Imprimir acórdão
Processo nº 511/94 ACÓRDÃO Nº 117/96
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- A, identificado nos autos, arguido em processo de inquérito a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Moura, interpôs recurso do despacho de 7 de Janeiro de 1993 do juiz de instrução criminal, na parte em que desatendeu a arguição de nulidade decorrente da não confiança do processo ao seu advogado constituído, considerando o disposto no artigo 89º, nº
3, do Código de Processo Penal (CPP).
Defende, nomeadamente, que 'o artº 89º do CPP, quando lido e aplicado no sentido de que, no prazo a que alude o artº 287º do mesmo diploma, não é facultado ao arguido, através do defensor (advogado) constituído, o direito à confiança do processo para exame no seu (dele, defensor) escritório, viola os princípios constitucionais de que 'o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa' e de que 'tem estrutura acusatória', princípios que têm forma no artº 32º da Constituição da República Portuguesa'.
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 18 de Outubro de 1994, negou provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido.
Ponderou-se, nomeadamente, na fundamentação respectiva:
'Como resulta do disposto nos nºs. 1 e 2 do artº 89º do Código de Processo Penal, tendo o Ministério Público deduzido acusação o arguido pode consultar o processo na secretaria e obter os elementos do mesmo, por cópia, extracto ou certidão, que interessem à abertura da instrução que venha a requerer.
Assim, os defensores dos arguidos podem, livremente, nessa fase, tomar completo conhecimento do conteúdo do processo na secretaria do tribunal e obter, para ulterior análise detalhada, reprodução de peças do processo. Deste modo está-lhes facultada a ampla defesa dos direitos e interesses dos arguidos que representam.
A limitação que a lei estabelece quanto ao local do exame - a secretaria e não o escritório do advogado - não cerceia a defesa, dada a possibilidade de consulta do processo e de utilização de cópias das peças que interessam à defesa. Tal limitação apenas releva no aspecto da menor comodidade que nalguns casos representa para o advogado a impossibilidade de consultar o processo no escritório, o que não se traduz numa redução do direito de defesa do arguido.
Por outro lado, a não consagração legal do direito à confiança do processo no escritório do defensor fora dos casos previstos no nº 3 do artº 89º, não viola o princípio da igualdade de armas que decorre da estrutura acusatória do processo criminal, pois no que concerne à consulta do processo o arguido não se encontra numa situação de desfavor em relação à acusação. O Dr. Maia Gonçalves também assim o entende ao referir no Código de Processo Penal Anotado, 6ª ed., pg. 192, que o caso de acesso ao processo regulado no nº 1 do artº 89º é orientado no sentido estritamente necessário para garantir o princípio da igualdade de armas entre todas as partes processuais.'
E, mais adiante, a rematar:
'Em conclusão: ao interpretar-se e aplicar-se o artº 89º nº 1 do Código de Processo Penal no sentido de não ser autorizada a confiança do processo no decurso do prazo para ser requerida a abertura da instrução, não se ofende qualquer direito ou garantia de defesa dos arguidos previstos na Constituição.
Não ocorre assim a alegada violação do artº 32º desse diploma, pelo que o despacho recorrido não merece reparo.
No sentido que se perfilha pronunciou-se o Ac. do STJ de 7/6/89, citado pelo Dr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 6ª ed., pg.
193.' (fls. 67-68).
2.- Do citado acórdão da Relação interpôs o arguido recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo que se aprecie 'a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 89º do Código de Processo Penal na medida em que, e mais precisamente no seu nº 3, nega, no decurso do prazo previsto no nº 1 do artigo 287º do mesmo diploma, o direito por parte do advogado-defensor constituído à confiança do processo para exame fora da secretaria'.
Entende, para o efeito, que assim se violam 'os princípios constitucionais de que o processo criminal tem que assegurar todas as garantias de defesa, o do direito de assistência por defensor em todos os actos e fases do processo, o da estrutura acusatória do processo e do princípio do contraditório que têm expressão mormente nos nºs. 1, 2, 3 e 5 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa'
Recebido o recurso, alegou oportunamente o recorrente tendo concluído do seguinte modo:
'a) Quando o nº 1 do artº 32º da Constituição assegura, no processo criminal, todas as garantias de defesa, engloba todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação e, dada a radical desigualdade material de partida entre a acusação (normalmente apoiada no poder institucional do Estado) e a defesa, , só a compensação desta, mediante específicas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas (do sumário do Ac. do T.C. citado) [entende-sa, acórdão nº
150/87, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1987].
b) Estando o acusador beneficiado face ao acusado, por força dos meios técnicos e humanos de que dispõe, do acesso facilitado ao processo, enfim, por força do seu especial estatuto, deve a lei compensar o arguido com uns quantos meios, sem o apoio dos quais não há um processo acusatório, nem sequer processo leal, que é pressuposto indispensável de uma correcta administração de justiça (do sumário do Ac. do T.C. citado).
c) Um desses meios - aliás com tradição no ordenamento jurídico-processual português - é o da confiança do processo para exame, por parte do defensor, fora da secretaria (mormente no seu escritório).
d) Não compete ao Tribunal decidir sobre quais os meios que o arguido e seu defensor deve utilizar ou privilegiar, porque se trata de matéria de exclusivo âmbito do direito de defesa, pelo que se esta entender útil ou necessário o recurso ao instituto da confiança não lhe pode ele ser denegado.
e) O regime do artº 32º da C.R.P. é aplicável directamente, vinculando entidades públicas e privadas - e mormente os Tribunais - por força do artº 18º do mesmo diploma fundamental.
f) O artº 89º do C.P.P., quando lido e aplicado no sentido de que, no prazo a que alude o artº 287º do mesmo diploma, não é facultada ao arguido, através do defensor (advogado) constituído, o direito à confiança do processo para exame no seu (dele, defensor) escritório, viola os princípios constitucionais de que 'o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa' e de que 'tem estrutura acusatória', princípios que têm forma no artº
32º da Constituição da República Portuguesa.
g) Tais princípios deverão prevalecer sobre os interesses da celeridade ou da eficiência ou da comodidade para os mais agentes ou intervenientes processuais, não podendo a sua aplicação ser recusada pelo facto de a lei ordinária não ter previsto soluções idóneas que salvaguardem estes
últimos interesses sem prejuízo daqueles princípios.
h) O artº 89º do C.P.P. na medida em que nega ao arguido o direito de, através do seu defensor, confiança do processo no prazo do artº
287º, é inconstitucional.'
Contra-alegando o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, na sequência, aliás, do posicionamento assumido pelo Ministério Público ao longo dos autos, pronunciou-se no sentido de se negar provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido.
Segundo a tese que defende, a norma dos nºs. 1 e 3 do artigo 89º do CPP, na parte em que, para efeitos de preparação da sua defesa, nega ao arguido o direito a examinar o processo fora da secretaria, no decurso do prazo previsto no nº 1 do artigo 287º do mesmo Código, para requerer a abertura de instrução, não viola o disposto nos nºs. 1, 2, 3 ou 5 do artigo
32º da CR, nem o princípio da igualdade de armas ou qualquer outro princípio ou norma constitucional.
Correram-se os vistos legais, cumprindo agora, apreciar e decidir.
II
1.- O artigo 89º do CPP dispõe sobre 'a consulta de auto e obtenção de certidão por sujeitos processuais'.
Como observa o Ministério Público e se colhe facilmente da leitura do preceito, nem o nº 2 - aplicável na hipótese de não haver sido ainda deduzida acusação, que não é o caso sub judicio - nem o nº 4
- respeitante à falta de restituição do processo - têm alguma coisa a ver com o presente recurso.
Com este apenas se relacionam o nº 1, que regula o acesso aos autos dos intervenientes processuais para efeitos de preparação da acusação e da defesa, e o nº 3, que estabelece o regime de exame do processo fora da secretaria do tribunal.
Dispõem, com efeito, os nºs. 1 e 3 do artigo 89º:
'1.- Para além da entidade que dirigir o processo, do Ministério Público e daqueles que nele intervierem como auxiliares, o arguido, o assistente e as partes civis podem ter acesso a auto, para consulta, na secretaria ou noutro local onde estiver a ser realizada qualquer diligência, bem como obter cópias, extractos e certidões autorizados por despacho, ou independentemente dele para efeito de prepararem a acusação e a defesa dentro dos prazos para tal estipulados pela lei.
-----------------------------------
3.- As pessoas mencionadas no nº 1 têm, relativamente a processos findos, àqueles em que não puder ou já não puder ter lugar a instrução e àqueles em que tiver havido já decisão instrutória, direito a examiná-los gratuitamente fora da secretaria, desde que o requeiram à autoridade judiciária competente e esta, fixando prazo para tal, autorize a confiança do processo.
---------------------------------'.
Considera-se, assim, delimitado o objecto do recurso à norma dos nºs. 1 e 3 do artigo 89º do CPP, na parte em que, para efeitos de preparação da sua defesa, nega ao arguido o direito a examinar o processo fora da secretaria, no decurso do prazo, previsto no artigo 287º, nº 1, do mesmo Código, para requerer a abertura da instrução.
2.- De acordo com a decisão recorrida [aliás já parcialmente publicada, na Colectânea de Jurisprudência, ano XIX (1994), tomo IV, pág. 287 e seg.] o regime do artigo 89º do CPP permite, na fase processual anterior à abertura da instrução, o livre acesso dos defensores dos arguidos ao conteúdo dos autos, na secretaria do tribunal e à obtenção de cópia das peças processuais que lhes interessem, para ulterior e, porventura, mais cuidada análise. A limitação legalmente estabelecida quanto ao local do exame, impedindo a realização deste fora dos locais no preceito designados, não cerceia a defesa (no entendimento da Relação) dada a possibilidade de consulta e da utilização das cópias, traduzindo-se, quando muito, em menor comodidade para o consultante.
Adiante-se, desde já, não se reconhecer, numa perspectiva jurídico-constitucional, que a opção do legislador afronte as garantias de defesa a que globalmente se reporta o nº 1 do artigo 32º da CR, mormente de modo a afectar a estrutura acusatória do processo criminal ou quaisquer normas ou princípios de matriz constitucional, caso do princípio da igualdade de armas, insistentemente convocado pelo recorrente.
2.1.- Antes de mais, cumpre ponderar que, após a notificação da acusação e durante o prazo para requerer a abertura da instrução, o arguido (ou o seu defensor) tem acesso livre e irrestrito aos autos de modo a preparar adequadamente a sua defesa, podendo consultá-los e obter cópias, extractos e/ou certidões de quaisquer peças que os integrem. A restrição feita quanto ao local da consulta, que, mediante o mecanismo da confiança do processo, deixa de se verificar nos casos previstos no nº 3 do mesmo artigo 89º (processos findos, casos em que não pode ou já não pode haver instrução e aqueles em que já teve lugar decisão instrutória) compreende-se facil e naturalmente: a disponibilidade do processo nesta fase não é total e não pode abdicar da necessidade de compatibilizar os vários interesses em jogo, nomeadamente a organização da defesa quando haja pluralidade de arguidos, com eventual sobreposição de prazos.
2.2.- Por seu turno, a normatividade da fórmula do artigo 32º, nº 1, da CR, na sua dimensão de 'cláusula geral', de modo a englobar 'todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação' (na expressão de Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, pág.
2020) não é posta em crise - como o não são as garantias explicitadas nas demais normas do preceito ou quaisquer outras - pelo facto de o legislador ter inviabilizado - compreensivelmente como vimos - a consulta dos autos pelo defensor do arguido em regime de confiança, no decurso do prazo fixado no artigo
287º do CPP para requerer a abertura da instrução.
O critério acolhido pelo artigo 89º do CPP não afecta, na verdade, a organização da defesa por parte do arguido nem a teleologia do texto constitucional, orientada no sentido de proporcionar à defesa a discussão eficaz da matéria probatória que integra a acusação (cfr., entre outros, o acórdão deste Tribunal nº.220/89, publicado no Diário da República, I Série, de 21 de Março de 1989). Por um lado, como se sublinhou oportunamente, o acesso é irrestrito e, por outro lado, não se vê como possa ser afectada a possibilidade de o arguido discordar da acusação que se lhe faz, de modo a alinhar as razões, de facto e de direito, que pretende assistirem-lhe, a indicar os actos de instrução que pretenderia ver realizados, os meios de prova que, em seu entender, não tenham sido considerados no inquérito e os factos que, através de uns e de outros, espera provar (cfr. o nº 3 do artigo 287º do CPP) - o que aproveitará ao juiz de instrução, para orientação desta (nº 4 do artigo 288º e nº 1 do artigo 291º do CPP). De resto, em tudo participarão arguido e seu defensor (artigo 289º do mesmo Código), sem prejuízo de, já no decurso do debate instrutório, poder este último requerer toda uma série de medidas que se prendam com o pleno exercício do direito de defesa, como, aliás, resulta do artigo 302º do CPP e constitui jurisprudência pacífica, nomeadamente a nível deste Tribunal (cfr. o acórdão nº 377/94, publicado no Diário da República, II Série, de 4 de Novembro de 1994).
Também - e ao contrário do que defende o arguido
- se entende não afectar a norma questionada a estrutura acusatória do processo criminal nem tão pouco perturba a reclamada igualdade de armas, considerada esta no contexto global da acusação e da defesa e na dialéctica subjacente.
A 'orientação para a defesa' exigirá, a esta luz -
e assim se ponderou no acórdão nº 150/87, invocado pelo recorrente - dever atribuir-se ao arguido 'aqueles meios legais de intervenção que compensem o desiquilíbrio em que naturalmente se encontra' face à acusação. Escreveu-se, a este propósito, no acórdão nº 132/92 (publicado no Diário citado, II Série, de
24 de Julho de 1992) que o princípio da igualdade de armas 'é um princípio que opera essencialmente no âmbito do direito de defesa, no âmbito da preocupação de não colocar o arguido em desvantagem relativamente aos meios processuais de que dispõe a acusação com vista à formação da convicção do tribunal'.
O certo é que, e independentemente do que a respeito desse princípio e da retórica que o envolve se possa entender, não são de acolher normas processuais ou procedimentos delas aplicativos que encurtem inadmissivelmente as possibilidades de defesa do arguido (cfr., a propósito, os acórdãos nºs. 61/88, 393/89, 172/92 e 186/92, no Diário da República, II Série, de 20 de Agosto de 1988, 14 de Setembro de 1989 e 18 de Setembro de 1992 - os dois últimos - respectivamente).
Ou seja, as garantias de defesa aludidas no artigo
32º, nº 1, da CR hão-se ser referenciadas às garantias necessárias e adequadas para um eficaz exercício do direito de defesa, interpretado à luz do princípio da proporcionalidade (cfr. acórdão nº 133/92, publicado no Diário citado, II Série, de 27 de Julho de 1992).
3.- No caso sub judicio, entende-se, como já se salientou, não estarem em causa as garantias de defesa ou ainda o princípio da estrutura acusatória do processo em articulação com o princípio do contraditório, nem tão pouco o direito de assistência por defensor em todos os actos do processo.
Como já se ponderou neste Tribunal, no acórdão nº
124/92 (no Diário citado, II Série, de 21 de Agosto de 1992) as garantias de defesa constitucionalmente asseguradas ao arguido não resultam diminuídas 'por forma desproporcionada, excessiva e desadequada, quando se tiver em atenção a fase processual a que a norma respeita, sendo certo que, em qualquer caso, o processo podia estar na disponibilidade do arguido em termos de o consultar com total liberdade e independência.
Não existe assim, em bom rigor, uma dialéctica absoluta em termos de acusação/defesa, antes se devendo falar na concessão ao arguido de meios idóneos e suficientes que assegurem uma defesa efectiva dos seus direitos.
Não interessa tanto contrapor, numa rígida postura de oposição dialéctica, as posições relativas da defesa e da acusação, importando mais averiguar se os termos e condições em que a defesa tem acesso , nesta fase processual, ao conteúdo do processo, lhe assegura os meios e as garantias necessárias a um exercício do direito de defesa efectiva e eficaz, o que manifestamente se verifica'.
As considerações então expendidas, relativas à interpretação de norma do Código de Processo Penal de 1929 (§ 2º do artigo 70º) mostram-se inteiramente relevantes no caso vertente, não se vendo motivo válido para nos afastarmos da sua doutrina. Com efeito, o problema concreto não é tanto - ou não é - o da paridade no esquema dialéctico constitucionalmente exigido entre a acusação e a defesa, mas sim, essencialmente, o do efectivo e concreto exercício do direito de defesa, acompanhado das garantias que lhe assistem por exigência constitucional. E, à luz da doutrina emanada dessa jurisprudência e do princípio da proporcionalidade não se tem por inconstitucional, nomeadamente por violação do artigo 32º citado, a interpretação dada pelo acórdão recorrido à norma contida no artigo 89º do Código de Processo Penal, na medida em que, no seu nº 3, se nega, no decurso do prazo previsto no nº 1 do artigo 287º do mesmo diploma, o direito à confiança do processo para exame fora dos locais nele mencionados, por parte do advogado constituído defensor do arguido nos autos. III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida na parte impugnada.
Lisboa, 6 de Fevereiro de 1996
Ass) Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Dinis Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa