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Processo n.º 1010/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A A., S.A., recorre para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 70.º da Lei n.º 28/82, de 15
de Novembro, na sua actual versão (LTC), pretendendo a apreciação de
constitucionalidade dos artigos 20.º, n.º 3, 188.º, n.º 1, e 205.º, todos do
Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência
(doravante, CPEREF), na redacção vigente ao tempo do Decreto-Lei n.º 38/2003, de
8 de Março, na interpretação segundo a qual “no caso específico do credor
hipotecário, tabularmente inscrito em relação a um imóvel constante do activo da
massa falida, dispensa a sua citação pessoal, contando-se o prazo para a
reclamação de créditos ou propositura da acção a partir dos anúncios publicados,
mesmo que o credor deles não tenha conhecimento”.
2 – Em 14 de Janeiro de 2000, a ora recorrente, alegando “nunca
ter sido, para tanto citada e pretendendo acompanhar os trâmites processuais”
apresentou, “ao abrigo do disposto no artigo 44.º do Código de Recuperação de
Empresas e de Falência”, no processo de falência de B. e Outro, reclamação do
crédito de 1.528.104$00 proveniente do capital e dos juros relativos a um
contrato de mútuo celebrado com os falidos, garantido por hipoteca registada.
3 – Por sentença de 30 de Janeiro de 2004, a 2.ª Secção da 6.ª
Vara Cível de Lisboa não admitiu a reclamação de créditos da recorrente, com o
fundamento de a mesma haver sido apresentada extemporaneamente.
Inconformada com esta decisão, a reclamante interpôs recurso
para a 2.ª instância, questionando, entre o mais, a constitucionalidade do
entendimento normativo em que se abonara a decisão recorrida.
Pelo seu acórdão de 3 de Outubro de 2006, o Tribunal da Relação
de Lisboa negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Discreteando sobre a questão apreciada, assim discorreu este
acórdão, agora recorrido:
«III — Conforme resulta dos elementos constantes autos, e não
foi impugnado pela agravante, está provado que:
1. A A., através de requerimento constante fls. 301 dos autos de
reclamação de créditos, apresentado em 14 de Janeiro de 2000, veio reclamar a
verificação e graduação de um crédito no valor de 1.528.104$00, acrescido de
juros de mora vencidos e vincendos;
2. A respectiva sentença declaratória da falência foi proferida em 27 de
Março de 1995, nela foi fixado o prazo de 60 dias para as reclamações de
créditos, e a sua publicação, no Diário da República, teve lugar em 19 de Abril
de 1995 (DR, III Série, nº 92, a fls. 6696);
3. A mesma sentença declaratória da falência foi também publicada num
jornal diário de grande circulação nacional, no caso o jornal “Público”, de 11
de Abril de 1995 (v. fls. 288 dos autos de reclamação de créditos).
IV — Os recursos, tendo os recursos por objecto as decisões de que se recorre,
encontram o seu âmbito é delimitado pelo conteúdo das conclusões da alegação do
respectivo recorrente – (arts. 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do C.P.C.).
Ora, face ao quadro conclusivo da alegação da recorrente, as questões que se
suscitam, no presente recurso, resumem-se em saber:
- se, em processo falimentar, deve o credor hipotecário, tabularmente
inscrito relativamente a um bem do activo da massa falida, ser citado
pessoalmente, por força dos disposto no art. 864º, nº 1, b), e nº 2, do C.P.C.,
aplicável ex vi do art. 181º, nº 1, do CPEREF;
- se, no caso específico do credor hipotecário tabularmente inscrito
em relação a um bem imóvel constante do activo da massa falida, é
inconstitucional o juízo interpretativo do disposto nos arts. 20º, nº 3, 188º,
nº 1, e 205º, todos do CPEREF, no sentido de que se dispensa a sua citação
pessoal, contando-se o prazo para reclamação de créditos ou propositura da acção
a partir dos anúncios publicados, mesmo que o credor deles não tenha tido
conhecimento; e
- se deve ordenar-se a anulação de todo o processado a partir da
sentença declaratória da falência.
Vejamos.
No procedimento falimentar, devem os credores do falido, de harmonia com o
disposto no art. 188º do CPEREF (aqui aplicável), reclamar a verificação dos
seus créditos, quer comuns, quer preferenciais, dentro do prazo fixado na
sentença declaratória da falência (nº 1), começando o mesmo prazo a contar-se
desde a data da publicação da sentença no Diário da República (nº 2), e
aplicando-se à sua contagem o disposto no Código de Processo Civil (art. 14º do
CPEREF).
No que concerne à citação do devedor e dos credores da sentença declaratória da
falência, publicitada nos termos do nº 2 do art. 128º do CPEREP, resulta do
disposto nº 3 do art. 20º, deste mesmo diploma legal, que: o devedor e os cinco
maiores credores conhecidos são citados pessoalmente, nos termos e pelas formas
prescritas na lei processual; os demais credores são chamados por edital, com as
formalidades determinadas pela incerteza das pessoas, com prazo de dilação de 10
dias e com anúncios no Diário da República e num jornal diário de grande
circulação nacional.
O conteúdo e as formalidades gerais da citação edital dos credores que não devam
ser chamados pessoalmente ao processo de falência são, pois, os definidos pelo
disposto no art. 251º do C.P.C., com as especialidades do nº 3 do art. 20º do
CPEREF.
Ora, como claramente resulta dos autos, e bem se entendeu na decisão recorrida e
no despacho de sustentação do agravo, mostram-se devidamente observados o
conteúdo e as formalidades da citação edital dos credores que, no caso sub
judice, não eram de chamar pessoalmente ao processo de falimentar, e nem isso,
aliás, nos parece ter sido posto em causa pela agravante.
Na verdade, o que esta pretende, invocando, para tanto, a sua qualidade credor
hipotecário tabularmente inscrito relativamente a um bem do activo da massa
falida, é ser citada pessoalmente, por força dos disposto no art. 864º, nº 1,
b), e nº 2, do C.P.C., aplicável ex vi do art. 181º, nº 1, do CPEREF.
Mas tal pretensão não tem qualquer fundamento legal.
Desde logo porque, no art. 181º, nº 1, do CPEREF, apenas se estipula que a venda
de bens da massa falida é feita segundo as modalidades estabelecidas para o
processo de execução, jamais se permitindo, por este mesmo dispositivo legal,
qualquer interpretação no sentido de que, no processo falimentar, os credores
com garantia real registada devem ser citados pessoalmente, nos termos do art.
864º, nºs 1, al. b), e 2, do C.P.C. (redacção anterior ao DL 38/03).
Por outro lado, e como já se referiu, a sentença de declaração de falência é
publicitada e dela é dado conhecimento segundo as regras que são próprias do
procedimento falimentar, maxime nos termos do nº 2 do art. 128º do CPEREF, sendo
pela afixação de editais e pela publicação de anúncios que os credores ficam
sabendo qual o prazo em que hão-de fazer as sua reclamações, jamais sendo os
mesmos citados para reclamarem os seus créditos.
Na verdade, a estrutura do procedimento falimentar continua a construir-se sobre
dois pontos basilares: a universalidade do seu alcance e a igualdade de
tratamento para os credores quirografos. E o credor deverá reclamar o seu
direito, como se vê pelo art. 188º, nº 1, do CPEREF, submetendo-se ao concurso e
ficando-lhe vedada outra via para o seu exercício[1].
E no que especificamente se refere ao termo «a quo» do prazo, fixado na sentença
falimentar para a reclamação de créditos, verifica-se o mesmo com a publicação
da sentença no Diário da República (art. 188º, nº 2, CPEREF), sendo de presumir
como de conhecimento geral tudo o que tem publicação neste boletim oficial[2].
Entendemos, assim, que não há lugar, em processo falimentar, à citação pessoal
de credores com garantia real, não sendo aí aplicável, designadamente ex vi do
art. 181º, nº 1, do CPEREF, o disposto no art. 864º, nº 1, b), e nº 2, do C.P.C.
(na redacção anterior ao DL 38/03).
E mostrando-se, como se mostram, devidamente observados o conteúdo e as
formalidades da citação edital dos credores que não eram de chamar pessoalmente
ao processo falimentar, como é o caso da agravante, entendemos também que bem
decidida foi, pelo Tribunal «a quo», a extemporaneidade da sua reclamação.
Assim sendo, consideramos, por outro lado, ser correcto o juízo interpretativo
do disposto nos arts. 20º, nº 3, 188º, nº 1, e 205º, todos do CPEREF, no sentido
de que, no caso específico do credor hipotecário tabularmente inscrito em
relação a um bem imóvel constante do activo da massa falida, se dispensa a sua
citação pessoal, contando-se o prazo para reclamação de créditos ou propositura
da acção a partir dos anúncios publicados, sendo de presumir do conhecimento
geral a publicação da sentença falimentar no Diário da República - (art. 188º,
nº 2, CPEREF).
Pelo que, não vislumbramos, de todo em todo, qualquer violação de princípios
constitucionais, designadamente dos princípios constitucionais da igualdade, da
proporcionalidade, da defesa dos direitos patrimoniais do credor hipotecário e
da confiança, apontados pela agravante com referência aos arts. 2º, 12º, nº 2,
13º, nº 1, 18º, nºs 2 e 3, e 62º, nº 1, da C.R.P.
Por fim, em virtude se ter provado que a sentença declaratória da falência
também foi publicada num jornal diário de grande circulação nacional (cfr. fls.
288 dos autos de reclamação de créditos), encontra-se prejudicado o conhecimento
da questão suscitada quanto à anulação do processado a partir da sentença
declaratória da falência.
Ou seja: improcedem, sem necessidade de mais considerações, todas as conclusões
da alegação da recorrente».
4 – É desta decisão que a recorrente interpôs o presente
recurso, tendo em vista a apreciação da referida questão de constitucionalidade.
Alegando, no Tribunal Constitucional, a recorrente sintetizou
as razões da sua discordância com o julgado nas seguintes proposições
conclusivas:
«I – Em processo falimentar deve o credor hipotecário tabularmente inscrito
relativamente a um bem do activo da massa ser citado pessoalmente, por força do
disposto no art. 864º, nº 1, b) e nº 2 do CPC aplicável ex vi do art. 181º, nº 1
do CPEREF.
II – É inconstitucional o juízo interpretativo do disposto nos arts. 200º, nº 3,
188º, nº 1 e 205º, todos do CPEREF, no sentido de que, no caso específico do
credor hipotecário, tabularmente inscrito em relação a um bem imóvel constante
do activo da massa falida, dispensa a sua citação pessoal, contando-se o prazo
para reclamação de créditos ou propositura da acção a partir dos anúncios
publicados, mesmo que o credor deles não tenha tido conhecimento. Na verdade,
III – viola os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade ou
da proibição do excesso, e da defesa dos direitos patrimoniais do credor
hipotecário (cfr. arts. 12º, nº 2, 13º, nº 1, 18º, nº 2 e 3 e 62º, nº 1 da CRP),
pelo que não pode ser aplicado por força do disposto no art. 207º da CRP.
IV – Aquela disposição viola os princípios constitucionais da igualdade, da
proporcionalidade ou da proibição do excesso, e da defesa dos direitos
patrimoniais do credor hipotecário (cfr. arts. 12º, nº 2, 13º, nº 1, 18º, nº 2 e
3 e 62º, nº 1 da CRP), pelo que não pode ser aplicado por força do disposto no
art. 207º da CRP.
V – Tal entendimento constitui restrição excessiva e desproporcionada ao direito
de acesso aos tribunais, vedando-lhe a obtenção da realização prática da
garantia patrimonial. Por outro lado,
VI – a certeza e a segurança jurídica do crédito garantido por hipoteca ficariam
irremediavelmente abaladas, com isso se violando também o princípio
constitucional da confiança consagrado no art. 2º da nossa Lei Fundamental.
VII – In casu, a ora Recorrente não foi parte, nem por qualquer forma teve
conhecimento prévio ou interveio na acção falimentar, apesar de documentalmente
provado ser credora hipotecária, com isso se violando os princípios do
contraditório e da proibição da indefesa, que são valores fundamentais
constitucionalmente protegidos».
5 – Não houve contra-alegações.
B – Fundamentação
6.1 – Os artigos do Código dos Processos Especiais de
Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), na versão que passou a vigorar
após a publicação do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, de cuja
interpretação conjugada se inferiu a norma objecto do presente recurso, dispõem
do seguinte jeito (reproduz-se o texto integral para facilidade de apreensão do
seu sentido, sendo os segmentos convocados assinalados a itálico):
“Artigo 20.º
Citação do devedor e dos credores
1 - Não havendo motivo para indeferimento liminar da petição, deve o juiz mandar
citar:
a) O devedor e os restantes credores, quando o requerimento tenha sido feito por
um ou mais credores;
b) Todos os credores indicados, se o requerimento tiver sido apresentado pelo
devedor;
c) O devedor e todos os credores indicados, caso o requerimento proceda do
Ministério Público.
