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Processo nº 66/06
 
 1ª Secção
 Relatora: Conselheira Maria João Antunes
 
  
 
  
 
  
 
  
 
  
 
  
 Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
 
  
 
  
 
  
 
  
 I. Relatório
 
  
 
 1. Nos presentes autos de reclamação, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em 
 que é reclamante A. e reclamado o Ministério Público, está em causa decisão de 
 não admissão de recurso para o Tribunal Constitucional, proferida por aquele 
 Tribunal, em 8 de Dezembro de 2005. 
 O ora reclamante havia interposto o recurso nos seguintes termos:
 
  
 
 «A., arguido nos autos, em epígrafe, notificado que foi da decisão desse Supremo 
 Tribunal de folhas…………….., vem dela interpor recurso para o Tribunal 
 Constitucional, ao abrigo dos artigos 70, n° 1, 72, n° 1, alínea b), e 75 da Lei 
 
 28/82, de 15 de Novembro, para obter a declaração de inconstitucionalidade das 
 normas dos artigos 296° n° 1, 297° nº1,alineas a) e f) e 30º, n° 2, do Código 
 Penal de 1982, no sentido em que foram aplicadas na decisão recorrida, por 
 violação do disposto no artigo 29° nºs. 1 e 5, da Constituição da República 
 Portuguesa.
 Isto porque
 
 1º
 ao condenar o recorrente como autor de “um crime de furto qualificado na forma 
 continuada” – com base em factos que, inquestionavelmente, integram à luz dos 
 dados actuais do ordenamento jurídico o chamado crime de burla informática– o 
 douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, violou clarissimamente o princípio 
 nullum crimen sine lege.
 
 2°
 fazendo, por alguma forma, retroagir – ainda que de forma ínvia – uma disposição 
 legal incriminatória surgida muitos anos depois.
 
 3º
 O simples facto de o legislador criminal ter sentido a necessidade de incriminar 
 tal conduta em momento posterior – fruto da percepção vivenciada de que há 
 movimentos contabilísticos, porventura os mais significativos, que não são 
 feitos com dinheiro físico mas antes através de simples teclas de computador – é 
 bem a prova de que tal conduta não se encontrava abrangida por qualquer 
 disposição legal específica.
 
 4º
 Ao sufragar – através do douto Acórdão proferido – o entendimento dos tribunais 
 de instância que apreciaram o caso, o Supremo Tribunal de Justiça cristalizou ou 
 tornou mais sólida uma perigosa concepção e aplicação das sanções 
 jurídico-criminais.
 
 5º
 E porque, como se escreveu no voto de vencido do Ilustre Conselheiro Carmona da 
 Mota, “o arguido, ao aceder ao suporte informático central da escrita comercial 
 da empresa bancária em que trabalhava - ... e ao falsificar (criando uns e 
 alterando outros e, mais precisamente, creditando contabilisticamente determinas 
 quantias a favor da sua empresa e debitando-as ao mesmo tempo, sem título 
 legítimo, ao banco) os respectivos “dados informáticos”, terá, simplesmente 
 
 “falsificado ou alterado documento em intenção de obter para si ou para outra 
 pessoa beneficio ilegítimo” (artigo 228.1.a do CP/82)”,
 
 6º
 tendo o recorrente sido já condenado, pelos mesmos exactos factos, pelo crime de 
 
 “furto qualificado na forma continuada, p. e p. no artigo 205,n° 1, e n°4, 
 alinea b) do Código Penal de 1982, Processo n° 1164/98.7JACRB, por sentença 
 transitada em julgado».
 
  
 
 2. Convidado a dar integral cumprimento ao disposto no artigo 75º-A da Lei de 
 Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), o 
 recorrente respondeu pela forma seguinte:
 
  
 
  
 
 «(…) o recurso de constitucionalidade que interpôs era ao abrigo das alíenas b) 
 e f) do n° 1 do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional;
 
 - as normas que pretendeu submeter ao juízo daquele Alto Tribunal foram as dos 
 artigos:
 
 * 296º, n°1,
 
 * 297°, n° 1, alíneas a) e f)
 
 * 30°, n°2, do Código Penal de 1982,
 como referiu no intróito do seu requerimento, assim dando cumprimento ao 
 disposto no nº 1 do art. 75°-A da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro;
 
 - os princípios e normas constitucionais que considerou violados pelas referidas 
 normas, com o sentido que lhes foi dado nas decisões das instâncias e, por 
 
 último, na decisão proferida por esse Supremo Tribunal, eram:
 
 * o principio nullum crimen sine lege (a que se fez referência expressa sub 1º);
 
 * o princípio ne bis in idem (a que se fez referência implícita sub 6°);
 
 * a norma do artigo 29°, n° 1, da Constituição;
 
 * a norma do artigo 29°, n° 5, da Constituição, 
 normas essas, ambas, identificadas no intróito do seu requerimento, assim se 
 dando cumprimento, parcial, ao disposto no n° 2 do art. 75°-A.
 O que o recorrente não fez foi identificar a peça processual em que 
 anteriormente suscitou tais questões de constitucionalidade, porque, reconhece, 
 ao contrário do que aconteceu nas alegações de recurso para esse Supremo 
 Tribunal de Justiça no âmbito do Proc. n° 2824/04, da 3ª Secção, não o fez 
 expressamente.
 Ainda assim, entende o recorrente que o recurso deve ser admitido.
 Em primeiro lugar, porque a conclusão n° 4 das suas alegações, incluída no 
 Relatório do Acórdão recorrido, ipsis verbis coloca claramente a questão da 
 violação do princípio ne bis in idem.
 Em segundo lugar, porque da matéria de tal conclusão não cuidou o Supremo 
 Tribunal de Justiça, quando a mais leve abordagem do problema o obrigaria ao seu 
 enquadramento constitucional e, por essa via, supriria a menos explícita (mas 
 não menos clara) suscitação da questão de constitucionalidade. O que o Supremo 
 Tribunal de Justiça fez foi discutir “a qualificação dos factos”, “saber se a 
 factualidade assente se deve enquadrar no tipo legal do crime de abuso de 
 confiança, como pretende o recorrente”. Não fez o que o recorrente também lhe 
 pediu: julgar se por esses factos não foi o recorrente já condenado. Por tal 
 omissão não deverá ser o recorrente penalizado.
 Em terceiro lugar, porque, muito embora não tendo identificado previamente essas 
 normas como das que pedem juízo do Tribunal Constitucional, o próprio Supremo 
 Tribunal de Justiça – mais propriamente o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro que 
 prolatou voto que verdadeiramente é de vencido – identificou tais normas e, 
 mercê do convite para cumprimento dos requisitos do art. 75°-A, o recorrente 
 pode inclui-las agora na sua pretensão. Como poderia, caso nenhuma norma tivesse 
 identificado antes, como podia ter sido entendido.
 São elas as normas dos artigos 117°, 1, c), 120°, 3 e 119°, 2 do Código Penal, 
 por violação do artigo 29° n° 4 da Constituição, no entendimento de que é 
 possível aplicar uma pena de prisão efectiva passados mais de 10,5 anos sobre a 
 prática de um crime para o qual há um prazo prescricional de 7,5 anos e que 
 constituem, como relevou a declaração de voto, uma verdadeira decisão-surpresa 
 que dispensa o ónus de suscitação anterior por parte do recorrente, como é 
 jurisprudência do Tribunal Constitucional».
 
  
 
 3. Foi então proferida a decisão agora reclamada, com o seguinte teor:
 
  
 
 «Não admito o recurso para o Tribunal Constitucional, dado que o arguido, como 
 agora claramente se constata através do requerimento que antecede, não suscitou 
 anteriormente a questão da conformidade constitucional das normas agora 
 invocadas como violadas na interpretação que lhes foi dada e que já resultava 
 das instâncias.
 O recorrente foi acusado por crime de furto e foi condenado por esse crime, não 
 tendo levantado a questão da inconstitucionalidade da interpretação das normas 
 do Código Penal com base nas quais foi acusado e condenado.
 Não foi colhido de surpresa com a solução que foi dada ao caso. E ter invocado a 
 proibição decorrente do princípio “ne bis in idem” não é de maneira alguma 
 suscitar qualquer inconstitucionalidade subjacente».
 
  
 
 4. Neste Tribunal foram os autos com vista ao Ministério Público, que se 
 pronunciou no seguinte sentido:
 
  
 
 «A presente reclamação é manifestamente infundada. Na verdade, o recorrente não 
 suscitou – podendo obviamente tê-lo feito – durante o processo e em termos 
 processualmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, 
 susceptível de servir de base ao recurso interposto, cujos pressupostos 
 ostensivamente se não verificam».
 
  
 
  
 Dispensados os vistos, cumpre decidir.
 
  
 II. Fundamentação
 A presente reclamação tem por objecto despacho do Supremo Tribunal de Justiça 
 que não admitiu recurso para este Tribunal. Desde já se adianta que, considerado 
 o próprio teor do requerimento de interposição de recurso, completado com a 
 resposta ao convite ao respectivo aperfeiçoamento, é de acompanhar a conclusão a 
 que chegou aquele Tribunal.
 Antes de mais, importa assinalar que, considerado o teor da alínea f) do nº 1 do 
 artigo 70º da LTC e os artigos de direito ordinário mencionados pelo reclamante, 
 carece de qualquer fundamento a indicação de que o recurso foi interposto – 
 também – ao abrigo desta alínea.
 No que respeita ao recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 
 
 70º da LTC, estabelece, para além do mais, o artigo 75º-A, nº 1, da mesma Lei 
 que o recurso para o Tribunal Constitucional se interpõe por meio de 
 requerimento, no qual se indique a norma cuja inconstitucionalidade se pretende 
 que o Tribunal aprecie (nº 1). Ora, quanto à indicação das normas, resulta do 
 teor do Relatório (pontos 1. e 2.) que, mesmo após o convite formulado, ao 
 abrigo do disposto no nº 5 do artigo 75º-A da LTC, o recorrente não chegou a 
 enunciar qualquer dimensão normativa susceptível de apreciação pelo Tribunal 
 Constitucional, no âmbito do recurso previsto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), 
 da Constituição da República Portuguesa e 70º, nº 1, alínea b), da LTC.
 De facto, “colocar uma questão de constitucionalidade normativa, em termos de 
 poder ser objecto do recurso previsto na alínea b) do nº1 do art.70º da LTC, não 
 
 é apenas afirmar que um determinado preceito, na sua aplicação a uma situação 
 concreta que se descreve, é inconstitucional (...). Colocar verdadeiramente uma 
 questão de constitucionalidade reportada a um determinado sentido normativo de 
 um preceito é, muito mais do que isso, identificar esse sentido normativo que se 
 considera inconstitucional – é (...) enunciar um critério normativo susceptível 
 de generalização” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 501/04, não publicado).
 Quer na versão apresentada no requerimento de interposição de recurso, quer na 
 que apresentou na sequência do convite formulado, o recorrente não chega a 
 enunciar um critério normativo. Ora, “(…) quando se pretenda questionar a 
 constitucionalidade de uma dada interpretação normativa, é indispensável que a 
 parte identifique expressamente essa interpretação ou dimensão normativa, em 
 termos de o Tribunal, no caso de a vir a julgar inconstitucional, a poder 
 enunciar na decisão, de modo a que os respectivos destinatários e os operadores 
 do direito em geral fiquem a saber que essa norma não pode ser aplicada com tal 
 sentido (…).
 Não é, deste modo, como vem reiteradamente decidindo o Tribunal Constitucional, 
 forma idónea e adequada de suscitar uma questão de inconstitucionalidade 
 normativa a simples invocação de que seria inconstitucional (…) certa ou certas 
 normas legais na interpretação que a decisão das instâncias lhes conferiu, não 
 suficientemente definida ou precisada pelo recorrente (…), cabendo sempre à 
 parte que pretende suscitar adequadamente uma questão de inconstitucionalidade 
 normativa o ónus de especificar qual é, no seu entendimento, o concreto sentido 
 com que tal norma ou normas foram realmente tomadas no caso concreto pela 
 decisão que se pretende impugnar perante o Tribunal Constitucional” (Carlos 
 Lopes do Rego, “O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta da 
 constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal 
 Constitucional”, Jurisprudência Constitucional, nº 3, p. 8).
 Não tendo o recorrente identificado um critério normativo susceptível de 
 generalização – ou seja, uma norma sindicável pelo Tribunal Constitucional – 
 importa concluir pelo não cumprimento dos ónus impostos pelos nºs 1 e 2 do 
 artigo 75º-A da LTC. Como este Tribunal tem vindo a entender, “o cumprimento 
 destes ónus não representa simples observância do dever de colaboração das 
 partes com o Tribunal; constitui, antes, o preenchimento de requisitos formais 
 essenciais ao conhecimento do objecto do recurso” (cf. o Acórdão nº 200/97, não 
 publicado, e, entre outros, o Acórdão nº 462/94, Diário da República, II Série, 
 de 21 de Novembro de 1994, o Acórdão nº 243/97, Acórdãos do Tribunal 
 Constitucional, vol. 36º, p. 609, os Acórdãos nºs 137/99, 207/2000 e 382/2000, 
 não publicados). E daí que a LTC faça corresponder à não satisfação dos 
 requisitos do artigo 75º-A o indeferimento do requerimento de interposição de 
 recurso para o Tribunal Constitucional (artigo 76º, nº 2) e a prolação de 
 decisão sumária (artigo 78º-A, nº 2). 
 Por outro lado, como bem assinalam a decisão reclamada e o Ministério Público 
 neste Tribunal, não foi, de forma alguma, suscitada qualquer questão de 
 inconstitucionalidade normativa, durante o processo, de modo processualmente 
 adequado perante o tribunal recorrido, em termos de este estar obrigado a dela 
 conhecer, tal como dispõem os artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 2, da LTC 
 
 (cfr. fl. 23 dos autos).
 
  
 Assim, como bem se decidiu no despacho reclamado, o recurso não pode ser 
 admitido.
 
  
 III. Decisão
 
  
 Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
 Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de 
 conta.
 
  
 Lisboa, 8 de Fevereiro de 2006
 
  
 Maria João Antunes
 Rui Manuel Moura Ramos
 Artur Maurício