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Processo n.º 699/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
(Conselheira Maria Fernanda Palma)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A., melhor identificado nos autos, requereu, junto do Tribunal de Execução de
Penas de Lisboa, o seguinte:
«A., arguido, condenado por Decisão Transitada em Julgado em 06.02.2006 na pena
efectiva de 4 (quatro) anos de prisão, vem requerer a aplicação de Liberdade
Condicional, nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. O arguido foi detido à ordem dos presentes autos no dia 27.03.2003.
2. Esteve preso preventivarnente até 07.05.2003, data em que aquela medida foi
substituída por obrigação de permanência na habitação com vigilância
electrónica.
3. O arguido atingiu metade da pena, precisamente há um ano, tendo já
ultrapassado dois terços da pena em 28.11.2005.
4. A. trabalha como motorista na Câmara Municipal de Oeiras (cfr. docs. já
juntos aos autos).
5. Estuda na Escola Secundária de Oeiras, de acordo com a autorização que lhe
foi concedida pelo Supremo Tribunal de Justiça, tendo obtido excelente
aproveitamento.
6. Durante o tempo em que esteve sujeito a obrigação de permanência na habitação
com vigilância electrónica, o arguido cumpriu escrupulosamente todas as
injunções que lhe foram impostas.
7. A. está perfeitamente inserido familiar, social e profissionalmente.
8. A liberdade condicional revela-se perfeitamente compatível com a defesa da
ordem e da paz social.
9. Caso o arguido não seja colocado de imediato em liberdade condicional, corre
sérios riscos de reprovar o ano escolar, sendo certo que ficará sem emprego, já
que se encontra a fazer testes para entrar para os quadros, por ser contratado
ao abrigo de um vínculo precário a termo certo.
Termos em que se requer a aplicação da liberdade condicional.»
Sobre este requerimento foi proferido o seguinte despacho:
«A. está condenado, por decisão judicial, transitada em julgado, no processo n.º
560/02 do l.º Juízo Criminal de Oeiras na pena de 4 anos de prisão
Encontra-se preso desde 06-04-2006, tendo a descontar 3 anos e 8 dias de prisão
preventiva e de obrigação de permanência na habitação
Os seis meses de cumprimento da pena são em 06-10-2006 (Art. 61.º, n.º 2, do
Código Penal)
O termo desse cumprimento está previsto para 20-03-2007.
Como a condenação imposta é superior à pena de prisão por 6 (seis) meses, poderá
beneficiar, eventualmente, de liberdade condicional, cumpridos 6 meses da pena
(art.º 61, n.º 2, do Código Penal).
Se o parecer e relatórios legais não forem recebidos até 06-08-2006 solicite-os
nessa altura ao Estabelecimento Prisional e ao IRS requisitando-se, também, o
C.R.C. e a ficha biográfica do recluso – Art. 484.° do C.P. Penal.»
O recluso veio então requerer o seguinte:
«A., arguido, notificado do teor do Douto Despacho de fls., que, face ao
anteriormente requerido decidiu que apenas poderá beneficiar de liberdade
condicional, depois de cumpridos 06 (seis) meses de pena, vem dizer e requerer o
que segue, nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. O arguido foi detido à ordem dos presentes autos no dia 27.03.2003.
2. Esteve preso preventivamente até 07.05.2003, data em que aquela medida foi
substituída por obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica
- OPHVE.
3. Foi condenado por decisão transitada em julgado em 06.02.2006 na pena
efectiva de 4 (quatro) anos de prisão.
4. O arguido atingiu metade da pena em 27.03.2005.
5. Ultrapassou os dois terços da pena em 28.11.2005.
6. A. trabalha como motorista na Câmara Municipal de Oeiras (cfr. docs. já
juntos aos autos).
7. Estuda na Escola Secundária de Oeiras, de acordo com a autorização que lhe
foi concedida pelo Supremo Tribunal de Justiça, tendo obtido excelente
aproveitamento.
8. Durante o tempo em que esteve sujeito a obrigação de permanência na habitação
com vigilância electrónica, o arguido cumpriu escrupulosamente todas as
injunções que lhe foram impostas.
9. A. está perfeitamente inserido familiar, social e profissionalmente.
10. A liberdade condicional revela-se perfeitamente compatível com a defesa da
ordem e da paz social.
11. Caso o arguido não seja colocado de imediato em liberdade condicional, corre
sérios riscos de reprovar o ano escolar, sendo certo que ficará sem emprego. já
que se encontra a fazer testes para entrar para os quadros, por ser contratado
ao abrigo de um vínculo precário a termo certo.
12. Ao exigir que o arguido aguarde pelo dia 06.10.2006, o Tribunal está a
violar o disposto no art. 80.º, n.º 1, do Código Penal.
13. De facto, equiparando a lei, para efeitos de cumprimento da pena, a
detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação, o
arguido, ora requerente, não necessita de entrar num estabelecimento prisional,
para que lhe seja aplicada a liberdade condicional, já que, nos termos do art
80.º, n.º 1, do CP, atingiu há muito os seis meses de cumprimento de pena.
14. O art. 61.º, n.º 2, do CP diz que o Tribunal coloca o condenado em liberdade
condicional. quando se encontrar cumprida metade da mínimo de seis meses.
15. O art.º 80.º, n.º 1, do CP diz que o tempo de detenção, prisão preventiva e
obrigação de permanência na habitação são descontados no cumprimento.
16. Ora, o referido prazo de seis meses de cumprimento (na redacção do
identificado preceito) está há muito ultrapassado.
17. Ao exigir que o arguido cumpra mais seis meses em estabelecimento prisional
(para além do tempo já cumprido até 06.04.2006 de 03 anos de 08 dias de prisão
preventiva e obrigação de permanência na habitação), sem razão fundamentada o
Tribunal está a discriminar os arguidos que estiveram em obrigação de
permanência na habitação, comparativamente com os que não estiveram privados de
liberdade até ao trânsito em julgado, o que é manifestamente injusto.
18. Ao exigir que o arguido cumpra mais seis meses de prisão, o Tribunal está a
interpretar o disposto nos artigos 61.º, n.º 2, e 80.º, n.º 1, do CP, em
violação do princípio da igualdade previsto no art. 13.º da Constituição da
República Portuguesa.
Termos em que, fazendo-se uma correcta interpretação das normas legais invocadas
(artigos 61.º, n.º 2, e 80.º, n.º 1, do CP) em consonância com o art. 13.º da
Constituição da República Portuguesa e a melhor interpretação dos elementos dos
autos, deve o despacho de fls ... (conclusão em 19.05.2006) ser revogado e
substituído por outro que considere cumpridos os seis meses (a que se refere o
art. 61.º, n.º 2, do CP) no dia 29.09.2003 (de acordo com o art. 80.º, n.º 1, do
CP), colocando-se o arguido em liberdade condicional.»
Este requerimento foi indeferido por despacho com o seguinte teor:
«Por se entender que o princípio da legalidade, expresso no art.º 1.º do Cód.
Penal, impede a aplicação do disposto no art.º 80.º do Cód. Penal ao regime de
apreciação de liberdade condicional, indefere-se o requerimento de fls. 325 e
decide-se manter na integra o despacho de fls. 315.»
2.O recluso interpôs então recurso de constitucionalidade mediante um
requerimento com o seguinte teor:
«A., arguido, Recorrente nos autos à margem identificados (com apoio judiciário
concedido em primeira instância – art. 18.º, n.º 7, da Lei n.º 34/2004 de
20.07), notificado do teor do Douto Despacho de fls. 328 que indeferiu as
invalidades invocadas a fls. 325, mantendo na íntegra o despacho de fls. 315,
não se conformando com a decisão proferida, vem dela interpor recurso para o
Tribunal Constitucional, nos termos e com os fundamentos seguintes:
- O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da LTC
(Lei n.º 28/82, de 15.11).
- Pretende ver-se apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 61.º,
n.º 2, e 80.º, n.º 1, do Código Penal, quando interpretadas no sentido de exigir
(para aplicar a liberdade condicional a um arguido que já cumpriu dois terços de
uma pena inferior a seis anos) que ele cumpra mais seis meses de prisão em
Estabelecimento Prisional (quando já cumpriu 03 anos e 08 dias de prisão
preventiva, num total de quatro anos de prisão).
- Ao exigir que o arguido cumpra mais seis meses de prisão, o Tribunal está a
interpretar o disposto nos artigos 61.º, n.º 2, e 80.º, n.º 1, do Código Penal,
em violação do princípio da igualdade previsto no art. 13.º da Constituição da
República Portuguesa, discriminando os arguidos que estiveram em prisão
preventiva e em obrigação de permanência na habitação, comparativamente com
aqueles que cumprirem integralmente a pena, apenas depois do trânsito em
julgado.
Tais normas (dos artigos 61.º, n.º 2, e 80.º, n.º 1, do Código Penal) assim
interpretadas violam o princípio da igualdade previsto no art. 13.º da
Constituição da República Portuguesa.
- As questões de inconstitucionalidade foram expressamente suscitadas, em
requerimento de fls. 325 apresentado no Tribunal de Execução de Penas de Lisboa.
- O presente recurso subirá imediatamente, nos próprios autos. A entender‑se o
contrário, requer que o recurso suba com certidão de todo o processado,
gratuitamente ao abrigo do apoio judiciário de que beneficia o recorrente.
Invoca-se o apoio judiciário concedido no Tribunal de Oeiras.
Termos em que requer a V. Exa. se digne admiti-lo, seguindo-se os demais legais,
até final.»
Determinada a produção de alegações no Tribunal Constitucional, o recorrente
concluiu as suas dizendo o seguinte:
«1. O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art 70.º da LTC
(Lei n.º 28/82, de 15.11).
2. Pretende ver-se apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos
61.º, n.º 2, e 80.º, n.º 1, do Código Penal, quando interpretadas no sentido de
exigir (para apreciar da aplicar da liberdade condicional a um arguido que já
cumpriu dois terços de uma pena inferior a seis anos) que ele cumpra mais seis
meses de prisão em Estabelecimento Prisional (quando já cumpriu 03 anos e 08
dias de prisão preventiva).
3. Por decisão já transitada, foi o arguido condenado a 4 anos de prisão. O
arguido atingiu metade da pena em 27.03.2005. Ultrapassou os dois terços da pena
em 28.11.2005. Em 06 de Abril, o arguido voltou as ser detido, desta vez para
cumprimento de pena, quando é certo que já estavam reunidos todos os
pressupostos para a concessão de liberdade condicional. O Tribunal de Execução
de Penas exigiu que o arguido aguardasse pelo dia 06.10.2006 (cumprindo 6 meses
de prisão efectiva, após trânsito em julgado), para apreciar da concessão da
liberdade condicional, pelo facto de o arguido ter estado até à data em
obrigação de permanência na habitação e não em Estabelecimento Prisional.
4. Equiparando a lei, para efeitos de cumprimento da pena, a detenção, a prisão
preventiva e a obrigação de permanência na habitação, o arguido ora requerente,
não necessita de entrar num estabelecimento prisional, para que lhe seja
aplicada a liberdade condicional, já que, nos termos do art. 80.º, n.º 1, do CP,
atingiu há muito os seis meses de cumprimento de pena. O art. 61.º, n.º 2, do CP
diz que o Tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional, quando
se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo de seis meses. O art. 80.º, n.º
1, do CP diz que o tempo de detenção, prisão preventiva e OPHVE, são descontados
no cumprimento. O referido prazo de seis meses de cumprimento (na redacção do
identificado preceito) foi há muito ultrapassado.
5. Ao exigir que o arguido cumpra mais seis meses em estabelecimento prisional
(para além do tempo já cumprido até 06.04.2006, de 03 anos e 08 dias de prisão
preventiva e obrigação de permanência na habitação) sem razão fundamentada, o
Tribunal de Execução de Penas está a discriminar os arguidos que estiveram em
obrigação de permanência na habitação, comparativamente com os que não estiveram
privados de liberdade até ao trânsito em julgado, o que é manifestamente
injusto.
6. Ao exigir que o arguido cumpra mais seis meses de prisão, o Tribunal está a
interpretar o disposto nos artigos 61.º, n.º 2, e 80.º, n.º 1, do CP, em
violação do princípio da igualdade previsto no art. 13.º da Constituição da
República Portuguesa.
7. Se o mesmo arguido não tivesse estado em obrigação de permanência na
habitação durante os mesmos três anos e oito dias, o Tribunal de Execução de
Penas consideraria que os tais 6 meses a que se refere o art. 80.º, n.º 1,
estariam cumpridos.
8. Não há qualquer razão objectiva para discriminar os arguidos que tendo estado
em obrigação de permanência na habitação, não estivem em estabelecimento
prisional, comparativamente com aqueles que passaram todo o tempo em
estabelecimento prisional.
9. Termos em que, fazendo-se uma correcta interpretação das normas legais
invocadas (artigos 61.º, n.º 2, e 80.º, n.º 1, do CP) em consonância com o art.
13.º da Constituição da República Portuguesa e a melhor interpretação dos
elementos dos autos, deve declarar-se a inconstitucionalidade das normas dos
artigos 61.º, n.º 2, e 80.º, n.º 1, do Código Penal, quando interpretadas no
sentido de exigir (para apreciar da concessão de liberdade condicional a um
arguido – condenado a 4 anos de prisão – que já cumpriu dois terços de uma pena
inferior a seis anos) que ele cumpra mais seis meses de prisão em
Estabelecimento Prisional, após trânsito em Julgado (quando já cumpriu 03 anos e
08 dias de obrigação de permanência na habitação).
10. Ao exigir que o arguido cumpra mais seis meses de prisão — após trânsito em
julgado, o Tribunal está a interpretar o disposto nos artigos 61.º, n.º 2, e
80.º, n.º 1, do Código Penal, em violação do princípio da igualdade previsto no
art. 13.º da Constituição da República Portuguesa, discriminando os arguidos que
estiveram em obrigação de permanência na habitação, comparativamente com aqueles
que cumprirem integralmente a pena, apenas depois do trânsito em julgado (ou
estiveram em prisão preventiva).
11. Tais normas (dos artigos 61.º, n.º 2, e 80.º, n.º 1, do Código Penal) assim
interpretadas violam o princípio da igualdade previsto no art. 13.º da
Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos, devem as normas dos artigos 61.º, n.º 2, e 80.º, n.º 1, do Código
Penal ser julgadas inconstitucionais (por violação do disposto no artigo 13° da
Constituição da República Portuguesa) quando interpretadas no sentido de exigir
(para apreciar da concessão de liberdade condicional a um arguido – condenado a
4 anos de prisão, que já cumpriu – em obrigação de permanência na habitação –
dois terços de uma pena inferior a seis anos) que ele cumpra mais seis meses de
prisão efectiva em Estabelecimento Prisional, após trânsito em Julgado (quando
já cumpriu 03 anos e 08 dias de prisão preventiva e obrigação de permanência na
habitação).»
Por sua vez, nas suas contra-alegações o Ministério Público veio suscitar a
questão prévia do não conhecimento do objecto do recurso, por inutilidade (pois
“independentemente da decisão sobre a questão de constitucionalidade suscitada e
por facto supervenientemente entretanto ocorrido – decurso de tempo –, ela já
não poderá influenciar utilmente a decisão de mérito sobre a verificação do
período de 6 meses, a que se reporta o recurso”), e, subsidiariamente, defendeu
a inexistência de inconstitucionalidade da norma em apreciação.
Notificado para tanto, o recorrente não respondeu à questão prévia suscitada
pelo Ministério Público.
3.Após inscrição do processo em tabela e discussão, perante a dúvida sobre a
relevância que no processo tinha sido, ou não, efectivamente já concedida ao
decurso do prazo de seis meses a que se reportava a dimensão normativa
identificada pelo recorrente, foi, após mudança de relator por vencimento,
proferido o Acórdão n.º 113/2007, no qual, “para apreciação da questão prévia
relativa ao não conhecimento do recurso, suscitada pelo Ministério Público”, se
acordou em “determinar que seja solicitada ao tribunal recorrido informação
sobre a situação prisional do recorrente e sobre eventuais decisões relativas à
sua liberdade condicional, proferidas posteriormente a 6 de Outubro de 2006”.
Em resposta a esta diligência, o Tribunal Constitucional foi informado de que ao
recluso, ora recorrente, fora concedida liberdade condicional por decisão de 15
de Novembro de 2006, do Tribunal de Execução das Penas de Lisboa.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
4.Há que começar por tratar pela questão prévia suscitada pelo Ministério
Público, que pode impedir que o Tribunal Constitucional possa tomar conhecimento
do recurso, por inutilidade superveniente.
Entende o Ministério Público que não deverá conhecer-se do recurso porque,
independentemente da decisão sobre a questão de constitucionalidade suscitada e
por facto supervenientemente entretanto ocorrido – decurso de tempo –, ela já
não poderá influenciar utilmente a decisão de mérito sobre a verificação do
período de 6 meses, a que se reporta o recurso. Por outro lado, perante a dúvida
sobre a relevância que efectivamente teria sido concedida no processo ao decurso
do prazo de seis meses de cumprimento de pena – cf. as alegações produzidas pelo
recorrente no Tribunal Constitucional, onde se pode ler, a fls. 360 dos autos,
que o “Tribunal de Execução de Penas exigiu que o arguido aguardasse pelo dia
06.10.2006 (cumprindo 6 meses de prisão efectiva, após trânsito em julgado).
Certo é que o dia 06.10.2006 já passou e o arguido continua preso (…)” –,
apurou-se, pela diligência determinada pelo Acórdão n,.º 113/2007, que o
recorrente se encontra já em situação de liberdade condicional, ordenada por
decisão de 15 de Novembro de 2006.
É sabido que o recurso de constitucionalidade visa a apreciação de uma questão
de constitucionalidade instrumental da decisão recorrida, tomada no processo em
que a apreciação de constitucionalidade ocorre, de modo incidental. Tal
instrumentalidade, que caracteriza o recurso de constitucionalidade, implica
que, se a decisão deste já não puder produzir qualquer efeito útil no processo,
não podendo reflectir-se utilmente sobre a decisão recorrida, o Tribunal
Constitucional não poderá tomar dele conhecimento.
É isto mesmo o que resulta da jurisprudência do Tribunal Constitucional, também,
aliás, quando foram objecto de recurso decisões das quais havia resultado a
privação da liberdade do recorrente. Assim, o Tribunal Constitucional decidiu,
por exemplo, que não subsistia a utilidade do recurso em casos em que estava em
causa a impugnação do despacho que ordenara a prisão preventiva do recorrente, o
qual entretanto fora substituído por outro que a manteve (cf. o Acórdão n.º
119/2004, e os aí referidos Acórdãos n.º 296/2003 e 722/97, todos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt). Com efeito, nesses casos o “interesse na
libertação do recorrente não subsistia, pois a prisão preventiva não decorria já
do despacho recorrido, mas de outro, posterior, não impugnado”, e – afirmou-se –
“um hipotético interesse no eventual exercício de qualquer direito de
indemnização” não impedia uma decisão de inutilidade do recurso (decisão que, no
caso do Acórdão n.º 119/2004, fora tomada pelo tribunal recorrido), não sendo
bastante tal “interesse residual do recorrente, considerando a eventualidade de
o arguido poder vir a intentar a acção de indemnização contra o Estado” (na
expressão do cit. Acórdão n.º 296/2003), quando o recorrente não interpôs o
recurso na referida acção de indemnização nem forneceu qualquer indicação sobre
a eventualidade de vir a exercer, em acção própria e perante o tribunal
competente, um tal direito de indemnização.
Ora, no presente caso não só decorreram já os seis meses de prisão a que se
refere a norma impugnada pelo recorrente, e que o tribunal recorrido entendeu
serem exigidos por lei para lhe poder ser concedida liberdade condicional, como
o recorrente se encontra mesmo já nessa situação de liberdade condicional.
Não se vê, pois, como poderia uma decisão que fosse agora tomada pelo Tribunal
Constitucional sobre a constitucionalidade da norma que exige o decurso dos
referidos seis meses, para a concessão de liberdade condicional, produzir
qualquer efeito útil no processo, sendo certo, por outro lado, que o recorrente
também não forneceu, no requerimento de recurso ou nas alegações, qualquer
indicação no sentido de que não estava em causa neste recurso apenas o seu
interesse na obtenção da liberdade condicional. Isto, sem que fique, aliás,
excluído que, se assim o entender, o recorrente venha a promover, por exemplo em
acção de indemnização, a apreciação da legalidade e constitucionalidade do tempo
de cumprimento de pena que lhe foi imposto (e das normas que o fundamentaram).
No presente caso, porém, os seis meses de cumprimento de pena já decorreram, a
liberdade condicional já foi concedida por decisão do Tribunal de Execução das
Penas, e qualquer que fosse a decisão do Tribunal Constitucional sobre a questão
de constitucionalidade, ela não poderia já influenciar essa decisão ou a decisão
recorrida, que havia anteriormente negado a concessão da liberdade condicional.
O presente recurso de constitucionalidade tornou-se, assim, supervenientemente
inútil, pelo que não pode dele tomar-se conhecimento.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar
conhecimento do presente recurso.
Sem custas.
Lisboa, 8 de Março de 2007
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma (vencida nos termos de declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Tendo sido a primitiva relatora nestes autos, votei vencida o presente Acórdão
por entender que a utilidade da apreciação da questão de constitucionalidade
subsiste. Com efeito, podendo depender do juízo a formular a legalidade da
prisão efectivamente cumprida, é ainda útil a apreciação da questão de
constitucionalidade suscitada, já que o recorrente sempre poderá formular uma
pretensão indemnizatória para cuja procedência será essencial o juízo de
inconstitucionalidade.
Nessa medida, teria apreciado o objecto do presente recurso. E fá‑lo‑ia, nos
seguintes termos:
1. A decisão recorrida considerou que a referência aos seis
meses de prisão como pressuposto da concessão da liberdade condicional que
consta do artigo 61.º, n.º 2, do Código Penal, exclui a possibilidade de
computar o período de tempo relativo à detenção, à prisão preventiva e à
obrigação de permanência na habitação sofridas durante o processo.
O recorrente considerou que tal interpretação é
inconstitucional por violação do princípio da igualdade.
2. No sistema penal português, as medidas processuais
privativas da liberdade aplicadas durante o processo são descontadas na pena
privativa da liberdade que efectivamente vier a ser aplicada no processo (cfr.
artigos 80.º e 82.º do Código Penal).
Por outro lado, uma vez esgotado o prazo máximo da prisão
preventiva durante o processo, não pode ser aplicado ao arguido a medida de
coacção obrigação de permanência na habitação (cfr. artigos 217.º, n.º 2, do
Código de Processo Penal).
E os prazos legais máximos de duração das medidas de coacção
obrigação de permanência na habitação e prisão preventiva são os mesmos (cfr.
artigos 218.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).
Esta equiparação, em aspectos essenciais dos respectivos
regimes, das medidas processuais privativas da liberdade e a relevância destas
para efeito do desconto na pena decorrem do direito à liberdade (artigos 27.º e
28.º da Constituição) articulado com os princípios da igualdade e da
proporcionalidade (artigos 13.º e 18.º da Constituição).
Com efeito, a liberdade pessoal, valor fundamental inerente à
dignidade da pessoa humana, só pode ser restringida quando outros valores com
ressonância constitucional o exijam. E tal restrição só pode ocorrer na medida
do estritamente necessário e adequado para a prossecução desses outros valores
em confronto.
A prisão preventiva e a obrigação de permanência em habitação
restringem ambas de modo essencial a liberdade pessoal do arguido.
A privação da liberdade inerente à obrigação de permanência na
habitação é equiparável, no grau de lesividade da possibilidade da organização
da vida pessoal, à prisão preventiva. Não se ignorando diferenças relevantes,
que se repercutem em alguns aspectos do regime (veja-se, por exemplo, a
possibilidade de interposição da providência do habeas corpus ou no regime de
revisibilidiade trimestral da prisão preventiva – artigos 213.º, 220.º e 222.º
do Código de Processo Penal), em ambos os casos está em causa a afectação de uma
esfera da liberdade de tal modo relevante que justifica por si só, e não
obstante as diferenças, a conclusão de que ambas as medidas afectam o núcleo do
direito, estando sujeitas a idênticos crivos de proporcionalidade, de
necessidade e de adequação. O facto de a obrigação de permanência em habitação
poder ser um sucedâneo menos gravoso da prisão preventiva não afasta a sua
subordinação àqueles princípios.
Por outro lado, em ambos os casos se coloca um problema de
significado e repercussão destas medidas numa fase ulterior de cumprimento de
prisão efectiva. Adquirida esta compreensão, notar‑se‑á, agora, que impende
sobre o juiz o dever de interpretar o regime da execução de penas à luz dos
princípios do mínimo de intervenção e da proporcionalidade, o que, no caso dos
autos, convoca os fins do próprio sistema penal.
A referência legal aos seis meses de prisão efectiva como
mínimo para o efeito da concessão da liberdade condicional decorre de um
equilíbrio entre as finalidades inerentes à execução efectiva da pena de prisão,
tais como a prevenção geral – positiva e negativa – e as finalidades de
prevenção especial, surgindo, então, a reinserção social e os mecanismos
adequados a essa finalidade, dos quais se destaca a liberdade condicional (cf.,
quanto à compreensão do instituto da liberdade condicional como instrumento de
ressocialização do delinquente, Figueiredo Dias, Direito Penal Português. As
Consequências Jurídicas do Crime, 1993, p. 527 e ss.).
O problema do cômputo das medidas processuais privativas da
liberdade no período de seis meses deve ser analisado à luz destas finalidades
de punição. Na verdade, a privação de liberdade pela aplicação das medidas de
coacção não deixa de surtir um efeito preventivo‑geral e especial e até
retributivo, embora não sejam estas finalidades a sua justificação. Há, assim,
uma problemática penal inserida no próprio Processo Penal, que, embora não
justificando as soluções do Processo Penal, reflectir‑se‑á, inevitavelmente, em
efeitos sobre o arguido que deverão, depois, ser considerados nas soluções
penais, pelo menos aproveitados, quando, não sendo essa – repete‑se – a sua
função se concretizaram no caso (cf. Maria Fernanda Palma, “O Problema Penal do
Processo Penal”, em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos
Fundamentais, 2004, p. 41 e ss.). Durante todo o tempo em que a privação de
liberdade do arguido decorreu de aplicação das medidas de coacção, este veio a
retomar os estudos e a desenvolver uma actividade laboral. Verificou‑se, assim,
um continuum entre a fase de privação de liberdade anterior à condenação e a
posterior no que respeita à prevenção e à retribuição. Apesar de se dever
rejeitar que as medidas de coacção sejam pré‑punitivas, o certo é que tendo elas
tido um tal reflexo não poderá ignorar‑se o efeito produzido e considerá‑lo na
execução das penas, em atenção aos direitos do arguido e aos princípios
constitucionais da punição.
Impor o cumprimento de seis meses de prisão efectiva a quem sofreu a privação da
liberdade à ordem do mesmo processo durante vários anos, para que possa ser
concedida a liberdade condicional, por não se descontar o tempo da restrição de
liberdade sofrida devido às medidas de coacção, excede o que a
proporcionalidade, a necessidade e a adequação, na execução das penas impõe,
tendo em vista as finalidades da punição.
Concederia, portanto, provimento ao recurso.
Maria Fernanda Palma