2 - Os citados podem, dentro do prazo de 10 dias, não só deduzir oposição ou
justificar os seus créditos, como propor qualquer providência diferente da
requerida, devendo em todos os casos oferecer logo os meios de prova de que
disponham.
3 - O devedor e os cinco maiores credores conhecidos são citados pessoalmente,
nos termos e pelas formas prescritas na lei processual; os demais credores serão
chamados por edital, com as formalidades determinadas pela incerteza das
pessoas, com prazo de dilação de 10 dias e com anúncios no Diário da República e
num jornal diário de grande circulação nacional.
4 - O devedor só não é citado, no início da acção, se tiver sido requerida a
declaração de falência e for considerada inconveniente a sua imediata audição.
5 - Se as citações não tiverem sido realizadas no prazo de 60 dias, por facto
imputável ao requerente, será declarada extinta a instância”.
“Artigo 188.º
Reclamação de créditos
1 - Dentro do prazo fixado na sentença declaratória da falência, devem os
credores do falido, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses que
represente, reclamar a verificação dos seus créditos, quer comuns, quer
preferenciais, por meio de requerimento no qual indiquem a sua proveniência,
natureza e montante, podendo ainda alegar o que houverem por necessário acerca
da falência.
2 - O prazo começa a contar-se desde a data da publicação da sentença no Diário
da República.
3 - O credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está
dispensado de o reclamar no processo de falência, se nele quiser obter
pagamento.
4 - Consideram-se devidamente reclamados o crédito do requerente da falência,
bem como os créditos exigidos nos processos em que já tenha havido apreensão de
bens do falido ou nos quais se debatam interesses relativos à massa, se esses
processos forem mandados apensar aos autos da falência dentro do prazo fixado
para a reclamação, e ainda os créditos reclamados no processo de recuperação que
tenha antecedido o processo de falência, sem prejuízo da possibilidade de os
credores apresentarem nova reclamação, em substituição da anterior, se nisso
tiverem interesse”.
“Artigo 205.º
Verificação ulterior de créditos ou de outros direitos
1 - Findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda novos créditos,
bem como o direito à separação ou restituição de bens, por meio de acção
proposta contra os credores, efectuando-se a citação destes por éditos de 10
dias.
2 - A reclamação de novos créditos, nos termos do número anterior, só pode ser
feita no prazo de um ano subsequente ao trânsito em julgado da sentença de
declaração da falência.
3 - Proposta a acção, há-de o autor assinar termo de protesto no processo
principal da falência; os efeitos do protesto caducam, porém, se o autor deixar
de promover os termos da causa durante 30 dias”.
O acórdão recorrido entendeu, em face de tais preceitos e
confirmando interpretação já assumida pela 1.ª instância, que o credor
hipotecário, tabularmente inscrito, em processo falimentar, relativamente a um
bem do activo da massa falida, não tem de ser citado pessoalmente, contando-se o
prazo para a reclamação de créditos ou propositura da acção a partir dos
anúncios publicados, mesmo que o credor deles não tenha conhecimento.
Sustenta a recorrente que este entendimento normativo viola os
princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade ou da proibição do
excesso, e da defesa dos direitos patrimoniais do credor hipotecário,
referindo-os aos artigos 12.º, n.º 2, 13.º, n.º 1, 18.º, n.º 2 e 3, e 62.º, n.º
1 da Constituição da República Portuguesa.
No que tange ao princípio da igualdade, a recorrente situa o
referente ou o tertium comparationis na obrigatoriedade de citação pessoal dos
credores que disponham de garantia real, prevista no artigo 864.º, n.º 1, alínea
b), e n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC).
Antes de mais, importa notar que não cabe ao Tribunal
Constitucional apreciar se a decisão recorrida interpretou correctamente o
direito infra-constitucional.
Na verdade, não lhe cabe censurar a correcção do juízo
hermenêutico desenvolvido pelo tribunal a quo e, nomeadamente, se, como defende
a recorrente, decorre do disposto nos art.ºs 14.º, n.º 1, 62.º, n.º 1, in fine,
e 181.º, n.º 1, do CPEREF, que esse preceito do art.º 864.º, n.º 1, alínea b), e
n.º 2, do CPC é subsidiariamente aplicável, no processo de falência, à citação
dos credores que gozem de garantia real.
6.2 – Discorrendo sobre o problema da igualdade, afirma-se no
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2003 (publicado no Diário da
República I Série-A, de 17 de Junho de 2003, e que fez uma alargada recensão da
doutrina e jurisprudência nacionais e estrangeiras), recuperando, em alguns
passos do seu discurso, abundante argumentação de jurisprudência anterior:
“[...]
Princípio estruturante do Estado de Direito democrático e do
sistema constitucional global (cfr., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993,
pág. 125), o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos,
tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cfr. ob.
cit., pág. 129) o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito
fundamental dos cidadãos e, por outro lado, da 'atribuição aos preceitos
constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força
jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de
qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as
entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou
jurisdicional (artigo 18º, nº 1, da Constituição)”(cfr. Acórdão do Tribunal
Constitucional nº 186/90, publicado no Diário da República II Série, de 12 de
Setembro de 1990).
[…]
1.2.- O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do
legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento,
“razoável, racional e objectivamente fundadas”, sob pena de, assim não
sucedendo, “estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do
acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores
constitucionalmente relevantes”, no ponderar do citado Acórdão nº 335/94. Ponto
é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a
discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar,
diz-nos j.c.vieira de andrade – Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299).
Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como “princípio
negativo de controlo” ao limite externo de conformação da iniciativa do
legislador - cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 127 e, por
exemplo, os Acórdãos nºs. 157/88, publicado no Diário da República, I Série, de
26 de Julho de 1988, e os já citados nºs. 330/93 e 335/94 - sem que lhe
retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou
mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de
tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e
jurídicas postadas face a um determinado referencial (“tertium comparationis”).
A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminado o
arbítrio (cfr., a este propósito, gomes canotilho, in Revista de Legislação e de
Jurisprudência, ano 124, pág. 327; alves correia, O Plano Urbanístico e o
Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 425; Acórdão nº 330/93).
Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente
formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a
aplicação igual de direito igual (cfr. gomes canotilho, Constituição Dirigente e
Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pág. 381; alves correia, ob. cit.,
pág. 402) o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da 'diferença'” de
modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações
semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da
diferenciação.
[…]
“[...] O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da
igualdade impõe que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da
mesma maneira e que situações pertencentes a categorias essencialmente
diferentes tenham tratamento também diferente. Admitem-se, por conseguinte,
diferenciações de tratamento, desde que fundamentadas à luz dos próprios
critérios axiológicos constitucionais. A igualdade só proíbe discriminações
quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional [cf., nomeadamente,
os Acórdãos nºs 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 11º vol. (1988), p. 233 e ss., e 16º vol. (1990), pp. 383 e ss.,
395 e ss. e 411 e ss., respectivamente; cf., igualmente, na doutrina, jorge
miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2ª ed., 1993, p. 213 e ss.,
gomes canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., 1993, pp. 564-5, e gomes
canotilho e vital moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 1993,
p.125 e ss.]”.
[…]
Assente a possibilidade de estabelecimento de diferenciações,
tornar-se-á depois necessário proceder ao controlo das normas sub judicio, feito
a partir do fim que visam alcançar, à luz do princípio da proibição do arbítrio
(Willkürverbot) e, bem assim, de um critério de razoabilidade.
Com efeito, é a partir da descoberta da ratio da disposição em
causa que se poderá avaliar se a mesma possui uma “fundamentação razoável”
(vernünftiger Grund), tal como sustentou o “inventor” do princípio da proibição
do arbítrio, Gerhard Leibholz (cf. f. alves correia, O plano urbanístico e o
princípio da igualdade, Coimbra, 1989, pp. 419ss). Essa ideia é reiterada entre
nós por maria da glória ferreira pinto: “[E]stando em causa (...) um determinado
tratamento jurídico de situações, o critério que irá presidir à qualificação de
tais situações como iguais ou desiguais é determinado directamente pela 'ratio'
do tratamento jurídico que se lhes pretende dar, isto é, é funcionalizado pelo
fim a atingir com o referido tratamento jurídico. A 'ratio' do tratamento
jurídico é, pois, o ponto de referência último da valoração e da escolha do
critério” (cf. Princípio da igualdade: fórmula vazia ou fórmula 'carregada' de
sentido?, sep. do Boletim do Ministério da Justiça, nº 358, Lisboa, 1987, p.
27). E, mais adiante, opina a mesma Autora: “[O] critério valorativo que permite
o juízo de qualificação da igualdade está, assim, por força da estrutura do
princípio da igualdade, indissoluvelmente ligado à 'ratio' do tratamento
jurídico que o determinou. Isto não quer, contudo, dizer que a 'ratio' do
tratamento jurídico exija que seja este critério, o critério concreto a adoptar,
e não aquele outro, para efeitos de qualificação da igualdade. O que, no fundo,
exige é uma conexão entre o critério adoptado e a 'ratio' do tratamento
jurídico. Assim, se se pretender criar uma isenção ao imposto profissional,
haverá obediência ao princípio da igualdade se o critério de determinação das
situações que vão ficar isentas consistir na escolha de um conjunto de
profissionais que se encontram menosprezados no contexto social, bem como haverá
obediência ao princípio se o critério consistir na escolha de um rendimento
mínimo, considerado indispensável à subsistência familiar numa determinada
sociedade” (ob. cit., pp. 31-32)”.
Enquanto “princípio estruturante do Estado de Direito
democrático e do sistema constitucional global”, o princípio da igualdade não
pode, assim, deixar de conformar a legislação processual, desvelando-se, aí,
essencialmente, através do direito à igualdade de posições no processo e do
princípio do contraditório, consubstanciados na faculdade de qualquer das
partes, em condições de rigorosa igualdade, «poder deduzir as suas razões (de
facto e de direito), de oferecer as suas provas, de controlar as provas do
adversário e de discretear sobre o valor e resultados de umas e de outras» (cf.,
entre muitos, os Acórdãos n.º 516/93, n.º 497/96, n.º 249/97, n.º 608/99, n.º
601/04, publicados no Diário da República II Série, respectivamente, de 19 de
Janeiro de 1994, 17 de Julho de 1996, 17 de Maio de 1997, 16 de Março de 2000,
25 de Novembro de 2004 e n.º 452/04, este disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
No entanto, no domínio do direito de acesso aos tribunais,
deparam-se ainda outras exigências concretizadas na injunção constante da lei
fundamental de que o processo seja um processo equitativo (artigo 20º, nº 4, da
CRP).
Por outro lado, tendo o direito processual uma função
essencialmente instrumental, dado regular o modo como se efectiva o acesso aos
tribunais para a obtenção da tutela jurisdicional, plena e efectiva, susceptível
de ser concedida em face do conteúdo próprio dos diferentes direitos ou
interesses legalmente protegidos que são reconhecidos pela Ordem Jurídica, não
pode o mesmo deixar de ser enformado tendo em conta as características
singulares destes concretos direitos subjectivos ou interesses legalmente
protegidos.
A este propósito, escreveu-se no Acórdão n.º 422/99, publicado
Diário da República II Série, de 29 de Novembro de 1999, que
“«[...]suposto que, como sustenta a recorrente, do princípio do Estado de
direito decorra uma “harmonização do sistema jurídico” em termos de levar à
consagração de soluções legais idênticas quando exista alguma similitude de
situações, isso, certamente, não pode significar que essa harmonização conduza
ineludivelmente a que os diversos corpos de leis adjectivos tenham de consagrar
soluções iguais, designadamente no que tange ao processo civil e ao processo
criminal.
Na verdade, as prescrições tendentes à adjectivação não podem desligar-se da
diversidade de institutos jurídicos de cariz, quantas vezes acentuadamente
diferenciado, que pautam, verbi gratia, o direito civil, o direito penal e o
direito administrativo, pelo que as soluções decorrentes dessa adjectivação
podem, e muitas vezes até devem, ser diferentemente perspectivadas, até tendo em
conta preceitos, princípios e garantias que a própria Constituição impõe que
sejam observados em determinados ramos de direito. Seria, por exemplo, incurial
e contrário à Lei Fundamental que no processo criminal se estabelecessem ónus
probatórios a cargo do arguido, provas por confissão, sancionamentos
cominatórios penais ou presunções de responsabilidade ou culpabilidade criminal,
o mesmo já se não podendo dizer se um tal estabelecimento decorrer da lei
processual civil, ao adjectivar as formas de tutela do incumprimento de
obrigações civis» (cf., entre outros, na mesma linha o Acórdão n.º 236/00,
publicado no Diário da República II Serie, de 2 de Novembro de 2000, e nos
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47º vol., pp. 269)».
Quer isto dizer que, pese embora os direitos subjectivos ou
interesses legalmente protegidos que se pretendam fazer valer no processo
possam, até, enquadrar-se dentro do mesmo ramo de direito, de acordo com as
classificações classicamente assumidas (v.g., o civil, o administrativo, o
penal, etc.), não se segue daí que seja forçoso que o legislador tenha de
adoptar a mesma lei processual para a sua efectivação em juízo.
Tendo o processo, por determinação constitucional (art.º 20.º,
n.ºs 1, 4 e 5 da CRP), de ser equitativo e propiciar uma tutela plena, efectiva
e em tempo útil, dos concretos direitos, liberdades e garantias pessoais, sobre
os quais exista litígio ou simplesmente ameaça dele, há-de o mesmo de ser o
adequado para a obtenção da específica tutela que decorre da titularidade dos
específicos direitos, liberdades ou garantias pessoais que estejam em causa.
A ser assim, há-de reconhecer-se ao legislador ordinário uma
margem de ponderação constitutiva sobre o modo como deve ser desenhado o
figurino processual adequado à efectivação jurisdicional da tutela própria dos
específicos direitos ou interesses legalmente protegidos.
Não pode, pois, defender-se, sem mais, que certas regras ou até
institutos jurídico-processuais, que foram constituídos pelo legislador para dar
resposta a certas exigências, até de matriz constitucional, postulados pela
natureza específica dos direitos que são objecto de discussão no processo, devam
ser igualmente adoptados em outras formas ou espécies de processo diferentes,
eles próprios estruturados para dar resposta a diferentes exigências dos
direitos que neles se discutem.
6.3 – A norma que a recorrente apresenta como tertium
comparationis (art.º 864.º, n.º 3, alínea b) do CPC) prevê a citação dos
“credores que sejam titulares de direito real de garantia, registado ou
conhecido, para reclamarem o pagamento dos seus créditos”. Esta norma insere-se
no processo de execução civil que tem por escopo a execução de património do
devedor para pagamento de dívidas de certo(s) credor(es) demandante(s). O
processo corre apenas para dar satisfação executiva ao direito de tal credor,
traduzindo um litígio que se desenvolve entre certo devedor e certo(s)
credor(es). Ora, podendo acontecer que o património penhorado, tendo em vista a
sua venda ou adjudicação, esteja dado de garantia a outro credor, justifica-se
que este seja pessoalmente citado para vir reclamar o seu crédito, na mesma
acção executiva singular, efectuando-se os pagamentos dos créditos concorrentes
pelo valor do património onerado de acordo com a precedência legalmente
estabelecida das garantias.
A citação pessoal do credor aparece como um modo tido pelo
legislador como adequado, em tal acção executiva singular, de dar conhecimento
pessoal ao credor titular de direito real de garantia (a mesma atitude adoptou o
legislador relativamente à Fazenda Nacional e Segurança Social, por estas
entidades serem normalmente titulares de créditos que gozam de privilégios
mobiliários ou imobiliários) de que os bens sobre os quais ele incide foram
penhorados para execução coerciva de outro crédito.
A opção legislativa por um tal modo de dar conhecimento deste
facto assenta, assim, numa ponderação de qual seja, em tal espécie de processo,
a forma mais adequada de dar conhecimento do facto e não directamente da
circunstância de a existência do crédito garantido e a identidade do seu titular
constarem de registo tabular. Tanto assim é que a solução é adoptada também em
relação a credor titular de direito real de garantia que seja apenas
“conhecido”.
Ora, a norma sob censura constitucional integra-se em um
processo de execução de património do devedor de natureza diferente. A situação,
agora, não é de execução de certo património para pagamento apenas de certos
créditos, mas de execução de todo o património do devedor e para pagamento de
todos os créditos que venham a ser reclamados. Estamos perante uma execução
universal do património do devedor e em favor de todos os credores que se
apresentem a reclamar o pagamento dos créditos de que sejam titulares. O leque
dos sujeitos interessados na execução universal dos bens do devedor é agora
muito diferente: são todos os credores, tenham-se já vencido ou não os seus
créditos, dado que “a declaração de falência torna imediatamente exigíveis todas
as obrigações do falido, ainda que sujeitas a prazo não vencido” (art.º 151.º,
n.º 1, do CPEREF). O litígio desenvolve-se, agora, não entre duas partes já
concretamente identificadas, mas entre a massa falida e todos os seus credores,
sejam estes conhecidos ou desconhecidos.
Por outro lado, se a celeridade processual constitui uma
dimensão do direito de acesso aos tribunais (cf. art.º 20.º, n.º 5, da CRP) e
por isso deve estar presente na configuração de todo o processo judicial, a
necessidade da sua prossecução não deixa de assumir, no processo de falência,
uma maior intensidade, na medida em que é susceptível de atingir e de se
repercutir na esfera jurídico-económica de um maior universo de credores e se
impõe, aí, a tomada de medidas urgentes de apreensão, de conservação e de venda
de bens.
Nesta medida se compreende que o art.º 10.º do CPEREF
qualifique o processo de falência como processo urgente e que para conseguir
essa urgência de tramitação enuncie toda uma série própria de instrumentos
jurídicos a serem respeitados [Diz-se, na verdade, nesse artigo o seguinte: “1 -
Os processos de recuperação da empresa e de falência, incluindo os embargos e
recursos a que houver lugar, têm carácter urgente e gozam de precedência sobre o
serviço ordinário do tribunal.
2 - Todas as publicações obrigatórias de despachos e sentenças podem ser
promovidas por iniciativa de qualquer credor que o justifique e requeira ao
juiz.
3 - Nem o falecimento do devedor, nem o de qualquer credor, determina a
suspensão do processo de falência; o falecimento do devedor pode, no entanto,
determinar a suspensão do processo de recuperação da empresa pelo prazo, não
prorrogável, de cinco dias, quando um sucessor do devedor o requeira e o juiz
considerar conveniente a suspensão”].
Do mesmo passo, tendo em mira o conhecimento por banda de todos
os credores do falido da liquidação de todo o seu património, com respeito pelo
princípio do par conditio creditorum (de acordo com o qual deixam de valer as
preferências resultantes de hipoteca judicial ou de penhora – art.º 200.º, n.ºs
2 e 3, do CPEREF), determinou o legislador que “2 - A sentença é logo notificada
ao Ministério Público, registada oficiosamente na conservatória competente com
base na respectiva certidão, para o efeito remetida pela secretaria, e publicada
por extracto no Diário da República e num dos jornais mais lidos na comarca e
por editais afixados à porta da sede e das sucursais do falido ou do local da
sua actividade, consoante os casos, e ainda no lugar próprio do tribunal.
3 - Todas as diligências destinadas à execução e publicidade da sentença devem
ser realizadas no prazo de cinco dias”.
A específica natureza da tutela jurisdicional que é dispensada
aos direitos e interesses legalmente protegidos no processo de falência não
impede que o legislador tenha considerado, ao invés do juízo que fez na execução
singular, que o meio mais adequado para propiciar, em relação a todos os
credores, incluindo os titulares de direitos reais de garantia, o conhecimento
da declaração judicial de falência e de que deve, se o quiser, deduzir a sua
reclamação de créditos, seja a publicação da sentença declaratória de falência
no Diário da República.
Tal opção permite dar resposta às exigências de celeridade
processual na obtenção da tutela jurisdicional, especialmente intensa neste tipo
de processo, em diferentes níveis: de um lado, porque arreda as dificuldades dos
serviços judiciais de terem de verificar, em relação a todos os bens imóveis ou
móveis sujeitos a registo, se se encontram registados direitos reais de garantia
e quem são os seus titulares e se essas inscrições traduzem efectivamente a
realidade existente (se os direitos registados ainda existem e têm a expressão
constante do registo), no que vai ganho tempo processual; de outro lado, porque,
dispensando as formalidades da citação pessoal, substituindo-a pela publicação
por extracto no Diário da República da sentença declaratória da falência, dá
também ganhos celeridade.
Acresce que o meio processual utilizado para dar conhecimento
da sentença a todos os credores não pode deixar de ter-se como um meio seguro de
comunicação e disponível a todos, sendo que existem ainda outros meios, a cuja
utilização a lei obriga, que são igualmente idóneos para dar conhecimento do
facto (anúncio num dos jornais mais lidos na comarca e editais afixados à porta
da sede e das sucursais do falido e ainda no tribunal).
De tudo o exposto resulta que, independentemente de não ser
possível tomar como correspondendo a um tertium comparationis adequado a
exigência em processo civil da citação pessoal dos credores que gozem de
garantia real sobre os bens penhorados, sempre, no caso, existem razões
materiais bastantes para justificar a opção legislativa, razão pela qual não
poderá a mesma ter-se por inadequada, desrazoável ou arbitrária.
Consequentemente, não poderá concluir-se pela violação do princípio da
igualdade.
Mas ainda que o tertium comparationis seja deslocado para o
interior do processo de falência, por referência aos credores que a requeiram ou
pertençam ao grupo dos cinco maiores credores, cuja notificação ou citação
pessoais, no processo de falência, a lei obriga em algumas situações (cf.,
art.ºs 17.º, n.º 1, com referência aos art. 253.º e ss. do CPC, 20.º e 43.º, n.º
1, do CPEREF), não é diferente a conclusão a tirar.
Na verdade, independentemente de ser igual para todos eles o
prazo de reclamação dos créditos, pois, afora o caso dos créditos que se
consideram já devidamente reclamados (art.º 188, n.º 4, do CPEREF), este se
conta sempre da data da publicação da sentença no Diário da República (art.º
188.º, n.º 2, do CPEREF), trata-se de credores que se encontram numa peculiar
situação processual ou material que torna não arbitrária a opção por uma solução
diferente, no plano do direito infraconstitucional. É que, cabendo-lhes a
iniciativa e o impulso processuais, determinantes para a marcha do processo ou
detendo, por via do volume dos seus créditos, a faculdade de poderem influir
decisivamente sobre a decretação ou não decretação da falência, bem como um
interesse, de relevo económico diferente, sobre as providências a tomar quanto
ao património do falido, mas de cuja actividade todos os outros credores, de
algum modo, podem mediatamente, porventura, beneficiar, bem se compreende que o
legislador considere que a sua notificação ou citação pessoais correspondem,
nessas circunstâncias, aos meios que se afiguram objectivamente mais adequados
para prosseguir, com ganhos de tempo, aqueles objectivos.
6.4 – Sustenta ainda a recorrente que a norma
constitucionalmente impugnada viola ainda os princípios da proporcionalidade ou
da proibição do excesso.
Subjacente a esta argumentação está o seu entendimento de que a
opção legislativa por tal modo de comunicação da sentença declaratória de
falência e de abertura do prazo de reclamação de créditos constitui uma
constrição intolerável ao direito de acesso aos tribunais para realização dos
direitos patrimoniais do credor hipotecário.
Vejamos. O direito de acesso aos tribunais para defesa dos
direitos e interesses legalmente protegidos e obtenção de uma sua tutela
jurisdicional, plena e efectiva, constitui um direito ou garantia fundamental
que se encontra consagrada no art.º 20.º da Constituição. Mas daí não decorre
que seja um direito absoluto, de uso incondicionado. Desde logo, ele consente as
restrições que caibam nos parâmetros estabelecidos nos n.ºs 2 e 3 do art.º 18.º
da CRP. Por outro lado, decorre da própria previsão constitucional que a
tutela jurisdicional dos direitos e interesses legalmente protegidos seja
efectuada “mediante um processo equitativo” e cujos procedimentos possibilitem
uma decisão em prazo razoável e sejam “caracterizados pela celeridade e
prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou
violações desses direitos” que esse direito, além do mais, está sujeito a regras
ou condicionamentos procedimentais e a prazos razoáveis de acção ou de recurso.
Ponto é que esses condicionamentos, pressupostos e prazos não
se revelem desnecessários, desadequados, irrazoáveis ou arbitrários, e que não
diminuam a extensão e o alcance do conteúdo desse direito fundamental de acesso
aos tribunais.
Impõe-se, pois, que essas medidas respeitem o princípio da
proporcionalidade. Como diz o recente Acórdão n.º 40/07, disponível em
http://www.tribunalconstitucional.pt citando o Acórdão n.º 187/2001, publicado
no Diário da República II Série, de 26 de Junho de 2001,
«o princípio da proporcionalidade, em sentido lato, pode (...) desdobrar-se
analiticamente em três exigências da relação entre as medidas e os fins
prosseguidos: a adequação das medidas aos fins; a necessidade ou exigibilidade
das medidas e a proporcionalidade em sentido estrito, ou “justa medida”. Como se
escreveu no (...) Acórdão n.º 634/93, invocando a doutrina:
'o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio
da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem
revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de
outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da
exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os
fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos
para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou
proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas,
desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos)'».
Por outro lado, cumpre notar que, como se diz no Acórdão n.º
187/01, publicado no Diário da República II Série, de 26 de Junho de 2001, e
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50.º vol., p. 29, transcrevendo o Acórdão
n.º 484/00, publicado no Diário da República II Série, de 4 de Janeiro de 2001,
e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 48.º, p. 391, citando doutrina nacional,
que o
«“ […] o controlo judicial baseado no princípio da
proporcionalidade não tem extensão e intensidade semelhantes consoante se trate
de actos legislativos, de actos da administração ou de actos de jurisdição. Ao
legislador (e, eventualmente, a certas entidades com competência regulamentar) é
reconhecido um considerável espaço de conformação (liberdade de conformação) na
ponderação dos bens quando edita uma nova regulação. Esta liberdade de
conformação tem especial relevância ao discutir-se os requisitos da adequação
dos meios e da proporcionalidade em sentido restrito. Isto justifica que perante
o espaço de conformação do legislador, os tribunais se limitem a examinar se a
regulação legislativa é manifestamente inadequada.' (assim, Gomes Canotilho
Direito constitucional e teoria da constituição, Coimbra, 1998, p. 264)».
Ora, na situação dos autos, não é de concluir que a opção
legislativa de ser dispensada “a […]citação pessoal, contando-se o prazo para a
reclamação de créditos ou propositura da acção a partir dos anúncios publicados,
mesmo que o credor deles não tenha conhecimento”, “no caso específico do credor
hipotecário, tabularmente inscrito em relação a um imóvel constante do activo da
massa falida”, seja, da perspectiva da justa medida, manifestamente irrazoável
ou arbitrária.
Sendo a sentença declaratória da falência publicada em Diário
da República, além de ser informada através de outros meios, como já se disse,
não se afigura constituir condicionamento ou ónus excessivo para qualquer
credor, e principalmente para um credor que adquire créditos hipotecários no
exercício de uma actividade lucrativa, verificar, todos os dias, em tal jornal
oficial se, porventura, algum dos seus devedores foi declarado falido,
abrindo-se o prazo de reclamações de créditos. É patente que não existe
desproporção constitucionalmente censurável entre os ganhos de celeridade,
propiciados pela simplificação processual em causa, que constituem a razão de
ser de tal solução legislativa, e os encargos decorrentes da imposição, ao
credor hipotecário, do dever (processual) de estar atento aos anúncios
publicados no jornal oficial, mormente, como é o caso, quando estes podem ser
havidos como próprios até de um modo correcto de exercício da actividade
lucrativa prosseguida.
E a justeza de tal juízo de ponderação torna-se ainda mais
evidente quando se considere que, não obstante ter deixado precludir o prazo da
reclamação de créditos, o credor pode, ainda, no prazo de um ano subsequente ao
trânsito em julgado da sentença de declaração da falência, pedir ainda a
verificação e pagamento dos seus créditos por meio de acção proposta contra os
credores do falido, nos termos do art.º 205.º do CPEREF, sem perda da
preferência legal resultante da titularidade de garantias reais acessórias dos
créditos, à excepção da relativa à hipoteca judicial e penhora que deixa de
valer na falência [cf. art.º 200.º, n.ºs 2 e 3, e art.º 206.º, n.º 1, al. a), do
CEPEREF].
Conclui-se, pois, não se verificar a violação do princípio da
proporcionalidade.
6.5 – Invoca a recorrente, por último, que a norma em causa
viola “o princípio constitucional da defesa dos direitos patrimoniais”,
convocando o art.º 62.º, n.º 1, da CRP.
A Constituição não diz o que se deve entender por direito de
propriedade mas o certo é que, sendo este susceptível de várias dimensões, das
quais não é de excluir, nos actuais tempos, outros direitos patrimoniais além da
proprietas rerum, a sua garantia 'nos termos da Constituição' é concebida não em
termos absolutos, mas sim na medida e nos limites previstos noutros lugares da
lei constitucional (cf., entre muitos outros, os Acórdãos nºs. 76/85, 236/86,
3/88, 267/95 e 866/96, publicados, respectivamente, no Diário da República II
Série, de 11 de Fevereiro de 1985, 12 de Novembro de 1986, 14 de Março de 1988,
20 de Julho de 1995, e I Série-A, de 18 de Dezembro de 1996).
Assim, abordando o âmbito de protecção constitucional
dispensada ao direito de propriedade, escreveu-se no Acórdão n.º 491/02,
publicado no Diário da República II Série, de 22 de Janeiro de 2003, e Acórdãos
do Tribunal Constitucional, 54.º, p. 173 (anotado em Jurisprudência
Constitucional, n.º1, Janeiro-Março, pp. 43-49) o seguinte, que aqui se
acompanha:
«Quanto ao objecto da garantia constitucional da propriedade privada,
conforme se decidiu no Acórdão n.º 257/92, de 13 de Julho (in Acórdãos do
Tribunal Constitucional [ATC], 22º vol., 1992, p. 753), o artigo 62º, n.º 1, da
Constituição garante, 'tanto o direito de propriedade – a propriedade stricto
sensu e qualquer outro direito patrimonial – como o direito à propriedade, ou
direito de acesso a uma propriedade'.
Resulta, assim, claro que o direito de propriedade a que se refere aquele artigo
da Constituição não abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais
menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros
direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de «propriedade»,
tais como, designadamente, os direitos de crédito e os 'direitos sociais' –
incluindo, portanto, partes sociais como as acções ou as quotas de sociedades
(na doutrina, no sentido de que o conceito constitucional de propriedade tem de
ser equivalente a património, cfr. Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do
Estado e dever de indemnizar do legislador, Coimbra, 1998, pp. 548 e 559).
Relevante para o caso dos autos é, ainda, apurar em que medida a garantia
constitucional da propriedade privada reveste a natureza de direito fundamental
de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.
A este propósito salientou-se no recente Acórdão n.º 187/01 (in DR II Série, de
26 de Junho de 2001):
'O Tribunal Constitucional tem, na verdade, salientado repetidamente, já desde
1984, que o direito de propriedade, garantido pela Constituição, é um direito de
natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, beneficiando, nessa
medida, nos termos do artigo 17º da Constituição, da força jurídica conferida
pelo artigo 18º e estando o respectivo regime sujeito a reserva de lei
parlamentar (v., na jurisprudência mais antiga, por exemplo, os Acórdãos n.ºs
1/84, 14/84 e 404/87, in ATC, respectivamente vol. 2.º, pp. 173 e ss. e pp. 339
e ss. e vol. 10º, pp. 391 e ss., sobre a extinção da colonia; e vejam-se também
os Acórdãos n.ºs 257/92, 188/91 e 431/94, respectivamente in ATC, vol. 22º, pp.
741 e ss.; vol. 19.º, pp. 267 e ss. e vol. 28.º, pp. 7 e ss.).
Importa, porém, discernir, dentro do direito de propriedade privada, o núcleo ou
conjunto de faculdades que revestem natureza análoga aos direitos, liberdades e
garantias, uma vez que nem todas elas se podem considerar como tal (para a
exclusão dos direitos de urbanizar, lotear e edificar, v. os Acórdãos n.ºs
329/99 e 517/99, publicados na II série do DR, respectivamente, de 20 de Julho e
11 de Novembro de 1999).
Desse núcleo, dessa dimensão que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e
garantias, faz, seguramente, parte (como se diz, por exemplo, nos arestos por
último citados e no também já referido Acórdão n.º 431/94; v. ainda, por
exemplo, o Acórdão n.º 267/95, in ATC, vol. 31º, pp. 305 e ss.) o direito de
cada um a não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade
pública – e, ainda assim, tão só com base na lei e mediante o pagamento de justa
indemnização (artigo 62º, n.ºs 1 e 2, da Constituição). Trata-se, aqui,
justamente de um aspecto verdadeiramente significativo do direito de propriedade
e determinante da sua caracterização também como garantia constitucional – a
garantia contra a privação –, autonomizada no n.º 2 do artigo 62º (assim, com
referência à remição da colonia, o Acórdão n.º 404/87). Para além disso, a
outras dimensões do direito de propriedade, 'essenciais à realização do Homem
como pessoa' (nestes termos, o citado Acórdão n.º 329/99), poderá também,
eventualmente, ser reconhecida natureza análoga aos direitos, liberdades e
garantias, beneficiando do seu regime.'
No mesmo sentido, pronunciaram-se ainda os Acórdãos n.º 341/86, de 10 de
Dezembro, n.º 115/88, de 1 de Junho, e n.º 131/88, de 8 de Junho (in ATC,
respectivamente, 8º vol., 1986, p. 519; 11º vol., 1988, p. 895; 11º vol., 1988,
p. 472).
Inversamente, pode também considerar-se como assente, em face da jurisprudência
do Tribunal Constitucional sumariada, que nem todas as faculdades abrangidas
pelo direito de propriedade privada integram o núcleo do mesmo que reveste
natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Assim, no citado Acórdão
n.º 329/99 escreveu-se:
'(...) apesar de o direito de propriedade privada ser um direito de natureza
análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga
respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esses direitos,
liberdades e garantias. Desta reserva fazem apenas parte as normas relativas à
dimensão do direito de propriedade que tiver essa natureza análoga aos direitos,
liberdades e garantias. Como, embora a outro propósito, se sublinhou no acórdão
n.º 373/91 (publicado no Diário da República I Série-A, de 7 de Novembro de
1991), cabem na reserva legislativa parlamentar ‘as intervenções legislativas
que contendam com o núcleo essencial dos ‘direitos análogos’, por aí se
verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação
legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias’.'».
Mesmo, todavia, que da aplicação da norma em causa derivasse
directamente alguma afectação do direito de propriedade da recorrente – e, de
facto, não deriva como abaixo se concretizará – é seguro que a norma impugnada,
nos termos da qual “no caso específico do credor hipotecário, tabularmente
inscrito em relação a um imóvel constante do activo da massa falida”, é
dispensada “a sua citação pessoal, contando-se o prazo para a reclamação de
créditos ou propositura da acção a partir dos anúncios publicados, mesmo que o
credor deles não tenha conhecimento”, nunca acarretaria a diminuição da extensão
e o alcance do conteúdo essencial do preceito constitucional que reconhece o
direito à propriedade privada, que acima se deixou precisado.
Na verdade, e desde logo, apenas estaria em causa a eventual
impossibilidade fáctica do credor poder ser pago na execução universal dos bens
do devedor falido no lugar que legalmente lhe competiria se tivesse reclamado o
seu crédito, e a admitir-se que o produto da venda dos bens fosse suficiente
para tal. E decisivamente, como se disse, o credor que não reclamou o seu
crédito, em tempo, sempre dispõe ainda da possibilidade de pedir a sua
verificação e pagamento em acção deduzida contra os demais credores, sem perda,
no âmbito precisado, da preferência resultante das garantias reais de que goze o
titular do crédito.
Acresce que mesmo aquele efeito não poderá ser atribuído
directamente à norma em si, pois esta possibilita-lhe o exercício do direito,
mas à falta de diligência do credor e não pode deixar de considerar-se que o
preceito constitucional ao conceder a garantia do direito nos termos da
Constituição dá ao legislador ordinário a possibilidade de impor esse dever de
diligência, por fundado na relevância a conferir a outros interesses
constitucionalmente protegidos, nos quais vão inclusivamente implicados os
direitos da mesma natureza de outros credores.
Também por aqui falece o recurso.
C – Decisão
7 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma extraída por
interpretação conjugada dos artigos 20.º, n.º 3, 188.º, n.º 1, e 205.º, todos do
Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, na
redacção vigente ao tempo do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, segundo a
qual “no caso específico do credor hipotecário, tabularmente inscrito em relação
a um imóvel constante do activo da massa falida, é dispensada a sua citação
pessoal, contando-se o prazo para a reclamação de créditos ou propositura da
acção a partir dos anúncios publicados, mesmo que o credor deles não tenha
conhecimento”;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso;
c) Condenar a recorrente nas custas, fixando-se a taxa de
justiça em 20 UCs.
Lisboa, 8 de Março de 2007
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos
[1] - cfr. Pedro Macedo, Manual de Direito da Falências, vol. II, p. 131.
[2] - cfr. mesmo autor e obra, p. 293