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Processo nº 764/06
1ª Secção
Relator: Conselheiro Rui Moura Ramos
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional.
Por lapso, não consta no Acórdão nº 162/07, referente ao Proc. nº 764/06, na página 3, o segundo parágrafo.
Assim, rectifica-se o texto desse acórdão, acrescentando-se, após o primeiro parágrafo dessa página (“Por Acórdão datado de 28.06.2006, o Supremo Tribunal de
Justiça indeferiu o pedido de recusa do Juiz visado pelo incidente, confirmando a decisão recorrida”), o parágrafo seguinte:
“Notificado de tal Acórdão, o assistente Município do Seixal do mesmo interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, o que fez através da apresentação de
requerimento com o seguinte teor:”
Lisboa, 21 de Março de 2007
Rui Manuel Moura Ramos
Maria João Antunes
Artur Maurício
ACÓRDÃO N.º 162/2007
Processo nº 764/06
1ª Secção
Relator: Conselheiro Rui Moura Ramos
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
III. Relatório
No âmbito do processo comum n.º1348/04.0TASXl, a correr termos pelo 1º juízo
criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Seixal, o Município do
Seixal, constituído assistente nos autos, requereu, sob invocação do disposto no
art.43º e ss. Do Cód. De Proc. Penal, a recusa da intervenção do Juiz Presidente
do Tribunal Colectivo.
Por Acórdão proferido aos 23.02.2006, o Tribunal da Relação de Lisboa indeferiu
a recusa de intervenção assim requerida.
Inconformado com tal decisão, o assistente Município do Seixal interpôs para o
Supremo Tribunal de Justiça o correspondente recurso, tendo finalizado a
motivação para o efeito apresentada através da síntese conclusiva que
seguidamente se transcreve:
«1ª Deve ser recusada a intervenção de um juiz, nos termos do art. 43°, n.º 1 do
CPP, sempre que esta seja susceptível de ser considerada suspeita, por existir
motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2ª Tem-se entendido, pacificamente, que o motivo sério e grave adequado a gerar
desconfiança sobre a imparcialidade do juiz deve assentar em razões objectivas
ou objectiváveis – que não o mero convencimento dos sujeitos processuais – e
aferido segundo critérios de senso e experiência comuns;
3ª Não sendo relevantes, a este respeito, meras divergências ou heterodoxias de
natureza processual, susceptíveis de impugnação pelos meios apropriados, maxime
por via de recurso.
4ª No caso vertente, os factos que motivam o requerimento de recusa residem na
circunstância de o Exmo. Senhor Juiz de Direito recusado haver participado
criminalmente (por crime de difamação agravada) e disciplinarmente da mandatária
do Recorrente, e esta, por seu turno, participado daquele junto do Conselho
Superior da Magistratura.
5ª Tais factos não podem qualificar-se como mera divergência ou conflito
pessoal, antes se revestindo, pelas consequências que encerram para cada um dos
visados, de objectiva e inegável gravidade.
6ª Pelo que a questão em apreço nos presentes autos se pode condensar na
seguinte formulação: a circunstância de um juiz haver participado criminal e
disciplinarmente de advogado (e de este, por seu turno, ter participado
disciplinarmente do mesmo juiz) é objectivamente susceptível de constituir
motivo sério e grave, adequado a gerar a desconfiança acerca da imparcialidade
do magistrado em processos em que este haja de intervir como julgador e o mesmo
advogado como mandatário?
7ª Sendo embora pessoas distintas, o Recorrente e a sua Mandatária, tal facto
não obstará, por si só, ao afastamento da suspeição.
8ª A este título é esclarecedor o lugar paralelo que se extrai do impedimento
previsto no art. 39°, n.º 1, i. C), in fine, do CPP, que respeita à situação de
o juiz (impedido) ter intervindo anteriormente no processo na qualidade de
defensor, advogado do assistente ou da parte civil.
9ª Nem se diga que, perante tal situação (a existência de um grave conflito
pessoal entre o magistrado e o advogado da parte), o Recorrente sempre poderia
optar por confiar o patrocínio a outro mandatário, solução que se tem por
inadmissível porque violadora da liberdade fundamental de escolha de advogado,
prevista no art. 62°, n.º 2, do Estatuto da Ordem dos Advogados, e decorrência
do princípio enunciado no art. 208 ° da Constituição.
10ª Decisivo será que, perante a comunidade, a intervenção do juiz em
determinado processo não possa correr o risco de ser olhada como suspeita, por,
de algum modo, sobre o mesmo impender fundada desconfiança quanto à sua isenção
ou imparcialidade.
11ª Ou, dito por outras palavras e parafraseando um Autor acima citado: “deve
ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade,
para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem
oferecer aos cidadãos.”
12ª A esta luz, os motivos supra invocados na conclusão 4ª (rectius, os factos
que sustentaram a dedução da recusa de intervenção de juiz) devem ser
considerados sérios e graves, sendo adequados a – objectivamente – gerar
desconfiança sobre a imparcialidade do Exmo. Senhor Juiz de Direito recusado;
13ª Pelo que o douto Acórdão recorrido, ao decidir diversamente, incorreu na
violação do disposto no art.43º, n.º 1, do CPP, conjugado com as disposições
constantes dos arts. 203° da Constituição e do art. 6°, § 1º da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem.
[…]».
Por Acórdão datado de 28.06.2006, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu o
pedido de recusa do Juiz visado pelo incidente, confirmando a decisão recorrida.
«Município do Seixal, Recorrente nos autos à margem referenciados, notificado do
douto Acórdão proferido a 28 de Junho de 2006, mas com ele não se podendo
conformar, vem do mesmo interpor recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, restrito à questão da
constitucionalidade da norma constante do art. 43°, n.º 1 do Código de Processo
Penal com o sentido interpretativo com que foi aplicada na decisão recorrida, o
que faz ao abrigo do disposto nos art. 70°, n.º 1 al. B) e 72°, n.º 1 al. B)
[este último conjugado com o art. 401°, n.º 1 al. B) do Código de Processo
Penal], ambos da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LOFPTC), o qual, de harmonia
com o preceituado no art. 78°, n.º 3 deste diploma legal, conjugado com o
disposto nos arts. 45°, n.º 4 e 42°, n.º 3, 406°, n.º 1 e 407°, n.º 1 al. A),
todos do Código de Processo Penal, deverá subir imediatamente, nos presentes
autos de incidente de recusa de intervenção de juiz e com efeito suspensivo.
