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Processo n.º 258/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, com o n.º 258/12, vindos do Tribunal da Relação do Porto, o relator proferiu a seguinte decisão sumária:
«I - Relatório.
1. Por decisão da 4ª Vara Criminal do Porto, foi o ora recorrente, A. condenado, como autor material de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de um ano e seis meses de prisão, com execução suspensa pelo período de quatro anos. Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, alegando, em síntese, para o que ora releva, o seguinte:
(...)
II — Fundamentação.
3. Importa, antes de mais, decidir se se pode conhecer do objeto do recurso, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cf. artigo 76°, n.° 3, da Lei do Tribunal Constitucional - LTC). Vejamos.
Como o Tribunal tem repetido inúmeras vezes, o recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do n° 1, do artigo 70°, da LTC pressupõe, nomeadamente, que estejamos perante uma questão de constitucionalidade normativa e que a decisão recorrida tenha aplicado, como ratio decidendi, a norma — ou, se for o caso, a interpretação normativa — cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada. De facto, nos termos do artigo 72°, n° 2, da LTC, aquele recurso respeita à constitucionalidade de normas. Quer isto dizer, em síntese, que a admissibilidade do recurso ali previsto depende de se tratar de uma questão de constitucionalidade normativa. Como o Tribunal tem repetidamente afirmado, nada obsta a que seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de determinado preceito. Nesses casos, contudo, tem o recorrente o ónus de enunciar, de forma clara e percetível, o exato sentido normativo do preceito que considera inconstitucional e em termos que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adotado, por ser incompatível com a Lei Fundamental. Ora, nestes autos, tal não sucede.
4. No essencial, pese embora, como por inúmeras vezes tem sido repetido, não caber a este Tribunal estabelecer qual a solução de direito ordinário a adotar e qual a que melhor se coaduna com certo preceito legal, o presente recurso é motivado por uma divergência de interpretação do artigo 105° do RGIT e do artigo 36° do Código Penal, tendo em vista, designadamente, a definição dos elementos relevantes para o preenchimento do tipo de crime de abuso de confiança fiscal e a subsunção a uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, conforme se retira, aliás, do seu próprio requerimento de interposição.
4.1. Começa o recorrente por afirmar pretender ver apreciada a 'norma' que o Tribunal da Relação do Porto 'aplicou' e segundo a qual 'o preenchimento do tipo de abuso de confiança fiscal do artigo 105.° do RGIT [se basta] com o mero decurso do prazo de entrega do respetivo imposto, ou seja, o crime consuma-se ainda que o respetivo imposto só venha a ser recebido depois de decorrido aquele prazo', mais acrescentando que «tal norma decorre igualmente do acórdão quando defende que a forma e data do recebimento do imposto são 'elementos que não fazem parte do crime pelo qual os arguidos foram condenados, p.p. pelo art. 105.º, sendo apenas essencial que o imposto tenha sido efetivamente recebido'».
Assim enunciada a questão, é desde logo duvidoso estarmos perante uma 'norma', no sentido que se apontou, tanto mais que o recorrente, logo no requerimento inicial de interposição do presente recurso, se reportava à 'norma criada pelo Tribunal a quo', acrescentando que a segunda parte da 'norma' sindicada pelo recorrente se reporta ao 'crime pelo qual os arguidos foram condenados', formulação que nunca poderia ser utilizada por uma eventual decisão de inconstitucionalidade, proferida por este Tribunal.
Mas ainda que se aceitasse aproveitar o teor do requerimento aperfeiçoado no sentido de o arguido pretender ver apreciada a constitucionalidade do artigo 105° do RGIT, quando interpretado no sentido de que 'o preenchimento do tipo de abuso de confiança fiscal [se basta] com o mero decurso do prazo de entrega do respetivo imposto, ainda que o respetivo imposto só venha a ser recebido depois de decorrido aquele prazo', sempre se impõe notar que o acórdão recorrido não aplicou a dita norma em tal sentido. Pelo contrário, a decisão recorrida afirma expressamente que 'no caso concreto dos autos só foram tidas em conta para efeitos de incriminação as importâncias de IVA efetivamente recebidas pela sociedade arguida e as importâncias de IRS efetivamente retidas' (sublinhado aditado), pois que 'nos termos do preceito legal em causa, o crime de abuso de confiança fiscal [se consuma] com a não entrega (total ou parcial), à Administração Tributária das prestações que nos termos da lei deduziu ou recebeu como depositário (..). Desde que o agente esteja na posse, investido de poder de facto sobre as quantias que deviam ser entregues, e opte por não o fazer, dando-lhes outro destino ou conservando-as ilicitamente, comete o crime previsto no referido art. 105° do RGIT” (pág. 99 do acórdão recorrido, a fls. 1750). Ou seja, o acórdão recorrido não só não aplicou o artigo 105.° do RGIT no sentido imputado pelo recorrente como acabou por decidir de modo conciliável com o que o próprio recorrente afirmara, nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto, segundo o qual a única interpretação que permitia atribuir um desvalor à conduta sancionada impunha que o agente devesse ter na sua posse, antes do fim do prazo de entrega do imposto, o montante pecuniário correspondente - conclusões 65 e 66).
4.2. Ainda segundo o requerimento de interposição do presente recurso, na versão aperfeiçoada, e 'no que respeita à aplicação do artigo 36.° do CP, o Tribunal da Relação do Porto manteve, ainda, a aplicação da norma inconstitucional criada pelo Tribunal de Primeira Instância, segundo a qual: «a causa de exclusão do artigo 36.° do CP não é aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal, pelo facto de a obrigação de pagamento de impostos ser uma obrigação legal e, por isso, sempre, independente das circunstâncias do caso concreto, superior à obrigação de manter as empresas com os pagamentos em dia, nomeadamente à obrigação dos pagamentos dos salários dos trabalhadores»'.
Neste caso, o recorrente pretende ver apreciada uma norma 'criada pelo Tribunal de Primeira Instância' e não uma norma ínsita num diploma normativo. Mas ainda que aceitasse que o que o recorrente pretende é ver apreciada a constitucionalidade do artigo 36.° do Código Penal quando aplicado no sentido que ficou transcrito, sempre se dirá ser patente que a questão não é de constitucionalidade mas, tão-só, de subsunção normativa de direito infraconstitucional. Com efeito, o que se entendeu na decisão recorrida foi que os pressupostos de aplicação de tal artigo se não encontravam preenchidos, em virtude de se não estar 'perante dois deveres de idêntica natureza', dado existir 'um interesse patrimonial próprio'. Ora, como é jurisprudência constante deste Tribunal, discussão interpretativa infraconstitucional está vedada ao conhecimento deste Tribunal, pois não é sua função definir ou optar sobre qual a melhor ou mais adequada interpretação de que as normas de direito ordinário são suscetíveis.
5. Assim, por não ter a decisão recorrida aplicado, como ratio decidendi, a interpretação do artigo 105° do RGIT que é questionada e não constituir sequer uma questão de constitucionalidade normativa a apresentada quanto ao artigo 36° do Código Penal, não pode conhecer-se do objeto do recurso.
III — Decisão
Nestes termos, e ao abrigo do disposto no n.° 1 do artigo 78°-A da Lei n.° 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.° 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 (sete) unidades de conta».
2. Inconformado, o recorrente reclamou da decisão sumária para a conferência, nos seguintes termos:
«A - ARTIGO 105.° DO RGIT
1. O Recorrente, no seu requerimento de interposição de recurso, requer, em primeiro lugar, a declaração de inconstitucionalidade relativamente à norma criada pelo Tribunal a quo no sentido de que 'o preenchimento do tipo de abuso de confiança fiscal do artigo 105.° do RGIT basta-se com o mero decurso do prazo de entrega do respetivo imposto, ou seja, o crime consuma-se ainda que o respetivo imposto só venha a ser recebido depois de decorrido aquele prazo'.
2. Na decisão sumária sob reclamação, entendeu o Exmo. Senhor Conselheiro Relator não conhecer do objeto do recurso, nesta parte, 'por não ter a decisão recorrida aplicado, como ratio decidendi, a interpretação do artigo 105.° do RGIT que é questionada'.
3. Apesar de invocar, sem fundamento, que o Recorrente não enunciou, de forma percetível, o exato sentido normativo do preceito que considera inconstitucional, o Exmo. Senhor Conselheiro Relator admite, no entanto, que se possa aproveitar o teor do requerimento aperfeiçoado quando interpretado no sentido de que 'o preenchimento do tipo de abuso de confiança fiscal se basta com o mero decurso do prazo de entrega do respetivo imposto, ainda que o respetivo imposto só venha a ser recebido depois de decorrido aquele prazo'.
4. Sucede, porém, que, segundo a decisão sumária, o acórdão recorrido não aplicou a dita norma no sentido invocado. Diz o Exmo. Senhor Conselheiro. Relator que o Tribunal a quo decidiu de modo conciliável com o que o Recorrente invocou, defendendo que, para consumação do crime de abuso de confiança fiscal, o agente tivesse que ter na sua posse, antes do fim do prazo de entrega do imposto, o montante pecuniário correspondente.
5. Ora, salvo o devido respeito, o Exmo. Senhor Conselheiro Relator não faz uma interpretação correta do acórdão de 7 de dezembro de 2011 do Tribunal da Relação do Porto, parecendo incorrer precisamente no mesmo erro em que este incorreu na sua apreciação.
6. É certo que o acórdão refere, na página 99 mencionada na decisão sumária, que 'no caso concreto só foram tidas em conta para efeitos de incriminação as importâncias de IVA efetivamente recebidas pela sociedade arguida e as importâncias de IRS efetivamente retidas'.
7. Sucede, porém, que, como já foi explicado no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, o Tribunal da Relação ignorou o momento exato em que tais quantias foram recebidas, defendendo inclusive, páginas antes (p. 95), a propósito do recurso sobre a matéria de facto, que a forma e a data do recebimento são 'elementos que não fazem parte do crime pelo qual os arguidos foram condenados, p.p. pelo art. 105, sendo apenas essencial que o imposto tenha sido efetivamente recebido'.
8. Ou seja, para o Tribunal a quo, encontrando-se provado o recebimento, torna-se indiferente a efetiva data em que as quantias foram recebidas. Logo, ainda que estas tenham sido recebidas depois do fim do prazo para o pagamento do imposto - como no caso sub iudice - o crime de abuso de confiança fiscal tem-se por consumado.
9. E não se pode afirmar, como na decisão sumária, que outra foi a decisão do Tribunal da Relação, pelo facto de o acórdão defender que o agente comete o crime 'desde que esteja na posse, investido de poder de facto sobre as quantias que deviam ser entregues'. O momento do recebimento não consta da matéria de facto. Logo, esta 'presunção' do Tribunal recorrido (contrária aos elementos de prova disponíveis e invocados pela Recorrente no recurso da matéria de facto) não pode funcionar para legitimar uma interpretação da norma em causa desconforme aos ditames constitucionais.
10. Sintetizando:
i) O Tribunal da Relação considerou que a data do recebimento do imposto é um elemento que não faz parte do crime em apreço (p. 95);
ii) Não consta da matéria de facto provada a efetiva data do recebimento das quantias que o Recorrente estava obrigado a entregar;
iii) Dos elementos probatórios constantes dos autos decorre, de forma cristalina, que parte das quantias só foram recebidas depois do termo do prazo de pagamento do imposto;
iv) O Tribunal da Relação considerou preenchidos os elementos do tipo do crime de abuso de confiança fiscal e manteve a condenação do Recorrente.
11. Assim, e como é evidente, o Tribunal da Relação não decidiu 'de modo conciliável' com o que o Recorrente alegou nas suas conclusões. O Tribunal pura e simplesmente manteve o entendimento do Tribunal a quo que igualmente ignorou a data de recebimento e condenou o Recorrente pela prática do crime de abuso de confiança relativamente a quantias que este não tinha na sua posse no momento em que o imposto era devido.
12. Mantém-se, desta forma, a obrigatoriedade de apreciação da inconstitucionalidade arguida pelo Recorrente, já que o Tribunal interpretou o artigo 105.° do RGIT no sentido de que 'o preenchimento do tipo de abuso de confiança fiscal do artigo 105.° do RGIT basta-se com o mero decurso do prazo de entrega do respetivo imposto ainda este só venha a ser recebido depois de decorrido aquele prazo'.
B - ARTIGO 36.° DO CÓDIGO PENAL: A 'CONSTITUCIONALIDADE NORMATIVA'
13. Quanto ao artigo 36.° do Código Penal, arguiu o Recorrente a inconstitucionalidade da norma criada pelo Tribunal no sentido de que 'a causa de exclusão do artigo 36.° do CP não é aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal, pelo facto de a obrigação de pagamento de impostos ser uma obrigação legal e, por isso, sempre, independente das circunstâncias do caso concreto, superior à obrigação de manter as empresas com os pagamentos em dia, nomeadamente à obrigação dos pagamentos dos salários dos trabalhadores'.
14. Segundo a decisão sob reclamação, o Recorrente pretende ver apreciada uma norma criada pelo Tribunal de Primeira Instância e não uma norma ínsita num diploma normativo. Tratar-se-ia, tão só, de uma questão de subsunção normativa de direito infraconstitucional e não de uma verdadeira questão de constitucionalidade. Ora, estando ao Tribunal Constitucional vedado conhecer a 'discussão interpretativa infraconstitucional', considerou o Exmo. Senhor Relator não poder conhecer do objeto do recurso.
15. No entender do Recorrente, não assiste razão ao Exmo. Senhor Relator.
16. Por um lado, e como a própria decisão sumária aceita, o Recorrente arguiu a inconstitucionalidade do artigo 36.° quando interpretado no sentido ínsito tanto na decisão do Tribunal de Primeira Instância, como no acórdão do Tribunal da Relação - formulando corretamente a norma a apreciar por este Tribunal.
17. Por outro lado, o que está em causa, no recurso interposto pelo Recorrente, é uma questão de verdadeira constitucionalidade normativa.
18. Está em causa a dimensão normativa do artigo 36.° dada pelos Tribunais a quo. O modelo decisório utilizado tem um pressuposto normativo incompatível com a Constituição. Não se trata de definir uma determinada orientação interpretativa de cariz infraconstitucional, mas sim de decidir se uma norma interpretada de determinada forma está ou não conforme com os ditames constitucionais.
19. Com efeito, a interpretação que exclui, de forma geral e abstrata, determinada situação da previsão de uma norma não se reconduz a um 'mero' problema de subsunção. O Recorrente não questionou, neste sede, a bondade da decisão quanto à sua situação em concreto, mas sim a conformidade constitucional do preceito em causa quando interpretado no sentido de considerar, à partida, um determinado dever superior a outro. Na formulação dada pelo Tribunal a quo e questionada pelo Recorrente, é como se tal exclusão decorresse diretamente da norma aplicável ao caso - é precisamente o apuramento da constitucionalidade dessa dimensão normativa que está em discussão no presente recurso.
20. A norma - tal como exige a jurisprudência deste Tribunal - foi abstratamente enunciada e está vocacionada para uma aplicação genérica e autonomizável das concretas operações subsuntivas levadas a cabo pelo Tribunal a quo.
21. A admitir-se a posição plasmada na decisão sumária sob reclamação, estar-se-ia pura e simplesmente a excluir da esfera de competência do Tribunal Constitucional a apreciação da constitucionalidade da norma que prevê o conflito de deveres, já que estarão sempre em causa os pressupostos de aplicação desta causa de exclusão da ilicitude - matéria que o Exmo. Senhor Relator qualifica como 'infraconstitucional'.
22. Na verdade, a fiscalização concreta radica necessariamente na aplicação ou na recusa de aplicação de uma norma a um caso concreto.
23. O facto de uma norma se aplicar a um caso concreto não lhe retira o caráter normativo, antes verdadeiramente o consagra, não sendo, no limite, estranhas ao debate jus-filosófico as posições doutrinárias que vêm na aplicação do Direito ao caso concreto a única expressão da juridicidade. A norma aplicada ao caso concreto não deixa de ser uma norma, tanto mais que se perspetiva funcionalmente como critério material de apreciação e solução de casos concretos.
24. Ora, no sistema português de fiscalização da constitucionalidade, o direito de recorrer para o Tribunal Constitucional, contestando um comando geral e abstrato aplicável, no futuro, a uma potencialidade de situações tipicamente semelhantes - como o que está em causa no acórdão do Tribunal da Relação do Porto sub iudice - não pode ser recusado.
Pelo exposto, nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser deferida a presente Reclamação, revogando-se a douta decisão sumária de não conhecimento do objeto do recurso, proferida pelo Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator, e ordenando-se, em consequência, o prosseguimento do presente recurso de constitucionalidade, notificando o Recorrente para apresentar alegações».
3. Notificado, o Ministério Público referiu, em síntese, que do acórdão proferido pela Relação do Porto resulta ter sido dado como provado que o valor do imposto foi efetivamente recebido e que, então, como se entendeu na decisão sumária reclamada, «a norma do artigo 105.º do RGIT, cuja constitucionalidade foi questionada, não integrou, de facto, a ratio decidendi do acórdão recorrido». Mais considera que, no que toca à questão pertinente ao artigo 36.º do Código Penal, o recorrente procura verdadeiramente questionar a aplicação desse normativo infraconstitucional ao caso concreto.
Conclui pelo acerto da decisão sumária reclamada e pela improcedência da reclamação.
4. Realizada conferência, foi proferido acórdão a determinar a notificação do recorrente para «dizer o que se lhe oferecer quanto à efetiva aplicação no acórdão recorrido da interpretação do artigo 36º do Código Penal questionada no recurso de constitucionalidade apresentado».
5. Nessa sequência, o recorrente apresentou resposta, com o seguinte teor:
«1. O Recorrente arguiu a inconstitucionalidade da norma criada pelo Tribunal a quo no sentido de que “a causa de exclusão do artigo 36.º do CP não é aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal, pelo facto de a obrigação de pagamento de impostos ser uma obrigação legal e, por isso, sempre, independente das circunstâncias do caso concreto, superior à obrigação de manter as empresas com os pagamentos em dia, nomeadamente à obrigação dos pagamentos dos salários dos trabalhadores.
2. Vem este Tribunal questionar a efetiva aplicação desta interpretação do artigo 36.º do Código Penal, no acórdão recorrido.
3. Ora, dúvidas não podem restar de que foi esta a norma aplicada pelo Tribunal a quo.
4. Por um lado, na sentença conclui-se que “não se verifica a causa de exclusão de ilicitude prevista no art. 36º do C. Penal, pela simples razão de que a obrigação de pagamento de impostos é uma obrigação legal e, assim, superior ao dever funcional de manter as empresas com os pagamentos em dia.” (p. 32 da Sentença).
5. Por outro lado, tal interpretação é confirmada no Acórdão do Tribunal da Relação, quando se diz que o instituto do conflito de deveres “só se verifica quando se está perante dois deveres de idêntica natureza, o que não ocorre no caso em análise de opção pela prevalência na manutenção da laboração da empresa, mediante o pagamento dos salários aos trabalhadores, já que aqui existe um interesse patrimonial próprio que é a salvaguarda da respetiva empresa, do próprio negócio e do eventual lucro” (p. 100 do acórdão).
6. O Tribunal recorrido afastou a aplicação do artigo 36.º por entender que tal disposição legal não tinha lugar quando um dos deveres em causa é constituído pela obrigação legal de pagar impostos em face do intitulado dever funcional das empresas manterem os pagamentos em dia, designadamente o pagamento dos salários.
7. E como se demonstrou na reclamação para a Conferência apresentada pelo Recorrente - ao contrário do que considerou o I. Juiz Singular e o I. Procurador-Geral Adjunto na sua resposta - esta é uma questão de verdadeira constitucionalidade normativa e não uma discordância quanto à interpretação de um preceito infraconstitucional.
8. Com efeito, o Tribunal recorrido afasta a verificação do conflito de deveres sempre que estão em confronto os deveres supra identificados, independentemente de qualquer circunstância concreta».
Cumpre decidir.
II. Fundamentação
6. A primeira questão formulada pelo recorrente remete para o preenchimento do tipo penal de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105.º do RGIT. Pretende o recorrente, ora reclamante, ver apreciada a (des)conformidade com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, de interpretação normativa, segundo a qual o crime de abuso de confiança fiscal atinge a sua consumação mesmo que o imposto em questão só venha a ser recebido ou retido após o decurso do respetivo prazo de entrega.
A decisão sumária reclamada, a partir da recusa expressa dessa interpretação por parte do Tribunal a quo, concluiu que o artigo 105.º do RGIT não foi aplicado no sentido imputado pelo recorrente e, então, essa interpretação escapava à ratio decidendi do aresto recorrido.
Na reclamação, o recorrente argumenta com a indeterminação do momento em que foi recebido o imposto e com a sua leitura «dos elementos probatórios constantes dos autos», para convencer que, no caso em apreço, os impostos foram recebidos depois do fim do prazo para a sua entrega.
Ora, não cabe no recurso de constitucionalidade reapreciar os fundamentos de facto da decisão recorrida, que se apresentam para este Tribunal Constitucional como um dado, insuscetíveis de modificação. Nessa medida, não encontra relevo a distinta avaliação probatória avançada pelo reclamante, tanto mais que representa a construção de sentido decisório oposto – e não apenas diverso – daquele expressamente acolhido na decisão recorrida.
Com efeito, o segmento transcrito e evidenciado na decisão sumária denota com precisão que o Tribunal da Relação do Porto suporta a tipicidade da conduta pelo ilícito previsto no artigo 105.º do RGIT unicamente nas importâncias de IVA efetivamente recebidas e nas importâncias de IRS efetivamente retidas. O recorrente procura socorrer-se de outra passagem, que transcreve parcialmente, mas basta tomar todo o período em que inscreve esse segmento para constatar que se aponta à decisão recorrida interpretação que manifestamente não acolhe. Quando se escreve: «Desde que o agente esteja na posse, investido de poder de facto sobre as quantias que deviam ser entregues, e opte por não o fazer, dando-lhes outro destino ou conservando-as ilicitamente, comete o crime previsto no referido art. 105.º do RGIT», afirma-se o sentido de que o crime de abuso de confiança fiscal atinge a sua consumação quando o agente, tendo já na sua esfera de domínio os montantes de imposto, porque os recebeu ou reteve – antes do vencimento da obrigação tributária - decide não os entregar, como devido, à administração tributária. Não encontra conformidade com a decisão a pretensão do reclamante de que foi condenado por crime de abuso de confiança fiscal relativamente a quantias «que não tinha na sua posse no momento em que o imposto era devido».
Em sede de fiscalização concreta, tratando-se de formular um juízo que tem por objeto uma norma, ou interpretação normativa, tal como foi aplicada num caso concreto, é pressuposto de conhecimento do recurso de constitucionalidade que a decisão que o Tribunal Constitucional venha a proferir sobre a questão de constitucionalidade suscitada seja suscetível de produzir algum efeito sobre a decisão de que se recorre (cfr., entre muitos, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 463/94, 366/96, 687/2004 e 447/2012, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt ).
O que, in casu, não acontece, pois os concretos fundamentos da decisão recorrida permaneceriam inabalados, mesmo que viesse a ser proferido juízo de inconstitucionalidade no sentido pretendido pelo recorrente.
Cumpre, pelo exposto, confirmar a decisão sumária, porquanto o sentido interpretativo questionado pelo reclamante não integra a ratio decidendi do acórdão da Relação do Porto recorrido.
7. No que respeita à segunda questão colocada, importa começar por recordar a delimitação decorrente da formulação apresentada pelo recorrente, na sequência do convite ao aperfeiçoamento que lhe foi dirigido. Pretende o recorrente ver apreciada «a aplicação da norma inconstitucional criada pelo Tribunal de Primeira Instancia, segundo a qual: ”a causa de exclusão do artigo 36.º do CP não é aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal, pelo facto de a obrigação de pagamento de impostos ser uma obrigação legal e, por isso, sempre, independente das circunstâncias do caso concreto, superior à obrigação de manter as empresas com os pagamentos em dia, nomeadamente à obrigação dos pagamentos aos salários aos trabalhadores”».
7.1. Na decisão sumária reclamada entendeu-se que o recorrente colocava questão estritamente contida no domínio interpretativo infraconstitucional, a saber, a verificação dos pressupostos da causa de exclusão da ilicitude jurídico-penal contemplada no artigo 36.º do Código Penal. E, assim sendo, decidiu-se que o recorrente não colocara questão de constitucionalidade normativa dirigida ou suportada em interpretação do artigo 36.º do Código Penal, com a consequente inverificação de pressuposto exigido para o conhecimento do recurso, nessa parte.
O recorrente insurge-se contra esse entendimento, dizendo, no essencial, que não questionou, nesta sede, a bondade da decisão quanto à sua situação em concreto, mas sim «a conformidade constitucional do preceito interpretado no sentido de considerar, à partida, um determinado dever superior a outro». A questão normativa de constitucionalidade radica, na ótica do recorrente, em que, na interpretação do Tribunal a quo, «é como se tal exclusão decorresse diretamente da norma aplicável ao caso».
Porém, essa leitura não se mostra conforme com os termos da decisão recorrida, na sua relação com o disposto no art.º 36.º, n.º 1 do Código Penal e equação dos respetivos pressupostos, face ao caso em presença. Em especial, não se descortina qualquer posição de partida, apriorística, que releve como introdução de pressupostos não escritos no referido preceito.
Vejamos.
7.2. Dispõe o n.º 1 do artigo 36.º do Código Penal que não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas de autoridade, satisfaz dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrifique.
Essa previsão contempla autonomamente no ordenamento penal o conflito de deveres, configurado como tipo justificador. Comungando da natureza de instrumento delimitador (negativo) do conteúdo de ilícito, funcionalmente complementar do tipo incriminador, ainda que estruturalmente distinto, própria das causas de justificação (Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2007, pp. 384-387 e segs.; e Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, pp. 220-225), o conflito de deveres juridico-penalmente relevante encontra-se, nos termos do artigo 36.º, n.º 1 do Código Penal, condicionado no seu efeito justificador a diversos pressupostos.
Radica aí, na distinção entre a configuração – abstrata - dos pressupostos estabelecidos pelo artigo 36.º, n.º 1 do Código Penal para a atuação da causa de justificação e o momento ulterior da sua aplicação ao caso concreto, o cerne da discordância do recorrente relativamente ao entendimento afirmado na decisão sumária.
7.3. A argumentação do recorrente na reclamação, reafirmada na resposta à notificação que lhe foi dirigida, assenta na seguinte linha de raciocínio: i. A sentença considerou que o artigo 36.º do Código Penal não é aplicável ao crime de abuso de confiança, pelo facto da obrigação de pagamento de impostos ser uma obrigação legal; ii. O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto afastou igualmente a aplicação do artigo 36.º do Código Penal por entender que tal disposição legal não tinha lugar quando um dos deveres em causa é constituído pela obrigação legal de pagar impostos, face ao que intitula de «dever funcional das empresas manterem os pagamentos em dia, designadamente o pagamento dos salários»; iii) Por fim, em jeito de conclusão, considera-se que o «Tribunal recorrido afasta a verificação do conflito de deveres sempre que estão em confronto os deveres supra identificados, independentemente de qualquer circunstância concreta».
Denota-se, logo, nesta argumentação, e em particular na sua conclusão, duas afirmações contraditórias: o Tribunal não teria verificado a presença de conflito de deveres, o que encontra correspondência na crítica de que teria sido afirmado, e aplicado, critério normativo de exclusão do perímetro do tipo justificador, fundado na presença do «dever de pagar impostos»; mas, ao mesmo tempo, o recorrente procura sustentar a ilegitimidade da consideração de «um dever superior a outro», o que passa por admitir que, afinal, o Tribunal a quo considerou a presença de deveres concorrentes.
7.4. Com efeito, e a contrário do que afirma o recorrente, a decisão recorrida acolhe a verificação no caso de vários deveres de ação, contemporaneamente incidentes sobre o recorrente: o dever jurídico-penal de entregar as prestações tributárias, por um lado, e os deveres assumidos na esfera empresarial, incluindo a obrigação de pagamento de salários a trabalhadores, por outro. Esse entendimento encontra expressão literal na alusão a «dois deveres» e resulta igualmente da remissão fundamentadora para o Acórdão do STJ de 13/12/2001 (Processo 01P2448; sumariado em www.dgsi.pt).
Diz-se nesse Acórdão: «O conflito de deveres que exclui a culpa é, necessariamente, um conflito de deveres para com os outros. Por isso, na atuação dos arguidos, que integraram montantes de IVA liquidados no património da sociedade de que eram sócio gerentes, e os afetaram a outras finalidades, para assegurar a continuação da laboração da empresa, designadamente ao pagamento dos salários dos trabalhadores, não se verifica qualquer conflito de deveres juridicamente relevante; com efeito, um dos deveres conflituantes – o de assegurar o funcionamento do negócio – não é alheio mas próprio (a satisfação do interesse dos trabalhadores é secundária relativamente à daquele interesse próprio prevalente)».
Assim, o entendimento de que a o Tribunal da Relação do Porto não chegou a equacionar a figura do conflito de deveres pois, à partida, recusou a ponderação do disposto no artigo 36.º do CP, na sua função de tipo justificador, ou contratipo, por decorrência da verificação de uma obrigação legal de índole tributária, invariavelmente superior a outros deveres ou obrigações, não encontra correspondência com a decisão recorrida.
7.5. Mas, não se fica por aí a ausência de identidade entre o fundamento decisório acolhido pelo Tribunal a quo e a questão colocada à apreciação deste Tribunal.
Aceitando, como se viu, a concorrência de distintos deveres de ação, o Tribunal a quo procedeu à ponderação dos específicos interesses em conflito e concluiu que os deveres em colisão com o dever sacrificado não assumiam, na sua ótica, «idêntica natureza», em função da tutela do que considerou «interesse patrimonial próprio». E, por decorrência dessa concreta valoração, concluiu que não se encontravam preenchidos os pressupostos de atuação da causa de justificação tipificada no artigo 36.º do Código Penal.
Assim, a decisão recorrida, ao contrário do que se pretende no requerimento de interposição de recurso, não sustenta o seu juízo na fonte da obrigação, mormente numa dicotomia entre a natureza de obrigação legal do pagamento de impostos e outras obrigações. Como se disse, o afastamento do tipo justificador decorreu de outras razões, a saber, da prevalência do dever sacrificado, pela sua natureza de interesse patrimonial alheio, sobre outros interesses patrimoniais próprios conflituantes, tidos como incluindo os deveres para com os trabalhadores e para com os credores em geral.
7.6. Não colhe, por outro lado, o entendimento de que, ao confirmar a decisão da 1ª instância, o Tribunal a quo renovou a mesma ratio decidendi. Como se explicitou supra, os fundamentos são distintos, embora suportem o mesmo sentido decisório, de inverificação de conflito de deveres justificante da atuação típica penal, face ao disposto no artigo 36.º, n.º1 do Código Penal.
7.7. Aqui chegados, perfilam-se dois fundamentos para o não conhecimento do recurso interposto, no que respeita à segunda questão colocada.
7.7.1. Com efeito, afastada, como se demonstrou, qualquer posição apriorística por parte do Tribunal a quo, suscetível de configurar critério normativo extraído interpretativamente do preceituado no artigo 36.º, n.º1 do Código Penal, deparamos com questão dirigida verdadeiramente à definição in casu do dever de atuação jurídico-penalmente prevalente.
Essa ponderação constitui, como se entendeu na decisão sumária, operação de subsunção do caso concreto à previsão normativa do artigo 36.º do Código Penal, numa das suas vertentes essenciais: igualdade ou superioridade do dever satisfeito. E, ao invés do que pretende o reclamante, não constitui ponto de partida mas sim ponto de chegada, construído em função dos concretos deveres em conflito e da sua hierarquização, no quadro da situação global dos autos.
Assim, apesar do reclamante sustentar que não questionou a bondade da solução encontrada, esse é, efetivamente, o objeto que delimitou no recurso de constitucionalidade, dirigido a questionar o ato de julgamento, na sua dimensão de aplicação ao caso concreto do artigo 36.º, n.º 1 do Código Penal (cfr., perante problema similar ao destes autos, o Acórdão n.º 312/2011).
Ora, como se disse na decisão sumária, a discussão interpretativa infraconstitucional e a definição do melhor Direito encontra-se vedada a este Tribunal Constitucional.
Cumpre, pelo exposto, confirmar a decisão sumária de não conhecimento também dessa questão, por não constituir questão de constitucionalidade normativa.
7.7.2. Ainda que assim não fosse, pelas mesmas razões afirmadas quanto à inadmissibilidade da primeira questão colocada no recurso de constitucionalidade, denota-se a ausência de outro dos pressupostos do recurso em apreço, na medida em que a interpretação que se pretende questionar não integra a ratio decidendi do Acórdão recorrido.
Ausente o pressuposto de efetiva aplicação pela decisão recorrida da interpretação cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, sempre se encontra afastada a cognoscibilidade do recurso nessa parte, face ao disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
III. Decisão
8. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão sumária.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, tendo em atenção os critérios seguidos por este Tribunal e a dimensão do impulso desenvolvido.
Notifique.
Lisboa, 5 de dezembro de 2012.- Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete (entendo que o tribunal recorrido, diferentemente do tribunal de 1ª instância considerou não aplicável in casu a causa de justificação prevista no art. 36 do CP por entender, tal como o STJ no seu acórdão de 13.12.2001, que a mesma pressupõe deveres de idêntica natureza, o que não se verificaria na contraposição entre o dever de manter a empresa com os pagamentos em dia para assegurar a continuação da respectiva laboração (“dever para consigo própria”) e o dever de cumprir as obrigações tributárias (“dever para com os outros”)) – Joaquim de Sousa Ribeiro.