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Processo n.º 255/03
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A., L.da, intentou, no Tribunal Administrativo
do Círculo de Lisboa, acção ordinária, nos termos do artigo 254.º, ex vi artigo
278.º, ambos do Decreto‑Lei n.º 59/99, de 2 de Março, contra a Direcção‑Geral
dos Edifícios e Monumentos Nacionais, pedindo a condenação da ré no pagamento de
€ 235 930,38 (sendo € 119 587,65 a título de sobrecustos suportados pela autora
pelo período de dilação do prazo de contrato de empreitada, de 1 de Julho de
1999 a 31 de Dezembro de 1999, e € 116 342,73 a título de indemnização pelos
prejuízos sofridos pela autora pela suspensão da obra objecto do contrato de
empreitada de 1 de Abril de 2000 a 28 de Setembro de 2000), acrescidos dos
juros, à taxa legal em vigor, vencidos desde a data da citação até integral
pagamento.
Citada para contestar, a referida
Direcção‑Geral veio, em ofício subscrito pelo Director do Gabinete Jurídico
(fls. 204), aduzir que: “Tratando‑se de um serviço público, integrado na
Administração estadual, atento o disposto nos artigos 20.º, n.º 1, e 201.º do
Código de Processo Civil, deverá a mesma citação ser efectuada na pessoa do
agente do Ministério Público junto ao Tribunal onde a acção é proposta, sob pena
de, nos termos do artigo 194.º, n.º 1, alínea b), do mesmo Código, ser
considerado nulo tudo o que se processe depois da petição inicial”.
Aberta vista ao representante do Ministério
Público junto do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, promoveu o mesmo
a absolvição da ré da instância, nos termos dos artigos 288.º, n.º 1, alínea
c), 493.º, n.º 2, e 494.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil (CPC),
por não ter personalidade jurídica nem judiciária, fazendo parte da pessoa
colectiva Estado (fls. 205).
Conclusos os autos ao respectivo juiz, este
designou dia para tentativa de conciliação (fls. 205 verso), na qual
participaram a mandatária da autora e um representante legal da ré, mas que se
frustrou (fls. 207).
Determinada, por despacho de fls. 208, a
notificação à autora da junção do ofício de fls. 204, veio a mesma apresentar o
requerimento de fls. 212 a 214, do seguinte teor:
“1 – A autora entende que tem razão a Direcção‑Geral dos
Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), ao requerer a aplicação da primeira
parte do n.º 1 do artigo 20.° do CPC, procedendo o Tribunal à sua citação
através do Ministério Público.
2 – Não se encontra, quer na lei orgânica da DGEMN –
Decreto‑Lei n.º 284/93, de 18 de Agosto – quer na sua regulamentação – Decreto
Regulamentar n.º 29/93, de 16 de Setembro, disposição que permita o patrocínio
por mandatário judicial.
3 – Ao Gabinete Jurídico, como unidade orgânica, são atribuídas
competências apenas para «Acompanhar o andamento em tribunal de processos em
que seja parte a DGEMN» (artigo 11.°, n.º 1, alínea d), do Decreto Regulamentar
citado).
4 – Por outro lado, a Direcção‑Geral dos Edifícios e Monumentos
Nacionais é um serviço do Estado, com competências exclusivas em matéria de
obras de construção ou alteração de imóveis não classificados do Estado (artigo
3.º, n.º 2, alínea b), do Decreto‑Lei n.º 284/93, de 18 de Agosto).
5 – Accionar em acção decorrente de contrato de empreitada a
DGEMN, como o fez a autora, é o mesmo que accionar o Estado.
6 – Isto porque, na perspectiva organicista da concepção das
pessoas colectivas em direito público, é inegável que, não tendo o Estado
competências administrativas, mas sim atribuições, como poder político, é nos
respectivos órgãos e serviços, enquanto detentores de competências para a
prática de actos que há‑de radicar‑se como que uma extensão da personalidade e
capacidade judiciárias da pessoa colectiva pública.
7 – Já no contrato de empreitada causa de pedir da presente
acção o Estado – pese embora tenha personalidade jurídica – teve necessidade de
ir buscar a DGEMN, única com competência para o acto ao abrigo da sua lei
orgânica, fisicamente representada pelo seu Director‑Geral.
8 – Bem como em toda a fase de execução do contrato outorgado
foi a DGEMN que actuou e exerceu os direitos do dono da obra (Estado).
9 – E reconhecer que a personalidade e capacidade judiciárias
podem existir sem existir personalidade jurídica não pode repugnar no direito
público que para as acções chama o direito processual civil e este permite‑o –
artigos 5.º e 9.º do CPC.
10 – Aliás, como acima se reproduziu no ponto 3, a própria lei
admite que a DGEMN seja parte em processos em tribunal.
11 – Ou seja, parece à autora que o Estado e os seus órgãos ou
serviços com competências exclusivas se completam para produzir actos, contratar
e estar na execução desses contratos e, em juízo, responder por esses actos ou
contratos.
12 – Mas nem por isso deixa de neles estar, e sempre, o Estado
Português.
13 – A autora sabe que a matéria, com o entendimento da teoria
organicista das pessoas colectivas em direito público tal como exposta, vem
sendo matéria discutida e discutível, quer na doutrina quer na jurisprudência.
14 – Pelo que, se o Tribunal não procedeu à citação do Digno
Magistrado do Ministério Público, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, do CPC, por
a autora não ter expressamente referenciado como sujeito processual contra quem
propõe a sua acção o Estado representado pela Direcção‑Geral dos Edifícios e
Monumentos Nacionais, requere‑se que seja o mesmo entendido como erro técnico
desculpável e a assim ser entendida a identificação do sujeito processual réu,
ordenando o Meritíssimo Juiz a sua citação através do Ministério Público,
conforme se expõe no requerimento em resposta.”
Por despacho saneador de 15 de Julho de 2002
(fls. 216 a 218), proferido ao abrigo do artigo 510.º, n.º 1, alínea a), do CPC,
foi julgada procedente a excepção dilatória da falta de personalidade
judiciária da ré e esta absolvida da instância, porquanto:
“A presente acção ordinária foi interposta contra a
Direcção‑Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais.
Ora, como é sabido, a ré integra‑se na pessoa colectiva
Estado, mais propriamente, insere‑se na administração directa do Estado.
Ora, parafraseando os ensinamentos do Prof. Freitas do Amaral,
um dos principais caracteres específicos do Estado e da administração directa
consiste na personalidade jurídica una. Com efeito, apesar da multiplicidade
das atribuições, do pluralismo dos órgãos e dos serviços, e da divisão em
Ministérios e Direcções‑Gerais, o Estado mantém sempre uma personalidade
jurídica una. Todos os Ministérios e Direcções‑Gerais pertencem ao mesmo sujeito
de direito; não são sujeitos de direito distintos. Logo, são destituídos de
personalidade jurídica. Cada órgão do Estado, nomeadamente cada Direcção‑Geral,
vincula o Estado no seu todo, e não apenas a respectiva Direcção, não sendo
indiferente propor a acção contra o Estado ou seus Serviços conforme alega a
ora autora (cf. Curso de Direito Administrativo, vol. I, pág. 221).
Nessa medida, ex vi artigo 5.º, n.º 2, a contrario, do CPC, ao
dirigir a presente acção contra a Direcção‑Geral dos Edifícios e Monumentos
Nacionais, a ré mostra‑se desprovida de personalidade judiciária.
Por outro lado, estando em causa a verificação de pressupostos
processuais numa acção ordinária, não é aplicável o regime jurídico plasmado na
LPTA, designadamente, a previsão do artigo 40.º, n.º 1, alínea a), conforme
sugere a autora a fls. 212.
Ao invés, rege‑se pelas disposições do CPC. Ora, nos termos do
artigo 265.º, n.º 2, cabe apenas ao juiz, neste contexto, providenciar pelo
suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, sendo
certo que não é o caso da falta de personalidade judiciária.
Consequentemente, constituindo a falta de personalidade
judiciária uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, a mesma determina a
absolvição da instância, tudo nos termos dos artigos 288.º, n.º 1, alínea c), e
494.º, ambos do CPC.”
Inconformada com esta decisão, interpôs a ré
recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, suscitando, nas respectivas
alegações (fls. 223 a 245), além do mais, a questão da inconstitucionalidade,
por violação dos artigos 20.º e 268.º da Constituição da República Portuguesa
(CRP), da interpretação, imputada ao tribunal recorrido, dos artigos 265.º,
467.º e 508.º do CPC e 40.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos,
aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 267/85, de 16 de Julho (LPTA), “no sentido de que
não permitem, nas acções sobre contratos, a correcção do mero erro técnico de
identificação das partes”.
Ao recurso foi negado provimento por acórdão do
Supremo Tribunal Administrativo, de 29 de Janeiro de 2003, que, para tanto,
desenvolveu a seguinte argumentação:
“2.2.1. A sentença recorrida julgou a ré, Direcção‑Geral dos
Edifícios e Monumentos Nacionais carecida de personalidade judiciária na acção
ordinária contra ela proposta pela ora recorrente, com vista à efectivação de
responsabilidade civil emergente de contrato e, considerando ainda que o
referido pressuposto processual não era susceptível de sanação, absolveu a ré
da instância, nos termos dos artigos 288.º, n.º 1, alínea c), e 494.º do Código
de Processo Civil.
A autora, ora recorrente, discorda desta decisão, sustentando,
em síntese:
- A Direcção‑Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, na
medida em que é um órgão do Estado, tem personalidade judiciária, ao invés do
decidido;
- Mesmo que assim não se entendesse, o legislador permite a
sanação da falta de personalidade judiciária, sendo tal sanação permitida quando
for inteligível para o Tribunal - e para a outra parte - qual é a entidade com
personalidade judiciária que deve estar em juízo, atendendo aos diversos
elementos documentais e de alegação;
- No caso dos autos seria evidente que, em última instância, a
acção era dirigida à pessoa colectiva pública Estado, pelo que, «à luz dos
princípios da economia processual, da cooperação e do inquisitório, incumbia ao
Tribunal a quo regularizar a instância, chamando à acção a entidade com
personalidade judiciária, ou convidando a autora/recorrente para o fazer»;
- Ao omitir o comportamento devido, o Tribunal a quo violou os
artigos 8.º, 24.º e 265.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicáveis por
força do artigo 72.º da LPTA.
Assim não se entendendo, defende ainda:
- A autora recorrente instruiu a acção com todos os elementos
necessários à boa definição dos sujeitos da relação controvertida, pelo que se
revelaria desproporcional a decisão de pôr termo à acção «em face da
insignificância do erro técnico cometido», o qual deveria ter sido corrigido
oficiosamente ou por convite (despacho de aperfeiçoamento) formulado pelo
Tribunal a quo;
- Não o tendo feito, o Tribunal a quo teria violado os artigos
265.º, 467.º e 508.º do Código de Processo Civil ou então o artigo 40.º da LPTA.
Defende, ainda, por último, que, os artigos 265.º, 467.º e
508.º do Código de Processo Civil, bem como o artigo 40.º da LPTA,
interpretados – como o fez o Tribunal a quo – no sentido de não permitirem, nas
acções sobre contratos, a correcção de mero erro técnico de identificação das
partes, seriam inconstitucionais, por violação dos artigos 20.º e 268.º da
Constituição da República Portuguesa.
Não tem, todavia, razão.
2.2.2. A Direcção‑Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais é
um serviço central (serviço operacional) compreendido na estrutura geral do
Ministério do Equipamento Social (cf. Lei Orgânica do Ministério do
Equipamento Social, aprovada pelo Decreto‑Lei n.º 129/2000, de 13 de Julho, em
vigor à data da propositura da acção). Como tal, não tem personalidade
jurídica, antes se integra na orgânica da Administração directa do Estado, este
sim dotado de personalidade jurídica. Freitas do Amaral (Curso de Direito
Administrativo, vol. I, pág. 206), também citado na sentença recorrida, aponta
como um dos principais caracteres específicos do Estado e da sua administração
directa a personalidade jurídica una, por parte deste.
Escreve, com efeito, o referido autor (obra e local citados):
«apesar da multiplicidade das atribuições, do pluralismo dos órgãos e serviços,
e da divisão em Ministérios, o Estado mantém sempre uma personalidade jurídica
una. Todos os ministérios pertencem ao mesmo sujeito de direito, não são
sujeitos de direito distintos: os ministérios e as direcções‑gerais não têm
personalidade jurídica (sublinhado nosso). Cada órgão do Estado - cada Ministro,
cada director‑geral, cada governador civil, cada chefe de repartição -
vinculará o Estado no seu todo, e não apenas o seu Ministério e o seu serviço».
Adere‑se inteiramente a este ponto de vista, que, de resto, não
tem sido posto em causa pela jurisprudência nem pela restante doutrina.
Não tem, assim, razão a autora/recorrente quando defende a
existência de personalidade judiciária por parte da ré, baseando, em grande
medida, tal errada conclusão, um pouco incompreensivelmente, no apontado
carácter uno do Estado, o qual, como vimos na transcrição efectuada da obra do
Professor Freitas do Amaral, conduz precisamente à conclusão oposta: a de que só
o Estado e não os seus órgãos ou serviços, como é o caso da ré, detém
personalidade jurídica.
Conforme se extrai dos artigos 5.º, 6.º e 7.º do Código de
Processo Civil, fora dos casos em que existe personalidade jurídica (havendo
personalidade jurídica há também personalidade judiciária), só existe
personalidade judiciária, isto é, a susceptibilidade de ser parte, nos casos
previstos expressamente nos artigos 6.º e 7.º do Código de Processo Civil, onde
não se enquadra a situação dos autos.
Nem se argumente, como o faz a recorrente, com o previsto na
Lei de Processo nos Tribunais Administrativos em relação à propositura dos
recursos contenciosos e outros meios processuais aí regulados, designadamente
acções para reconhecimento de direito e processos de intimação, nos quais o
sujeito passivo em juízo é um órgão da Administração Pública e não o Estado.
Trata‑se, de facto, de situações processuais com
características inteiramente diversas das acções de responsabilidade civil
contratual ou extracontratual - que não interessa aqui desenvolver –, apenas
cabendo salientar que, em atenção aos interesses específicos desses meios
processuais, entendeu o legislador prescrever, em relação aos mesmos, normas
próprias reguladoras de legitimidade passiva (e, consequentemente, também de
personalidade judiciária ou susceptibilidade de ser parte).
Nas acções de responsabilidade civil da Administração Pública,
contratual ou extracontratual, aplicam‑se as regras e princípios do Código de
Processo Civil (artigo 72.º, n.º 1, da LPTA), sendo que, nos termos das
disposições conjugadas dos artigos 494.º, alínea c), 495.º e 288.º, n.º 1,
alínea c), do citado Código, a falta de personalidade judiciária é uma excepção
dilatória, de conhecimento oficioso, determinante da absolvição do réu da
instância, como bem considerou a sentença recorrida.
2.2.3. E também não assiste razão à recorrente quando sustenta
que a lei permite a sanação da falta de personalidade judiciária, designadamente
em casos como o dos autos, pelo que, «à luz dos princípios da economia
processual, da cooperação e do inquisitório», incumbiria «ao Tribunal a quo
regularizar a instância, chamando à acção a entidade com personalidade
judiciária ou convidando a autora/recorrente para o fazer» (fls. 244).
De facto:
Dispõe o artigo 265.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que
a recorrente aponta como violado a este propósito: «O juiz providenciará, mesmo
oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais
susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à
regularização da instância ou, quando estiver em causa alguma modificação
subjectiva da instância, convidando as partes a praticá‑los».
Ora, a falta de personalidade judiciária - com ressalva da
excepção expressamente prevista na lei (artigo 8.º do Código de Processo
Civil), quanto à falta de personalidade judiciária das sucursais, agências,
filiais, delegações ou representações, nas circunstâncias contempladas no
aludido artigo 8.º do Código de Processo Civil - é um pressuposto processual
insusceptível de sanação.
De facto, é unânime o ensinamento dos processualistas a este
respeito, por razões, de resto, que, respeitando à natureza própria do
pressuposto processual em análise, impedem que os princípios da economia
processual, da cooperação e do inquisitório, a que a recorrente faz apelo,
possam, no caso, permitir aquela sanação.
Assim, escreve, por exemplo, o Prof. Castro Mendes (Direito
Processual Civil, vol. II, págs. 13 e 14): «A personalidade judiciária ocupa um
lugar muito especial entre os pressupostos processuais (como a personalidade
jurídica entre os status): é o pressuposto dos restantes pressupostos
processuais subjectivos relativos às partes» (sublinhado nosso).
Com efeito, a legitimidade, por exemplo, ou a capacidade
judiciária são atributos das partes. As partes é que são legítimas ou
ilegítimas, capazes ou incapazes judiciariamente. Estes pressupostos, por seu
turno, pressupõem uma parte, de que são atributos e de que a susceptibilidade de
o ser funciona, num plano anterior, como pressuposto ainda.
Se falta a legitimidade, por exemplo, a instância trava‑se
entre o tribunal e duas partes, sendo uma (pelo menos) ilegítima. Se falta a
personalidade judiciária, não há parte: falta em rigor o ramo da instância em
que essa devia funcionar como sujeito.
Falta a instância, embora haja uma aparência de instância, que
chega para fundamentar os actos de processo que se pratiquem.
E, mais adiante (fls. 28), salienta o referido autor que, mesmo
a absolvição da instância levanta algumas dificuldades, num processo em que,
faltando a personalidade judiciária, não há verdadeiramente uma instância, mas
apenas uma aparência de instância. Só por virtude da tutela provisória da
aparência poderá, por exemplo, a entidade carecida de personalidade judiciária
ré defender-se ou ter representante que o faça.
«A falta de personalidade judiciária é insanável» escreve,
subsequentemente, o mesmo autor, conforme se deduz, a contrario sensu, do
artigo 23.º (de notar que não houve alterações relevantes, quanto ao aspecto em
causa, na nova redacção do artigo 23.º do Código de Processo Civil).
Também o Prof. Alberto dos Reis (Comentário ao Código de
Processo Civil Anotado, vol. 3.º, pág. 394) ensina: «Desde que o juiz apure que
o autor ou réu é destituído de personalidade judiciária, tem necessariamente de
absolver o réu da instância. A falta não pode sanar‑se.» (sublinhado nosso).
O mesmo entendimento revelam ter Manuel de Andrade (Noções
Elementares de Processo Civil, pág. 86), Anselmo de Castro (Direito Processual
Civil Declaratório, pág. 110), e, mais recentemente, Miguel Teixeira de Sousa
(Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª edição, pág. 140), que refere o dever
de intervenção do juiz no sentido da sanação da falta deste pressuposto, apenas
no já aludido caso do artigo 8.º do Código de Processo Civil, em que,
excepcionalmente, a mesma é sanável.
Convém, a propósito, distinguir os casos de sanação do vício de
cessação da causa do mesmo vício, ocorrida antes de o juiz declarar extinta a
instância, o que sucederá, por exemplo, quando a parte com personalidade
judiciária intervém espontaneamente no processo, contestando a acção, ou quando
a sociedade anónima irregular passa a regular, por, designadamente, serem
publicados os respectivos estatutos até então não publicados.
Só a sanação é proibida, já não a relevância de cessação da
causa do vício (cf. Anselmo de Castro, obra citada, pág. 110; Castro Mendes,
obra citada, págs. 29 e 30).
Na situação ora em análise, está em causa a possibilidade de
sanação que, como resulta do exposto, não é viável.
Cabe ainda dizer que não procede a argumentação em contrário da
recorrente, extraída das decisões deste Supremo Tribunal que admitiram a
regularização da instância, em casos em que foi demandada a Câmara Municipal
(órgão do Município) e não o Município (pessoa colectiva).
De facto, as situações não têm a identidade necessária para daí
se retirarem argumentos suficientemente sólidos a favor da tese defendida pela
recorrente.
Na verdade, concorrem aí circunstâncias - que não se verificam
no caso dos autos - susceptíveis de tornar compreensível essa orientação da
jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo, sintetizadas, de resto,
no trecho do acórdão de 21 de Junho de 2001, recurso n.º 47 402, que, por
elucidativo, se transcreve: «Todavia, embora seja formalmente incorrecto propor
a acção de responsabilidade contra a câmara, essa irregularidade, que emana do
concurso de uma antiga personalização dos “corpos administrativos” com uma
confusão, amplamente disseminada na linguagem corrente, do ente com o seu órgão
de maior visibilidade social, política e administrativa, e que se materializa
num erro muito difundido e quase pacificamente tolerado na prática judiciária,
não afecta a compreensão de que é sobre o município, enquanto centro autónomo de
direitos e obrigações e titular de património, que se quer fazer recair a
condenação, não altera a citação na pessoa do representante legal do município
para este efeito (em qualquer caso, o presidente da câmara, na dupla qualidade
de presidente do órgão colegial executivo e representante do município: artigo
53.º, n.º 1, alínea a), do Decreto‑Lei n.º 100/84) e a consequente formação da
vontade relativa à defesa dos interesses municipais, nem o regular
desenvolvimento do contraditório.»