Em cumprimento do disposto no art. 75°-A da LOFPTC, consigna-se o seguinte:
i) O recurso é interposto ao abrigo do disposto no art. 70°, n.º 1 al. B) da
LOFPTC;
ii) A norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada é a constante do
art. 43°, n.º 1 do Código de Processo Penal, tal como a mesma foi interpretada e
aplicada ao caso concreto na douta decisão recorrida. O sentido interpretativo
subjacente à aplicação de tal norma é susceptível de ser genericamente formulado
— adquirindo, consequentemente, dimensão normativa — nos termos seguintes: a
circunstância de existir um grave conflito pessoal entre o magistrado judicial e
o advogado da parte, designadamente tendo o juiz participado criminal e
disciplinarmente do advogado (e de este, por seu turno, ter participado
disciplinarmente do mesmo juiz), não é objectivamente susceptível de constituir
motivo sério e grave, adequado a gerar a desconfiança acerca da imparcialidade
do magistrado em processos em que este haja de intervir como julgador e o mesmo
advogado como mandatário, com fundamento na distinção entre as pessoas da parte
e do seu mandatário e na possibilidade da opção pela escolha de diferente
mandatário que àquela sempre assistiria.
iii) Entende o ora Recorrente que o sentido interpretativo supra exposto, que
subjaz, no caso vertente, à aplicação da norma constante do art. 43°, n.º 1 do
Código de Processo Penal — pressupostos que fundamentam a recusa de intervenção
de juiz viola o disposto no art. 208° da Constituição da República Portuguesa,
tangendo o princípio fundamental da liberdade de escolha de advogado
(expressamente consagrado no art. 62°, n.º 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados,
diploma que, a nível legal, concretiza e desenvolve o regime do exercício do
mandato e do patrocínio forense, enquanto elemento essencial à realização da
justiça) que daquela norma constitucional decorre.
v) A questão da inconstitucionalidade do supra exposto sentido interpretativo da
norma constante do art. 43°, n.º 1 do Código de Processo Penal foi
tempestivamente suscitada pelo ora Recorrente, na Motivação do recurso que
interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça, do Acórdão da 9ª, Secção do
Tribunal de Relação de Lisboa, proferido em 23 de Fevereiro de 2006, no âmbito
do Proc. n.° 11119/05-9, encontrando-se enunciada, designadamente, nas
conclusões 6ª, 7ª, 8ª e 9ª desta peça processual. Da questão suscitada veio o
Venerando Tribunal a quo a conhecer, decidindo-a no sentido supra exposto (cfr.
A pp. 14 do douto Acórdão recorrido).
2. Por se haver entendido que não podia conhecer-se do objecto do recurso, foi
proferida a decisão sumária ora reclamada.
De tal decisão fez-se constar a seguinte fundamentação:
«O recurso de constitucionalidade pretendido interpor pelo assistente Município
do Seixal funda-se na previsão da al.b) do n.º1 do art.70º da LTC, preceito
segundo o qual cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos
tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada
durante o processo.
Os recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º1 do art.70º da LTC
encontram-se sujeitos, quanto à possibilidade da sua admissão, à cumulativa
verificação dos requisitos enunciados no n.º2 do art.72º do referido diploma,
pressupondo, por consequência, que a questão de inconstitucionalidade enunciada
no correspondente requerimento de interposição haja sido suscitada “durante o
processo”, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu
a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”.
Ora, conforme vem sendo pacífica e reiteradamente afirmado por este Tribunal,
ressalvadas as hipóteses de resultado interpretativo imprevisível ou excepcional
a questão de conformidade constitucional pretendida controverter pela via da
fiscalização concreta só se considera suscitada “durante o processo” quando o
recorrente a houver enunciado perante o tribunal recorrido antes de proferida a
decisão final, de modo a habilitá-lo a sobre ela exercer os respectivos poderes
cognoscitivos e, por consequência, a incluí-la no âmbito do respectivo
pronunciamento.
Existindo, portanto, um tempo processualmente adequado para suscitar a questão
de inconstitucionalidade (cfr. Acórdão n.º155/95, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos), vejamos se o mesmo foi observado no
caso presente.
Segundo literalmente decorre do requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade, tem em vista o recorrente, através do accionamento da
jurisdição constitucional, a declaração de inconstitucionalidade «da norma
constante do art. 43°, n.º 1 do Código de Processo Penal com o sentido
interpretativo com que foi aplicada na decisão recorrida».
Tal sentido – prossegue ainda o recorre - «é susceptível de ser genericamente
formulado — adquirindo, consequentemente, dimensão normativa — nos termos
seguintes: a circunstância de existir um grave conflito pessoal entre o
magistrado judicial e o advogado da parte, designadamente tendo o juiz
participado criminal e disciplinarmente do advogado (e de este, por seu turno,
ter participado disciplinarmente do mesmo juiz), não é objectivamente
susceptível de constituir motivo sério e grave, adequado a gerar a desconfiança
acerca da imparcialidade do magistrado em processos em que este haja de intervir
como julgador e o mesmo advogado como mandatário, com fundamento na distinção
entre as pessoas da parte e do seu mandatário e na possibilidade da opção pela
escolha de diferente mandatário que àquela sempre assistiria».
Pois bem.
Sendo o próprio recorrente quem expressamente reconhece que a questão pretendida
controverter só adquiriu espessura normativa através da enunciação inserta no
requerimento de interposição do recurso, tendo sido introduzida para debate com
o recorte resultante da caracterização aí pela primeira vez efectuada, a
demonstração de que o pressuposto da suscitação prévia não foi observado na
espécie presente parece conseguir-se sem dificuldade.
Com efeito, tendo a interpretação normativa a sindicar o conteúdo acima
transcrito, inviável evidentemente se torna a possibilidade de acompanhar o
recorrente quando simultânea (e contraditoriamente) afirma que «a questão da
inconstitucionalidade do supra exposto sentido interpretativo da norma constante
do art. 43°, n.º 1 do Código de Processo Penal foi tempestivamente suscitada na
motivação do recurso que interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça […]
encontrando-se enunciada, designadamente, nas conclusões 6ª, 7ª, 8ª e 9ª desta
peça processual».
Isto porque uma leitura atenta da referida peça processual, em particular do
trecho conclusivo para que remete o recorrente, revela sem dificuldade que o
mesmo aí se quedou por uma arguição manifestamente aquém da enunciação
apresentada no requerimento de interposição de recurso, para além de, nos seus
próprios termos, notoriamente desprovida de conteúdo ou densidade normativa.
Uma vez que do conjunto das conclusões destacadas apenas se extraem argumentos
de direito ordinário destinados a invalidar a solução perfilhada pelo Tribunal
da Relação de Lisboa que consistiu em negar ao circunstancialismo concretamente
verificado no caso aptidão para integrar o conceito de «motivo, sério e grave,
adequado a gerar desconfiança sobre a (…) imparcialidade» do juiz sob recusa
(cfr. Art.43º, n.º1, do Cód. De Processo Penal), impõe-se concluir que a
acusação de inconstitucionalidade agora dirigida contra o art.43º, n.º1, do
Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido explicitado no
requerimento de interposição do recurso, nunca foi dada a conhecer ao tribunal
«a quo», o que significa que o recurso de constitucionalidade pretendido
interpor só poderia ser admitido à custa da desvirtuação do seu inerente e
irrecusável sentido, que é, como se fez já notar, o de reavaliação de uma
anterior decisão e não o de substituição da instância recorrida no
pronunciamento inaugural sobre a matéria em causa (neste sentido, Guilherme da
Fonseca/Inês Domingos, Breviário de Direito Processual Constitucional, Coimbra
Editora, 2ª ed., pg.47-48).
O entendimento para que vimos propendendo não é, de resto, minimamente
perturbado pela circunstância de, sob o ponto 9 da síntese conclusiva em
presença, o recorrente haver feito expressa referência ao princípio enunciado no
art. 208 ° da Constituição.
A tal propósito – é útil começar por relembrá-lo – escreve o recorrente o
seguinte: «Nem se diga que, perante tal situação (a existência de um grave
conflito pessoal entre o magistrado e o advogado da parte), o Recorrente sempre
poderia optar por confiar o patrocínio a outro mandatário, solução que se tem
por inadmissível porque violadora da liberdade fundamental de escolha de
advogado, prevista no art. 62°, n.º 2, do Estatuto da Ordem dos Advogados, e
decorrência do princípio enunciado no art. 208° da Constituição».
Ora, conforme, desde logo, sugerido pelo tipo de formulação utilizada, do que se
trata aqui é tão somente de uma resposta avançada para antecipadamente refutar
um argumento que se supôs pudesse vir a ser ponderado pelo Supremo Tribunal de
Justiça na defesa da solução perfilhada pelo Acórdão proferido pelo Tribunal da
Relação de Lisboa e não, como conviria à possibilidade de conhecimento do
objecto do recurso, da enunciação de uma questão de inconstitucionalidade
normativa, designadamente da questão apresentada no correspondente requerimento
de interposição.
Foi este, de resto, o sentido em que, com inteira fidelidade pelo alegado, as
reservas de constitucionalidade suscitadas no decurso do processo foram
identificadas e resolvidas no Acórdão pretendido sindicar, o que se comprova
através da leitura do trecho aí dedicado à apreciação do raciocínio seguido pelo
recorrente no âmbito da convocação do princípio inserto no art.208º da Lei
Fundamental.
A tal propósito, aí se escreveu o seguinte:
«Sustentou ainda a recorrente (conclusão 9ª) que perante a existência de um
grave conflito pessoal entre o magistrado e o advogado da parte, não é
defensável que se sustente que a parte sempre poderia optar por confiar o
patrocínio a outro mandatário, pois essa solução seria violadora da liberdade
fundamental de escolha de advogado, prevista no art.62º, n.º2, do Estatuto da
Ordem dos Advogados, e decorrência do princípio enunciado no art.208º da
Constituição.
A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e
regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça,
dispõe aquele art.208º da Constituição. E não se vê que o indeferimento do
pedido de recusa de juiz baseado em controvérsia com a mandatária do demandado
civil, contrarie tal dispositivo, pondo em causa as imunidades necessárias ao
mandato ou descaracterizando o patrocínio judiciário […]».
Ora, bem se vê que, caso tivesse sido confrontado, em momento anterior ao do
respectivo pronunciamento, com a questão de inconstitucionalidade caracterizada
no requerimento de interposição do recurso, mais propriamente com o problema de
não poder aplicar o artigo 43º, n.º1, do Código de Processo Penal, com o sentido
normativo pretendido controverter sem afastar o obstáculo da sua desconformidade
com a Constituição (cfr. Acórdão nº 169/06, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos), o Tribunal recorrido teria
naturalmente enveredado por um discurso argumentativo distinto do efectivamente
seguido, ainda que, porventura, com coincidentes ilações finais.
Em síntese: tendo o recorrente omitido a suscitação perante o tribunal recorrido
da questão de inconstitucionalidade normativa enunciada no requerimento de
interposição do recurso, este não pode deixar de ser considerado processualmente
inadmissível por inobservância dos requisitos colocados pelo n.º2 do art.72º da
LTC.
Numa segunda (e sempre subsidiária) linha de razões, um outro obstáculo não
deixaria de colocar-se à possibilidade de conhecimento do objecto do recurso.
É que, pressupondo a interpretação normativa sindicável pelo Tribunal
Constitucional «[…] uma vocação de generalidade e abstracção na enunciação do
critério que lhe está subjacente – de modo a autonomizá-lo claramente da pura
actividade subsuntiva, ligada irremediavelmente a particularidades específicas
do caso concreto» (Lopes do Rego, O objecto idóneo dos recursos de fiscalização
concreta da constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo
Tribunal Constitucional, Jurisprudência Constitucional, n.º3, Julho-Setembro
2004, pg.7) - a dimensão enunciada no requerimento de interposição, surgindo
decalcada do singular circunstancialismo em litígio e dele insusceptível de ser
separada, dificilmente poderia constituir objecto idóneo de um recurso de
constitucionalidade, ainda que, porventura, tivesse sido tempestivamente
antecipada.
2. De tal decisão sumária reclama agora o recorrente para a conferência, o que
faz ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da LTC e sob invocação dos
argumentos seguintes:
«1.º O Recorrente interpôs recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70°, n.º
1, alínea b) e 72°, n.º 1 alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC),
no respeitante à questão da constitucionalidade da norma constante do art. 43°
n.º 1 do Código de Processo Penal com o sentido interpretativo com que a mesma
foi aplicada na decisão recorrida.
2.° Veio o Tribunal Constitucional, a 18 de Outubro de 2006, proferir decisão
sumária, lavrada pelo Exmo. Conselheiro-Relator Dr. Rui Moura Ramos, que decidiu
no sentido de não tomar conhecimento do recurso interposto pelo Recorrente.
3.º Considerando que o recurso em análise se funda no artigo 70°, n.º 1, alínea
b) da LTC, importa recordar e sistematizar os pressupostos desse recurso, para
demonstrarmos que, em face das motivações subjacentes à referida decisão
sumária, o presente recurso satisfaz todos os pressupostos, quer formais quer
materiais, de acesso ao Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta
da constitucionalidade.
4.º São, pois, estes os pressupostos do recurso fundado na alínea b) do n.º 1 do
artigo 70° da LTC:
1. A interpretação ou aplicação controvertida deverá ocorrer no quadro de uma
decisão judicial.
2. A interpretação ou aplicação controvertida deve ter por objecto normas
jurídicas.
3. A decisão recorrida deverá ter aplicado efectivamente a norma (ou normas)
arguidas de inconstitucionais, ou deverá ter feito uma interpretações ou
(interpretações) dessas normas em termos arguidos de inconstitucionais
4. O Recorrente deverá ter suscitado a questão de constitucionalidade
adequadamente durante o processo (ónus de suscitação).
5. Deverá ter havido uma exaustão dos recursos ordinários, de acordo com o
artigo 70º, n°2 do Tribunal Constitucional.
6. O recurso não poderá ser manifestamente infundado e deverá ser
processualmente útil em relação ao processo principal.
7. O Recorrente deverá ser a mesma parte que suscitou inicialmente a questão de
constitucionalidade.
8. O Recorrente deverá ter indicado os elementos exigidos pelo artigo 75°-A, n.º
2 do Tribunal Constitucional, isto é, a alínea do n.º 1 do artigo 70° ao abrigo
da qual o recurso é interposto, a norma cuja inconstitucionalidade ou cuja
interpretação inconstitucional pretende que o Tribunal aprecie e a norma ou
princípio constitucional que se considera violado, assim como a peça processual
em que suscitou a questão da inconstitucionalidade.
5.º Ora, importa desde já assinalar que a decisão sumária de que se recorre não
põe em causa a quase totalidade dos referidos pressupostos de recurso, de
aplicação cumulativa, tendo baseado a sua decisão unicamente em duas linhas de
razões:
a) A primeira, e principal, decorre do facto de o Exmo. Juiz Conselheiro Relator
entender que o Recorrente não suscitou a questão de inconstitucionalidade
normativa de um modo processualmente adequado (incumprimento do ónus de
suscitação);
b) A segunda, e subsidiária, nasce da circunstância de a questão de
inconstitucionalidade suscitada ser inseparável do litígio da qual a mesma
promanou, não constituindo por isso um objecto idóneo de um recurso de
constitucionalidade” (inidoneidade do objecto do recurso).
6.º Nessa medida, uma vez que a decisão de inadmissão do presente recurso
assentou exclusivamente nas motivações enunciadas, é sobre a análise de tais
motivações que faremos incidir o presente recurso, com o propósito de demonstrar
que o Tribunal Constitucional deveria e deverá admitir o presente recurso de
constitucionalidade.
1. DA SUSCITAÇÃO PROCESSUALMENTE ADEQUADA DA QUESTÃO DE INCONSTTUCIONALIDADE
7.º Tem sido entendido pelo Tribunal Constitucional que a suscitação de uma
questão de constitucionalidade durante o processo deverá ocorrer em momento
anterior à decisão final do tribunal recorrido, isto é, enquanto houver
pendência da causa em tribunal,
8.° No presente recurso de constitucionalidade, e conforme referiu no
requerimento de interposição, o Recorrente enunciou a questão de
inconstitucionalidade nas motivações de recurso que interpôs para o Supremo
Tribunal de Justiça, do Acórdão da 9ª, Secção do Tribunal de Relação de Lisboa,
proferido em 23 de Fevereiro de 2006 e, designadamente, nas conclusões 6ª, 7ª,
8ª e 9ª daquela peça processual, no respeitante ao modo como foi feita, na
decisão recorrida, a interpretação e aplicação do artigo 43°, n.º 1 do Código de
Processo Penal.
9.º Quais os postulados argumentativos nos quais assentou o Exmo. Conselheiro
Relator a sua decisão de inadmissão do presente recurso?
a) Em primeiro lugar, segundo o Exmo. Conselheiro Relator, das conclusões
referenciadas pelo Recorrente apenas se retiram “argumentos de direito ordinário
destinados a invalidar a solução perfilhada pelo Tribunal da Relação de Lisboa”,
pelo que caso o recurso fosse admitido pelo Tribunal Constitucional, este
estaria a substituir-se à instância recorrida na composição da matéria normativa
em questão;
b) Em segundo lugar, a circunstância de o Recorrente ter feito expressa menção
ao artigo 208° da Constituição (na conclusão n.º 9) não infirma o entendimento
anterior, visto que, para o Exmo. Conselheiro Relator, o Recorrente pretendeu
‘antecipadamente refutar um argumento que se supõe pudesse vir a ser ponderado
pelo Supremo Tribunal de Justiça” e não proceder à “enunciação de uma questão de
inconstitucionalidade normativa.
c) Em terceiro lugar, afirma ainda o Exmo. Conselheiro Relator que é o próprio
Acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Lisboa a demonstrar que não estamos
perante uma verdadeira e própria questão de inconstitucionalidade normativa,
pelo facto de ter enveredado por um discurso argumentativo que, alegadamente, na
medida em que se conforma às próprias conclusões apresentadas pelo Recorrente,
acaba por secundarizar a questão da invocação do artigo 208° da Constituição na
matéria decidida.
10.º Sendo estes, em termos sumários, os argumentos elencados pelo Exmo.
Conselheiro Relator, vejamos agora porque é que os mesmos não podem proceder.
11.º Em primeiro lugar, não é correcto dizer-se, nem uma tal ideia se retira das
motivações do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, que o
Recorrente se limitou, no presente recurso, à convocação de argumentos de
direito ordinário, abstendo-se de lhes conferir a densidade normativa própria de
uma questão de inconstitucionalidade e hipotizando apenas um problema de
natureza constitucional quando, a final do seu argumentário, tentando responder
antecipadamente a uma decisão possível do Supremo Tribunal de Justiça, invocou a
violação do artigo 208° da Constituição.
12.º Desde logo, sempre convirá relembrar que, sendo suscitada uma questão de
inconstitucionalidade normativa no contexto de um recurso jurisdicional
ordinário, é inevitável que a mesma surja num enquadramento jurídico-normativo
que se baseia, antes de mais, em “argumentos de direito ordinário’, destinados à
obtenção de uma decisão judicial procedente em sede de recurso.
13.º Com efeito, estando em causa a aplicação de normas de direito ordinário com
vários sentidos interpretativos em discussão, o interesse do Recorrente é que
seja dada prevalência a um determinado sentido em vez de outro, de maneira a que
o recurso jurisdicional obtenha vencimento.
14.º O que, todavia, se afigura imprescindível, para nos acharmos perante uma
verdadeira e própria questão de inconstitucionalidade correctamente suscitada, é
que tais argumentos de direito ordinário se associem a outros argumentos que
fundamentem a invalidade constitucional de certas normas legais ou de certas
interpretações dessas normas.
15.º O que será exigível, pois, é que, nessa associação incidental entre
argumentos de direito ordinário e argumentos de constitucionalidade, a questão
de inconstitucionalidade se assuma como objectivamente determinante para a
decisão final do processo-pretexto.
16.° Ora, o Recorrente procurou demonstrar, em sede de recurso, que uma
determinada interpretação e aplicação do artigo 43° do CPP é materialmente
errada e que da mesma resultam ilações e consequências lógico-jurídicas que
ferem directamente o artigo 203° da Constituição.
17.º Com efeito, alegou o Recorrente que “a circunstância de um juiz haver
participado criminal e disciplinarmente de advogado (e de este, por seu turno,
ter participado disciplinarmente do mesmo juiz) é objectivamente susceptível de
constituir motivo, sério e grave, adequado a gerar a desconfiança acerca da
imparcialidade do magistrado em processos em que este haja de intervir
18.° Eis ai, clara e precipuamente enunciada, a discordância interpretativa
sobre o artigo 43.° do CPP e que se consubstancia, para começar, na exposição de
argumentos de direito ordinário.
19.ºAcontece que o Recorrente não se ficou por esse nível de discordância legal
face à decisão recorrida.
20.° Afirmou depois o Recorrente que, na medida em que o Acórdão recorrido
procedeu a uma interpretação do artigo 43° do CPP com o sentido interpretativo
contestado, legitimou uma aplicação da referida norma que permite que juízes de
direito sobre os quais existem motivos sérios e objectivamente graves a gerar
desconfiança sobre a sua imparcialidade se mantenham nos respectivos processos,
violando, nessa medida, o artigo 203° da Constituição (conclusão n.º 13 da peça
de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça).
21.º Eis aí formulada também com clareza, a questão de inconstitucionalidade
normativa processualmente suscitada: há uma especifica interpretação do artigo
43° do CPP que se contesta e que redunda, no entender do Recorrente, numa
violação do dever de independência e imparcialidade judicativa consagrada no
artigo 203° da Constituição, tal como o Recorrente enunciou no n.º 13 das suas
conclusões.
22.° Ora, foi essa mesma questão de inconstitucionalidade normativa que o Exmo.
Conselheiro Relator não ponderou devidamente, tendo aliás ignorado por completo
a referência que foi feita directamente pelo Recorrente na peça de recurso à
violação do artigo 203° da Constituição.
23.° Desde logo, convém notar que se o Exmo. Conselheiro Relator partiu do
princípio que a questão de inconstitucionalidade foi suscitada nas conclusões 6ª
a 9ª do recurso que o Recorrente interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça, só
porque o mesmo Recorrente as destacou no requerimento de interposição de recurso
para o Tribunal de Justiça, não cuidou em ver que, naquele mesmo requerimento, o
Recorrente usou o advérbio “designadamente”, tendo afirmado que a “questão de
inconstitucionalidade do supra exposto sentido interpretativo do artigo 43° do
Código de Processo Penal foi tempestivamente suscitada na motivação do recurso
que interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça (..) encontrando-se enunciada,
designadamente, nas conclusões 6ª, 7ª, 8ª e 9ª desta peça processual.
24.° Assim, não deveria o Exmo. Conselheiro Relator ter usado a invocação do
artigo 208° da Constituição para concluir pela inadequada suscitação da questão
de inconstitucionalidade, sem ter indagado do problema fundamental da
desconformidade entre o artigo 43° do CPP, com o sentido interpretativo já
enunciado, e o artigo 203° da Constituição, que o Recorrente, com efeito,
suscitou de modo processualmente adequado perante o Supremo Tribunal de Justiça.
25.° Finalmente, o terceiro argumento que é hasteado pelo Exmo. Conselheiro
Relator nesta decisão sumaria, colhido directamente do discurso adoptado pelo
Supremo Tribunal de Justiça, não poderá também servir para pôr em crise o modo
de suscitação da questão de inconstitucionalidade em apreço.
26.° É que a circunstância de o Supremo Tribunal de Justiça não ter autonomizado
a questão da discrepância inconstitucional entre o artigo 43° do CPP, com o
sentido interpretativo controvertido, e o artigo 203° da Constituição, não
significa, obviamente, que essa questão não estivesse presente e devidamente
formulada nas motivações do recurso interposto pelo Recorrente.
27.° Como vimos, é efectivamente possível extrair-se desse recurso uma questão
de inconstitucionalidade normativa, com a natureza de questão verdadeiramente
prejudicial no contexto do processo-pretexto.
28.º E nem sequer poderia, segundo se crê, o Exmo. Conselheiro Relator
fundamentar a sua decisão de aceitação ou recurso de um recurso de
constitucionalidade no facto de a decisão recorrida não ter reconhecido e
admitido a questão de inconstitucionalidade suscitada.
29.° Como escreve, por exemplo, Jorge Miranda, “O Tribunal Constitucional não
tem que averiguar se o juiz a quo andou bem ou não ao considerar uma questão de
constitucionalidade como uma questão prévia, autonomizando-a e decidindo-a”
(Manual de Direito Constitucional, Vol. VI, pág. 205).
30.° Poder-se-á dizer, na mesma linha, que o Tribunal Constitucional não tem que
fazer depender a admissão do recurso de constitucionalidade em fiscalização
concreta do facto de o Tribunal a quo ter decidido a questão jurídica que lhe
foi colocada como questão de constitucionalidade.
31.º Na verdade, requisito do recurso para o Tribunal Constitucional é que a
questão de inconstitucionalidade seja suscitada, de modo adequado, durante o
processo e que o Tribunal onde esse processo decorreu faça uma efectiva
aplicação da norma ou normas jurídicas controvertidas, com sentido
interpretativo apontado como inconstitucional.
32.° No caso em apreço, o Supremo aplicou de facto uma norma, o artigo 43° do
CPP, cuja inconstitucionalidade o Recorrente suscitou durante o processo.
33.º Apreciando objectivamente a decisão, verifica-se que Supremo não considerou
que “a circunstância de um juiz haver participado criminal e disciplinarmente de
advogado (e de este, por seu turno, ter participado disciplinarmente do mesmo
juiz) é objectivamente susceptível de constituir motivo, sério e grave, adequado
a gerar a desconfiança acerca da imparcialidade do magistrado em processos em
que este haja de intervir como julgador e o mesmo advogado como mandatário”
(conclusão n.º 6 da peça de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça), pelo
que, mesmo sem o ter expressado de um modo directo o Supremo defendeu que a
interpretação do artigo 43° do CPP não é susceptível de violar o artigo 203° da
Constituição.
2. DO OBJECTO IDÓNEO DO RECURSO DE CONSTITUCIONALIDADE
34.º Uma segunda linha de razões autonomizada na decisão sumária sob recurso,
embora somente enunciada nos seus traços gerais, consiste no facto de, no
entender do Exmo. Conselheiro Relator, a questão de inconstitucionalidade
suscitada ser inseparável do litígio da qual a mesma promanou, não constituindo
por isso um “objecto idóneo de um recurso de constitucionalidade”.
35.º Julga-se, no entanto, que a oposição à idoneidade do objecto do recurso de
constitucionalidade não tem, no caso em análise, fundamento.
36.° Com efeito, recordemos que o Recorrente advogou a inconstitucionalidade do
artigo 43° do CPP, com o sentido interpretativo que lhe foi dado pela decisão
recorrida, por violação do artigo 203° da Constituição.
37.º Tudo se resume, pois, em saber se o sentido interpretativo que foi dado ao
artigo 43° do CPP, isto é, o facto de um juiz haver participado criminal e
disciplinarmente de advogado (e de este, por seu turno, ter participado
disciplinarmente do mesmo juiz) não ser objectivamente susceptível de constituir
motivo, sério e grave, adequado a gerar a desconfiança acerca da imparcialidade
do magistrado em processos em que este haja de intervir como julgador e o mesmo
advogado como mandatário, corporiza ou não uma violação directa do artigo 203°
da Constituição.
38.° Torna-se assim claro que o objecto do presente recurso de
constitucionalidade é o artigo 43° do CPP, com o sentido interpretativo que foi
enunciado, o qual encontrou efectiva aplicação no caso concreto.
39.º Por isso, verifica-se que no objecto do recurso em apreço não entra nem a
factualidade inerente ao caso concreto,
40.° Nem se trata de conduzir o Tribunal Constitucional para a desconstrução e
reanálise da decisão judicial recorrida.
40.° Pelo contrário, estando factualmente assentes as situações objectivas de
conflito entre o juiz e o mandatário de uma parte e não sendo necessário, assim,
intrometer o Tribunal Constitucional nessa matéria, do que se trata é de apurar
se a aplicação do artigo 43° do CPP com o sentido interpretativo que lhe foi
dado e que redundou na desconsideração daquelas situações objectivas como um
motivo sério e grave de desconfiança da imparcialidade do magistrado em causa,
fere ou não o artigo 203° da Constituição.
41.º É esse o objecto do presente recurso de constitucionalidade; são esses os
termos da questão de inconstitucionalidade normativa que foi suscitada em sede
de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
42.° Não parece, pois, pelas razões expostas, e salvo o devido respeito, que o
mesmo possa ser perspectivado como um objecto inidóneo.
43.º O controlo da constitucionalidade de interpretações normativas pressupõe,
como diz Lopes do Rego, que o recurso incida “sobre o critério normativo da
decisão, sobre uma regra abstractamente enunciada e vocacionada para uma
aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a pretender sindicar
o puro acto de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade
própria e irrepetível do caso concreto” (Carlos Lopes do Rego, “As
interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional”, in
Jurisprudência Constitucional, n.° 3, pág. 7).
44.º De outro modo, como também escreve Lopes do Rego, “quando se pretenda
questionar a constitucionalidade de uma dada interpretação normativa, é
indispensável que a parte identifique expressamente essa interpretação ou
dimensão normativa, em termos de o Tribunal, no caso de a vir julgar
inconstitucional, a poder enunciar na decisão, de modo a que os respectivos
destinatários e os operadores do direito em geral fiquem a saber que essa norma
não pode ser aplicada com tal sentido” (“As interpretações normativas…”, cit.,
pág. 8).
45.º Ora, o Recorrente cumpriu efectivamente todas essas exigências, moldando a
questão de inconstitucionalidade suscitada de acordo com as referidas dimensões
de generalidade e abstracção, a fim de o Tribunal Constitucional poder decidir
se a interpretação normativa que o tribunal a quo deu ao artigo 43° do CPP, com
os pressupostos objectivos e materiais que a sustentaram, é ou não
constitucionalmente válida.
46.° Nestes termos, por tudo quanto se expôs, o Recorrente considera que o
recurso oportunamente interposto para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70° da Lei de Organização e Funcionamento do
Tribunal Constitucional (LOTC), assim como na alínea b) do n.º 1 do artigo 280°
da CRP, satisfaz a plenitude das condições de recurso, objectivas e subjectivas,
formais e materiais, para o Tribunal Constitucional.»
A esta reclamação respondeu o Ministério Público nos termos que seguidamente se
transcrevem:
«1° A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2° Na verdade, a entidade reclamante não suscitou, durante o processo e em
termos processualmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade
normativa, idónea para servir de base ao recurso interposto para este Tribunal
Constitucional.
3° Nas conclusões da motivação do recurso, interposto perante o Supremo Tribunal
de Justiça, não logrou o reclamante delinear, com a precisão e clareza exigível,
uma questão de constitucionalidade “normativa” — e limitando-se, nomeadamente,
na conclusão 13ª a imputar ao acórdão recorrido a violação simultânea de norma
de direito ordinário e de um princípio constitucional, o que naturalmente — e
segundo entendimento reiterado e uniforme — não preenche os pressupostos do
recurso tipificado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional».
II. Fundamentação.
Conforme resulta da argumentação desenvolvida na decisão sumária cujo teor acima
se transcreveu, aí se concluiu pelo não conhecimento do objecto do recurso
pretendido interpor pelo ora reclamante com fundamento na circunstância de não
haver sido suscitada perante o Tribunal a quo a questão de inconstitucionalidade
enunciada no requerimento dirigido a este Tribunal, questão essa de cuja
exigível normatividade em todo o caso subsidiariamente se duvidou.
Para suportar aquela primeira e auto-suficiente conclusão, considerou-se o facto
de, expressando o recorrente a pretensão de ver declarada inconstitucional a
norma constante do art. 43°, n.º 1, do Código de Processo Penal, com o sentido
interpretativo segundo o qual «a circunstância de existir um grave conflito
pessoal entre o magistrado judicial e o advogado da parte, designadamente tendo
o juiz participado criminal e disciplinarmente do advogado (e de este, por seu
turno, ter participado disciplinarmente do mesmo juiz), não é objectivamente
susceptível de constituir motivo sério e grave, adequado a gerar a desconfiança
acerca da imparcialidade do magistrado em processos em que este haja de intervir
como julgador e o mesmo advogado como mandatário, com fundamento na distinção
entre as pessoas da parte e do seu mandatário e na possibilidade da opção pela
escolha de diferente mandatário que àquela sempre assistiria», não ter a questão
assim configurada sido suscitada na peça processual que serviu para interpor o
recurso dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça, conforme era no caso imposto
pelo ónus de antecipação prescrito no n.º2 do art.72º da LTC.
Para concretizar tal afirmação, fez-se seguidamente notar que «uma leitura
atenta da referida peça processual, em particular do trecho conclusivo para que
remete(ra) o recorrente», não deixaria de revelar que o mesmo aí se havia
quedado «por uma arguição manifestamente aquém da enunciação apresentada no
requerimento de interposição de recurso, arguição esta, de resto, nos seus
próprios termos notoriamente desprovida de conteúdo ou densidade normativa»
[transcrição do quarto parágrafo de fls. 158, com sublinhado aditado].
Tal entendimento parece resistir sem dificuldade às
objecções colocadas na reclamação.
Senão vejamos.
Num esforço argumentativo tendente à demonstração de que a
questão de inconstitucionalidade exposta no requerimento de interposição do
recurso foi adequadamente suscitada perante o Tribunal recorrido, começa por se
concentrar o reclamante no estabelecimento do alcance atribuível ao teor do
enunciado inserto em certas das conclusões com que foi finalizada a motivação
que acompanhou o recurso dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça.
A tal propósito, pretende convencer o reclamante de que,
dizendo embora respeito à aplicação do direito ordinário as considerações
formuladas sob a conclusão 6ª da peça processual em referência, por esse nível,
todavia, se não quedou a síntese argumentativa dada a conhecer ao tribunal aqui
recorrido, já que, conforme deverá extrair-se da asserção contida sob a
conclusão 13ª, aí chegou a formular-se (e com clareza) a questão de
inconstitucionalidade normativa processualmente suscitada por referência à
alegada violação do art.203º da Constituição.
Ainda segundo o reclamante, essa questão de
inconstitucionalidade normativa alegadamente caracterizável a partir do
enunciado inserto na referida conclusão 13º não terá sido devidamente ponderada
pelo ora Relator que, desconsiderando o concomitante e prévio emprego do
advérbio «designadamente», apenas terá atendido, para concluir no sentido que
ficou expresso na decisão ora reclamada, ao teor das quatro conclusões
particularizadas no requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade.
Conforme se procurará demonstrar, tal argumentação é
manifestamente improcedente.
Desde logo pela circunstância de, conforme resulta da
formulação seguida na decisão sumária sob reclamação, mais propriamente naquele
seu excerto acima reproduzido já, não se haver o Tribunal limitado à
consideração do afirmado pelo recorrente sob as conclusões 6ª a 9ª da motivação
do recurso dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça, antes, o que é diferente, as
tendo considerado em particular, posto que expressamente destacadas pelo
próprio.
Não foi, portanto, o Tribunal que não cuidou de atender ao
emprego pelo recorrente do advérbio «designadamente», mas o ora reclamante que
desconsiderou o sentido da expressão «em particular», não obstante tal expressão
preceder, na economia da decisão sumária sob censura, a referência aí feita ao
teor das conclusões para que expressamente remete o requerimento de interposição
do recurso de constitucionalidade.
Uma segunda ordem de razões impede ainda que acompanhado
possa ser o raciocínio desenvolvido pelo reclamante.
Com efeito, conforme se crê resultar já da fundamentação
seguida na decisão reclamada, em nenhuma outra das conclusões que encerram a
motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, incluindo a
agora destacada conclusão 13ª, se pode ter por suscitada a questão de
constitucionalidade que veio a ser caracterizada no requerimento dirigido a este
Tribunal ou sequer apresentada uma qualquer formulação de perceptível conteúdo
normativo.
Naquela conclusão 13ª, como bem nota o Ex.mo Sr.
Procurador-Geral Adjunto, o reclamante limitou-se a imputar directamente ao
Acórdão recorrido a simultânea violação de uma norma de direito ordinário – o
art.43º, n.º1, do Código de Processo Penal – e de um princípio constitucional –
o consagrado no art.203º da Constituição.
É certo que, no âmbito da argumentação destinada a invalidar
o entendimento expresso na decisão sumária, o reclamante procura prevalecer-se
da alegação contida na conclusão 13ª, não isoladamente considerada, mas em
concatenação com o que enunciado havia sido sob conclusão 6ª.
Todavia, sem possibilidade de sucesso maior.
E isto, desde logo, porque, conforme vem sendo reiteradamente afirmado
por este Tribunal, para além de vincular o recorrente à antecipação da questão
de inconstitucionalidade pretendida controverter, exigindo-lhe que a enuncie
antes de esgotado se mostrar o poder jurisdicional do juiz sobre a temática em
que a mesma se ache inscrita, o requisito da suscitação atempada considerado
ausente pela decisão reclamada coloca ainda exigências de tipo metodológico,
impondo que a enunciação, além de oportuna, seja feita de modo processualmente
adequado, ou seja, com clareza e inteligibilidade suficientes para permitir ao
tribunal a quo aperceber-se de que, sob pena de omissão de pronúncia, deverá
incluir no elenco das questões a resolver o preciso vício de constitucionalidade
ulteriormente suscitado perante o Tribunal Constitucional.
E se o cumprimento do ónus a que se refere o artigo 72º, nº 2, da LTC,
impõe ao recorrente que, perante o tribunal recorrido, delimite a questão de
inconstitucionalidade ulteriormente caracterizada no requerimento de
interposição do recurso de constitucionalidade de forma clara e perceptível,
irremediavelmente comprometida parece ficar a possibilidade de, à semelhança do
que se supõe reivindicado pelo ora reclamante, cometer ao tribunal “ad quem” a
tarefa de identificar, reunir e conjugar, de entre todas as produzidas, as
afirmações com potencialidade para fazer desapontar o critério interpretativo
reputado de inconstitucional, designadamente associando àquela que serviu para
enunciar a questão de direito infra-constitucional a decidir pelo tribunal de
recurso uma outra, contida sete itens após, onde, por haver decidido em sentido
diverso do sufragado, se acusa o Acórdão recorrido de ter incorrido na violação,
entre outros preceitos de distinta natureza, de determinada disposição
constitucional.
À decisão de não conhecimento do objecto do recurso com
fundamento na não antecipação perante o Tribunal recorrido da hipótese
interpretativa pretendida sindicar imputa o reclamante uma segunda debilidade,
esta resultante das considerações ali efectuadas acerca das reservas de
constitucionalidade suscitadas sob convocação do princípio inserto no art.208º
da Lei Fundamental no âmbito do recurso dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça.
A crítica, porém, releva-se uma vez mais desajustada.
Com efeito, se, ainda que sob o escudo proporcionado pelo
emprego do adverbio «designadamente», o reclamante teve a iniciativa de
identificar expressamente, no conjunto das treze apresentadas, as quatro
conclusões que considerava haverem servido para suscitar perante o tribunal a
quo a questão de inconstitucionalidade pretendida debater, e, se nessa série de
quatro, uma, mais precisamente a última, se dedicava por inteiro à
perspectivação de uma possível violação do art.208º da Constituição em função da
argumentação que em defesa da solução impugnada eventualmente viesse a ser
utilizada, parece legítimo, senão mesmo exigível, que, ao aferir do
preenchimento dos pressupostos de admissibilidade do recurso, o Tribunal tivesse
procurado indagar se aquela circunstância era susceptível de comprometer o
entendimento segundo o qual não havia sido observado no caso o requisito da
suscitação prévia da questão de constitucionalidade pretendida controverter pela
via da fiscalização concreta. E, fazendo-o, só o poderia ter feito nos termos em
que o fez: demonstrando não tratar-se aí da enunciação de uma questão de
inconstitucionalidade normativa, designadamente da questão caracterizada no
requerimento de interposição do recurso.
O mesmo se diga do reparo que, descontextualizando-a, o
reclamante dirige à referência que na decisão reclamada é feita ao teor da
fundamentação constante do Acórdão recorrido.
Com efeito, contrariamente ao que vem sustentado, não se
fez obviamente decorrer da circunstância de, em matéria de sindicância
constitucional, o Acórdão recorrido apenas se haver referido a uma eventual
violação do princípio inserto no art.218º da Constituição a conclusão de que
nenhuma outra questão, para além da assim identificada, havia sido enunciada
pelo recorrente. O que se afirmou foi que, ao não incluir no âmbito de
apreciação das reservas de constitucionalidade suscitadas nos autos a questão
enunciada no requerimento dirigido a este Tribunal, o Tribunal recorrido se
manteve fiel ao perante si alegado, já que, conforme se reafirmou supra,
continua a entender-se que a precisa questão de inconstitucionalidade delimitada
no requerimento de interposição do recurso não foi suscitada perante o Supremo
Tribunal de Justiça com clareza e inteligibilidade suficientes para o colocar na
obrigação de conhecê-la, sob pena de omissão de pronúncia.
No que por último diz respeito à subsidiária linha argumentativa
desenvolvida na decisão sumária sob censura, o reclamante limita-se a manifestar
o seu discordante posicionamento sobre a questão, nenhum argumento aduzindo
susceptível de abalar o entendimento segundo o qual, pressupondo a interpretação
normativa sindicável pelo Tribunal Constitucional «[…] uma vocação de
generalidade e abstracção na enunciação do critério que lhe está subjacente – de
modo a autonomizá-lo claramente da pura actividade subsuntiva, ligada
irremediavelmente a particularidades específicas do caso concreto» (Lopes do
Rego, O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta da
constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal
Constitucional, Jurisprudência Constitucional, n.º3, Julho-Setembro 2004,
pg.7)», não serem tais requisitos facilmente identificáveis numa formulação que
emana de um circunstancialismo tão peculiar como é o da participação criminal
e/ou disciplinar reciprocamente efectuada entre um juiz e um advogado
ulteriormente intervenientes num mesmo processo e se destina a pôr em causa a
validade constitucional do acto subsuntivo que, perante o enquadramento colocado
pelo art.43º, n.º1, do Código de Processo Penal, recusou a esse mesmo dado de
facto aptidão suficiente para integrar o conceito legal de motivo, sério e
grave, adequado a gerar a desconfiança acerca da imparcialidade do magistrado
visado.
A reclamação deverá, pois, ser desatendida.
III. Decisão.
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do
recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 6 de Março de 2007
Rui Manuel Moura Ramos
Maria João Antunes
Artur Maurício