Imprimir acórdão
Processo n.º 595/12
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal Justiça, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 457/2012:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorridos Herança Aberta por óbito de B., C., D. e E., foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido, em conferência, pela 2ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em 14 de junho de 2012 (fls. 142 a 11), que indeferiu reclamação deduzida relativamente a decisão sumária do Juiz-Relator, junto daquele Tribunal, nos termos do qual foi indeferido recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência (fls. 37 a 48).
O recorrente pretende que seja apreciada a constitucionalidade da norma extraída do n.º 1 do artigo 11º do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, que determina a não aplicação imediata das normas processuais relativas ao recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, por alegada violação do direito fundamental de acesso à Justiça, consagrado no “artigo 20º da Constituição da República, assim como [no] artigo 8º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e [nos] artigos 13º e 14º conjugados com o artigo 6º todos da convenção Europeia dos direitos do Homem, por força dos artigos 8º e 16º da Const. da República” (fls. 150).
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Nos termos do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, o Relator pode proferir decisão sumária de julgamento quanto ao fundo do objeto do recurso quando a questão a decidir seja simples, designadamente, por pré-existir jurisprudência do Tribunal Constitucional acerca da mesma questão normativa.
Ora, a questão da alegada inconstitucionalidade normativa do n.º 1 do artigo 11º do Decreto-Lei n.º 303/2007 já foi devidamente apreciada e alvo de Jurisprudência consolidada neste Tribunal, sempre no sentido da sua não inconstitucionalidade, por ausência de restrição desproporcionado do direito de acesso à Justiça (nesse sentido, ver os Acórdãos n.º 383/2009, n.º 546/2009 e n.º 429/2010, disponíveis in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos). Para melhor ilustrar a fundamentação, mais desenvolvida, ali contida – e para qual se remete –, veja-se o que já foi dito, nesta Secção, através do Acórdão n.º 383/2009:
«Vale a propósito desta questão o que anteriormente se deixou dito sobre a larga margem de discricionariedade do legislador ordinário na conformação dos meios de impugnação das decisões judiciais e da inexistência de um ilimitado direito ao recurso de todas as decisões. Importa apenas versar o que lhe pode ser mais diretamente pertinente, que é a alegada desconformidade com o princípio da igualdade e com o princípio de Estado de Direito.
(…) a mais do que aquilo que resulta da consagração constitucional da hierarquia dos tribunais, trata-se de finalidade prosseguida pelo direito de organização judiciária e processual infraconstitucional. E, ainda que se considere possível retirar da Constituição, designadamente dos princípios da segurança jurídica e da igualdade, a imposição ao legislador de um dever de consagrar medidas organizatórias e instrumentos processuais especificamente ordenados à prossecução do interesse da uniformização da jurisprudência, tratar-se-á sempre de uma exigência de proteção institucional objetiva da unidade da ordem jurídica, não de um direito subjetivo ou situação ativa equiparada dos cidadãos (de cada cidadão litigante) a deduzir uma pretensão dirigida à manutenção ( ou pelo menos à uniformização ) da jurisprudência. Como no Acórdão nº 574/98 (Acórdãos, 41º, 149, 162) se afirmou “ não existe na Lei Fundamental um preceito ou princípio que imponha, dentro do processo civil, a existência de um recurso para uniformização de jurisprudência”, pelo que não pode considerar-se violados os preceitos constitucionais que a recorrente invoca por lhe não ser aberta tal via processual.
11. O que, com maior credibilidade argumentativa, poderia perspetivar-se por confronto com o princípio da igualdade seria o facto de, perante decisões do Supremo Tribunal de Justiça sobre a mesma questão fundamental de direito tomadas a partir do momento em que foi reintroduzido o recurso por oposição de acórdãos, a uns interessados ser possível interpor recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência (obviamente, em ordem a obter que a divergência se resolvesse em sentido favorável à sua pretensão) e a outros não assistir tal faculdade, apenas em função do momento em que a ação foi instaurada. Abreviando o passo, saber se passa o teste da proibição do arbítrio a norma transitória que escolhe como fator determinante para negar este recurso – cuja (re)introdução pelo legislador significa o reconhecimento do seu contributo para a melhor aplicação do direito – o facto de o processo onde a decisão é proferida se encontrar já pendente à data da entrada em vigor da lei nova.
Como é de uso repetir-se, o princípio da igualdade consagrado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição de arbítrio. O que ele proíbe ao legislador não é que estabeleça distinções: proíbe-lhe, isso sim, que estabeleça distinções de tratamento materialmente infundadas, irrazoáveis ou sem justificação objetiva e razoável.
No caso, o fator de diferenciação escolhido, no que concerne ao recurso para o Pleno das secções cíveis, é o momento em que a ação foi proposta. O legislador pretendeu resolver os complexos problemas de aplicação da lei processual no tempo mediante uma norma de direito transitório que assegurasse que nas ações propostas antes da entrada em vigor da lei nova os interessados conservassem (positiva e negativamente) os meios de impugnação das decisões judiciais nela proferidas que lhes eram reconhecidos no domínio da lei antiga. Esta solução não se mostra irrazoável, sem justificação objetiva ou fundamento material, sendo inspirada por óbvias preocupações de certeza e segurança jurídicas e de proteção da confiança. Com efeito, há que ter presente, além de que a estratégia processual das partes pode ter-se orientado em função dos meios impugnatórios existentes, o facto de ao interesse de uma das partes em mais uma via de recurso se contrapôr o interesse da outra parte em dar a discussão por finda com a decisão que se lhe revela favorável. Assim, a ponderação legislativa que levou à referida norma de direito transitório que torna a lei nova inaplicável aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, mesmo na parte em que introduz a faculdade de recurso para o pleno das secções cíveis para uniformização de jurisprudência, pode ser solução de mérito duvidoso, mas não pode ser apodada de arbitrária.»
Tratando-se da mesma questão normativa e não se justificando a adoção de fundamentação divergente à adotada pelos supra referidos acórdãos, para a qual se remete, não se julga inconstitucional a norma objeto do presente recurso.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se indeferir o presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.»
2. Inconformado com a decisão proferida, o recorrente veio deduzir a seguinte reclamação, cujos termos ora se resumem:
«(…)»
2º
O recorrente não pode aceitar a decisão sumária, ali plasmada, pelas razões que já ofereceu nas alegações apresentadas no STJ, constantes da rubrica C), e aquelas que agora aponta, face aos fundamentos constantes das motivações da decisão subjudice.
3º
Aliás esta decisão sumária apresenta como fundamento os Acórdãos nº 383/2009, nº 546/2009 e o nº 429/2010, mas salvo o devido respeito, as questões oferecidas naqueles acórdãos é substancialmente diferente da colocada nestes autos, especialmente o Acórdão a que diz respeito o nº 429/2010.
4º
O recorrente não coloca em causa o limite que em regra geral se encontra consagrado no nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24/08, quando ali se limita a aplicação, e esteja em causa aplicar a nova redação do CPC ou a anterior, na medida em que apenas determina: «Sem prejuízo do disposto no número seguinte, as disposições do presente Decreto-Lei não se aplicam aos processo pendentes à data da entrada em vigor.»
5º
Estamos certos que a redação dada ao artigo 685º do CPC por aquele Decreto-Lei nº 303/2007, não tem aplicação senão aos processos iniciados a partir de 01/01/2008, por força do artigo 12º deste Decreto-Lei, uma vez que a lei do processo que estava em vigor antes regulava esta questão da outra forma e, por isso, é esta forma que deve ser levada em consideração, ou seja o legislador pode optar por conservar a redação anterior, sem que, com isso, viola a constituição.
6º
Mas, a questão colocada pelo recorrente é de outra índole, pois está em causa o direito ao recurso que qualquer das partes no processo possa ter, quando a decisão seja posterior a 01/01/2008, através de um novo recurso extraordinário entretanto criado pelo artigo 1º daquele Decreto-Lei nº 303/2007, como se pode ver pela alteração introduzida no nº 2 do artigo 676º do CPC e introduzido pelo artigo 2º do mesmo Decreto-Lei nº 303/2007, e consagrado nos artigos 763º a 770º do Cód. Proc. Civil.
7º
Aliás, chegou a existir um recurso ordinário semelhante, mas não igual, uma vez que o criado pelo Decreto-Lei nº 303/2007 é um recurso extraordinário e aquele era um recurso ordinário, para o Tribunal Pleno, previsto nº 2 do artigo 676º do CPC de 1961, o qual esteve em vigor apenas até ao dia 01/01/1997. Por força do artigo 16ºdo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12/12, aquele recurso para o Pleno, que se encontrava estabelecido no artigo 763º a 770º do Código de 1961, foi revogado por quele Decreto-Lei nº 329-A/95, tendo aliás esta revogação efeitos imediatos, por força do artigo 17º deste mesmo Decreto-Lei.
8º
Por tudo isto, neste caso concreto, está em causa o direito a um recurso novo criado pelo Decreto-Lei nº 303/2007, e por isso, se situa constitucionalmente no domínio dos Princípios Fundamentais e no Direito e Deveres Fundamentais, como aliás se encontra referido no Relatório da Decisão sub judice, onde se indicam, além domais, os artigos 8º, 16º e 20º da Const. da Rep. e artigo 8º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, como fundamento do recurso ou seja, estas normas encontram-se violadas pelo nº 1do artigo 11º do Decreto-Lei nº 303/2007.
(…)
10º
Colocada assim a questão, não restam dúvidas que os Tribunais podiam e deviam permitir que qualquer cidadão pudesse usar em sua defesa o recurso novo instituído pelo decreto-Lei nº 303/2007, e em vigor à data da decisão sub judice colocada em causa, pois nem sequer o nº 1 daquele artigo 11º, proíbe expressamente aquele direito, ou seja, a aplicação imediata de tal recurso às decisões entretanto plasmadas, como aconteceria se o legislador quisesse retirar aquele direito às partes, embora a Constituição também o não permita.
11º
Como já se afirmou, mas nunca é demais repetir, o recorrente já teve oportunidade de individualizar as normas que julga justificarem aquele seu direito e escalpelizar as mesmas nas suas alegações apresentadas perante o STJ, na rubrica C)A QUESTÃO DA ADMISSÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE UNIFORMIZAÇÃO DAJURISPRUDÊNCIA, que aqui dá por reproduzidas.
(…)
13º
Ora se bem interpretamos as lições deste Constitucionalista, o mesmo defende que qualquer restrição à Constituição só podia ser determinada por uma lei em sentido material, e de facto o art. 11º em causa foi aprovado por um simples Decreto-Lei, sem que tivesse existido qualquer autorização legal, que permitisse assim restringir tal direito, o que viola, além do mais, o artigo 18º da Constituição da República, pelo que neste campo, aquela limitação não podia ser determinada por um Decreto-Lei, uma vez que não se vislumbra em nenhuma norma constitucional a sua admissão expressa constitucionalmente.
(…)
15º
A questão colocada ao Tribunal Constitucional, não é como já se viu, uma questão apenas de aplicação da lei no tempo, mas sim facultar-se a aplicação de um princípio constitucional que existe no domínio do direito processual civil, e a Constituição da República proclama no seu nº 1 do artigo 277º, que são inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados, que começa por ser apontado no artigo 142º do CPC.
16º
E de facto as normas apontadas não deixam de permitir que os cidadãos possam defender-se com um novo recurso que tenha sido instituído e colocado em vigor antes da decisão sub judice, como é o caso, e mesmo uma interpretação legal ao nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 303/2007, não podia sustentar tal restrição. (…)» (fls. 165 a 175)
3. Notificados para o efeito, os demais recorridos deixaram esgotar o prazo sem que viessem aos autos responder à reclamação deduzida.
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Toda a argumentação da reclamação deduzida flui da ideia de que a situação em apreço nos presentes autos se autonomiza e distancia das concretas situações que deram causa à jurisprudência consolidada neste Tribunal, na qual se fundou a decisão reclamada. Aliás, o reclamante afirma expressamente que nenhum dos acórdãos citados na decisão sumária apreciou a norma extraída do artigo 11º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/2007, quando interpretada no sentido de não permitir a aplicação do regime jurídico do novo recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência a processos que, apesar de instaurados antes da sua entrada em vigor, assentaram numa decisão proferida após 01 de janeiro de 2008, cujo correspondente recurso extraordinário fosse, igual e necessariamente, interposto após essa mesma data.
Ora, essa alegada especificidade da dimensão normativa em apreço nos presentes autos não se verifica. Bem pelo contrário, no âmbito do Acórdão n.º 383/2009, que foi expressamente citado e transcrito pela decisão reclamada, enquanto base da fundamentação por remissão, a decisão (então) alvo de recurso extraordinário foi proferida em 22 de janeiro de 2008. Portanto, a dimensão normativa ora em apreço é rigorosamente idêntica à apreciada no âmbito daqueles autos de recurso. Como tal, fica por demais evidenciado o absoluto paralelismo entre a jurisprudência na qual a decisão reclamada se fundou e a questão ora em apreço nos autos.
Por se manter integral concordância com a referida jurisprudência consolidada, confirma-se o sentido da decisão reclamada.
5. Resta apenas abordar uma nova questão, só agora suscitada pelo reclamante, que diz respeito à alegada inconstitucionalidade orgânica da norma objeto do presente recurso, por ter sido aprovada por decreto-lei, sem que estivesse munido da competente autorização legislativa [artigo 165º, n.º 1, alínea b), da CRP]. Dificilmente se alcança a invocação agora brandida, na medida em que o Decreto-Lei n.º 303/2007 foi, efetivamente, precedido de lei de autorização legislativa (in casu, a Lei n.º 6/2007, de 2 de fevereiro), que expressamente autorizou o Governo a legislar sobre a matéria do recurso extraordinário para harmonização de jurisprudência.
Portanto, nenhuma razão subsiste, de modo a impor a reforma da decisão reclamada, que ora se confirma.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Fixam-se as custas devidas pelo reclamante em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 5 de dezembro de 2012. – Ana Maria Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.