Em caso similar ao dos autos, este Supremo Tribunal decidiu
pela confirmação da decisão recorrida, que havia absolvido a ré - entidade não
personalizada integrada na Administração directa do Estado - da instância, por
falta de personalidade judiciária (ver acórdão de 7 de Março de 2001, recurso
n.º 47 096).
Em face do exposto, impõe-se concluir pela insusceptibilidade
de sanação, no caso dos autos, da falta de personalidade judiciária da ré,
nomeadamente através das formas sugeridas pela recorrente nas suas alegações,
pelo que, ao não admitir aquela sanação, a sentença recorrida não incorreu em
qualquer violação de normas ou preceitos legais, designadamente, das apontadas
pela recorrente nas respectivas alegações.
2.2.4. Do que atrás se deixou referido já resulta, com
evidência, que também não procede a alegação da recorrente, segundo a qual se
revelaria «desproporcional a decisão de pôr termo à demanda em face da
insignificância do erro técnico descrito» (sic; fls. 244), o qual «deveria ter
sido corrigido oficiosamente ou por convite (despacho de aperfeiçoamento)
formulado pelo Tribunal a quo».
Com efeito, como se afigura claro, tendo a sentença impugnada
concluído, com acerto, que a acção foi proposta contra entidade desprovida de
personalidade judiciária e que a falta desse pressuposto processual era
insanável (cf. artigos 5.º a 8.º, 23.º e 265.º, n.º 2, do Código de Processo
Civil), determinando a absolvição da ré da instância, nos termos do preceituado
no artigo 288.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, não se vê como
conciliar esse entendimento com a consideração proposta pela recorrente de que
se trataria de «erro técnico insignificante», «passível de ser corrigido
oficiosamente ou a convite do Tribunal», por alegada aplicação do preceituado
nos artigos 265.º, 467.º e 508.º do Código de Processo Civil ou, então, do
artigo 40.º da LPTA (este último preceito, da LPTA, não diz respeito às acções
de responsabilidade civil, como já se viu).
Pelos mesmos motivos e atento nomeadamente o que se deixou
analisado quanto à importância do pressuposto processual da personalidade
judiciária, pressuposto de outros pressupostos processuais relativos às partes,
como ensina o Prof. Castro Mendes, não se mostra que o entendimento subjacente à
sentença recorrida «quanto à interpretação dos artigos 265.º, 467.º e 508.º do
CPC ou do artigo 40.º da LPTA» enferme de inconstitucionalidade, por violação
dos artigos 20.º e 268.º da CRP.
Na verdade, não se vê de que forma a aludida interpretação
possa violar o direito de acesso à tutela jurisdicional efectiva, consagrado nos
artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP - este último na versão citada pela
recorrente, que não é a vigente -, pois, independentemente do mais, tal tutela
supõe que as partes se conformem com as limitações decorrentes da lei ordinária,
designadamente das disposições imperativas do Código de Processo Civil, o que,
como se viu, não foi o caso.”
É contra este acórdão que vem interposto, pela
autora, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26
de Fevereiro (LTC), o presente recurso, referindo‑se no respectivo
requerimento de interposição (fls. 277 e 278):
“2. A recorrente pretende a apreciação da inconstitucionalidade
dos artigos 265.º, n.º 2, e 508.º do CPC, interpretados no sentido de não ser
permitido ao juiz corrigir, por convite ou oficiosamente, a petição inicial do
autor nos casos de mero erro técnico na identificação do réu, que foi
identificado pelo órgão e deveria ter sido pela pessoa colectiva pública.
3. No caso foi identificado como «Direcção‑Geral dos Edifícios
e Monumentos Nacionais» e deveria ter sido «o Estado Português representado
pela Direcção‑Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais».
4. Igualmente, a recorrente pretende a apreciação da
inconstitucionalidade do artigo 40.º da LPTA, interpretado no sentido de não
ser permitido ao juiz corrigir, por convite ou oficiosamente, a petição inicial
do autor nos casos de mero erro técnico na identificação do réu, que foi
identificado pelo órgão e deveria ter sido pela pessoa colectiva pública.
5. A recorrente entende que foram violados os artigos 20.º e
268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
6. Na verdade, direito à efectivação jurídica dos direitos e
interesses jurídicos é específica e constitucionalmente concretizado no que
toca ao cidadão na veste de administrado: a IV Revisão Constitucional garante
aos «administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou
interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento
desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos
que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de
actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares
adequadas» (artigo 268.º, n.º 4).
7. A recorrente suscitou a questão de inconstitucionalidade nas
suas alegações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo.”
Neste Tribunal Constitucional, a recorrente
apresentou alegações, que culminam com a formulação das seguintes conclusões:
“– A autora, ora recorrente, interpôs, à luz dos artigos 71.° e
seguintes da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, acção sobre
contratos contra a Direcção‑Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais.
– A DGEMN integra a pessoa colectiva Estado Português.
– A autora, ora recorrente, descreveu de modo completo a causa
de pedir que fundamenta os pedidos.
– Porém, ao proceder à identificação da ré, mencionou a DGEMN
ao invés da pessoa colectiva pública onde aquela Direcção‑Geral se integra (o
Estado Português).
– Quer isto dizer que identificou a parte, em vez do todo.
– Por esse facto foi a ré, Direcção‑Geral dos Edifícios e
Monumentos Nacionais, absolvida da instância com fundamento na sua falta de
personalidade judiciária por falta de personalidade jurídica.
– O julgador (quer de 1.ª Instância, quer de 2.ª Instância) não
procurou regularizar a instância ou convidar a autora a fazê‑lo.
– Entendeu o Tribunal de 1.ª Instância que não era aplicável ao
caso dos autos o disposto no artigo 40.º da Lei de Processo nos Tribunais
Administrativos.
– Tal entendimento viola o direito ao acesso à justiça e o seu
corolário, o direito a uma tutela jurisdicional efectiva, que determinam a
criação de condições para que as questões que são submetidas à apreciação da
jurisdição administrativa sejam objecto de um julgamento de mérito.
– Ao interpretar o artigo 40.º da LPTA no sentido de que não
permite, nas acções sobre contratos, a correcção do mero erro técnico de
identificação das partes violou‑se os dispositivos constitucionais, a saber, os
artigos 20.° e 268.° da CRP, que consagram os referidos direitos fundamentais.
– Chamados à colação os artigos 265.º, n.º 2, e 508.º do Código
de Processo Civil, o Supremo Tribunal Administrativo recusou também a
aplicação destes dispositivos por entender que não permitem a correcção do mero
erro técnico de identificação constante de petição inicial, que identificou a
parte pelo órgão quando o deveria ter sido pela pessoa colectiva pública.
– Os normativos referidos do CPC, interpretados no sentido
descrito, violam também a tutela jurisdicional efectiva constitucionalmente
garantida nos artigos 20.º e 268.º da CRP.
– Quer num caso, quer noutro, afigura‑se por demais
desproporcionada a sanção da «rejeição» da petição inicial com a consequência
implicada da «preclusão» dos direitos substantivos num caso de erro na
identificação da parte.
– A aplicação directa do artigo 268.º, n.º 4, da Constituição
implica a interpretação do direito ordinário em conformidade com a Constituição,
através, nomeadamente, da aplicação analógica de normas consagradoras de
princípios constitucionais e que consubstanciam uma protecção adequada de
direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares.
– Os artigos 265.°, n.° 2, e 508.° do CPC e o artigo 40.° da
LPTA, interpretados no sentido de que não permitem, nas acções sobre
contratos, a correcção do mero erro técnico de identificação das partes, são
inconstitucionais, por violação dos artigos 20.° e 268.º, n.º 4, da CRP.
Pelo exposto, pretende‑se que:
– sejam declarados inconstitucionais os artigos 265.°, n.º 2, e
508.° do CPC, quando interpretados no sentido de não ser permitido ao juiz
corrigir, por convite ou oficiosamente, a petição inicial do autor nos casos de
mero erro técnico na identificação do réu, que foi identificado pelo órgão e
deveria ter sido pela pessoa colectiva pública;
– seja declarado inconstitucional o artigo 40.º da LPTA quando
interpretado no sentido de não ser permitido ao juiz corrigir, por convite ou
oficiosamente, a petição inicial do autor nos casos de mero erro técnico na
identificação do réu, que foi identificado pelo órgão e deveria ter sido pela
pessoa colectiva pública.”
A recorrida Direcção‑Geral dos Edifícios e
Monumentos Nacionais não contra‑alegou.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Importa começar por definir, com precisão,
a questão de constitucionalidade colocada no presente recurso.
Nas alegações produzidas perante o Supremo
Tribunal Administrativo, a recorrente apresentou, escalonadamente, três linhas
de argumentação: em primeiro lugar, sustentou que a ré DGEMN detinha
personalidade judiciária, tendo a decisão então recorrida violado os artigos
71.º e 72.º da LPTA e 5.º a 8.º, 493.º e 494.º do CPC; depois, para a hipótese
de não vingar essa tese, defendeu que a falta de personalidade judiciária era,
no caso, sanável, tendo a decisão da 1.ª instância violado os artigos 8.º, 24.º
e 265.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis por força do artigo 72.º da LPTA; por fim,
para a hipótese de não acolhimento de tal tese, que o tribunal devia ter
corrigido, oficiosamente ou por convite à autora, o “erro técnico” consistente
em ter identificado, como ré, a DGEMN, quando deveria ter identificado como réu
o Estado, e que, ao não o fazer, violou “os artigos 265.º, 467.º e 508.º do CPC
ou, então, o artigo 40.º da LPTA”, e, neste contexto, suscitou a questão da
inconstitucionalidade dos “artigos 265.º, 467.º e 508.º do CPC e do artigo 40.º
da LPTA, interpretados – como o fez o Tribunal a quo – no sentido de que não
permitem, nas acções sobre contratos, a correcção do mero erro técnico de
identificação das partes”, “por violação dos artigos 20.º e 268.º da CRP”.
O acórdão ora recorrido – após desestimar as
primeiras duas linhas argumentativas da recorrente, considerando que a ré DGEFM
carecia de personalidade judiciária e que esta falta era insanável – concluiu
que tal insanabilidade determinava a absolvição da instância da ré, nos termos
do artigo 288.º, n.º 1, alínea c), do CPC, consequência insusceptível de ser
corrigida por aplicação do preceituado nos artigos 265.º, 467.º e 508.º do CPC
ou no artigo 40.º da LPTA (preceito este que nem sequer diz respeito às acções
de responsabilidade civil), sem que, com este entendimento, se violassem os
artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP, atendendo, por um lado, “à importância do
pressuposto processual da personalidade judiciária, «pressuposto de outros
pressupostos processuais relativos às partes»”, e, por outro lado, a que “o
direito de acesso à tutela jurisdicional efectiva (…) supõe que as partes se
conformem com as limitações decorrentes da lei ordinária, designadamente das
disposições imperativas do Código de Processo Civil, o que, como se viu, não
foi o caso”.
Quer no requerimento de interposição de recurso
para o Tribunal Constitucional, quer nas alegações aqui apresentadas, a
recorrente deixou de mencionar, como um dos preceitos que suportava a
interpretação normativa questionada, o artigo 467.º do CPC e precisou que, do
artigo 265.º, relevaria apenas o seu n.º 2 (do seguinte teor: “2. O juiz
providenciará, mesmo oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos
processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos
necessários à regularização da instância ou, quando estiver em causa alguma
modificação subjectiva da instância, convidando as partes a praticá‑los”).
Apesar de a recorrente continuar a aludir globalmente ao artigo 508.º,
entende‑se que, no contexto em que a questão vem colocada, só releva a alínea a)
do n.º 1 (do seguinte teor: “1. Findos os articulados, o juiz profere, sendo
caso disso, despacho destinado a: a) Providenciar pelo suprimento de excepções
dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 265.º”). Quanto ao artigo 40.º da
LPTA, apenas interessará a alínea a) do seu n.º 1 (do seguinte teor: “1. Sem
prejuízo dos demais casos de regularização da petição de recurso, esta pode ser
corrigida a convite do tribunal, até ser proferida decisão final, sempre que se
verifique: a) A errada identificação do autor do acto recorrido, salvo se o
erro for manifestamente indesculpável”), não constituindo impedimento à sua
inclusão no âmbito do recurso a afirmação, constante do acórdão recorrido, de
que este preceito, específico do recurso contencioso de anulação, é inaplicável
às acções de responsabilidade civil, pois o que, no fundo, a recorrente
contesta é a constitucionalidade dessa não extensão. Finalmente, a circunstância
de o acórdão recorrido não ter coonestado a qualificação como “erro meramente
técnico” da falta cometida pela recorrente não acarreta falta de coincidência
entre a dimensão normativa arguida de inconstitucional e a dimensão aplicada
nesse acórdão, pois essa adjectivação não integra, em rigor, a delimitação da
questão de constitucionalidade que se pretende ver apreciada.
Constitui, assim, objecto do presente recurso a
questão da constitucionalidade da interpretação normativa, extraída dos artigos
265.º, n.º 2, e 508.º, n.º 1, alínea a), do CPC e 40.º, n.º 1, alínea a), da
LPTA, segundo a qual não há lugar a correcção pelo tribunal, oficiosamente ou
mediante convite à parte, de petição inicial de acção de responsabilidade civil
intentada contra um órgão administrativo, quando o devia ter sido contra a
respectiva pessoa colectiva.
2.2. Como assinala Carlos Lopes do Rego (“Os
princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos
ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, em Estudos em
Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, Coimbra,
2003, págs. 835‑859), “a garantia da via judiciária – ínsita no artigo 20.º da
Constituição e a todos conferida para tutela e defesa dos direitos e interesses
legalmente protegidos – envolve, não apenas a atribuição aos interessados
legítimos do direito de acção judicial (...), mas também a garantia de que o
processo, uma vez iniciado, se deve subordinar a determinados princípios e
garantias fundamentais: os princípios da igualdade, do contraditório e (após a
revisão constitucional de 1997) a regra do «processo equitativo», expressamente
consagrada no n.º 4 daquele preceito constitucional”. O referido autor destaca
ainda o “princípio da funcionalidade e proporcionalidade dos ónus, cominações e
preclusões impostas pela lei de processo às partes”, o qual, no seu entender,
“pode fundar‑se cumulativamente no princípio da proporcionalidade das
restrições (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição) ao direito de acesso à
justiça, quer na própria regra do processo equitativo”. Da análise da
jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre esta garantia da via judiciária,
o autor citado extrai a proposição de que:
“(...) os regimes adjectivos que prescrevem requisitos de
natureza estritamente procedimental ou «formal» dos actos das partes – isto é,
conexionados, não propriamente com a formulação essencial das pretensões ou
impugnações dos litigantes, mas tão‑somente com o modo de apresentação ou
exposição dos respectivos conteúdos – devem:
a) Revelar‑se funcionalmente adequados aos fins do processo,
não traduzindo exigência puramente formal, arbitrariamente imposta, por
destituída de qualquer sentido útil e razoável quanto à disciplina processual;
b) Conformar‑se – no que respeita às consequências
desfavoráveis para a parte que as não acatou inteiramente – com o princípio da
proporcionalidade: desde logo, as exigências formais não podem impossibilitar
ou dificultar, de modo excessivo ou intolerável, a actuação procedimental
facultada ou imposta às partes; e as cominações ou preclusões que decorram de
uma falta da parte não podem revelar‑se totalmente desproporcionadas –
nomeadamente pelo seu carácter irremediável ou definitivo, impossibilitador de
qualquer ulterior suprimento – à gravidade e relevância, para os fins do
processo, da falta imputada à parte;
(...).”
O juízo de proporcionalidade a emitir neste
domínio tem, assim, de tomar em conta três vectores essenciais: (i) a
justificação da exigência processual em causa; (ii) a maior ou menor onerosidade
na sua satisfação por parte do interessado; e (iii) a gravidade das
consequências ligadas ao incumprimento do ónus.
No presente caso, é patente a necessidade de
ser chamada ao processo – e, por isso, de ser indicada como ré na acção – quem
detenha personalidade judiciária que a habilite a defender os direitos e
interesses legítimos que poderão ser afectados pela eventual procedência da
acção.
Depois, não se mostra de especial dificuldade o
cumprimento da exigência legal de correcta indicação da contra‑parte. É certo
que, com alguma frequência, no âmbito da justiça administrativa, se verificam
confusões entre a pessoa colectiva pública em causa e os seus órgãos, que a
jurisprudência administrativa sempre demonstrou compreensão por esses erros
quando estava em causa a menção da câmara municipal em vez do município ou
vice‑versa (cf., por todos, o acórdão do STA de 3 de Novembro de 2005, proc. n.º
710/05, em www.dgsi.pt/jsta) e que o novo Código de Processo nos Tribunais
Administrativos (CPTA), aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro, que
veio estabelecer que todas as acções (incluindo a “acção administrativa
especial”, correspondente ao anterior “recurso contencioso de anulação”) que
tenham por objecto a acção ou a omissão de uma entidade pública devem ser
intentadas contra a pessoa colectiva de direito público ou, no caso do Estado, o
Ministério a cujos órgãos seja imputado o acto jurídico impugnado ou sobre cujos
órgãos recaia o poder de praticar os actos jurídicos ou observar os
comportamentos pretendidos (artigo 10.º, n.º 2), prevê, no n.º 4 desse artigo
10.º, que se considera “regularmente proposta a acção quando na petição inicial
tenha sido indicado como parte demandada o órgão que praticou o acto impugnado
ou perante o qual tinha sido formulada a pretensão do interessado,
considerando‑se, nesse caso, a acção proposta contra a pessoa colectiva de
direito público ou, no caso do Estado, contra o ministério a que o órgão
pertence”. Porém, independentemente de esta solução legal poder ser considerada
“melhor direito”, daí não decorre necessariamente que outras soluções sejam de
reputar inconstitucionais.
Tudo dependerá, ao fim e ao cabo, da ponderação
sobre a razoabilidade da exigência do ónus de correcta identificação do réu na
acção e da consequência associada ao seu incumprimento. Ora, no presente caso,
em que se tratava de uma acção e não de um recurso contencioso (quanto a este, a
jurisprudência administrativa sempre entendeu que à rejeição do recurso
contencioso por erro indesculpável na identificação do autor do acto era
inaplicável o regime do artigo 289.º do CPC, que, nos casos de absolvição da
instância, consente a proposição de outra acção com o mesmo objecto,
mantendo‑se os efeitos derivados da proposição da primeira causa se a nova acção
for intentada dentro de 30 dias a contar do trânsito em julgado da sentença de
absolvição da instância – cf., entre outros, os acórdãos do STA de 26 de Janeiro
de 1989, proc. n.º 23 663, de 18 de Junho de 2003, proc. n.º 1246/02, de 8 de
Março de 2000, proc. n.º 41 670, e de 21 de Junho de 2000, proc. n.º 44 398, em
www.dgsi.pt/jsta), os efeitos da absolvição da instância não precludem
irremediavelmente a possibilidade de a autora ver reconhecido o direito que
reclama, uma vez que lhe assiste a possibilidade de intentar nova acção (cf.
acórdão do STA, de 17 de Janeiro de 2002, proc. n.º 47 480, no mesmo sítio).
Neste contexto – sendo certo que não está
constitucionalmente assegurado um pretenso direito ao convite para correcção de
quaisquer erros ou deficiências das peças processuais apresentadas pelas partes
–, não se pode considerar que a solução jurídica adoptada no acórdão recorrido
seja de tal modo desrazoável ou desproporcionada que se deva reputar violadora
da garantia da tutela jurisdicional efectiva ou do direito a um processo
equitativo.
Recorde‑se, por fim, que, no Acórdão n.º 499/98
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 40.º vol., p. 527, e
www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal Constitucional não julgou
inconstitucionais as normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 796.º do CPC, interpretados
no sentido de, faltando autor e réu à audiência de discussão e julgamento em
acção declarativa com processo sumaríssimo, não sendo a falta do autor
justificada pelo menos até à realização da diligência, deve absolver‑se o réu da
instância, atribuindo justamente especial relevância, para esse juízo de não
inconstitucionalidade, ao facto de “a absolvição da instância, não impedindo a
propositura de nova acção com o mesmo objecto, não afecta[r] definitivamente o
direito invocado pelo autor – ao contrário do que aconteceria para o réu se
houvesse que dar prevalência aos efeitos da sua falta (condenação no pedido) –,
razão por que não se [viu] também que a «norma» [ferisse], em termos
desproporcionados ou arbitrários, os interesses do memo autor”, concluindo‑se
pela não violação dos princípios constitucionais da igualdade e do acesso ao
direito.
3. Decisão
Em face do exposto, acorda‑se em:
a) Não julgar inconstitucional a norma,
extraída dos artigos 265.º, n.º 2, e 508.º, n.º 1, alínea a), do Código de
Processo Civil e 40.º, n.º 1, alínea a), da Lei de Processo nos Tribunais
Administrativos, segundo a qual não há lugar a correcção pelo tribunal,
oficiosamente ou mediante convite à parte, de petição inicial de acção de
responsabilidade civil intentada contra um órgão administrativo, quando o devia
ter sido contra a respectiva pessoa colectiva; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando‑se a taxa de
justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 8 de Março de 2007.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos