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Processo n.º 1140/06
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 299 foi proferida a seguinte decisão sumária :
«1. A. instaurou uma acção contra a SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE VIANA DO
CASTELO, pedindo a sua condenação no pagamento de € 140.000,00 acrescido dos
devidos juros, a título de indemnização por danos não patrimoniais, pelo óbito
da mãe da Autora em consequência de intoxicação por monóxido de carbono,
provocada por um incêndio ocorrido num lar de idosos de que a Ré é proprietária,
e que foi ateado por um dos respectivos residentes. Fundamenta a
responsabilidade que atribui à Ré em omissão do dever de vigilância que lhe era
exigível.
Por sentença do 1.º Juízo Cível do Círculo Judicial de Viana do
Castelo de 3 de Novembro de 2004, de fls. 108, a acção foi julgada improcedente.
Inconformada, A. recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães.
Por acórdão de 16 de Novembro de 2005, de fls. 158, a Relação de Guimarães
negou provimento ao recurso e confirmou a sentença recorrida, aliás remetendo
para os respectivos fundamentos, nos termos previstos no n.º 5 do artigo 713º do
Código de Processo Civil.
A. interpôs então recurso de revista para o Supremo Tribunal de
Justiça.
Por acórdão de 18 de Maio de 2006, de fls. 220, foi revogado o decidido pelas
instâncias. A Ré foi condenada a pagar à Autora a quantia de € 9.975,96,
acrescida de juros de mora, e absolvida da parte restante do pedido.
Por acórdão de 19 de Setembro de 2006, de fls. 249, foi indeferido o
pedido de aclaração do acórdão de 18 de Maio anterior; e finalmente, por acórdão
de 29 de Novembro de 2006, de fls. 267, foi indeferida a arguição de nulidade do
mesmo acórdão de 18 de Maio, formulada invocando o disposto nas alíneas c) e d)
do artigo 668.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Apenas para o que agora releva, a SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE
VIANA DO CASTELO sustentou o seguinte, no requerimento em que arguiu a referida
nulidade, a fls. 259:
'(…) Com enorme surpresa da reclamante, e não só, o acórdão decidiu 'concluir,
sem qualquer sombra de dúvida, que houve lugar, por parte da recorrida, a uma
evidente omissão, levada a cabo pelo seu pessoal,'.....'já que, desde logo, a
efectivação da imprescindível limpeza diária dos quartos (…) conduziria à
imediata detecção dos (...) bidões [que o residente que ateou o incêndio manteve
no quarto durante cerca de 15 dias, e que utilizou para o efeito, conforme foi
dado como provado nos autos] e, dessa forma, ao óbvio e consequente abortamento
da tragédia que, infelizmente, veio, ulteriormente a verificar-se'!!!
Por outras palavras: o acórdão deste Supremo sustenta que os bidões de gasolina
não foram detectados porque as empregadas da ré não procederam à limpeza diária
dos quartos!!!
Afirmação que nem a autora ousou alguma vez fazer e, por isso, jamais constituiu
matéria de debate e muito menos de qualquer averiguação, com ou mesmo sem
respeito pelo princípio da audiência contraditória plasmado no artº 517º do Cod.
do Proc. Civil.
Afirmação que é também extemporânea, já que o apuramento da matéria de facto
termina nas instâncias, como se infere dos arts. 722º n.º 2 e 729 do Cod. de
Proc. Civil.
Afirmação que escapa à competência do Supremo, já que o fundamento do recurso da
revista é a violação da lei substantiva, conforme se determina no n.º 2 do art.
721 do mesmo Código, sendo-lhe vedado alterar os factos materiais da causa,
salvo ocorrendo a excepção prevista no n.º 2 do artigo seguinte, que aqui de
todo em todo se não verifica.
E afirmação que é feita numa fase do processo em que a ré, no plano factual,
dela se não pode defender, violando, assim, o seu direito de defesa em termos
inconciliáveis com o art. 202 n.º 2 da Constituição.
Em suma, ao pronunciar-se sobre matéria de facto e ao assentar a sua decisão num
facto que não foi alegado por qualquer das partes, e que, por isso, não foi
contemplado pelas Instâncias, aliás em rigorosa obediência ao art. 664º do Cod.
de Proc. Civil, o acórdão deste tribunal conheceu manifestamente de uma questão
de que não podia tomar conhecimento.
