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Processo n.º 960/06
2º Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A. interpôs recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, com a redacção introduzida pela Lei n.º 13-A/98, de 26
de Fevereiro (Lei do Tribunal Constitucional), do acórdão da Relação do Porto de
7 de Junho de 2006, que não se pronunciou no sentido da “inconstitucionalidade
da interpretação dada ao art.º 24.º (n.º 1, al. d) ou b)) do C. de Processo
Penal no sentido de permitir a conexão de processos que obste, em fase
processual subsequente à dedução da acusação, à escolha de um arguido, advogado,
como defensor de outro arguido, através de procuração previamente junta aos
autos, por violação das garantias de defesa do arguido em processo penal e do
direito de escolha do defensor, previstos no art.º 32.º, n.ºs 1 e 3, da
Constituição da República Portuguesa”. Esse acórdão revogou o despacho do
Tribunal Judicial da Comarca de Espinho de 14 de Junho de 2005, “no segmento em
que afirmou o juízo de inconstitucionalidade que se acabou de não acolher e,
consequentemente, naquele outro que determinou a cessação da conexão dos
processos, com o respectivo consectário (nulidade da acusação, na parte
respeitante à arguida A.), e o não conhecimento «das demais irregularidades
suscitadas pelos arguidos» (conhecimento que, agora, na medida do ajustado, é
necessário).”
A recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a
inconstitucionalidade “do artigo 24.º do Código de Processo Penal quando
interpretado no sentido de permitir a conexão de processos que obste, em fase
processual subsequente à dedução da acusação, à escolha de um Arguido, advogado,
como defensor de outro Arguido, através de procuração previamente junta aos
autos, por violação das garantias de defesa do Arguido em Processo Penal e do
direito de escolha do defensor (n.ºs 1 e 3 do artigo 32.º da CRP).”
A recorrente apresentou alegações, nas quais sustenta e conclui o seguinte:
“I – Decidiu o Meritíssimo Juiz do Tribunal Judicial de Espinho (Processo de
Inquérito) “Declarar, no entanto, nos termos do artigo 204.º da CRP,
inconstitucional esse art. 24.° do CPP, quando interpretado no sentido de
permitir a conexão de processos que obste, em fase processual subsequente à
dedução de acusação, à escolha de um arguido advogado, como defensor de outro
arguido, através de procuração junta aos autos, por violação das garantias de
defesa do arguido em processo penal e do direito de escolha do defensor (art.
32.°, n.ºs 1 e 3, da CRP) (vd. Despacho de 14.6.2005 a fls. 145)
II – Perante recurso do Ministério Público o Acórdão do Venerando Tribunal da
Relação do Porto deu provimento ao recurso, não declarando “a
inconstitucionalidade do art. 24.º, n.º 1, als. d) ou b) do C. Processo Penal”,
no sentido exposto em “1”, revogando o despacho quanto ao juízo de
inconstitucionalidade, e a decisão que determinava a cessação da conexão dos
processos.
III – Foram, no essencial, fundamentos do acórdão a consideração de que “se um
arguido não pode ser defensor de si mesmo, também o não pode ser de outro
arguido” posto que as normas processuais demarcam o estatuto processual do
arguido e defensor considerando a cessação da conexão de processos concluiu o
Acórdão no sentido de que as garantias de defesa “... em tese, não são (ou podem
ser) realizadas com segurança bastante, quando alguém confere mandato judicial a
advogado que se indiciou ter participado na prática criminosa que se imputa
àquele”, concluindo que as normas estatutárias demonstram esse aspecto,
referindo-se ao Estatuto da Ordem dos Advogados Concluiu-se por considerar que
existe uma compressão do direito contido no art. 32.º, n.º 3, mas positiva
considerando as garantias de defesa. “... não a imposição de qualquer defensor,
mas a exclusão de um determinado .. sob pena de as normas constitucionais, desta
natureza, se verem ... esvaziadas de conteúdo”
IV – Discordando com o sentido da decisão, muito respeitosamente. defende a
recorrente que na presente causa se questiona não a cessação da conexão no
sentido dos seus efeitos, mas a validade de decisão da conexão, quando esta põe
em causa o direito de escolha do defensor, sabendo-se que o mandato foi anterior
ao conhecimento dos factos a que se referia o inquérito.
V – Entende-se, neste caso, na modesta opinião da Recorrente, que existindo um
preceito constitucional que lhe garante o direito à escolha de um defensor, não
lhe pode este ser coarctado por norma inferior que provoque a conflitualização
desse direito.
VI – Considerando-se no Acórdão que as garantias de defesa “não são (ou podem
ser) realizadas com segurança bastante, estando em causa defensor e arguida
indiciados no mesmo crime” não se esclarece, no modesto entender da arguida, que
o que está em causa é a sua subjectividade, e, neste sentido, as suas decisões
podem revelar-se positivas ou negativas, “condicionando” dessa forma as suas
garantias de defesa.
VII – Nomeadamente, não sendo a justiça gratuita, (sendo certo que a recorrente
não tem direito ao apoio judiciário), logo na decisão de escolha do seu defensor
considera o factor económico que naturalmente interagem com a realização das
garantias de defesa.
VIII – É certo que se pode pôr em causa “o agir desapaixonado”, mas pode
ganhar-se noutras vertentes, certeza absoluta de bom empenho, maior conhecimento
da situação real, quer na vertente física, quer das motivações, economia
financeira, etc., por outro lado, não se pensa que exista conflito com as normas
estatutárias da Ordem dos Advogados, pois em Processo Civil o advogado pode
representar-se a si próprio e ao cônjuge. sendo certo que, virtualmente, pelo
menos, existem (ou podem existir) conflitos de interesses.
IX – O que está em causa é saber-se se é possível decidir-se pela conexão de
processos, no caso em que um dos arguidos é defensor do outro, desconhecendo-se
à data da constituição do mandato, que mandante e mandatário eram, ou viriam a
ser indiciados pela prática de factos idênticos.
X – A arguida logo no seu Requerimento de fls. 126 considerou ofendidos os
preceitos constitucionais [dos arts.] 32.º, n.º 3, e 18.º.
XI – É que, entende-se com modéstia, e a devida reverência por outras
interpretações, que ao negar-se o direito à escolha de defensor, no caso de
arguidos, no mesmo processo em que um é defensor de outro, por livre escolha,
está-se a comprimir o direito de defesa, não estando em causa se essa compressão
é positiva ou negativa (entende-se que as decisões subjectivas poderão ser
positivas ou negativas reveladas no agir e não postuláveis “a anteriori” – claro
que no campo da subjectividade que constitucionalmente se deixa ao livre
arbítrio do interessado), mas, refere-se, que não é esta a situação. arguido e
defensor, embora indiciados pela mesma situação, eram sujeitos de inquéritos
autónomos, deixando de existir conflitos entre as normas que definem o estatuto
do arguido e do defensor.
XII – Aliás, as garantias de defesa, sendo constitucionalmente garantidas, com
toda a carga de subjectividade inerente, não são apanágio exclusivo do nosso
direito, mas antes um princípio fundamentante do Estado de Direito, que, nesse
seu modo de ser, se preocupa, naturalmente, com essas garantias.
XIII – Razão porque vem consagrado na Convenção Europeia dos Direitos do Homem
(vd. art. 6.º, n.º 3, al. c)), onde se consideram como mínimo o direito de
“Defender-se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua escolha e.
se não tiver meios para remunerar um defensor, ...”, considerando-se como os
direitos mínimos garantidos aos acusados, ora se são mínimos, como admitir uma
compressão destes?
XIV – A carga de subjectividade que se quer garantir a qualquer cidadão, quando
acusado, não pode, não deve ser impedida, sob pena de se interferir na livre
capacidade do acusado definir a sua estratégia de defesa perante urna acusação
que lhe é feita.
XV – Entende-se, com muita modéstia, e, respeitando mais sabidas opiniões, que
preceitos como este contêm uma carga, além de jurídica, eminentemente política.
O Estado, ou melhor, a comunidade no seu sentido de soberania, enquanto
organização de super-estrutura vocacionada para a gestão e direcção dos
interesses nacionais, ou internacionais, procura garantir que o seu agir seja
questionável, precisamente por ser um Estado de direito, que não se permite que
resvale para um Estado Totalitário, por exemplo. Tal concepção não se compagina
com o cerceamento da subjectividade nas garantias de defesa do acusado.
XVI – É claro que limitar o direito à defesa, no caso de arguido e defensor,
também arguido no mesmo processo, impedindo a nomeação de defensor arguido, não
põe por si em causa o Estado de Direito, até porque estão garantidas outras
modalidades, mas o que é certo é que é ferida a subjectividade que se quer
deixar livre, entendendo-se que estes preceitos pretendem garantir essa mesma
subjectividade sem possibilidade de interferência do Estado.
Nestes termos decidindo V. Ex.ªs Venerandos Conselheiros do Tribunal
Constitucional em declarar inconstitucional o art. 24.º do CPP, quando
interpretado no sentido de permitir a conexão de processos que obste, em fase
processual subsequente e anterior à dedução de acusação, à escolha de um arguido
advogado, como defensor de outro arguido, através de procuração junta aos autos,
por violação das garantias de defesa do arguido em processo penal e do direito
de escolha do defensor (art. 32.º/1 e 2 da CRP), farão inteira JUSTIÇA.”
O Ministério Público contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso e
concluindo nos termos seguintes:
“1 – Não é inconstitucional a norma do artigo 24.º do Código de Processo Penal,
interpretada no sentido de permitir a conexão de processos que obste, em fase
ulterior e prévia à dedução de acusação, à escolha de um arguido advogado, como
defensor de outro arguido, através de procuração junta aos autos.
2 – Termos em que não deverá proceder o presente recurso.”
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
2.O presente recurso foi interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b),
da Lei do Tribunal Constitucional, visando a apreciação da conformidade com a
Constituição da República Portuguesa do artigo 24.º do Código de Processo Penal,
numa certa interpretação (“quando interpretado no sentido de permitir a conexão
de processos que obste, em fase processual subsequente à dedução da acusação, à
escolha de um Arguido, advogado, como defensor de outro Arguido, através de
procuração previamente junta aos autos”), adoptada pelo acórdão do Tribunal da
Relação do Porto recorrido.
Dispõe esse artigo 24.º do Código de Processo Penal, com a epígrafe “Casos de
conexão”:
«1 - Há conexão de processos quando:
a) O mesmo agente tiver cometido vários crimes através da mesma acção ou
omissão;
b) O mesmo agente tiver cometido vários crimes, na mesma ocasião ou lugar, sendo
uns causa ou efeito dos outros, ou destinando-se uns a continuar ou a ocultar os
outros;
c) O mesmo crime tiver sido cometido por vários agentes em comparticipação;
d) Vários agentes tiverem cometido diversos crimes em comparticipação, na mesma
ocasião ou lugar, sendo uns causa ou efeito dos outros, ou destinando-se uns a
continuar ou a ocultar os outros; ou
e) Vários agentes tiverem cometido diversos crimes reciprocamente na mesma
ocasião ou lugar.
2 - A conexão só opera relativamente aos processos que se encontrarem
simultaneamente na fase de inquérito, de instrução ou de julgamento.»
Segundo a recorrente, “[…] o que está em causa não é a cessação da conexão no
sentido dos seus efeitos, mas a consideração de que não deveria ter sido
ordenada a conexão dos processos, pois tenderiam a conflituar com o direito de
escolha de defensor”; e que, “existindo um preceito constitucional que lhe
garante o direito à escolha de um defensor, não lhe pode este ser coarctado por
norma inferior que provoque a conflitualização desse direito” (pontos 9 e 10 das
alegações de recurso).
No acórdão recorrido disse-se a fl. 92 dos autos:
“[…]
Mas não será, então, que as coisas se modificam com a separação dos processos,
decorrente da cessação da conexão?
Não vemos que assim seja.
É que não podemos esquecer, desde logo, que os arguidos continuam a ser, em
relação a uma mesma prática criminosa (cuja configuração em termos de substância
é a dos círculos concêntricos, sem que se nos depare, nela, qualquer sentido
centrífugo; dito de outro modo, a forma do crime, em relação aos arguidos,
permanece rigorosamente igual), os mesmos, somente divergindo, então, uma certa
perspectiva formal, qual seja a da inexistência de uma unidade processual.
Mas mesmo nesta hipótese, a realidade não é totalmente cortada (veja-se o
impedimento e seu específico recorte constante do art.º 133.º, n.ºs 1, al. a), e
2, do C. de Processo Penal).
Depois, e agora na perspectiva das garantias de defesa de que aquela prescrição,
como se disse, é emanação, certamente que se não pode questionar que as mesmas,
à partida, e em tese, não são (ou podem ser) realizadas, com segurança bastante,
quando alguém confere mandato judicial a advogado que se indiciou ter
participado na prática criminosa que se imputa àquele.
E de tal maneira as coisas assim são que não deixamos de ver este aspecto como
que demonstrado por normas estatutárias, que, se bem vemos, não aconselhava
(impunha, mesmo, que em circunstâncias tais o segundo não se disponibilizasse
para que o primeiro lhe conferisse mandato judicial), sendo elas as que regem os
impedimentos (art. 78.º, n.º 1), a independência (art. 84.º), os deveres para
com a comunidade (art. 85.º, n.º 1), os princípios gerais nas relações com os
clientes (art. 92.º, n.º 2), e os conflitos de interesses (art. 94.º, n.º 1,
este e aqueles do Estatuto da Ordem dos Advogados).
[…].”
Vê-se, pois, que o Tribunal a quo adoptou o sentido impugnado pela recorrente,
não só devido à decisão de permitir a conexão de processos, nos termos do
disposto no artigo 24.º do Código de Processo Penal, mas pelo que considerou ser
uma afectação das garantias de defesa resultante de um arguido conferir “mandato
judicial a advogado que se indiciou ter participado na prática criminosa que se
imputa àquele”. Quer dizer, é a circunstância de os arguidos (representado e
representante) o serem em relação a uma mesma prática criminosa que, nos termos
da decisão recorrida, obsta, em fase processual subsequente à dedução da
acusação, também em virtude do disposto no artigo 133.º, n.ºs 1, alínea a), e 2,
do Código de Processo Penal, à escolha de um arguido, advogado, como defensor de
outro arguido, através de procuração previamente junta aos autos.
Nestes termos, a questão em causa consiste, então, em apurar se a dimensão
normativa questionada afecta, em termos inconstitucionais, o direito do arguido
de escolher defensor e de ser por ele assistido em todos os actos do processo,
que constitui umas das vertentes das garantias de defesa do arguido
constitucionalmente reconhecidas, nos termos do n.ºs 1 e 3 do artigo 32.º da
Constituição.
3.O Tribunal Constitucional não se pronunciou ainda sobre a questão de
constitucionalidade referida. Todavia, já teve ocasião de se pronunciar sobre o
problema de saber se são inconstitucionais normas que limitam a escolha do
defensor, a propósito da possibilidade de o arguido que seja advogado pretender,
nesta última qualidade, assumir a sua própria defesa. Fê-lo através do Acórdão
n.º 578/2001 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 51.º volume,
págs. 655 e segs. e disponível em www.tribunalconstitucional.pt), que não julgou
inconstitucionais as normas constantes dos artigos 61.º, 62.º e 64.º do Código
de Processo Penal, que vedam a auto-defesa do arguido, mesmo que advogado.
Disse-se então, entre o mais:
«[…]
5. Significará isto que os direitos fundamentais consistentes no asseguramento
da totalidade das garantias de defesa em processo penal e na liberdade de
escolha de defensor por parte do arguido impõem que este (naquele tipo de
processo), ao menos sendo advogado, se o desejar, possa defender-se a si mesmo?
A esta questão responde o Tribunal negativamente.
Efectivamente, a tese do recorrente só seria de aceitar se se partisse de uma
posição de harmonia com a qual, sendo o arguido um advogado (regularmente
inscrito na respectiva Ordem), a sua «auto-representação» no processo criminal
contra si instaurado representasse, de modo objectivo, um melhor meio de se
alcançar a sua defesa e se a lei processual penal não reconhecesse ao arguido um
conjunto de direitos processuais estatuídos, verbi gratia, no art.º 61.º n.º 1,
e 63.º, n.º 2, quanto a este último avultando o de poder, pelo mesmo arguido,
ser retirada eficácia a actos processuais praticados pelo seu defensor em seu
nome, se assim o declarar antes da decisão a tomar sobre tal acto.
E é justamente dessa posição que se não pode partir.
Não se nega que, na óptica (naturalmente subjectiva) do recorrente, este possa
entender que a sua defesa em processo criminal seria melhor conseguida se fosse
prosseguida pelo próprio na qualidade de «advogado de si mesmo», do que se fosse
confiada a um outro advogado.
Só que, como este Tribunal já teve oportunidade de salientar (cfr. citado
Acórdão n.º 252/97), “«há respeitáveis interesses do próprio interessado, a
apontar para a intervenção do advogado, mormente no processo penal», sendo certo
que, «mesmo no caso de licenciados em Direito, com reconhecida categoria
técnico-jurídica, a sua representação em tribunal através de advogado, em vez da
auto-representação, tem a inegável vantagem de permitir que a defesa dos seus
interesses seja feita de modo desapaixonada» , ou, como se disse no Acórdão n.º
497/89 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14.º volume, pp. 227
a 247), “mesmo relativamente aos licenciados em Direito (enquanto parte) se pode
afirmar, com Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, p. 85),
que «às partes faltaria a serenidade desinteressada (fundamento psicológico)
[...] que se fazem mister à boa condução do pleito»”.
A opção legislativa decorrente da interpretação normativa em causa, que exige
que o arguido, mesmo que advogado, seja defendido por um advogado que não ele,
não se vê que seja contraditada pela Constituição.
O agir desapaixonado torna-se, desta arte e de modo objectivo, uma garantia mais
acrescida no processo criminal, o que só poderá redundar numa mais valia para as
garantias que devem ser prosseguidas pelo mesmo processo, sendo certo que, como
se viu acima, ao se não poder silenciar a corte de outros direitos consagrados
ao arguido pela lei adjectiva criminal, isso redunda na conclusão de que se não
descortina uma diminuição constitucionalmente censurável das garantias que o
processo criminal deve assegurar.
De outro lado, como resulta da transcrição do acima citado comentador da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o preceituado na alínea c) do n.º 3 do
art.º 6.º não impede os Estados aderentes de imporem, por via legislativa, a
obrigação da representação dos arguidos por intermédio de advogado.
Sequentemente, não se vislumbra que a interpretação normativa em causa seja
colidente com qualquer preceito ou princípio constante da lei Fundamental.»
4.Ora, é incontestável que se não pode confundir a proibição de auto-defesa com
a limitação de escolha de um advogado que se vem a indiciar, posteriormente ao
mandato, ter também participado na prática criminosa que se imputa ao arguido, e
que, por isso, é constituído arguido. Mas isso não significa que as
considerações transcritas não possam também ter aplicabilidade neste último
caso, quando está em causa a posição de advogado que posteriormente vem a ocupar
a posição de co‑arguido no mesmo processo.
Com efeito, e como se assinalou, o “desinteresse” ou independência do advogado
em relação à questão a decidir no processo penal podem ser considerados – desde
logo, pelo legislador – como exigências do efectivo direito de defesa, e
constituem para o advogado simultaneamente um direito e um dever. Hoje, o dever
de independência, que se encontrava estabelecido no artigo 76.º, n.º 2, do
antigo Estatuto da Ordem dos Advogados, além de constar de norma própria, tem
uma formulação mais ampla do que a anterior, afirmando-se no artigo 84.º do
actual Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de
Janeiro de 2005, que o advogado, “no exercício da profissão, mantém sempre em
quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer
pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de
influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional
no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.
Justamente por isso, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da
República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed. Coimbra, Coimbra Ed., 2007, p.
520), não deixam de notar que, “do ponto de vista institucional, [o defensor] é
uma parte no processo e um «órgão independente da justiça», o que aponta para
uma posição jurídica materialmente independente, quer perante o tribunal quer
perante o constituinte”.
As reflexões da recorrente, no sentido de que “o que está em causa é a sua
subjectividade, e, neste sentido, as suas decisões podem revelar-se positivas ou
negativas, «condicionando» dessa forma as suas garantias de defesa” (conclusão
VI das alegações de recurso), colocadas apenas no plano subjectivo do arguido,
não logram infirmar a circunstância de a independência do defensor relativamente
ao arguido ser condição de salvaguarda da credibilidade da defesa (neste
sentido, Karl-Heinz Gössel, «A posição do defensor no processo penal de um
Estado de Direito», BFD, vol. LIX, pp. 275 e 283). A circunstância de o advogado
ser co-arguido no mesmo processo pode, com efeito, ter repercussões negativas na
sua própria estratégia de defesa. E, na perspectiva do apuramento da verdade
material, o facto de o defensor ser igualmente arguido no mesmo processo pode
também influir sobre a defesa, mesmo que não esteja já delineado no caso
concreto um claro conflito de “estratégias” de defesa entre os dois arguidos (um
dos quais é defensor do outro). Assim, o defensor co-arguido no mesmo processo
pode, por exemplo, vir a sentir-se tentado a esconder ou destruir elementos
probatórios ou outros, ou, simplesmente, a acentuar ou diminuir aspectos
relevantes para a sua defesa, mas que podem contender também com o interesse do
arguido.
A independência do defensor constitui um imprescindível ponto de referência na
estratégia de defesa do arguido (a opção por determinadas provas em vez de
outras, o sublinhar de certos aspectos e não de outros, etc.), e pode influir
também sobre o resultado do processo na perspectiva do apuramento da verdade
material, não estando, pois, vinculada apenas a um fundamento subjectivo,
inteiramente disponível ou prescindível pelo arguido, mas constituindo também
uma exigência objectiva desse interveniente no processo. Compreende-se, por
isso, que o legislador exclua a possibilidade de pessoas com ligação tão forte
com o tema do processo que são igualmente arguidas, e que podem assim vir a ser
igualmente condenadas pelos factos discutidos no processo penal, assumirem, ou
manterem, o papel de defensor dos seus co-arguidos.
5.Invoca ainda a recorrente que “não sendo a justiça gratuita, (sendo certo que
a recorrente não tem direito ao apoio judiciário), logo na decisão de escolha do
seu defensor considera o factor económico que naturalmente interagem com a
realização das garantias de defesa” (sic, conclusão VII das alegações de
recurso).
Este argumento não é, porém, procedente no sentido da inconstitucionalidade, não
sendo o interesse na gratuitidade, ou na obtenção de uma defesa menos
dispendiosa, aquele que é prosseguido com o direito de escolha do defensor pelo
arguido.
Com efeito, não só é a própria a Constituição da República, ao garantir o acesso
ao direito e aos tribunais, que proíbe a denegação de justiça por insuficiência
de meios económicos, como os requisitos exigidos para o recurso ao instituto do
apoio judiciário não se afiguram excessivos.
No caso concreto, apesar de a recorrente não beneficiar de apoio judiciário,
nenhum indício existe, aliás, de que a limitação decorrente da dimensão
normativa em apreciação – devida à qualidade de co-arguido do defensor escolhido
– importa uma inadmissível dificuldade na prossecução da defesa dos interesses
do arguido em processo penal, pela escolha de outro defensor, que não seja
arguido (ou, muito menos, de que a constituição como arguido do defensor nomeado
tenha sido de algum modo pré‑ordenada à sua exclusão do papel de defensor, numa
actuação que seria claramente “patológica” do titular da acção penal, e que –
repete-se – nada indicia).
Por outro lado, a circunstância de, como alega a recorrente, o Estatuto da Ordem
dos Advogados consagrar a regra geral segundo a qual os inscritos podem advogar
em causa própria e representar os seus cônjuges, o mesmo sucedendo no tocante às
normas processuais civis, não implica que se venha a concluir que, não sucedendo
isso especificamente para o domínio processual penal, se verifica só por isso a
violação do princípio constitucional da igualdade. De facto, como este Tribunal
teve já ocasião de afirmar (v. Acórdão n.º 325/96, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), são diversos os interesses prosseguidos e
defendidos num e noutro daqueles processos e a defesa deles não tem de ser
prosseguida em termos idênticos, contendendo o processo criminal, as mais das
vezes, com a defesa de direitos fundamentais de maior relevância directa e
expressamente consagrados até na denominada “Constituição penal e processual
penal”. No processo penal, é característica essencial o distanciamento pessoal
da questão e a pureza de entendimento essencial quer à defesa do arguido quer à
descoberta da verdade. E compreende-se, assim, que se exija ao defensor uma
posição que dificilmente daria tão seguras garantias de independência se não
houvesse dissociação pessoal entre o representante, por um lado, e o co-arguido
no mesmo processo, por outro.
Pelo que se encontra justificação para a solução plasmada na dimensão normativa
em causa nos presentes autos, a qual se não mostra, do ponto de vista de
“constrição” de um mais amplo direito de escolha de advogado, como desprovida de
razoabilidade ou justeza.
Concluindo-se, assim, que a dimensão normativa impugnada, tal como foi
interpretada e aplicada pelo Tribunal a quo, não é incompatível nem com as
garantias de defesa do arguido nem com o direito à escolha de defensor, há que
negar provimento ao presente recurso.
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional o artigo 24.º do Código de Processo
Penal, interpretado no sentido de permitir a conexão de processos que obste, em
fase processual subsequente à dedução da acusação, à escolha de um arguido,
advogado, como defensor de outro arguido, através de procuração previamente
junta aos autos;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão
recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita;
c) Condenar a recorrente em custas, fixando em 20 (vinte) unidades de
conta a taxa de justiça.
Lisboa, 14 de Março de 2007
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos