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Proc. nº 36/94
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A recorreu para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo do acórdão de 14 de Julho de 1992 que, julgando procedente um recurso contencioso interposto por B, anulou um despacho do Secretário de Estado do Turismo, que havia negado provimento a um recurso hierárquico referente à homologação da lista de classificação final de um concurso de admissão de estagiários na Direcção-Geral do Turismo.
Igualmente recorreram daquele acórdão C,D e E, bem como o próprio Secretário de Estado do Turismo.
Os recursos foram admitidos, mas posteriormente o relator veio a julgar deserto o de A, por considerar que as respectivas alegações tinham sido apresentadas fora do prazo estabelecido no artigo 106º da LPTA - uma vez que este prazo era único para todos os recorrentes, e não sucessivo.
2. A recorrente reclamou para a conferência, mas essa reclamação foi desatendida, por acórdão de 12 de Outubro de 1993. Recorreu então para o Tribunal Constitucional, pedindo a apreciação da constitucionalidade do referido artigo 106º da LPTA, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC.
Nas alegações aqui apresentadas, a recorrente conclui que o tribunal a quo interpretou aquela norma do artigo 106º da LPTA «em termos de pôr em causa o princípio do Estado de direito e da confiança», violando ainda o princípio da igualdade e o artigo 20º, nº 1, da Constituição.
Por seu lado, o recorrido F, considerou não terem ocorrido as apontadas violações da Constituição; mas que o recurso não deveria ter sido admitido, por não estarem esgotados os recursos ordinários; que o seu âmbito devia restringir-se à questão da violação do princípio da confiança e do Estado de direito; e que a recorrente devia ser condenada como litigante de má fé.
Ouvida a parte contrária, o Tribunal Constitucional, pelo Acórdão nº 557/94, decidiu desatender aquelas questões prévias e relegar para a decisão final a apreciação da eventual má fé da recorrente.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
3. É objecto do presente recurso a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 106º da LPTA (Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho), que tem a seguinte redacção:
Artigo 106º (Alegações)
É de 20 dias o prazo para apresenta-ção das alegações, a contar, para o recorrente, da notificação do des- pacho de admissão do recurso e, para o recorrido, do termo do prazo do recorrente, salvo o disposto para os processos urgentes.
Como já foi referido, a decisão recorrida confirmou o despacho do relator que havia julgado deserto o recurso em causa. Tal despacho foi assim fundamentado:
A recorrente A apresentou as alegações de fls. 140 e ss. fora de prazo (art. 106º da LPTA).
Não obstante haver quem entenda que é aplicável o disposto nos n.os
2 a 4 do artigo 705º do CPC por re- missão do artigo 749º (cfr. 'Direito Processual Administrativo Contencio-so', 2ª ed., de Fernando Ferreira Pinto e Guilherme da Fonseca), en-tendo que o prazo do citado artigo da LPTA é único para todos os recorrentes e não sucessivo.
Por isso mesmo, no despacho de fls. 123 não se determinou qualquer ordem, nos termos do nº 2 do artigo 705º do CPC.
Não podendo ser atendidas, por extemporâneas, e tudo se passando como se não tivessem sido apresentadas, desentranhem-se as referidas alegações e entreguem-se à recorrente. Em consequência, julgo deserto o seu recurso, nos termos do disposto nos artigos 292º e 690º do Código de Processo Civil, supletivamente apli-cável.
A questão controvertida refere-se, pois, ao modo de contagem do prazo de entrega das alegações, previsto no artigo 106º da LPTA. A recorrente considera que devia haver prazos sucessivos; como o seu recurso foi admitido em segundo lugar, tal prazo também só devia começar a correr depois de terminado o prazo das primeiras recorrentes; e, interpretando a norma desse modo, as suas alegações teriam sido apresentadas em tempo. Todavia, o tribunal recorrido, confirmando o despacho que julgou deserto o recurso, decidiu que o prazo era único para todos os recorrentes; e, de acordo com essa interpretação, as alegações foram tardiamente apresentadas.
Sobre esta questão, a recorrente observa o seguinte:
O douto acórdão recorrido revela na sua fundamentação uma elevada insensibilidade para a tutela dos valores constitucionais do Estado de direito, da confiança dos litigantes, da igualdade e do acesso à justiça.
...
- o acórdão recorrido interpretou a norma do art. 106º LPTA em termos de pôr em causa o princípio do Estado de direito e da confiança: na verdade, entende que o relator não tinha a obrigação de explicitar no despacho de admissão do recurso que o prazo era único, apesar de saber que na única obra publicada em que se aborda a questão, da autoria de dois Conselheiros desse Tribunal, se perfilha solução oposta, considerando que a referência, no despacho de admissão, à sucessão cronológica de interposição dos recursos, com o envio pela secretaria de cópias dos requerimentos de interposição subscritos pelos advogados, era insus-ceptível de criar ao patrono do recorrente uma expectativa de gozar de um prazo sucessivo;
- o acórdão recorrido considerou que nos recursos de mérito em contencioso administrativo não se justifica - em caso de aparente silêncio do legislador - um entendimento garan-tístico da existência de prazos su-cessivos de alegações para os dife-rentes recorrentes ou recorridos, com o correlativo direito a que a secretaria faculte à parte respecti-va o exame do processo (art. 705º, nº 3, CPC), bastando-se com uma mera faculdade discricionária da secretaria traduzida em 'facilitar o processo às partes, sem prejuízo do andamento regular da causa quando o recurso o não suspenda' (art. 743º, nº 4, CPC). Tal entendimento viola seguramente o artigo
20º, nº 1, da Constituição.
- o acórdão recorrido considera que a formulação eventualmente ambígua do despacho de admissão implicava para o recorrente o ónus de pedir uma aclaração, com o risco de condenação em custas, em vez de admitir que as circunstâncias em que foi elaborado e notificado o despacho de admissão do recurso justificavam a adopção duma interpretação do art. 106º LPTA mais consentânea com o princípio da tutela da confiança e do Estado de direito, tanto mais que os comentadores referidos, na obra mais conhecida no meio jurídico, adoptaram solução oposta;
- o acórdão recorrido interpreta o art. 106º LPTA de forma objectivamente violadora do princípio da igualdade: de facto, considera que a remissão aí feita para o recurso de agravo deve afastar a possibilidade de todas as partes disporem de prazo igual para elaboração das suas alegações e para exame do processo, admitindo que umas partes possam lograr a consulta dos autos, facilitada pela secretaria, enquanto ou-tras, no prazo único conferido, podem não conseguir, mesmo após várias deslocações à secretaria, ter acesso ao mesmo para consulta;
- o acórdão pretende tutelar um fim legítimo (celeridade processual), que não foi explicitado pelo legis-lador, interpretando o art. 106º LPTA de forma a sacrificar os direitos processuais das partes e a confiança que devem ter numa interpretação razoável dos despachos judiciais a tal fim legítimo. Tal interpretação é violadora do art. 20º, nº 1, da Constituição.
5. Comecemos pela questão da violação dos princípios da confiança e do Estado de direito, bem como do direito à tutela judicial.
Segundo a recorrente, o acórdão recorrido viola os princípios da confiança e do Estado de direito, por entender que o relator não tinha a obrigação de explicitar no despacho de admissão do recurso que o prazo era único (quando essa é uma questão doutrinalmente controvertida, sendo até certo que um estudo da autoria de dois Juízes Conselheiros do STA defende a posição oposta). Essa interpretação feita do artigo 106º sacrificaria os direitos processuais das partes, violando assim igualmente o direito de acesso aos tribunais.
Mas, se, no despacho que admitiu o recurso, o relator tivesse logo esclarecido que considerava que o prazo do artigo 106º da LPTA era único e não sucessivo, continuaria a recorrente a considerar a norma inconstitucional ?
Claramente que não. Pois, nesse caso, a recorrente teria tomado nota de que o prazo para apresentar as alegações começava a correr imediatamente e portanto teria podido apresentá-las a tempo.
Ora, se assim é, a inconstitucionalidade, do ponto de vista da recorrente, não está, não pode estar, no modo de contagem dos prazos propriamente dito, mas sim no facto de não ter sido advertida de que o tribunal recorrido tinha um entendimento diferente do seu sobre tal matéria.
Portanto, e do ponto de vista da recorrente, o que é inconstitucional não é a norma em si (artigo 106º da LPTA), mas antes o modo como ela foi aplicada (despacho pouco claro). Pois, segundo a recorrente, a inconstitucionalidade só poderá residir no facto de o tribunal ter adoptado uma interpretação inesperada, e de tal modo inesperada que terá violado os princípios da confiança e do Estado de direito, bem como o direito à tutela judicial (artigo 20º, nº 1, da Constituição).
Só que o Tribunal Constitucional não tem poderes para apreciar e censurar uma inconstitucionalidade desse tipo. Apenas lhe cabe apreciar a inconstitucionalidade de normas, e não a inconstitucionalidade de decisões judiciais ou de procedimentos seguidos por um tribunal, decisões e procedimento em si mesmos considerados - artigo 280º da Constituição e artigo 70º da LTC.
A questão que serve de fundamento ao presente recurso seria objecto adequado para um recurso de amparo, inexistente no nosso ordenamento jurídico, estruturado, por exemplo, à semelhança do que foi apresentado pelo P.S. no Projecto de Revisão Constitucional nº 1/VI( Diário da Assembleia da República, II série A, Suplemento, de 14 de Julho de 1994): aí se propôs, no artigo 20º-A, justamente subordinado à epígrafe Recurso de amparo, que haverá recurso, com carácter de prioridade e celeridade, junto do Tribunal Constitucional, designadamente, «contra actos ou omissões dos tribunais de carácter processual que, de forma autónoma, violem direitos, liberdades e garantias, após esgotamento dos recursos ordinários».
Mas, por enquanto, tal recurso de amparo não está consagrado na Constituição ou na lei. E o Tribunal Constitucional tem já uma jurisprudência bem firmada, no sentido de que lhe cabe apreciar a inconstitucionalidade de normas jurídicas aplicadas pelos tribunais nas suas decisões, mas não a mera inconstitucionalidade de uma decisão judicial, em si mesma considerada.
Sendo assim, não pode ser aqui apreciada esta questão de inconstitucionalidade .
6. Passemos agora à questão da violação do princípio da igualdade.
Para a recorrente, a interpretação do artigo 106º da LPTA feita pelo tribunal a quo viola este princípio enquanto impede todas as partes de disporem de prazo igual para elaboração das suas alegações e para exame do processo, pois, em vez de adoptar um entendimento garantístico segundo o qual as partes teriam o direito a que a secretaria lhes facultasse o exame do processo, o tribunal veio admitir «uma mera faculdade discricionária da secretaria traduzida em 'facilitar o processo às partes, sem prejuízo do andamento regular da causa quando o recurso o não suspenda' (art.
743, nº 4, CPC)». E, portanto, admitir «que umas partes possam lograr a consulta dos autos, facilitada pela secretaria, enquanto outras, no prazo único conferido, podem não conseguir, mesmo após várias deslocações à secretaria, ter acesso ao mesmo para consulta».
Poderá dizer-se que da norma em causa, tal como o tribunal a quo a interpretou, resulta que a secretaria fica com essa faculdade discricionária de facilitar a consulta dos autos a umas partes e não a outras ?
Sobre a questão do acesso das partes aos autos, no acórdão recorrido diz-se - apenas - o seguinte:
(...) No agravo, ao contrário do que dispõe o artigo 705º, nº 2, daquele Código [de Processo Civil] para o recurso de apelação, o relator não fixa prazo para exame e alegações. O oferecimento da alegação, no agravo, é feito no prazo fizado por lei e, durante esse prazo, a secretaria facilitará o processo às partes. Mas se o processo é facilitado na secretaria para exame, é porque o prazo para alegações é único e corre simultaneamente para todos os agravantes, ainda que com advogados diferentes.
Ora, é claro que deste trecho - e é o
único em que o acórdão recorrido se refere à consulta dos autos na secretaria - não decorre a consequência que a recorrente refere. Pois, ao interpretar a norma do artigo 106º da LPTA como remetendo para o regime dos agravos, o tribunal apenas considerou que deveria haver um único prazo para a apresentação das alegações; mas daí não se pode extrair que a secretaria fique autorizada a estabelecer qualquer diferença de tratamento entre os vários recorrentes, ou entre estes e os recorridos. É de todo em todo estranha a essa norma uma conduta eventualmente discricionária ou até discriminatória da secretaria relativamente ao acesso das partes aos autos.
Portanto, a norma daquele artigo 106º da LPTA, tal como foi interpretada e aplicada pelo tribunal a quo, não merece qualquer censura do ponto de vista da constitucionalidade. Designadamente, não viola o princípio constitucional da igualdade.
7. Resta apenas apreciar a questão da má fé da recorrente, questão que havia sido relegada para a decisão final, conforme já foi referido.
Segundo o recorrido, essa má fé resultaria da insistência da recorrente em interpretar o despacho judicial em causa de uma maneira «que não tem a mínima razoabilidade jurídica nem constitucional, mais parecendo que a recorrente, ao criar este incidente processual, que culminou com o presente recurso para este Tribunal, sem esgotar todas as possibilidades de recurso ordinário, mais não visa do que entravar o andamento do processo contencioso de anulação do acto administrativo ao abrigo do qual foi nomeada, em 1991 [...]. Parecendo ser, assim, aquela apreciação de mérito, por parte daquele Tribunal [STA], que a recorrente visa evitar ou, pelo menos, retardar».
Esta interpretação que o recorrido faz da conduta processual da parte contrária não está suficientemente apoiada nos elementos constantes dos autos, tanto mais que o Tribunal Constitucional já decidiu, no Acórdão nº 557/94, acima citado, que os recursos ordinários, no presente caso, se encontravam efectivamente esgotados. Não pode dizer-se com segurança que a conduta processual da recorrente é meramente dilatória, conduzindo a uma das situações previstas no artigo 456º, nº 2, do Código de Processo Civil. Esta questão é, pois, improcedente.
III - DECISÃO
8. Assim, e pelo exposto, decide-se:
a) Negar provimento ao recurso;
b) Não condenar a recorrente como litigante de má fé. Lisboa, 16 de Janeiro de 1996 Luis Nunes de Almeida Messias Bento José de Sousa e Brito Bravo Serra Fernando Alves Correia
Guilherme da Fonseca (com a declaração de que não
vejo divergência entre a posição, nomeadamente quanto ao seu ponto 5, e o meu entendimento doutrinal do prazo sucessivo para apresentar alegações, entendimento que vem referenciado nos autos e de que dá notícia o acórdão) José Manuel Cardoso da Costa