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Processo n.º 657/12
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 21 de junho de 2012.
2. Pela Decisão Sumária n.º 501/2012, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:
«De acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Suscitação que há de ter ocorrido de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (artigo 72.º, n.º 2, da LTC). Requisito que, relativamente às três normas cuja apreciação é requerida pelo recorrente, não se pode dar como verificado nos presentes autos.
Com efeito, na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa o recorrente não suscita qualquer questão de inconstitucionalidade normativa reportada às disposições legais a que faz referência no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade».
3. Da decisão sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, com os seguintes fundamentos:
«1 - Entendeu a decisão ora reclamada que na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa o recorrente não suscita qualquer questão de inconstitucionalidade normativa reportada às disposições legais a que faz referência no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, pelo que não se verificará o requisito estabelecido no nº 2 do art. 72º da LTC para que este Tribunal deva conhecer do objeto do recurso.
2 - Ora, ao contrário do decidido naquela decisão sumária, entende o recorrente que se encontra preenchido o pressuposto processual da suscitação da questão da constitucionalidade perante o tribunal a quo, por essa questão ter sido colocada de modo claro e percetível.
3 - A minuta do recurso para a Relação expressamente aborda a questão da inconstitucionalidade da norma do nº 1 do art. 107º do RGIT, na dimensão interpretativa segundo o qual o limite mínimo de € 7.500,00, introduzido no nº 1 do art. 105º do mesmo diploma pelo art. 113º da Lei nº 64-A/2008, não é aplicável aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social, por violação dos princípios da proporcionalidade das penas e da igualdade, acolhidos no nº 2 do art. 18º e no art. 13º da Constituição.
4 - Embora não transcrita essa parte na decisão reclamada, o recorrente citou nas suas alegações o Acórdão da Relação de Lisboa de 15.07.2009, que aqui de novo se convoca, nos precisos termos constantes daquela peça processual:
“O principio da proporcionalidade impede uma tal discrepância na aplicação do novo regime previsto no art.º 105º, nº1 do RGIT relativamente aos crimes de abuso de confiança contra o segurança social e a descriminalização do abuso contra o fisco redundaria numa agravação do regime do abuso de segurança contra a segurança social.
“O que, no dizer do mesmo acórdão do RP [de 27.05.2009] “representa uma ofensa injustificada ao princípio da legalidade e poderia significar uma interpretação inconstitucional do art. 107º nº 1 do RGIT, por conduzir a um excesso de punição quando em causa estivesse o crime de abuso de confiança contra a segurança social de valor não superior a € 7.500, com consequente violação do princípio da proporcionalidade das penas e da igualdade (na medida em que situações iguais eram tratadas em termos sancionatórios de forma desigual) e, portanto, por contrariarem o estatuído nos arts. 18º nº 2 e 13º da CRP”. (sublinhados do recorrente)
5 - O mesmo sucede com a invocação da desconformidade com a Lei Fundamental da norma do nº 1 do art. 14º do RGIT, na dimensão interpretativa segundo a qual é licito condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais em medida superior à capacidade contributiva e financeira do arguido, por violação dos princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da dignidade da pessoa humana, vertidos no nº 2 do art. 18º, no art. 2º (porquanto ínsitos no princípio do Estado de direito democrático) e no art. 1º, todos da CRP.
6 - Na verdade, pode ler-se na motivação do recurso interposto da sentença proferida na primeira instância nesta parte reproduzida na decisão reclamada, mas sem que daí se extraísse o adequado corolário:
“Com efeito, o prazo de um ano é manifestamente insuficiente, atenta a situação económica do recorrente, para permitir o pagamento da indemnização arbitrada de € 33.839,58. Na verdade, em homenagem aos princípios, com tutela constitucional, da proporcionalidade, da razoabilidade e da dignidade da pessoa humana, a condição imposta não pode representar para o condenado uma obrigação cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir” (proposição depois levada ipsis verbis à conclusão 21ª).
7 - Deste modo, o recorrente suscitou, de modo processualmente adequado, previamente ao recurso de constitucionalidade, as questões de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, tal como é exigido pelo nº 2 do art. 72º da LTC, não se devendo, exigir, sob pena de um formalismo inaceitável, a utilização de fórmulas sacramentais para esse efeito.
Termos em que deve ser deferida a presente reclamação, decidindo esse Venerando Tribunal tomar conhecimento do objeto do recurso seguindo-se os demais trâmites na lei previstos».
4. Notificado da reclamação, o Ministério Público veio dizer o seguinte:
«1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 501/2012, não se tomou conhecimento do objeto do recurso quanto às três questões de inconstitucionalidade que o recorrente identificou no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal Constitucional, por ausência de suscitação adequada, durante o processo, faltando, pois, esse requisito de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
2º
Na reclamação agora apresentada, o recorrente apenas se refere à primeira e terceira questão, nada dizendo quanto à segunda, relacionada com uma certa interpretação do artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal.
3º
Nessa peça processual afirma que suscitou adequadamente as questões na motivação do recurso para a Relação de Lisboa, que seria, efetivamente, o momento processual adequado.
4º
Quanto à terceira, respeitante ao artigo 14.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), para demonstrar a afirmação, transcreve a conclusão 21.ª da motivação do recurso para a Relação.
5º
Ora, o ali afirmado, foi também tido em consideração na douta Decisão Sumária – que, aliás, também, a transcreve – para concluir pela não suscitação adequada.
6º
Vendo a motivação na parte pertinente, parece-nos evidente que não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
7º
Quanto à primeira questão (artigo 107.º, n.º 1, do RGIT), também se verifica que, não foi suscitada em relação a tal norma, qualquer interpretação que pudesse constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade.
8º
Este entendimento decorre do que afirmou o recorrente na motivação e que vem transcrito na Decisão Sumária, não sendo o mesmo alterado pelo facto, agora invocado na reclamação, de ter sido citado e transcrito, em parte, um Acórdão da Relação de Lisboa.
9º
No Acórdão referido, em que se transcrevem partes de outros, fala-se da eventual violação do princípio da legalidade, o “que poderia significar uma interpretação inconstitucional do artigo 107.º, n.º 1, do RGIT”, citando-se, a propósito, os artigos 18.º, n.º 2 e 13.º da Constituição.
10º
Ora, em tais afirmações, não se descortina a enunciação clara de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
11º
Por outro lado, ainda que utilizando decisões proferidas sobre a matéria, era ao recorrente que cabia identificar de forma inequívoca a dimensão normativa cuja inconstitucionalidade pretendia ver apreciada pela Relação, o que, manifestamente, não fez.
12º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Nos presentes autos foi proferida decisão de não conhecimento do objeto do recurso, por não se poder dar como verificado o requisito da suscitação prévia e processualmente adequada, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa relativamente às três normas cuja apreciação é requerida pelo recorrente. O reclamante refuta agora este entendimento quanto a duas normas.
1. O então recorrente requereu a apreciação de norma que reportou ao n.º 1 do artigo 107.º do Regime Geral das Infrações Tributárias. Argumenta agora que questionou previamente a constitucionalidade de tal norma, uma vez que citou o Acórdão da Relação de Lisboa de 15 de julho de 2009.
Sucede, porém, que a parte citada não permite concluir que foi questionada previamente e de forma adequada a conformidade constitucional daquela norma (cf. supra ponto 4. da reclamação). Refere-se aí “uma interpretação inconstitucional do art. 107.º n.º 1 do RGIT”, que não se chega a identificar. Ora, o Tribunal vem entendendo que “o cumprimento do ónus a que se refere o artigo 72.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional não se basta, com efeito, com a mera afirmação, perante o tribunal recorrido, de que certa interpretação normativa, não concretizada, é inconstitucional, pois que tal não traduz a invocação de uma verdadeira questão de inconstitucionalidade”. Na verdade, “o preceito vai mais longe, impondo ao recorrente a delimitação dessa questão, de forma a possibilitar ao tribunal recorrido a sua cabal compreensão e, portanto, a sua efetiva decisão” (Acórdão n.º 361/2006, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). É certo que a parte citada refere os casos em que esteja em causa o crime de abuso de confiança contra a segurança social de valor não superior a € 7.500, só que “colocar uma questão de constitucionalidade normativa, em termos de poder ser objeto do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do art.70.º da LTC, não é apenas afirmar que um determinado preceito, na sua aplicação a uma situação concreta que se descreve, é inconstitucional (...). Colocar verdadeiramente uma questão de constitucionalidade reportada a um determinado sentido normativo de um preceito é, muito mais do que isso, identificar esse sentido normativo que se considera inconstitucional” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 501/2004, disponível naquele sítio).
2. Foi também requerida a apreciação de norma reportada ao n.º 1 do artigo 14.º do Regime Geral das Infrações Tributárias. Argumenta que questionou a constitucionalidade desta norma na motivação do recurso, transcrevendo para o efeito uma passagem desta peça processual. Sem razão.
Da passagem transcrita não decorre a suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa, ainda que a mesma pudesse ser associada ao artigo 14.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, preceito que o recorrente não deixa de referir em passagem anterior. Com efeito, o que o recorrente questiona, afinal, é a aplicação do preceito legal ao caso, isto é, o estabelecimento do prazo de um ano, tendo em conta a sua situação económica e o montante da indemnização arbitrada (cf. supra ponto 6. da reclamação).
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 5 de dezembro de 2012.- Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral.