Imprimir acórdão
Processo nº 1107/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é
recorrente A. e são recorridos o Ministério Público e B., foi interposto o
presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo
70º, nº 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional (LTC).
2. Por decisão sumária de 6 de Fevereiro de 2007, o Tribunal Constitucional
decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso, com os seguintes
fundamentos:
«Considerado o tipo de recurso interposto – o previsto na alínea b) do nº 1 do
artigo 70º da LTC – e o disposto no artigo 75º-A, nº 1, da mesma lei,
verifica-se que o recorrente continua, após notificação para o efeito previsto
no nº 6 do artigo 75º-A, a não indicar, com precisão, um dos requisitos do nº 1
deste artigo. Tal como no requerimento de interposição de recurso para este
Tribunal (supra, ponto 1. do Relatório), o recorrente não indica, agora, qual a
norma (ou quais as normas) cuja inconstitucionalidade pretende que este Tribunal
aprecie.
Como não podia dar-se como cumprido o ónus decorrente do disposto no nº 1, parte
final, do artigo 75º-A da LTC, quando se afirmou estar em causa o artigo 412º,
nº 2 e 3 do Código do Processo Penal, na medida em que (…) a interpretação que
do mesmo fez o ilustre Supremo Tribunal de Justiça (…) viola o preceituado no
artigo 32º da Constituição da República, e que o mesmo Supremo Tribunal atenta
(…) contra as normas constitucionalmente consagradas (artigos 20º e 18º da
Constituição da República) ao interpretar na forma em que o faz e aplica à
situação concreta, o disposto nos artigos 71º a 73º do Código Penal, o
recorrente foi convidado a precisar qual a norma ou quais as normas cuja
inconstitucionalidade pretendia ver apreciadas por este Tribunal (fl. 400). Isto
porque, quando o recorrente se limita a remeter para a interpretação que o
tribunal recorrido deu a determinado preceito legal, demite-se de definir o
objecto do recurso, “encarregando o Tribunal de definir a norma e, por esta via,
o próprio objecto do recurso que lhe cumpre apreciar. O que, como é sabido, é
inadmissível”, já que “só a ele a lei confiou a faculdade de circunscrever o
âmbito do próprio recurso” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 58/05, não
publicado).
Porém, na resposta ao convite o recorrente não precisou a interpretação
normativa para a qual havia remetido, afirmando, agora, que as normas que
pretende ver apreciadas são:
«os Art. 412.°, n.°s 2 e 3 do Código Processo Penal e os Art.°s 71.°, 72.° n.°s
1 e alínea d) do n.° 2 e 73.° n.° 2 do Código Penal».
O recorrente não satisfez, pois, um dos requisitos do nº 1 do artigo 75º-A da
LTC. Como este Tribunal tem vindo a entender, “o cumprimento destes ónus [os
decorrentes dos nºs 1, 2, 3 e 4 deste artigo] não representa simples observância
do dever de colaboração das partes com o Tribunal; constitui, antes, o
preenchimento de requisitos formais essenciais ao conhecimento do objecto do
recurso” (cf. o Acórdão nº 200/97, não publicado, e, entre outros, o Acórdão nº
462/94, Diário da República, II Série, de 21 de Novembro de 1994, o Acórdão nº
243/97, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 36º, p. 609, e os Acórdãos nºs
137/99, 207/2000 e 382/2000, não publicados). E daí que a LTC faça corresponder
à não satisfação dos requisitos do artigo 75º-A, mesmo após o suprimento
previsto no seu nº 6, a consequência do não conhecimento do objecto do recurso
(artigo 78º-A, nº 2, da LTC)».
3. Desta decisão reclama agora o recorrente para a conferência, ao abrigo do
disposto no nº 3 do artigo 78º-A da LTC, com os fundamentos seguintes:
«A) No requerimento de interposição de recurso, o Recorrente havia indicado
concretamente as normas que pretendia ver apreciadas bem como as normas da Lei
Fundamental que considera violadas;
B) E ainda, ali explicitou o sentido que em seu entender a aplicação das normas
a apreciar manifestavam a invocada inconstitucionalidade, porque “aplicada
contraditoriamente ao sentido em que prosseguiam os seus fundamentos, desse modo
cerceando as garantias de defesa”;
Perante o convite dirigido ao Recorrente para indicar as normas que pretendia
ver apreciadas e as normas constitucionais (que de resto insitamente englobam os
princípios) que considera violadas, o Recorrente cumpriu, repetindo-as e
explicitando os princípios.
Pelo que, e ainda que se conceda – quando muito – na insuficiência da indicada
interpretação normativa formulada efectivamente em requerimento de interposição
de recurso, certo é que o douto Despacho de convite jamais aflorou sequer esta
questão, uma vez que aquele Despacho se limitou a convidar o Recorrente para
indicar normas jurídicas (as que se pretendia ver apreciadas e as violadas).
Como igualmente resulta patente que a Meritíssima Sr. ª Juiz Conselheira jamais
convidou o Recorrente a aperfeiçoar a explicitação do sentido interpretativo que
julgava ferido de inconstitucionalidade.
Donde, tenha de considerar-se que a douta Decisão sumária desrespeitou o
disposto no n. ° 6 do Art. ° 75-A da Lei n.º 28/82 de 15/11 com a actual
redacção dada pela Lei n. ° 13 -A/98 de 26/02.
6- Tanto mais quanto, o citado normativo legal preceitua, enquanto requisitos de
admissibilidade do recurso, os seguintes:
n.º 1 O recurso para o Tribunal Constitucional interpõe-se por meio de
requerimento, no qual se indique a alínea do n. ° 1 do Art. ° 70. ° ao abrigo da
qual o recurso é interposto e a norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade
se pretende que o Tribunal aprecie.
n.º 2 Sendo o recurso interposto ao abrigo das alíneas b) e f) do n.º 1 do Art.°
70.º, do requerimento deve ainda constar a indicação da norma ou princípio
constitucional ou legal que se considera violado, bem como da peça processual em
que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade.
Ora, como da redacção do mesmo se vê, nada ali vem indiciado sequer que respeite
à exigibilidade de qualquer indicação quanto à interpretação normativa.
Ónus esse que – por alegadamente transmudado em requisito formal essencial ao
conhecimento do objecto de recurso sem qualquer reflexo no texto legal - mais se
julga inadmissivelmente exigido no caso concerto, uma vez que vem alicerçado em
Jurisprudência que não se acha publicada (já que o único que vem referido na
douta Decisão como tendo sido publicado, seguramente o não foi, pois que
pesquisado segundo as indicadas referências não se encontrou);
E que, portanto, não pode ser do Recorrente conhecida.
Nem a tanto pode, consequentemente, ser legalmente obrigado a cumprir.
7- Daí que, se considere verdadeiramente reprovável a exigência de cumprimento
de ónus – inexistentes no texto legal – e resultantes de interpretação
jurisprudencial inacessível ao cidadão, tendo para além disso sido vedada ao
Recorrente a oportunidade de proceder a correcção.
Tudo cuja consequência redunda em absoluta e inconciliável denegação da justiça
(Art.° 20. ° n.º 1 da Constituição da República Portuguesa) e cerceadora dos
direitos ao recurso e garantias de defesa do Arguido (Art.° 32.° n.º 1 da Lei
Fundamental).
Mais se configurando a mesma como uma Decisão surpresa, com o que não se
compadece o Estado de Direito e os princípios que o enformam, designadamente o
do due process of law (Art. º20 . ° n. ° 4 da Lei Fundamental).
8- Carecendo de legitimidade constitucional qualquer Decisão que, convidando ao
suprimento num sentido, e cumprido este, venha a decidir com fundamento diverso
sem que tenha sido dada a oportunidade de corrigi-lo, surpreendendo o que o
primeiro não deixava sequer transparecer».
4. Notificados os recorridos, respondeu apenas o Ministério Público, pela forma
seguinte:
«1°
A presente reclamação carece manifestamente de fundamento sério.
2°
Na verdade, estando o recorrente patrocinado – aliás, obrigatoriamente – por
advogado, é evidente que, sob pena de negligência no patrocínio, não pode
ignorar a existência de determinados ónus a cargo da parte que representa e que
radicam na lei vigente e na jurisprudência reiterada e uniforme deste Tribunal
Constitucional».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A decisão que é objecto da presente reclamação concluiu no sentido do não
conhecimento do objecto do recurso interposto, por não se poder dar como
satisfeito um dos requisitos do nº 1 do artigo 75º-A da LTC: a indicação, no
requerimento de interposição de recurso, da norma cuja inconstitucionalidade se
pretende que o Tribunal aprecie (artigo 78º-A, nº 2, da LTC).
Nos presentes autos (fl. 400), o recorrente foi convidado a indicar, com
precisão, a norma (ou as normas) cuja apreciação pretendia, face ao teor da peça
processual onde requeria a:
«(…) apreciação da constitucionalidade do Art.° 412.° n.°s 2 e 3 do Código do
Processo Penal, na medida em que, salvo o devido respeito, a interpretação que
do mesmo fez o ilustre Supremo Tribunal de Justiça, aplicando-o ao caso concreto
de forma contraditória ao sentido em que prosseguiam de resto os seus
fundamentos e cerceando as garantias de defesa do Recorrente, viola o
preceituado no Art.° 32.° da Constituição da República, bem como atenta
igualmente aquele contra as normas constitucionalmente consagradas (Art.°s 20.°
e 18.° da Constituição da República) ao interpretar na forma em que o faz e
aplica à situação concreta, o disposto nos Art.°s 71.º a 73.° do Código Penal,
cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada (…)».
De facto, não podia dar-se como satisfeito o requisito da indicação da norma,
uma vez que o recorrente se limitou a remeter para a interpretação que o
tribunal recorrido havia feito de determinados preceitos legais, não podendo
considerar-se uma explicitação de tal interpretação – como é agora sustentado na
reclamação – o inciso “aplicada contraditoriamente ao sentido em que prosseguiam
os seus fundamentos, desse modo cerceando as garantias de defesa”.
Pelo exposto, o recorrente foi então convidado a indicar, com precisão, a norma
(ou as normas) cuja apreciação pretendia, já que, se por um lado, este Tribunal
tem entendido, repetidamente, que pode ser questionada a norma na sua
totalidade, em determinado segmento ou segundo certa interpretação (cf., entre
outros, o Acórdão nº 232/02, Diário da República, II Série, de 18 de Julho de
2002); por outro, não tem deixado de assinalar, reiteradamente, que, neste
último caso, o recorrente tem “o ónus de enunciar, de forma clara e perceptível,
o exacto sentido normativo do preceito que considera inconstitucional” (Acórdão
nº 21/2006, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Não obstante lhe ter sido dada oportunidade de proceder à correcção do
requerimento, o ora reclamante continuou a não dar satisfação a este requisito
do nº 1 do artigo 75º-A da LTC, ao responder que pretendia a apreciação dos:
“Art. 412.°, n.°s 2 e 3 do Código Processo Penal e [d]os Art.°s 71.°, 72.° n.°s
1 e alínea d) do n.° 2 e 73.° n.° 2 do Código Penal».
Ou seja, convidado ao suprimento das insuficiências do requerimento de
interposição de recurso, o recorrente não o cumpriu, o que justificou a prolação
da decisão que agora é objecto de reclamação. Em consonância com a
jurisprudência reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional, afirmou-se no
Acórdão nº 21/2006, em termos transponíveis para os presentes autos, que:
«(…) identificar uma interpretação normativa é, no mínimo, indicar com precisão
o sentido dado à norma, para que o Tribunal, se vier a julgar inconstitucional
essa mesma norma - entendida nesse preciso sentido -, possa enunciar, na decisão
que proferir, de modo que todos os operadores jurídicos disso fiquem cientes,
qual a interpretação que não pode ser adoptada, por ser incompatível com a
Constituição. Foi isto, precisamente, o que o ora reclamante não fez, como podia
e devia, nem no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal
Constitucional, nem, ao menos, na resposta ao convite que lhe foi formulado para
que identificasse “os requisitos exigidos pelos artigos 70º n.º 1 e 75º-A- n.º
1, da Lei 28/82”».
Resta assim confirmar que o recorrente não satisfez, quer no requerimento de
interposição de recurso quer na resposta ao convite a que se refere o nº 6 do
artigo 75º-A da LTC, um dos requisitos do nº 1 deste artigo.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do
recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 21 de Março de 2007
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício