Imprimir acórdão
Processo n.º 890/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O Ministério Público deduziu acusação contra
A., B. e as sociedades C., L.da, e D., L.da, pela prática de um crime de fraude
fiscal.
Inicialmente condenados, por sentença do
Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, os arguidos individuais nas penas de
12 meses de prisão, suspensas na sua execução pelo período de 3 anos, e as
sociedades nas penas de 300 dias de multa à taxa diária de € 10,00, no total de
€ 3000,00, viria, por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 3 de Novembro
de 2004, a ser anulado o respectivo julgamento, determinando‑se o reenvio para
novo julgamento, “para apuramento da factualidade vertida na contestação em
conjugação com a da acusação”.
Realizado novo julgamento, foi proferida a
sentença de 13 de Julho de 2005, que absolveu todos os arguidos, essencialmente
por não se ter “conseguido apurar o valor real da vantagem patrimonial
indevida”, pelo que falecia “um dos elementos objectivos do tipo legal de
crime”.
Desta sentença interpôs recurso o Ministério
Público, para o Tribunal da Relação do Porto, alegando contradição insanável da
matéria de facto dada como provada com os factos dados como não provados e a
fundamentação da convicção do tribunal e errada interpretação das normas
jurídicas aplicáveis e consequente errado enquadramento jurídico‑penal da
factualidade apurada, e preconizando a substituição da sentença recorrida “por
outra que conheça do vício da sentença invocado, embora sem necessidade de
repetição de julgamento, atento o âmbito do recurso abranger também matéria de
facto, dando‑se como provado o prejuízo efectivamente sofrido pelo Estado em
sede de IVA e, consequentemente, se proceda à subsunção da factualidade provada
ao crime de fraude fiscal, condenando‑se todos os arguidos pela prática de tal
tipo legal, nos termos em que se encontravam acusados”.
Na resposta a este recurso, o arguido A.
suscitou, além do mais, a questão de inconstitucionalidade de determinada
interpretação do artigo 23.º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não
Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 20‑A/90, de 15 de Janeiro,
nos seguintes termos:
“Finalmente, unânime vem sendo a jurisprudência que sufraga que
a responsabilidade penal dos arguidos pela prática do crime de fraude fiscal
deve ser aferida à luz dos princípios gerais do direito penal, não afastados
pelo RJIFNA. Em consequência, uma ampla corrente sustenta ainda que a
responsabilidade penal não pode ser aferida com base na determinação do lucro
tributável em falta por recurso a métodos indiciários por parte da
Administração Fiscal. E isso porque em matéria penal vigora um princípio ou
presunção de sentido contrário decorrente, antes de mais, do artigo 32.º, n.º
2, da CRP. Assim, a fixação da matéria colectável por recurso a métodos
indirectos ou meramente indiciários é válida unicamente para efeitos tributários
estritos ou, quando muito, de jaez contra‑ordenacional, jamais o podendo ser
para efeito de responsabilidade penal. Pelo que a condenação dos arguidos com
base em tais presunções, para além dos vícios apontados, volver‑se‑ia numa
manifesta inconstitucionalidade que aos Tribunais compete fiscalizar e impedir
a respectiva verificação – por todos, vide o acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa, de 27 de Fevereiro de 2002, Colectânea de Jurisprudência, tomo I, p.
152. Ou seja, o artigo 32.º do RJIFNA, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 20‑A/90, de
15 de Janeiro, quando aplicado assentando os seus elementos essenciais em
métodos indirectos ou meramente indiciários de apuramento da prestação
tributária, viola o supracitado preceito constitucional.
O que equivale a dizer que a existência de uma vantagem
ilegítima por parte do arguido deverá ser concretamente apurada em sede de
audiência de julgamento, inclusive se devendo discutir o método utilizado (o que
não sucedeu suficientemente na audiência em análise).”
Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de
7 de Junho de 2006, foi concedido provimento ao recurso do Ministério Público e
determinado o reenvio do processo para novo julgamento, “a fim de se apurar se
da conduta dos arguidos houve prejuízos para o Estado ou benefícios para os
arguidos e, se possível, determinar o montante dos prejuízos‑benefícios,
julgamento a realizar nos termos dos artigos 426.º e 426.º‑A do Código de
Processo Penal”. Para fundamentar esta decisão, o referido acórdão, após
considerações sobre a natureza e requisitos do vício de contradição insanável da
fundamentação, expendeu o seguinte:
“Ora, é de facto contraditório afirmar, como se faz nos factos
provados, que a empresa «C., Lda» falsificou, conjuntamente com a outra empresa
arguida, as facturas referidas no ponto 5. dos factos, e concluir depois por
afirmar nos factos (ponto 7.) que em sede de IVA procedeu a deduções indevidas
deste imposto deixando de entregar nos cofres do Estado os montantes de Esc. 1
841 100$00 e Esc. 2 431 425$00, e que em sede de IRC declarou um incremento
indevido de custos com referência aos exercícios fiscais de 1995 e 1996, de
valor igual às compras que indevidamente registou, nos montantes de Esc. 10 830
000$00 e Esc. 14 302 500$00, para em seguida, nos factos não provados, entender
estar não provado que a «C., L.da» tenha tido uma vantagem patrimonial
correspondente ao IVA deduzido e não entregue à Administração Fiscal de Esc. 4
272 525$00 e que o montante em falta a título de IRC fosse de Esc. 4 460 000$00
em 1995 e Esc. 1 062 571$00 em 1996.
Isto é, reconhecendo a falsidade das facturas (ainda que só
parcial, na versão da sentença recorrida, uma vez que só em parte, não apurada,
essas facturas não titulavam negócios entre as duas empresas), formula‑se depois
o juízo fáctico de que houve deduções indevidas de IVA e declaração de custos
superiores aos verificados, apontando mesmo os valores assim «indevidamente»
retidos e declarados, para depois afirmar que não se provaram afinal aqueles
valores.
Objectivamente ressalta essa contradição do texto da sentença,
embora se perceba que o raciocínio do Sr. Juiz era no sentido de que, apesar
daqueles valores constantes das facturas, o prejuízo real do Estado‑Fisco não é
possível de quantificar porquanto só em parte, não apurada, aqueles valores
(preços) eram falsos.
Vejamos então agora se, perante a prova produzida e a constante
dos autos, é possível determinar os factos concretos, mas precisando desde já
que, não se tendo procedido à transcrição das declarações prestadas em
julgamento, não se pode conhecer do teor dessas mesmas declarações, sendo por
isso inútil, neste aspecto, as referências feitas no recurso às declarações dos
agentes tributários no sentido da confirmação de determinados factos –
transcrição essa que se impunha visto que o artigo 412.º, n.º 4, do Código de
Processo Penal impõe a transcrição da prova gravada sempre que no recurso se
impugne a decisão sobre a matéria de facto, alegando‑se que «as provas impõem
decisão diversa da recorrida» e/ou que «as provas devem ser renovadas» (n.º 3,
alíneas b) e c)). E só haveria lugar a transcrição no caso de o recorrente fazer
referência, na sua motivação, aos suportes magnéticos donde constam as «provas»
que impõem decisão diversa da recorrida e/ou devem ser renovadas.
Mas antes será útil expor o recorte jurídico do crime de que os
arguidos vinham acusados.
Os artigos 103.º do RGIT (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5
de Junho, em vigor desde 5 de Julho de 2001) e 23.º do RJIFNA têm a seguinte
redacção (que apenas não coincide quanto à pena abstracta):
«1 – Constituem fraude ... fiscal as condutas ilegítimas
tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou
pagamento do imposto ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos
ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das
receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:
a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam
constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações
apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente
fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;
b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam
ser revelados à administração tributária;
c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer
quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.
(...).»
À estrutura objectiva do crime pertencem quaisquer das acções
referidas no n.º 1, sendo que o crime também pode ser cometido por omissão
(falta de apresentação de declarações que devam ser apresentadas para
fiscalização tributária da matéria colectável e que, consubstanciando a
«ocultação de factos ou valores», esta ocultação seja querida pelo agente com
vista ao não pagamento total do imposto).
Quer na forma omissiva quer na comissiva por acção, o crime
exige uma intenção defraudatória, isto é, uma resolução dirigida à obtenção de
vantagens patrimoniais ilegítimas. Elemento subjectivo do crime é, pois, o
dolo, ainda que eventual, que consistirá na intenção de praticar a «ocultação ou
alteração de factos ou valores», ou de celebrar negócio simulado, com a
consciência de que tais actos visam o não pagamento de imposto, imposto a menos
do que o devido ou reembolso indevido de imposto, com a consequente diminuição
das receitas fiscais.
É indiferente, para a verificação do tipo, que ocorra um
determinado resultado, isto é, o dano para o Fisco. Antes se pretende punir a
conduta proibida, independentemente do resultado, ou seja, estamos perante um
crime de perigo: a consumação não depende da efectiva obtenção de «vantagens
patrimoniais» (Alfredo de Sousa, Infracções Fiscais Não Aduaneiras, 3.ª ed.,
Almedina, 1998, p. 92; Nuno Sá Gomes, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 376, p. 48),
sendo que o crime se consuma no momento da liquidação (sendo esta a cargo do
Fisco) ou no momento da autoliquidação (quando o contribuinte entrega a
declaração fiscal no termo do prazo de tal apresentação).
Pois, com efeito, a fraude fiscal reconduz‑se à categoria dos
chamados crimes de resultado cortado: a punição a título de consumação basta‑se
com a realização parcial da lesão do bem jurídico, conjugada com a existência
simultânea do dolo da realização completa ou da realização ulterior da lesão do
bem jurídico. A fraude fiscal consuma‑se antes e independentemente da produção
do resultado, mas a ocorrência deste resultado determina a agravação da pena.
Como diz Alfredo de Sousa (ob. cit., p. 89), «para a punição do
agente basta comprovar que quis as respectivas acções ou omissões e que elas
eram adequadas à obtenção das pretendidas vantagens patrimoniais e à
consequente diminuição das receitas tributárias» (no mesmo sentido: acórdão do
Tribunal da Relação do Porto, de 3 de Abril de 2002, www.dgsi.pt).
Apenas a medida da pena deve reflectir a maior ou menor
relevância jurídico‑penal do resultado lesivo do património fiscal.
A vantagem patrimonial ilegítima pretendida é o montante de
imposto que o sujeito passivo pretendeu deixar de pagar em consequência da
declaração defraudada ou da sua omissão, montante esse que há‑de ser apurado
oficiosamente pelo Fisco, fixando a matéria colectável por métodos indiciários
e procedendo à liquidação adicional do imposto (artigos 82.º, 83.º e 83.º‑A do
CIVA e artigo 51.º e seguintes do CIRC).
Precisemos, por agora, que, segundo a factualidade dada como
provada, a empresa «D.» emitiu a favor da «C.» diversas facturas relativas a
compras e vendas de cortiça que, em parte, nunca existiram, desta forma
defraudando a Fazenda Nacional (facturas referidas no ponto 5.).
Como é sabido, é frequente o uso de facturação falsa para
documentar falsos custos, tendentes a diminuir a matéria colectável dos
impostos que incidem sobre rendimentos residuais determinados pela diferença
entre proveitos e custos ou despesas, como sucede com os rendimentos comerciais,
industriais, agrícolas, ou das profissões independentes, seja a obter reembolsos
fiscais ilegítimos, como sucede em matéria do IVA.
Inquestionavelmente as facturas eram falsas, pois, como diz
Nuno Sá Gomes quanto ao conceito de factura, para efeitos fiscais, «parece de
aceitar a noção que, de resto, está suposta no artigo 476.º do Código Comercial,
segundo a qual a factura é um documento escrito que incorpora uma declaração
expressa onde se discriminam as coisas e serviços e respectivos preços
relativos às operações económicas que ocorreram entre duas unidades económicas.
E as facturas relativas ao IVA devem revestir os requisitos exigidos nos artigos
28.º e 35.º do CIVA» (Ciência e Técnica Fiscal, n.º 377, p. 9 e seguintes), sob
pena de não serem documentos válidos (artigo 19.º, n.º 3, do CIVA).
Depois, está fixado na matéria de facto (ressalvada a
contradição acima referida) que houve um prejuízo para o Estado‑Fisco, pois que
em sede de IVA se procedeu a deduções indevidas deste imposto relativas aos
exercícios de 1995 e 1996 e em sede de IRC se declarou um incremento indevido de
custos com referência aos exercícios fiscais de 1995 e 1996.
Ora, bastaria dizer que as facturas eram falsas e que se
mostravam adequadas ao fim que os arguidos pretendiam com a sua falsificação
para se poder dizer que cometeram o crime de fraude fiscal.
A única questão será a da punibilidade a título de crime, dado
o disposto no n.º 2 do artigo 103.º do RGIT, que diz que estes factos não são
puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a € 7500 (2000 contos
no RJIFNA, para as pessoas colectivas).
Quanto à motivação da factualidade dada como não provada, a
sentença recorrida discorre: «Assim, e uma vez que a Administração Fiscal admite
que as facturas aqui em causa titulassem parcialmente transacções verdadeiras,
não foi possível determinar o valor efectivo do IVA retido e não entregue ao
Fisco pela sociedade arguida C., L.da, nem, tão‑pouco, aquelas facturas que
traduziam efectivamente custos e que podiam ser introduzidas na contabilidade de
tal sociedade, e consequentemente qual o lucro tributável e o benefício efectivo
obtido com a actividade delituosa. Ora, nos presentes autos apenas possuímos um
valor indicativo, obtido pela Administração Fiscal através de métodos
indirectos, suscitando‑se ao tribunal dúvida séria e efectiva quanto ao montante
efectivo do benefício obtido pela sociedade arguida C., L.da, e seu
representante legal com a actividade desenvolvida.»
Quanto ao IRS, resulta dos factos que a Administração Fiscal
recorreu, para a fixação dos valores ali referidos, ao método indiciário de
apuramento, e quanto ao IVA deduz‑se que os valores foram retirados dos
montantes ali inscritos pelos arguidos.
Nos termos do artigo 19.º, n.ºs 2 e 3, do CIVA, só pode
deduzir‑se o imposto do IVA mencionado em documentos passados em forma legal e
que não resulte de operação simulada ou em que não seja simulado o preço.
O recurso ao método indiciário por parte da Administração Fiscal é legítimo para
obter um rendimento real presumido e assim determinar a matéria colectável
(lucro tributável).
Tem razão o recorrente quando diz, no que concerne ao IRC, «a Administração
Fiscal tem o ónus de demonstrar a factualidade que a levou a desconsiderar um
custo contabilizado, factualidade essa que tem de ser susceptível de abalar a
presunção da veracidade das operações da escrita» (...), «a Administração
Tributária dever presumir custos mínimos em função das condições concretas do
exercício da actividade» (...), «o ónus de fazer a comprovação desses elementos
cabe ao contribuinte que substituiu o meio justificativo normal por outro,
devendo, portanto, suportar as consequências inerentes ...».
Só que estas normas não podem servir para determinar a responsabilidade
criminal dos suspeitos de prática do crime de fraude fiscal, levando à
presunção de um dano, nem a natureza de crime de perigo legitima, face aos
princípios da necessidade e da culpa legitima essa presunção, que aliás
violaria o princípio da presunção de inocência do arguido (ou, no plano da
prova, o princípio in dubio pro reo).
Como já se disse, este tribunal não dispõe de todos os meios de prova usados no
julgamento e não pode, assim, sindicar um eventual erro na apreciação da prova
com vista a, possivelmente, superar as contradições da sentença.
Impõe‑se, por isso, que se proceda a novo julgamento, restrito à superação
daquelas contradições entre os factos provados e os não provados, ou seja, para
saber se da conduta dos arguidos houve prejuízos para o Estado ou benefícios
para os arguidos e, se possível, determinar o montante dos
prejuízos‑benefícios, tudo nos termos dos artigos 426.º e 426.º‑A do Código de
Processo Penal.”
É contra este acórdão que, pelo arguido A., vem
interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º
da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada,
por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), constando do
respectivo requerimento de interposição que se pretendia ver apreciada “a
inconstitucionalidade dos artigos 23.º, n.ºs 1, 2, alíneas a) e c), 3, alíneas
a) e e), e 4, e 7.º, n.º 1, do (...) RJIFNA, na versão do Decreto‑Lei n.º
394/93, de 24 de Novembro, actualmente punido nos termos dos artigos 103.º, n.º
1, alíneas b) e c), e 104.º, n.º 1, alínea d), do RGIT, mormente na
interpretação que lhe foi conferida pela douta decisão recorrida”, porquanto “as
referidas normas, que, de acordo com a sentença recorrida (nessa parte em
sintonia com a sentença da 1.ª instância), não colocam embaraço a que seja
entendido que um resultado ou escrutínio contabilístico/fiscal obtido por
métodos estatísticos, indiciários, presuntivos ou indirectos (como se reconhece
manifestamente nos doutos arestos), prevaleça para efeito de imputação criminosa
dos factos acusados e respectiva condenação, violam – para além dos princípios
gerais do direito penal a que devem subordinar‑se (artigo 4.º do RJIFNA) – os
artigos 32.º, n.º 2, 8.º, n.º 1, e 27.º, n.º 2, da Constituição da República
Portuguesa”.
No Tribunal Constitucional, o recorrente
apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“A) A douta decisão recorrida que ordena o reenvio do processo para novo
julgamento padece de vício de inconstitucionalidade, seja ao consentir uma
interpretação do artigo 23.º do RJIFNA que acolhe a possibilidade de imputação
criminosa de factos com base em métodos de apuramento da matéria colectável por
recurso a padrões, estatísticas e indícios (métodos indirectos/indiciários),
seja porque tal reenvio incide e é justificado com a repetição de prova sobre
matéria que já mereceu nova e específica produção em anterior [audiência] de
julgamento, a qual, de resto, foi sujeita à respectiva gravação.
B) A consentida interpretação, no douto aresto apreciado, dos artigos 23.º, n.ºs
1 e 2, alíneas a) e c), n.º 3, alíneas a) e e), e n.º 4, e 7.º, n.º 1, do
Decreto‑Lei n.º 20‑A/90, de 15 de Janeiro, na versão do Decreto‑Lei n.º 394/93,
de 24 de Novembro, que, pelo menos em sede de IRC, admite a referida imputação
criminosa pela via meramente indiciária e sem comprovação fáctica efectiva da
realidade económica em que se moveu o contribuinte, choca com um princípio de
sentido contrário: o princípio da presunção de inocência do arguido.
Tal princípio basilar, que limita de modo incontornável o Direito penal e
processual penal (daí, como soe dizer‑se, que não é este mais do que direito
constitucional aplicado), encontra‑se vertido no artigo 32.º, 1.ª parte, da CRP.
C) Na verdade, e relativamente a tal imposto, é a própria acusação pública (e o
relatório da administração fiscal que lhe subjaz) que desde logo reconhece a
impossibilidade de quantificar o montante do proveito/benefício para o
contribuinte (admitindo que tenha existido e que nunca se aceitou nem aceita).
Mas mais, tendo‑se realizado dois julgamentos em primeira instância – o segundo
deles com a finalidade elencada pela sentença do Tribunal da Relação do Porto
no sentido de que se fizesse um apuramento dos efectivos prejuízos/benefícios
fiscais – não se logrou em qualquer deles apurar tal prejuízo/benefício, do
fisco e do arguido, respectivamente, e muito menos a sua quantificação exacta.
D) É certo que a sentença apreciada aflora o princípio da presunção de inocência
para efeito da qualificação criminosa dos factos. Porém, nessa tarefa
desvaloriza manifestamente a quantificação desses mesmos factos, só assim se
percebendo que o reenvio se destine, segundo o que nela pode ler‑se, a «...
saber se da conduta dos arguidos houve prejuízos para o Estado ou benefícios
para os arguidos e, se possível, determinar o montante dos
prejuízos‑benefícios, tudo nos termos dos…».
E) Inculca claramente o texto do aresto em causa que se reputa admissível, para
efeito do preenchimento do tipo legal, a mera existência de um prejuízo,
independentemente da respectiva quantificação e modo de quantificação desse
mesmo prejuízo para o Estado. Em suma, acolhe‑se a convivência possível entre
um juízo de prejudicialidade que conduza à condenação em sede criminal que
radique exclusivamente em métodos indiciários.
F) De outro modo, porém, a decisão recorrida viola o texto constitucional e
mais uma vez o preceito constitucional em apreço (artigo 32.º, n.º 2), mas na
sua parte final.
G) Os factos acusados na acusação pública ocorreram entre 1995 e primeira
metade de 1996, ou seja, há mais de 10 anos. O arguido recorrente, para além de
ter passado pelo périplo de um inquérito demorado e precedido de inspecção
tributária, já foi julgado por duas vezes no Tribunal Judicial de Santa Maria da
Feira.
H) Realizou‑se o segundo julgamento mercê de reenvio tendo em vista o apuramento
da existência de efectivo benefício para o recorrente e prejuízo para o Estado,
tendo o Tribunal de recurso dado nota das questões concretas a dirimir mediante
nova produção de prova. Tal reenvio ocorreu nos termos do artigo 426.º do CPP.
Tendo‑se apurado, em sequência, a decisão respectiva e cuja prova foi
devidamente registada mediante gravação.
I) O Tribunal ora recorrido, porém, tendo em vista o apuramento dos mesmos
factos (e menosprezando, em certa medida, a respectiva quantificação), ou seja,
o efectivo prejuízo do Estado e benefício do recorrente, ordena novo reenvio ao
abrigo do mesmo artigo 426.º, n.º 1, do CPP.
J) Salvo o devido respeito por melhor opinião, tal aplicação do artigo 426.º,
n.º 1, do CPP, que permite uma viabilidade ad infinitum do recurso ao reenvio
como forma de apuramento da verdade material, sobretudo quando verse, como é o
caso, sobre factos que já foram anteriormente objecto de reenvio, é
manifestamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 2,
in fine, da CRP. Tanto mais que tal matéria não só foi o leit motiv da repetição
de julgamento já ocorrida como igualmente a prova produzida foi objecto de
gravação susceptível de ser compulsada pelas instâncias, seja em ordem a aferir
a adequação da matéria dada como provada, seja dirimindo, sem necessidade de
reenvio, eventuais contradições existentes e plasmadas na decisão da primeira
instância.
Termos em que deve, por conseguinte, julgar‑se inconstitucionais – e recusada a
aplicação no caso concreto – as normas contidas nos artigos 23.º, n.ºs 1 e 2,
alíneas a) e c), n.º 3, alíneas a) e e), e n.º 4, e 7.°, n.º 1, do Decreto‑Lei
n.º 20‑A/90, de 15 de Janeiro (RJIFNA), na versão do Decreto‑Lei n.º 394/93, de
24 de Novembro, quando interpretadas no sentido de que é possível a condenação
do arguido com base em meras presunções fiscais sobre rendimentos ou de que
bastará o respectivo benefício, ainda que identificado sem quantificação por
métodos indiciários, para lograr a respectiva condenação. Igualmente deverá
recusar‑se a aplicação do artigo 426.º, n.º 1, do CPP, quando a determinação de
reenvio ocorra para apuramento de factos que já anteriormente foram objecto de
reenvio e a respectiva prova então produzida foi devidamente gravada, porquanto
tal aplicação viola as garantias de defesa previstas no artigo 32.º, n.º 2, in
fine, da CRP.”
O representante do Ministério Público no
Tribunal Constitucional, nas contra‑alegações apresentadas, suscitou a questão
prévia do não conhecimento do objecto do recurso:
– quanto à questão de inconstitucionalidade
reportada ao artigo 23.º do RJIFNA, por o acórdão recorrido não ter feito
aplicação da interpretação normativa arguida de inconstitucional pelo
recorrente, pois “em lado nenhum se diz, ou se pode inferir que se disse, ser
possível condenar o arguido pela prática de um crime de fraude fiscal com base
em simples presunções fiscais sobre rendimentos ou de que bastará o respectivo
benefício, ainda que identificado sem quantificação, por métodos indiciários”,
antes a decisão recorrida expressamente afasta “a possibilidade de recurso aos
métodos indiciários para presumir danos e permitir condenações penais, pois de
contrário resultaria violado o princípio da presunção de inocência”; e
– quanto à questão de inconstitucionalidade
reportada ao artigo 426.º do CPP, por não referida no requerimento de
interposição de recurso, mas apenas em sede de alegações, o que implica uma
inadmissível ampliação do objecto do recurso.
Notificado da suscitação destas questões
prévias, respondeu o recorrente que, quanto à primeira questão, “além de não ser
absolutamente rigoroso afirmar de entre o douto aresto uma clara e expressa
renúncia de aplicação dos métodos indiciários na imputação criminosa dos factos
(mas, unicamente, que, acolhendo‑os, quer ver melhor esmiuçados, com o que não
se concorda), e, como tal, sempre plenamente se justifica a pronúncia do
Tribunal Constitucional à questão colocada”, e que, quanto à segunda questão,
“não obstante, por lapso, não tenha sido expressamente indicada a norma jurídica
cuja aferição da inconstitucionalidade se pretende apurar (artigo 426.º, n.º 1,
do CPP), verdade é que a norma constitucional que se reputa lesada é objecto de
indicação em tal peça do arguido recorrente – artigo 32.º, n.º 2, da CRP”, para
além de que, “não brotando esta segunda via da inconstitucionalidade levantada
(a questão do reenvio) senão da decisão última do Tribunal da Relação, como
entende o recorrente (já que não questiona, obviamente, o reenvio enquanto tal),
discutível sempre seria que não pudesse dela fazer apelo o recorrente senão
nesta fase, dado que a interposição de recurso principalmente serve para
levantar a questão da norma constitucional que se alvitra como violada”, “aqui
não se evidenciando, pois, a necessidade de à mesma fazer referência expressa em
todo o iter processual”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Há que reconhecer que assiste razão ao
Ministério Público relativamente às duas questões conducentes ao não
conhecimento do objecto do recurso por ele suscitadas.
Na verdade, o acórdão recorrido, embora
reconhecendo a legitimidade do recurso aos métodos indiciários por parte da
Administração Fiscal, “para obter um rendimento real presumido e assim
determinar a matéria colectável (lucro tributável)”, isto é, embora admitindo a
recurso a esses métodos em sede fiscal, expressamente afasta a sua extensão
quando esteja em causa a determinação da responsabilidade criminal, quando
afirma:
“Só que estas normas não podem servir para determinar a
responsabilidade criminal dos suspeitos de prática de crime de fraude fiscal,
levando à presunção de um dano, nem a natureza de crime de perigo o legitima,
face aos princípios da necessidade e da culpa legitima essa presunção, que aliás
violaria o princípio da presunção de inocência do arguido (ou, no plano da
prova, o princípio in dubio pro reo).”
Assim, mesmo admitindo, para efeitos da
verificação dos requisitos próprios do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC, a equiparação entre as decisões de aplicação de normas
arguidas de inconstitucionais e as decisões de aplicabilidade dessas normas
(isto é, as decisões que considerem aplicável certa norma ao caso em análise,
mesmo que a não apliquem de imediato, pelo menos quando esse juízo de
aplicabilidade seja susceptível de se constituir em caso julgado no processo em
causa), o certo é que, no presente caso, o acórdão ora recorrido não admitiu –
antes expressamente rejeitou – a possibilidade de atribuição de relevância ao
recurso aos métodos indiciários em sede de determinação da responsabilidade
criminal. Não tendo sido aplicada (ou julgada aplicável) a dimensão normativa
arguida de inconstitucional pelo recorrente, o recurso é, nesta parte,
inadmissível, o que determina o correspondente não conhecimento do seu objecto.
O mesmo se passa com a segunda questão de
inconstitucionalidade, suscitada apenas nas alegações produzidas no Tribunal
Constitucional, pois, como é sabido, o objecto do recurso é definido pelo
requerimento através do qual ele é interposto, não podendo as subsequentes
alegações ampliá‑lo, mas apenas restringi‑lo. Ora, no requerimento de
interposição de recurso nenhuma referência é feita à inconstitucionalidade do
artigo 426.º, n.º 1, do CPP, nada indiciando que se tenha tratado de lapso
material do recorrente, já que a referência ao artigo 32.º, n.º 2, da CRP
encontra justificação por ter sido a norma constitucional desde sempre
considerada violada, pelo recorrente, a propósito da primeira questão de
inconstitucionalidade, reportada ao artigo 23.º do RJIFNA.
A circunstância de o artigo 426.º do CPP apenas
ter sido aplicado no acórdão recorrido poderia justificar que se considerasse o
recorrente dispensado do ónus da suscitação da correspondente
inconstitucionalidade antes de proferida essa decisão, mas, obviamente, não o
dispensava de mencionar essa norma no requerimento de interposição de recurso,
se pretendia englobá-la no respectivo objecto. Não o tendo feito nesse momento,
que era o adequado, já não lhe era lícito aditar essa questão nas alegações de
recurso.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em não conhecer do
objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de
justiça em 12 (doze) unidades de conta.
Lisboa, 8 de Março de 2007.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos