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Processo n.º 740/12
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O relator proferiu decisão sumária, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), de não conhecimento do objeto do recurso de constitucionalidade interposto por A. (fls. 210 e seguintes). Notificado de tal decisão, o recorrente deduziu reclamação para a conferência nos termos que se seguem:
“(…) não se conformando com a Decisão Sumária n.º 530/12, vem, à luz do disposto nos artigos 78.º, n.º 3, e 78.º-B, n.º 2, e interpor e requerer a admissão do presente, RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Para tal, respeitosamente, referindo o seguinte:
1 – Parece existir alguma obscuridade ou ambiguidade da Decisão Sumária n.º 530/12, ao nível do seguinte trecho:
«Com efeito, o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie as quatro questões que identifica no requerimento com que respondeu ao convite a aperfeiçoar o requerimento inicial de interposição do recurso. Porém, relativamente a três delas não há correspondência com a ratio decidendi do acórdão recorrido, não se tratando de normas por este aplicado, como exige a al. b) do n.º 1 do art.º 70. º da LTC. E quanto à restante o recorrente não deu cumprimento, mesmo tendo sido para tanto convidado, ao ónus de identificação do objeto do recurso nos termos exigidos pelo n.º 1 do art.º 75-A da LTC.
Com efeito, com o mero confronto do requerimento de interposição do recurso com o acórdão recorrido, acima transcritos, torna evidente, o Supremo Tribunal de Justiça não fez aplicação de qualquer das normas referidas na 2ª, 3ª e 4ª questões de inconstitucionalidade. O acórdão apenas sobre os pressupostos do pedido de revisão se pronunciou, tendo considerado que essas outras questões que o recorrente colocara e a que tais normas respeitam não constituem fundamento do pedido de revisão nos termos do art.º 449.º do Código de Processo Penal
A questão restante (1ª questão) respeita às alíneas d) e e) do n.º 1 do art.º 449.º do Código de Processo Penal. Esses, sim, preceitos legais de que o acórdão recorrido fez aplicação.
Trata-se, porém, de normas distintas, que integram fundamentos autónomos de revisão de sentença. O recorrente referiu-as indistintamente, sem curar de definir, para cada uma delas, o especifico sentido normativo que pretende ver apreciado. Limitou-se a remeter para a interpretação implícita dada pelo acórdão do STJ o que, conforme jurisprudência constante do Tribunal, não é modo adequado a cumprir o ónus de identificação da norma que constitui objeto de recurso. Ao recorrente que impugne um determinado sentido interpretativo incumbe enunciá-lo de modo claro e preciso, porque só assim se cumpre o requisito de identificação da norma cuja inconstitucionalidade se pretende (n.º 1 do art. 75.º-A da LTC). Ora, o recorrente nem após convite que lhe foi formulado no tribunal a quo deu cumprimento a esse ónus, pelo que, não podendo o Tribunal Constitucional substituir-se-lhe na identificação do objeto do recurso, este não pode prosseguir».
2 – Na verdade, atento o tipo de recurso (excecional) de revisão, interposto junto do Supremo Tribunal de Justiça, há que flexibilizar os critérios relativos ao modo de suscitação da questão da (in)constitucionalidade, já que do que se trata é de situações extraordinárias de constatação de profunda injustiça ao ter sido condenado um arguido (e preso) por factos que não foram averiguados à luz das regras processuais penais e constitucionais que constituem o paradigma ponderado e codificado em tema de provas proibidas, ex vi artigos 32.º, n.º 8, da CRP 1976, e artigo 126.º, do CPP.
3 – Socorrendo-se, de modo inapropriado e com intuitos alheios a um justo julgar, do facto de ter sido formulado, junto do STJ, um pedido de complemento e esclarecimento do recurso, o mui ilustre Juiz-Conselheiro relator desarmou a sua argumentação e fez uma retórica argumentativa que, em si mesma, também não nos oferece qualquer critério correto em que, in casu, a suscitação da questão da constitucionalidade deveria ter sido corretamente suscitada. Depois,
4 – Sempre se dirá que o Tribunal Constitucional, a esse nível, nem por meio da sua jurisprudência, nem por meio de artigos doutrinais logrou fixar critérios claros da questão constitucional como, aliás, bem o tem denunciado doutrina insuspeita – quer o Doutor PAULO MOTA PINTO, quer o Mestre BENJAMIM SILVA RODRIGUES – quando refere:
«(...) Trata-se, como bem realça PAULO MOTA PINTO, de uma ginástica intelectual decisório-normativa, isto é, exige-se um domínio técnico-jurídico só ao alcance de (poucos) advogados bem preparados e, por isso, só ao alcance dos ricos que mobilizam um batalhão de advogados, conhecedores do jogo constitucional, no sentido de procederem à sua tradução para efeitos de (admissibilidade do) recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade. É, aqui, precisamente aqui, que se identifica um dos maiores e mais escandalosos momentos de despromoção da proteção dos direitos fundamentais por parte da jurisdição constitucional. De facto, esta exigência de tradução normativa (em termos adequados para fazer vingar o recurso de constitucionalidade), da decisão do juiz a quo, surge-nos como um (injusto, ilegal e inconstitucional) mecanismo de seleção dos recursos. A seletividade dos recursos é de tal ordem que atinge uma complexidade técnica só ultrapassável por um advogado notória e tecnicamente dotado em matéria constitucional e de direitos fundamentais. Existem fortes suspeitas de que tal seletividade toma, ainda, muito em conta a qualidade e o mérito técnico do advogado e a dimensão, notoriedade e poder (económico) do recorrente. A ausência de uma seleção frontal e aberta dos recursos de constitucionalidade, com base em critérios pré-estabelecidos, gerais e abstratos, e de fácil praticabilidade, empurram o Tribunal Constitucional para um jogo do rato e do gato, em que ele assume o papel do gato e o recorrente o de rato, com a agravante que neste jogo não entram ratos pobres porque não possuem os instrumentum necessários a tal diversão. Contra esta visão das coisas, alguns – talvez os que beneficiam das fragilidades do sistema de recurso de constitucionalidade – pretendem que isso conduziria a uma expropriação da competência do Tribunal Constitucional pela exigência de uma enunciação abstrata – o tal nível elevado de generalidade – pelo tribunal recorrido, do critério normativo de decisão.
(…)»
5 – Com JORGE REIS NOVAIS, dir-se-ia, ainda, que nem um semestre, numa Faculdade de Direito, nos levaria à compreensão dos atuais critérios de suscitação que presidem ao mutante e inconstante Tribunal Constitucional que se assume como arauto de despromoção dos direitos fundamentais:
Em suma, verifica-se uma efetiva impossibilidade objetiva de delimitar as fronteiras rigorosas entre o que é a interpretação e o que é a decisão judicial, pelo que a questão sobre a admissibilidade ou não de determinado recurso, em sede de fiscalização concreta, fica um pouco ao sabor da maré, ao sabor da boa ou má digestão dos juízes do TC..., já para não dizermos, como alguém já disse, que mesmo que se fizesse um Curso Semestral numa Faculdade de Direito, nem assim ficariam esclarecidos os atuais critérios da jurisprudência constitucional em sede de admissibilidade da fiscalização concreta da constitucionalidade.
6 – O Mmo. Juiz-Conselheiro Relator, na sua Decisão Sumária, agiu como se o recorrente não tivesse formulado e reformulado o seu recurso, já que continua a aludir a quatro questões quando, à saciedade, elas não se resumem a isso, como se denuncia a p. 5-6 da Decisão.
7 – O Tribunal que condenou o arguido fez uso de prova proibida – reconhecimento fora do paradigma legal e constitucional ponderado e codificado –, pelo que abriu-se, assim, de para em par, a via extraordinária de recurso, rectius, revisão.
8 – Nos oitos pontos do recurso, a páginas 5 e 6, estão corretamente identificadas várias questões de constitucionalidade que subjazem aos acórdãos sob apreciação, quer ao nível da possibilidade de julgamento na ausência de arguido, quer ao nível da possibilidade de reconhecimento fora do condicionalismo técnico e legal imposto, quer ao nível de prova criminal do registo cancelada, quer ao nível de erróneo julgamento de matéria de facto, etc.
2. O Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação.
3. O recorrente integrou quatro questões de constitucionalidade no objeto do recurso, conforme consta do requerimento de fls. 197 e seguintes, em que reformulou o requerimento inicial, a saber:
“A., TENDO SIDO CONVIDADO A APERFEIÇOAR O REQUERIMENTO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO, com vista a fiscalização sucessiva da constitucionalidade, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 75.º-A, n.ºs 1 e 5, da LTC, vem referir que o dito recurso e fiscalização da constitucionalidade concreta e sucessiva é interposto ao abrigo da alínea b), do artigo 70.º, da LTC visando sindicar:
1º A inconstitucionalidade do artigo 449.º, alíneas d) e e), do CPP, à luz do princípio da tutela jurisdicional efectiva (artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 202, n.ºs 1 e 2, da CRP 1976, na interpretação implícita e dada pelo acórdão do STJ.
2º A inconstitucionalidade do artigo 333.º, n.º 1, do CPP, na interpretação dada pelas várias instâncias e no sentido de ser possível, in casu, o julgamento na ausência do arguido, por tal ser incompatível com os princípios da proporcionalidade, plenitude de defesa e tutela jurisdicional efectiva (artigos 18.º, n.ºs 1 e 2, 20.º, n.ºs 1 e 4, 32.º, n.ºs 1 e 5, e 202.º, n.ºs 1 e 2, a CRP 1976)
3º A inconstitucionalidade do reconhecimento policial levado a cabo fora do condicionalismo legal dos artigos 147.º a 149.º, do CPP, por tal configurar prova proibida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 32.º, n.º 8, da CRP 1976 e ofender o princípio do Estado de Direito Democrático e lealmente e tutela das legítimas expectativas ao mesmo acopladas e com cobertura no artigo 1,º, 2.º, 9.º alínea b), da CRP 1976.
4º A inconstitucionalidade do artigo 125.º, do CPP, quando interpretado no sentido – como o fizeram as sucessivas instâncias – de admitir a leitura e valoração de “antecedentes criminais” já cancelados por decurso do prazo legal máximo da sua conservação em registo informático e certidão criminal, por contender com o direito à reserva da vida privada, direito ao esquecimento ou socialização e direito à autodeterminação informativa, ex vi artigos 1.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 29.º, n.º 1, e 35.º, n.ºs 1 e 4, da CRP 1976”
4. Quanto às questões relativas aos artigos 33.º, n.º 1, 145.º a 149.º e 125.º, todos do Código de Processo Penal (CPP), o não conhecimento fundou-se no facto de a decisão recorrida não ter aplicado norma extraída de qualquer um daqueles preceitos. No que se refere à primeira questão, respeitante ao artigo 449.º, alíneas d) e e) do CPP, rejeitou-se o seu conhecimento pelo facto de o recorrente não ter concretizado, em obediência ao disposto no artigo 75.º-A, n.º 1 da Lei n.º 28/28, de 15 de novembro (LTC), mesmo após convite para tanto, o específico sentido normativo que pretendia ver apreciado.
5. O reclamante começa por invocar “alguma obscuridade ou ambiguidade” da decisão ora impugnada que, no entanto, não concretiza (cfr. ponto 1). Seguidamente, sustenta que deverá ser aplicável ao caso alguma flexibilização dos pressupostos do recurso de constitucionalidade pelo facto de, tratando-se de um recurso excecional, estarem em causa “situações extraordinárias de profunda injustiça”. E argumenta que os pressupostos do recurso de constitucionalidade não se encontram definidos, na lei e na jurisprudência do Tribunal, por “critérios claros”, transcrevendo doutrina produzida a propósito da complexidade inerente à delimitação do objeto normativo do recurso de constitucionalidade.
6. A presente impugnação é manifestamente improcedente, salientando-se o facto de o reclamante produzir críticas genéricas, sem específica demonstração do erro em qualquer dos fundamentos da concreta decisão reclamada. Só a demonstração de que esta decisão enferma de erro de interpretação ou aplicação do regime respeitante aos requisitos de interposição e condições de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, e não a (re)produção de afirmações generalizantes sobre a prática do Tribunal, poderia interessar à procedência da reclamação.
Como já se referiu, o não conhecimento do recurso deveu-se ao facto de, por um lado, as normas integradas em três das quatro questões de constitucionalidade não corresponderem à ratio decidendi do acórdão recorrido. E, por outro, quanto ao único preceito de que foi retirado o critério normativo de decisão, o recorrente não ter procedido à especificação do respetivo sentido interpretativo. E de o não ter feito mesmo depois de para tanto convidado.
Efectivamente, o Supremo apenas fez aplicação do artigo 449.º do CPP, que é o preceito relativo aos fundamentos e admissibilidade da revisão da sentença penal transitada em julgado. As demais normas poderão ter sido aplicadas pelas instâncias, mas não pelo acórdão recorrido que se limitou a verificar se os fundamentos alegados integravam qualquer das hipóteses do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal.
Ora, o n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC exige do recorrente – como ónus processual e não como mero primor de técnica jurídica ou a título de colaboração com o Tribunal – a identificação da norma cuja apreciação de constitucionalidade se pretende. E, embora nada obste a que seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um determinado preceito, nesse caso, o ónus só se cumpre mediante a indicação, de modo expresso e claro, do exacto sentido normativo que o recorrente entende que não deveria ter sido aplicado por ser incompatível com a Constituição.
Esta exigência de definição clara do objecto (em sentido material) do recurso logo no momento da interposição é estruturalmente adequada à natureza normativa e à função instrumental do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade e funcionalmente indispensável ao controlo da verificação dos respectivos pressupostos.
O seu cumprimento exige, certamente, uma reflexão pausada sobre a ratio da decisão recorrida de modo discernir nela o critério normativo de decisão, de modo a adequar a pretensão às competências do Tribunal Constitucional cujo exercício se quer provocar. Não serve este propósito discorrer sobre a inconstitucionalidade dos procedimentos judiciais ou procurar demonstrar a violação de direitos fundamentais, porque não é essa a competência do Tribunal nem o fim (directo e imediato) do recurso. É necessário, mas basta, formular uma proposição que enuncie esse critério, de modo a que o Tribunal verifique que a decisão recorrida fez dele efectiva aplicação e que, se o recurso proceder, o enuncie como constitucionalmente proscrito, em ordem à reforma da decisão em conformidade. É um pouco mais do que o necessário para interposição de recursos ordinários. Trata-se, contudo, de um esforço razoavelmente exigível de um profissional habilitado ao exercício do patrocínio forense (cfr. Acórdão n.º 21/2006).
As razões que ditam este regime não consentem que se considere esta exigência satisfeita com a mera referência à aplicação de um preceito legal que contém várias normas – no caso, as alíneas d) e e) do artigo 449.º do CPP) “na interpretação implícita e dada” pela decisão recorrida. Com isso, descaraterizar-se-ia o ónus de identificação do objecto do recurso, transformando em tarefa do Tribunal o que, por boas razões de limitar a intervenção deste à última palavra em questões de constitucionalidade, o legislador pôs a cargo do interessado.
7. O mais que a recorrente refere nos “oito pontos do recurso” poderá traduzir violação de normas e princípios constitucionais pelo concreto proceder das instâncias, mas não corresponde a questões de constitucionalidade normativa que respeitem à ratio decidendi do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que negou a revisão requerida por tais fundamentos não se enquadrarem no artigo 449.º do CPP. O Tribunal Constitucional não tem competência, ainda que a pretexto de grave injustiça ou de violação de direitos fundamentais, para a revisão das decisões dos demais tribunais em si mesmas consideradas (cfr. artigo 280.º da CRP e artigo 70.º da LTC).
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 6 de dezembro de 2012.- Vítor Gomes – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.