocando nulidade a tal propósito.
Porém, tal questão não foi levantada no recurso para o Tribunal da Relação.
Ora, os recursos não servem para apreciar questões novas que não tenham sido
objecto da decisão recorrida, mas para possibilitarem uma reapreciação do
decidido ou a apreciação de questões suscitadas por essa decisão. É lógico que
só questões que tenham sido submetidas à apreciação do tribunal recorrido, que
este tenha apreciado ou que devesse apreciar, podem ser objecto de recurso para
o tribunal superior. Não pode este censurar o tribunal recorrido por uma decisão
que não proferiu nem era obrigado a proferir.
Se a decisão da 1.a instância não foi impugnada sob determinado aspecto no
recurso interposto para o Tribunal da Relação, não pode depois vir a ser
impugnada sob esse mesmo aspecto para o Supremo Tribunal de Justiça. Neste
sentido até se pode dizer que a decisão da 1ª instância transitou em julgado
relativamente a questões não impugnadas, obstando o caso julgado ao conhecimento
do recurso, nos termos dos art.ºs 493.º, n.º 2, e 494.º i), do Código de
Processo Civil (Cf. Acórdão deste STJ de 6/5/2004, Proc. n.º 1586-04, da 5.a
Secção).
Acresce que as relações, ao contrário do que parece sustentar o recorrente, não
conhecem oficiosamente da matéria de facto, mas só se a decisão correspondente
for impugnada e na medida em que o for (ónus de motivação do recurso), devendo o
recorrente obedecer ao preceituado no art. 412.º, n.ºs 3e 4 do CPP.
O disposto no art. 431.º do mesmo diploma não colide com essa ideia; antes a
corrobora, uma vez que esse normativo prescreve claramente que, a menos que do
processo constem todos os elementos ou tenha havido renovação da prova, a
decisão sobre a matéria de facto só pode ser modificada, no caso de haver
documentação da prova e esta tiver sido impugnada, nos termos do art. 412.º, n.º
3 (sublinhado nosso).
Ora, o recorrente foi notificado para dar cumprimento a esse normativo, mas
fê-lo completamente fora de prazo, pelo que o recurso não foi conhecido nessa
parte, nem tinha que o ser. Nestas circunstâncias, nenhuma omissão de pronúncia
foi cometida, nos termos do art. 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP ..
Independentemente disso, porém, o que é certo é que o
recorrente não suscitou no recurso para a Relação qualquer problema de
deficiência das gravações, constituindo tal deficiência, no caso de existir, uma
mera irregularidade sujeita à disciplina do art. 123.º do CPP, e portanto
devendo ser arguida pelo interessado no prazo aí estipulado como repetidamente
tem afirmado este Tribunal (Cf. os acórdãos de 15/2/2006, Proc. n.º 4012/05,
desta 5.a Secção, de 15/2/2006, Proc. n.º 2874/05, da 3.a Secção e de 13/9/2006,
Proc. n.º 1934/06, também da 3.a Secção). Isto, porque em matéria de nulidades,
vigoram os princípios da legalidade e da tipicidade, ou seja, a violação ou
inobservância das disposições da lei só acarreta nulidade quando esta estiver
expressamente prevista. Nos casos em que a nulidade não for cominada, o acto
ilegal é irregular.
Mesmo a falta de documentação das declarações prestadas oralmente na audiência
de julgamento, contra o disposto no art. 363.º do CPP, constitui mera
irregularidade, sujeita ao regime estabelecido no art. 123.º, como se decidiu no
acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2002, de 27/6/2002, publicado no DR
1.[ª] S/A de 17/7 /2002.
Nem se percebe como o facto da deficiência das gravações constituir mera
irregularidade e não nulidade afecta o direito de defesa e o direito ao
contraditório, podendo o arguido arguir o vício ainda que dentro de determinado
prazo e, uma vez obtida a sanação dele por esse processo, impugnar a decisão de
facto através da prova produzida.
Acresce que as garantias de defesa foram respeitadas no caso através do convite
formulado ao recorrente para corrigir as conclusões da motivação de acordo com o
art. 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP.
(…)”
Do acórdão de que parte se encontra extractada
intentou o arguido recorrer para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea
b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, por intermédio desse
recurso pretendendo a apreciação da norma do “artº 123º do Código de Processo
Penal na interpretação perfilhada pelo acórdão recorrido, ou seja interpretada
no sentido de ser mera irregularidade a deficiência da gravação da prova oral
produzida em audiência”.
O Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de
Justiça, porém, por despacho prolatado em11 de Janeiro de 2007, não admitiu o
recurso desejado interpor.
Para tanto, considerou-se nesse despacho: –
“Não admito o recurso interposto para o Tribunal
Constitucional, porquanto a pretensa interpretação ofensiva do artº 32º da
Constituição – a deficiência das gravações da prova constitui mera
irregularidade – não foi considerada como ‘ratio decidendi’ do acórdão deste
Supremo Tribunal.
Pura e simplesmente o recurso nessa parte não foi conhecido por
ser questão nova que não foi objecto do recurso para a Relação. Todavia, ‘a
latere’ sempre se referiu a irregularidade, mas como argumento suplementar, que
não como ‘ratio decidendi’.
Ora, se o recorrente não suscitou, no recurso para a Relação, a
questão da deficiência das gravações, não pode invocar agora a ofensa das
garantias de defesa consagradas no art.º 32º da Constituição, no requerimento de
recurso interposto para este Supremo, no qual se não tomou conhecimento da
questão.”
É do transcrito despacho que, pelo arguido, vem
deduzida reclamação para o Tribunal Constitucional, limitando-se a dizer na peça
processual consubstanciadora da reclamação: –
“1º
O TR da Relação de Lisboa não conheceu de facto.
2º
O recorrente interpôs recurso do ac. do TRL para o STJ e suscitou a questão de a
deficiência na gravação da prova oral ser não uma mera irregularidade mas sim
uma nulidade insanável.
3º
E suscitou a inconstitucionalidade material da norma do artº 123º do CPP quando
interpretada no sentido de ser mera irregularidade a deficiência da gravação da
prova oralmente produzida em audiência, por violar as normas dos artºs 32º nº 1
e 5 da CRP e artº 6º da CEDR.
4º
Naturalmente e como se alegou por a gravação da prova, a documentação em acta da
prova ser ex officio, devendo ser certificada pelo tribunal nos termos do artº
101º nº 2 do CPP.
5º
Ou seja, o tribunal tem sempre de certificar a conformidade da gravação.
6º
Assim sendo, e nunca tendo o STJ lavrado decisão de não admissão do recurso
nessa parte, verifica-se até uma decisão de surpresa.
7º
Ora, o recorrente pode sempre suscitar a inconstitucionalidade de normas, antes
que o tribunal ‘ad quem’, in casu o STJ decida.
8º
E tem, o dever de julgar.
9º
No caso concreto, o despacho de não admissão do recurso para o Tribunal
Constitucional é ilegal, devendo ser revogado”
Pronunciando-se sobre a reclamação, o Ex.mo
Representante do Ministério Público junto deste Tribunal veio sustentar que a
mesma era manifestamente infundada, explicitando do seguinte modo o seu ponto de
vista: –
“Na verdade, a ‘ratio decidendi’ do acórdão proferido pelo
S.T.J. é a consideração de que – não tendo sido impugnada adequadamente perante
a Relação a matéria atinente à validade da prova gravada em julgamento – ocorre
a respectiva preclusão, não podendo tal matéria ser suscitada no âmbito de um
ulterior recurso para o Supremo, em consequência da formação de caso julgado
(cfr. fls. 58 dos presentes autos). As considerações feitas no acórdão recorrido
sobre a problemática da qualificação do vício consistente na deficiente gravação
da prova constituem, deste modo, uma linha subsidiária (ou, quando muito,
alternativa) de argumentação do Tribunal ‘a quo’, não podendo naturalmente
repercutir-se no concreto sentido e teor da decisão proferida – e inviabilizando
naturalmente a natureza instrumental da fiscalização da constitucionalidade a
respectiva apreciação.”
Cumpre decidir.
2. Desde já se afirma que nada há que censurar
referentemente ao despacho reclamado.
Na verdade, como deflui da transcrição supra
efectuada do aresto querido impugnar perante este órgão de administração de
justiça, a razão de decidir carreada àquele acórdão no tocante à questão da
invocada irregularidade ou nulidade relativa que, na óptica do então impugnante,
teria sido cometida pela circunstância de determinadas passagens da gravação da
prova oral produzida em audiência se mostrarem imperceptíveis, fundou-se em que,
não tendo esse problema sido impostado perante o Tribunal da Relação de Lisboa –
e, por isso, não se tendo esse Tribunal de 2ª instância debruçado ou emitido
pronúncia sobre a matéria – não podia tal problema ser reequacionado perante o
Supremo Tribunal de Justiça, justamente porque os recursos se destinam a
reapreciar as decisões judiciais impugnadas e não a curarem de questões novas
que não foram objecto de decisão pelo tribunal recorrido.
Por isso, a real razão jurídica do decidido no
atinente à falada questão esteou-se, e tão só, nas regras reguladoras dos
poderes cognitivos do tribunal de recurso e, em concreto, do Supremo Tribunal de
Justiça.
Aliás, mesmo que porventura viesse o Tribunal
Constitucional a pronunciar-se sobre a desarmonia constitucional do artº 123º do
diploma adjectivo criminal – no recorte interpretativo que se enunciou no
requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade (recorte esse,
aliás, que se não mostra efectivado de plena curialidade) – uma tal decisão
nenhuma repercussão poderia ter no acórdão exarado pelo Supremo Tribunal de
Justiça, precisamente porque a decisão nele ínsita haveria de ser a mesma, isto
é, não poder tomar conhecimento dessa questão, pois que a mesma não foi objecto
de equacionamento perante o Tribunal da Relação de Lisboa e, por isso, o aresto
nesta lavrado não teve ocasião de sobre ela se pronunciar.
Neste contexto, indefere-se a reclamação,
condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando-se em vinte unidades
de conta a taxa de justiça.
Lisboa, 21 de Março de 2007
Bravo Serra
Gil Galvão
Artur Maurício