Incorreu, assim, na nulidade expressamente prevista na al d) do n.º 1 do art.
668 do Cod. do Proc.Civil.'
O Supremo Tribunal de Justiça, todavia, julgou não verificada a
nulidade prevista nesta alínea d) por estas razões:
«E, se é certo que se verifica a arguida nulidade, quando o Tribunal
conheça de uma questão de que não podia tomar conhecimento, tal nulidade
circunscreve-se, exclusivamente, à questão de facto colocada ao órgão
jurisdicional para a decisão e não já ao material específico que foi tomado em
consideração e utilizado como elemento para a resolução da referida questão,
inexistindo, portanto, similitude, para a ocorrência da invocada nulidade, entre
tal fundamento e a decisão jurisdicional da questão concretamente submetida à
apreciação do Tribunal.
Assim, e uma vez que a questão suscitada em juízo nos presente autos
residiu na condenação da ora reclamante no pagamento de uma indemnização, o pela
mesma ora alegado não tipifica qualquer divergência, por excesso, relativamente
àquele indicado pedido.»
2. Deste acórdão de 29 de Novembro de 2006 recorreu a SANTA CASA DA
MISERICÓRDIA DE VIANA DO CASTELO para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro,
sustentando que o mesmo 'veio dar uma interpretação ao preceito do n.º 1, alínea
d) do artigo 668.º do Código de Processo Civil que, a nosso ver e salvo o devido
respeito, o torna manifestamente inconstitucional.'
Após transcrever parte do acórdão recorrido, a recorrente afirma o
seguinte:
«Deduz-se, assim, que o acórdão parte da distinção, a nosso ver
original, entre questão de facto colocada ao órgão jurisdicional para decisão e
facto material específico que foi tomado em consideração e utilizado como
elemento para a resolução da referida questão”.
Assim sendo, não negando que a matéria de facto, que fundamentou a
decisão, não foi invocada pela autora, mas, sim, e apenas pelo Supremo Tribunal,
entende, no entanto, que este no recurso de revista pode tomar em consideração
factos materiais específicos não articulados pelo demandante e que, por isso,
não foram apreciados pelas instâncias, nem tão pouco debatidos pela ré em
audiência contraditória.
A inconstitucionalidade da norma da alínea d) do n.º 1 do artigo
668.º do Código de Processo Civil, à luz da interpretação deste Supremo
Tribunal, é manifesta.
Viola desde logo o artigo 202.º da Constituição da República
Portuguesa, ao prescrever no seu n.º 2 que
“Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a
defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.”
E viola também o seu artigo 20.º, n.º 4, ao consignar que
“Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto
de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”.
A questão de inconstitucionalidade foi suscitada pela ré na sua
reclamação contra nulidades deduzida a fls. e não atendida por este Supremo
Tribunal no seu acórdão de 29 de Novembro findo. Na qual expressamente se
invocou a violação do artigo 202.º, n.º 2, da Constituição.»
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do
artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. Contrariamente ao que invoca o recorrente no seu requerimento de interposição
de recurso para este Tribunal, não é «original» a distinção, a que se alude na
decisão recorrida, entre «questão de facto colocada ao órgão jurisdicional para
decisão e facto material específico que foi tomado em consideração e utilizado
como elemento para a resolução da referida questão». Tal distinção, que
naturalmente não equivale a reconhecer que 'a matéria de facto, que fundamentou
a decisão, não foi invocada pela autora, mas, sim e apenas pelo Supremo
Tribunal', destinou-se apenas a interpretar o âmbito de aplicação da nulidade
prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, na
parte em que prevê o excesso de pronúncia; e, na verdade, tem a sua explicação
na distinção entre o campo de aplicação das normas dos artigos 660º, n.º 2 e
668.º, n.º 1, alínea d), por um lado, e, por outro, do artigo 664.º, todos do
Código de Processo Civil.
Não cabe, todavia, ao Tribunal Constitucional analisar a questão de saber se, no
caso, ocorreu ou não a nulidade arguida pela recorrente. Compete-lhe, tão
somente, tomar como objecto do recurso a norma definida pela mesma recorrente no
requerimento de interposição de recurso e confrontá-la com a Constituição.
Imprescindível, no entanto, é que estejam reunidas as condições de
admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto.
4. Ora a verdade é que, contrariamente ao afirmado no requerimento de
interposição de recurso, a recorrente, como se verifica na transcrição atrás
efectuada, não suscitou no requerimento de arguição de nulidade de fls. 259, a
inconstitucionalidade de qualquer norma, contida na alínea d) do n.º 1 do artigo
668º do Código de Processo Civil ou em qualquer outro preceito.
O recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas
interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, como é o caso, destina-se a que este Tribunal aprecie a conformidade
constitucional de normas, ou de interpretações normativas, que foram
efectivamente aplicadas na decisão recorrida, não obstante ter sido suscitada a
sua inconstitucionalidade “durante o processo” (al. b) citada). Esta exigência
significa que a inconstitucionalidade na norma há-de ter sido colocada “de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em
termos de este estar obrigado a dela conhecer” (nº 2 do artigo 72º da Lei nº
28/82), de forma a obter-se uma decisão sobre a questão de constitucionalidade,
que o Tribunal Constitucional possa julgar em recurso; e não foi observada pela
recorrente.
O Tribunal Constitucional não pode, pois, conhecer do objecto do
presente recurso.
5. Estão, pois, reunidas as condições para que se proceda à emissão
da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82.
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso.»
2. Inconformada, a recorrente reclamou para a conferência, a fls. 310,
ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a
revogação da decisão sumária.
Na reclamação, a reclamante começa por explicar por que motivo
considera que o Supremo Tribunal de Justiça excedeu os seus poderes de
cognição, incorrendo na nulidade prevista na 2ª parte da alínea d) do n.º 1 do
artigo 668º do Código de Processo Civil, e por que razão discorda do
indeferimento da correspondente arguição pelo mesmo Supremo Tribunal. E conclui
que, ao decidir dessa forma, o Supremo Tribunal de Justiça adoptou uma
interpretação da referida alínea d), nomeadamente da sua segunda parte, que a
tornaria numa 'excrescência inútil. Só que a inconstitucionalidade daquela
interpretação à face dos art.s 202º n.º 2 e 80º n.º 4 da Constituição,
constituiria sempre um obstáculo insuperável'.
Relativamente à decisão reclamada, a reclamante afirma que o não
conhecimento do recurso assenta em não ter sido suscitada no requerimento de
arguição de nulidades de fls. 259 a inconstitucionalidade de qualquer norma
contida na al. d) do n.º 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, ou em
qualquer outro preceito; 'ora é verdade, que a reclamante, por mero lapso,
irrelevante, mas do qual se penitencia, escreveu no seu aludido requerimento que
suscitou a questão da 'constitucionalidade' na sua reclamação contra nulidades,
o que, como desta se vê, nem aconteceu, nem podia ter acontecido… já que,
então, no seu entendimento, havia, sim, nulidades, e flagrantes, mas não se
descortinava nos autos norma alguma inconstitucional.
Verificava-se, sim, no acórdão condenatório ofensa ao art. 202º n.º 2
da Constituição, que se assinalou naquela reclamação, e foi isso que,
inadvertidamente, induziu a reclamante a confundir a questão da
inconstitucionalidade com a decisão inconstitucional.'
Posto isto, a reclamante manifesta a sua discordância em relação à
decisão reclamada por entender que, 'ao arguir as nulidades do acórdão
condenatório do Supremo Tribunal de Justiça, que revogou as decisões das
instâncias, não podia, portanto, arguir a inconstitucionalidade de qualquer
norma contida no art. 668 n.º 1 al. d) do Cod. do Proc. Civil, ou em qualquer
outro preceito, já que nessa altura a reclamação não fora ainda julgada.
Nem tão pouco era previsível que, ao sê-lo, o STJ pudesse enveredar por
uma interpretação da referida al. d) do n.º 1 do art. 668, que não encontra o
mínimo apoio, nem na jurisprudência, nem na doutrina.
(…) não dispôs, por isso, a reclamante de 'oportunidade processual'
para suscitar a questão da inconstitucionalidade antes de esgotado o poder
jurisdicional do tribunal a quo, por não poder antever a possibilidade da sua
aplicação (…).
É, aliás, o entendimento deste Tribunal Constitucional (acs. 61/92,
188/93, 181/96, 569/95, 596/96).'
Notificada para responder, a reclamada nada disse.
3. A reclamação assenta, assim, na afirmação de que a
inconstitucionalidade não foi suscitada 'durante o processo', ou seja, colocada
“de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer' (al. b) do n.º 1 do
artigo 70º e no n.º 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82), por ter sido adoptada uma
interpretação para a alínea d) do n.º 1 do artigo 668º do Código de Processo
Civil com a qual a reclamante razoavelmente não podia contar, não lhe sendo,
pois, exigível que cumprisse o respectivo ónus.
Com efeito, e como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o
recorrente pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade
”durante o processo” nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto
processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em
momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste Tribunal com
os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II,
de 28 de Maio de 1994).
Sucede, todavia, que não ocorre, no caso presente, razão suficiente para tal
dispensa.
4. A questão que a ora reclamante aponta como justificando a arguição
de nulidade, com base na alínea d) do n.º 1 do artigo 668º do Código de Processo
Civil, no requerimento de fls. 259, é, em síntese, a de que o Supremo Tribunal
de Justiça utilizou matéria de facto nunca afirmada nem discutida nas
instâncias, 'aliás, em rigorosa obediência ao art 664 do Cod. de Proc. Civil',
assim ultrapassando a sua própria competência e o âmbito do recurso de revista
e, ainda, o direito de defesa da reclamante (que não dispôs de oportunidade para
se pronunciar sobre essa matéria), 'em termos inconciliáveis com o art. 202º n.º
2 da Constituição'.
A esta arguição, o Supremo Tribunal de Justiça respondeu que 'se é certo que se
verifica a arguida nulidade, quando o Tribunal conheça de uma questão de que
não podia tomar conhecimento, tal nulidade circunscreve-se, exclusivamente, à
questão de facto colocada ao órgão jurisdicional para decisão e não já ao facto
material específico que foi tomado em consideração e utilizado como elemento
para resolução da referida questão, inexistindo, portanto, similitude, para a
ocorrência da invocada nulidade, entre tal fundamento e a decisão jurisdicional
da questão concretamente submetida à apreciação do Tribunal'.
Daqui retira o Supremo Tribunal de Justiça que não excedeu os limites
relativos ao pedido.
Ao recorrer para o Tribunal Constitucional, a ora reclamante, como se
viu, sustenta a inconstitucionalidade da norma da alínea d) do n.º 1 do artigo
668º do Código de Processo Civil transcrevendo o que acabou de se transcrever
novamente; mas acrescenta que o Supremo Tribunal de Justiça assim entendeu que
'este recurso de revista pode tomar em consideração factos materiais específicos
não articulados pela demandante e que, por isso, não foram apreciados pelas
instâncias, nem tão pouco debatidos pela ré em audiência contraditória'. E
afirma seguidamente que «a inconstitucionalidade da norma da al. d) do n.º 1 do
art. 668 do Cod. de Proc. Civil, à luz da interpretação deste Supremo Tribunal
de Justiça, é manifesta. Viola desde logo o art. 202 da Constituição da
República Portuguesa, ao prescrever no seu n.º 2 que 'Na administração da
justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses
legalmente protegidos dos cidadãos'. E viola também o seu art. 20 n.º 4, ao
consignar que 'Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto
de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo'».
Ora, admitindo que se tratou de lapso a indicação, então dada ao
Tribunal Constitucional, de que a reclamante considerava ter suscitado a
inconstitucionalidade da norma que pretende ver apreciada no referido
requerimento de arguição de nulidade, cumpre fazer duas observações.
Em primeiro lugar, a de que se não pode de forma alguma retirar do
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 267 a ilação de que a
interpretação que apresentou para a al. d) do n.º 1 do artigo 668º do Código de
Processo Civil significa ou implica que o Supremo Tribunal tenha considerado
que 'este recurso de revista pode tomar em consideração factos materiais
específicos não articulados pela demandante e que, por isso, não foram
apreciados pelas instâncias, nem tão pouco debatidos pela ré em audiência
contraditória'.
Muito diferentemente, o Supremo Tribunal de Justiça apenas disse que a
referida alínea d) apenas considera nula uma sentença que se tenha pronunciado
sobre questões de facto que não tenham sido colocadas ao tribunal para decisão,
e que isso não equivale a cominar com nulidade a utilização de um 'facto
material específico que foi tomado em consideração e utilizado como elemento
para a resolução da referida questão'. Não se pronunciou sobre se podia ou não
julgar com base em factos não oportunamente alegados (e, portanto, susceptíveis
de ser contraditados) pelas partes.
Em segundo lugar, a de que não é surpreendente nem inédita a
interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça adoptou para a norma em causa,
antes corresponde à interpretação habitualmente referida na jurisprudência e na
doutrina para delimitar o âmbito de aplicação das nulidades previstas na alínea
d) do n.º 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil – excesso e omissão de
pronúncia.
A decisão reclamada fez, aliás, referência a essa questão, como se
sabe.
A mero título de exemplo, pode ver-se feita a distinção (em termos que
revelam corresponder à jurisprudência corrente) nos acórdãos do Supremo Tribunal
de Justiça de 15 de Maio de 2003, proc. n.º 02B2754, 8 de Março de 2001, proc.
n.º 00A3277, ou de 30 de Outubro de 2003, proc. n.º 03P3350, disponíveis em
texto integral em www.dgsi.pt, dos quais se transcrevem os seguintes excertos:
– «2. O tribunal em geral não pode conhecer senão de questões suscitadas pelas
partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento de outras (artigos
660º, n.º 2, parte final, 713º, n.º 2 e 726º do Código de Processo Civil).
Importa, porém, ter em linha de conta que uma coisa são argumentos ou razões de
facto ou de direito e outra, essencialmente diversa, questões de facto e de
direito.
As questões a que se reporta a segunda parte do n.º 2 do artigo 660º do Código
de Processo Civil são os pontos de facto ou de direito relevantes concernentes
ao pedido ou à causa de pedir, incluindo as excepções.
A consequência jurídica derivada de o tribunal conhecer de questões de que não
possa conhecer é a nulidade da sentença ou do acórdão (artigos 668º, n.º 1,
alínea d), parte final, 716º, n.º 1 e 726º do Código de Processo Civil)» –
(acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 2003);
– «3. Alínea d): 'quando o juiz ... conheça de questões de que não podia tomar
conhecimento'. Prende-se esta nulidade com disposto na parte final do nº 2 do
artigo 660º do CPC, segundo o qual o juiz 'não pode ocupar-se senão das questões
suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento
oficioso de outras'. Clarifique-se este comando legal. Nem todo o conhecimento,
pelo tribunal, de facto de que não podia servir-se (v.g., por não ter sido
articulado ou alegado pelas partes), conduz necessariamente à nulidade ora em
causa. 'O facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a
própria questão' (Alberto dos Reis, 'CPC Anotado', vol. V, 1984, p. 145). 'O
excesso ou a falta de pronúncia a que se reporta a alínea d) do nº 1 do artigo
668.º do Código de Processo Civil há-de incidir sobre ‘questões’ que hajam sido
postas ou que o tribunal deva conhecer oficiosamente. Não respeitam tais vícios
a 'factos' (acórdão do STJ de 27.1.88, Proc. nº 39.229)» – Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça de 8 de Março de 2001;
– «As instâncias limitaram-se a interpretar os termos do pedido formulado pela
recorrida à luz dos factos integrantes da causa de pedir, como se lhe impunha,
pelo que não incorreram em excesso de pronúncia nem em vício de limites de
condenação. Não ocorre, por isso, a nulidade do acórdão recorrido invocada pelo
recorrente, a que se reportam os artigos 660º, nº. 2, 2ª parte, 661º, nº. 1,
668º, nº. 1, alíneas d) e e), e 716º, nº. 1, do Código de Processo Civil» –
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Outubro de 2003.
E igualmente a título de exemplo, veja-se, na doutrina, a distinção
explicada em ALBERTO DOS REIS acima indicada no acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça de 8 de Março de 2001.
5. Ora, baseando-se a arguição de nulidade do acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça de fls. 220 na alegação de que o acórdão teria julgado recorrendo a
factos não afirmados nem debatidos nas instâncias, era razoável admitir que,
para julgar a referida arguição, o Supremo Tribunal de Justiça recorresse à
interpretação do artigo 668º, n.º 1, d) que efectivamente veio a utilizar, por
ser correntemente aplicada nos tribunais.
Assim, nunca poderia o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do recurso,
pelo menos por não ter sido oportunamente suscitada – na arguição de nulidade,
naturalmente – a inconstitucionalidade da norma cuja apreciação a reclamante
pretendia.
6. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de não
conhecimento do objecto do recurso.
Sem custas, por não serem devidas (art.º 2º do Cód. Custas Judiciais).
Lisboa, 8 de Março de 2007
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício