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Processo n.º 283/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1.A. e B. reclamaram, ao abrigo do n.º 4, do artigo 76.º da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do despacho de 23 de Novembro de 2006, do
relator do processo no Supremo Tribunal de Justiça, que não admitiu recurso que
interpuseram para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC, do acórdão daquele Supremo Tribunal, de 19 de Dezembro de
2006.
Neste acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça, julgando
procedente recurso interposto de acórdão da Relação que decidira em sentido
favorável aos recorrentes, absolveu do pedido C., por considerar que não é
judicialmente exigível o dever de esta abrir a porta do gavetão onde repousam os
restos mortais do seu ex-marido e filho dos recorrentes, para que estes possam
contemplar a urna e manter aí objectos de culto, por ser comportamento que
respeita a uma obrigação natural, cujo incumprimento é insusceptível de
imposição coactiva, nos termos do artigo 402.º do Código Civil.
O despacho reclamado não admitiu o recurso com fundamento em
que os recorrentes não suscitaram oportunamente a questão de constitucionalidade
e não se tratar de uma situação excepcional ou anómala que dispensasse desse
ónus.
Os reclamantes sustentam que a interpretação e a aplicação do
art.º 402.º do CC ao caso, “com que só aí foram confrontados, tem de
considerar-se, na economia do processo, totalmente imprevisível, inesperada – e,
logo por isso, violadora do princípio da confiança dos destinatários das normas
legais recorrente ao outro princípio constitucional estruturante que é o do
Estado de direito democrático (art.º 2.º) – excepcional ou mesmo insólita e
surpreendente. Não cabia, pois, aqui a existência do prévio juízo de prognose
relativo à própria aplicação dessa norma (até mais do que à interpretação que
lhe é dada para o efeito) ou que antevisse a possibilidade dessa aplicação”. E
isto porque “as partes discutiram a questão e as instâncias decidiram-na, tanto
na providência cautelar apensa como na acção principal, à luz do direito de
propriedade do gavetão do jazigo ou, inversamente, do seu exercício abusivo por
ofensa do direito a praticar o culto ao cadáver do filho, causando moléstia ou
prejuízo aos Recorrentes, herdeiros para este efeito, da personalidade moral e
do seu direito ao repouso eterno, da sua memória, do sítio em que repousa o
supremo e degradado objecto dela, e do culto a essa memória, direitos
imateriais, ínsitos no direito geral da personalidade dos Recorrentes, cuja
protecção e defesa lhes compete”.
O Exmo. Procurador-Geral adjunto emitiu o seguinte parecer:
“A presente reclamação é, a nosso ver improcedente, pela circunstância de os ora
reclamantes não terem suscitado, durante o processo, qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, susceptível de servir de base ao recurso de
constitucionalidade interposto, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do art.º
70.º da Lei n.º 28/82.
E não se diga que – perante o objecto do litígio e a eventualidade de lhe vir a
ser aplicada decisão final desfavorável – não tinham o ónus de o fazer: na
verdade, todo o litígio entre as partes se articulava em torno de uma ponderação
entre a tutela dos direitos de personalidade e ao culto dos mortos, invocados
pelos ora reclamantes, e o direito de propriedade sobre o local do sepulcro,
cabendo naturalmente aos ora reclamantes o ónus d suscitar a
inconstitucionalidade da interpretação normativa que fizesse prevalecer a tutela
da propriedade. Note-se que a decisão do Supremo, ao reconhecer a tutela dos
interesses invocados pelos reclamantes ao nível das obrigações naturais não pode
propriamente qualificar-se como “decisão surpresa”, de conteúdo “insólito” ou
“imprevisível”. Note-se, ainda, que em rigor – não nos parece que a norma
constante do art.º 402.º do CC constitua, só por si, a “ratio decidendi” do
acórdão recorrido, tendo a figura (e a incoercibilidade) típico das “obrigações
naturais” de ser articulada com a interpretação adoptada quanto ao âmbito do
art.º 71.º do CC – e sendo inquestionável que tal norma sempre foi convocada
como relevante e decisiva para a dirimição da causa.
Pelas razões apontadas, somos de parecer que se não verificam efectivamente os
pressupostos de admissibilidade do recurso interposto”.
2. Para decisão da reclamação interessa considerar as ocorrências
processuais seguintes:
a) Os ora reclamantes propuseram contra C., viúva do seu filho D. uma
acção em que, além do mais, pediram a condenação da ré a facultar-lhes o acesso
à urna do falecido, abrindo a porta do gavetão quando pretendam ou cedendo-lhes
a chave do mesmo, bem como a devolver-lhes os objectos de culto que retirou e a
aceitar a sua reposição no interior do gavetão;
b) O tribunal de 1ª instância julgou o pedido improcedente, tendo os ora
reclamantes interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa;
c) O Tribunal da Relação de Lisboa concedeu provimento ao recurso, com
fundamento em que não pode deixar de merecer tutela jurídica, ao abrigo do n.º 2
do artigo 71.º do Código Civil, “a pretensão por parte dos Autores de praticarem
o culto junto e em contemplação da urna do seu filho, não obstante a mesma se
encontrar depositada em gavetão pertencente à Ré, uma vez que se encontra
provado que a porta do referido gavetão é em mármore e não possibilita qualquer
visualização da urna do exterior”e que “ponderando o fim social e económico do
direito de propriedade da Ré sobre o gavetão (a que não pode ser alheia a
especificidade que lhe advém da circunstância do referido gavetão depositar os
restos mortais de uma pessoa, neste caso, o respectivo cônjuge que,
concomitantemente, é filho dos Autores), há que entender por ilegítimo o seu
exercício, nos termos previstos no citado artº 334º, por obstar a que os Autores
possam prestar culto à memória do filho contemplando a urna”.
d) Concedendo provimento a recurso interposto pela ré, por acórdão de 19
de Dezembro de 2007, o Supremo Tribunal de Justiça absolveu-a do pedido com a
seguinte fundamentação:
“[…]
1- Direito mortuário.
É “thema decidendum” saber se a recorrente está ou não obrigada a abrir a porta
do gavetão aos recorridos ou facultar-lhes a respectiva chave, para que estes
possam ter acesso à uma do filho, aí sepultado.
Indiscutível a propriedade do sepulcro que, independentemente do título causal,
ficou assente ser pertença da recorrente.
Crê-se, contudo, que a questão não deve ser abordada em termos de exercício de
um direito real mas sim noutra sede.
E “causa petendi” o direito de “culto à memória do filho” que os recorridos
alegam ter.
O destino a dar ao corpo, após a morte, varia, ao longo dos tempos, de acordo
com as concepções sociais e religiosas vigentes, tendo por base a preocupação de
zelar pelo futuro “post mortem” ou tão somente, pelo culto, como manifestação de
amor, de saudade, de privação, de respeito.
Se o mais frequente é a inumação, quer em cova aberta, depois aterrada, quer à
superfície, com espessa cobertura de terra e pedras, quer em depósito numa
cavidade, o certo é que muitas outras modalidades se perfilam (cremação,
imersão, abandono, exposição sobre plataforma, mumificação, antropologia, etc. –
cf Dr. Victor M. Lopes Dias, “Cemitérios, Jazigos e Sepulturas”, 1, 14).
O culto público dos mortos, com expressão visível na arte tumular – muitas vezes
monumentos emblemáticos de uma civilização, como as pirâmides ou o Taj Mahal –
nos panteões nacionais – como o “Pantheon français”, a “Dome des Invalides” ou o
nosso Panteão Nacional – ou em certas zonas de grandes monumentos religiosos –
“Westminster Abbey”. Escorial, Alcobaça, Jerónimos – são formas de perpetuar a
memória de cidadãos que se distinguiram nas artes, na ciência, na política,
enfim.
Já a tumulária privada representa – quando não mera ostentação de uma linhagem –
o culto da memória, da personalidade moral, da presença dolorosa de uma ausência
definitiva de alguém estremecido e que queremos, e cremos, assim libertar da
“lei da morte”, do esquecimento de que falava Camões.
Se ninguém pode ser privado da possibilidade de prestar culto a seus mortos, de
conviver com a sua memória e com a sua saudade, o certo é que as manifestações
externas desse recolhimento variam com a personalidade de cada um, os ritos
religiosos, os usos da comunidade, as tradições familiares ou de grupo.
As várias culturas têm, nessa perspectiva, calendarizados os “dias dos
defuntos”, como, e em expressão característica a cultura confucionista onde
todas as Primaveras, pela altura da terceira lua do ano, se faz a cerimónia
cultural dos antepassados, segundo a qual a primeira alma – a materializada na
terra, por ligada ao cadáver (que não a etérea, que se desprende do corpo para
ingressar no cosmos) mantém, por esse culto, a continuidade da família.
Na Constituição da República e no Código Civil não se encontra consagrado
expressamente o direito ao culto dos mortos.
Ali consagra-se, apenas, genericamente, a liberdade de consciência, de religião
e de culto – artigo 41° n°1 – numa clara perspectiva de livre opção, de prática
religiosa.
Já o CC se limita à tutela geral dos direitos de personalidade, ainda que depois
da morte do respectivo titular (artigo 71°).
Por sua vez, o chamado “direito mortuário”, constituído por um conjunto de
diplomas – DL n° 433/82, de 27 de Outubro, 411/98, de 30 de Dezembro, alterado
pelos DL n° 5/2000, de 29 de Janeiro e 138/2000, de 13 de Julho – destina-se,
nuclearmente, a estabelecer o regime jurídico da remoção, transporte, inumação,
exumação, transladação e cremação de cadáveres e aos actos relativos às ossadas,
cinzas, fetos mortos e peças anatómicas, bem como localização de cemitérios.
Confere – artigo 3º do DL n° 411/98 – legitimidade para requerer a prática
daqueles actos, e por esta ordem, ao testamenteiro (em cumprimento de disposição
testamentária), ao cônjuge sobrevivo, ao unido de facto, a qualquer herdeiro, a
qualquer familiar, a qualquer pessoa ou entidade, ao representante diplomático
ou consular do país da nacionalidade (se o falecido não tiver nacionalidade
portuguesa).
Daí que toda a gestão do destino do cadáver, e as respectivas exéquias, cumpra,
em primeira linha (e na ausência de disposição testamentária especifica) ao
cônjuge sobrevivo.
Presume o legislador que o cônjuge após um comungar de vida com o falecido, e
tendo partilhado bons e maus momentos na gestão da família, melhor conhece a sua
personalidade, interpretando o que ele desejaria se ainda pudesse optar.
Ademais, colocando-o a par dos descendentes, na primeira classe de sucessíveis –
artigo 2133° n° 1 a) do CC – privilegiando-o em matéria de alimentos – artigos
2015° a 2018° CC – conferindo-lhe a tutela – artigo 143° n°1 a) CC – e a
curatela – artigo 156° CC – o legislador faz ressaltar o relevante papel de um
cônjuge em relação ao outro.
Mas não será por esta via que se buscará o destino da lide.
E que,
2- Obrigações naturais.
Estamos no âmbito das obrigações naturais.
Dispõe o artigo 402° do CC “a obrigação diz-se natural, quando se funda num mero
dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível,
mas corresponde a um dever de justiça.”
São pressupostos – ou requisitos positivos – o basear-se a obrigação num dever
moral ou social e ao seu cumprimento corresponder um dever de justiça.
E requisito negativo a sua não coercibilidade.
Vejamos.
2.1- Como acima se acenou o culto dos mortos faz parte da tradição da nossa
sociedade com forte enraizamento na cultura judaico-cristã.
Como se disse no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 11 de Dezembro de 2003 —
03B2523 — brilhantemente relatado pelo Cons. Pires da Rosa, “aí nesse espaço ou
local concreto, onde estão os cadáveres ou as ossadas dos que nos são queridos,
ou onde repousam as cinzas daqueles que amámos (ainda que esse local seja o mar
ou uma roseira no jardim), aí fazemos o centro do culto dessa memória que é
nossa e da personalidade moral de que a morte do corpo da pessoa amada nos fez,
apesar de nós, depositários.”
Deixar viver essa memória dos entes queridos, designadamente, como aqui, aos
pais de um jovem falecido prematuramente aos 30 anos de idade (e haverá maior
dor do que perder um filho; a revolta de perder parte de nós?...) é um
indiscutível dever moral e social.
Privar uns doridos pais da proximidade possível do “sítio da memória”, e por
muito conflitual que seja a relação, é incumprir esse dever, é o olvidar
ostensivo de permitir que ali, no recolhimento intranquilo, chorem a sua perda.
Mas não basta o dever moral, como dever de consciência.
O dever de consciência tem de ser também um dever de justiça, senão o seu
cumprimento traduz-se numa mera liberalidade.
O dever de justiça não se confunde com o mero dever genérico de caridade, com o
dever social de cortesia, com o mero dever de gratidão ou com o propósito de
gratificar ou retribuir um serviço.
Só há obrigação natural “quando os tribunais entendem que uma consideração de
moralidade merece ser satisfeita e o direito não a consagrou. A obrigação
natural compreende tudo o que não é nem uma mera obrigação civil munida de
acção, nem uma pura liberalidade.” (Prof Vaz Serra, apud “Obrigações Naturais”,
in BMJ, 53-13, citando Planiol, Ripert e Radouant, “Obligations – 2°, VII,
“Traité Pratique de Droit Civil Français” n° 983).
Ou como refere o Prof. Almeida Costa: “Claro que o ponto de partida da indagação
reside na própria consciência da pessoa que realiza a prestação, no pensamento
que a inspira.”
Trata-se do “cumprimento ou reconhecimento voluntário – efectuado em obediência
a um dever moral e de justiça, e não com o intuito de fazer uma liberalidade.
Contudo, um escrúpulo de consciência meramente subjectivo não bastará para
justificar uma obrigação natural. Seria ir demasiado longe. Importa que esse
dever de consciência corresponda às concepções sociais, que se mostre
objectivamente aprovado e tido como normal. Em resumo: compete à jurisprudência,
de harmonia com as concepções predominantes e nas circunstâncias concretas de
cada situação, averiguar primeiro, se existe um dever moral ou social e,
seguidamente, se esse dever moral ou social é tão importante que o seu
cumprimento envolve um dever de justiça.” (in “Direito das Obrigações”, 10ª ed.,
176).
Há que apurar se esse dever também respeita à consciência jurídica.
Terão de ser deveres morais ou sociais juridicamente relevantes, mas que não
devem ser transformados em figuras de direito.
É o “distinguo” entre os simples deveres morais ou sociais e as obrigações
naturais “quo tale”, sempre que tal não integre uma obrigação civil.
A mera existência de um dever de justiça, que não uma obrigação jurídica,
torna‑as obrigações imperfeitas (lege humana non prohibuntur omnia vitia”).
O Prof. Vaz Serra já reconhecia ser “extremamente difícil” aquela distinção
sendo “delicada a investigação destinada a apurar se, nelas, um princípio
jurídico geral mais ou menos preciso (suum cuique tribuere, neminem laedere,
honeste vivere) as erige à altura de verdadeiras obrigações jurídicas.” (ob.
cit. 37).
Crê-se que a solução está em averiguar se o dever moral ou social, em concreto,
deve ser reconhecido em termos de legitimar obrigações.
Isto é se devem merecer alguma tutela do direito, por corresponderem a um dever
de justiça, embora com exclusão da coercibilidade.
E tal caracterização varia com a tempo e com as sociedades.
Terá de ser feita uma valoração casuística com apelo ao sentir social ou às
concepções sociais dominantes, desde que razoáveis e não eivadas de qualquer
tipo de fundamentalismo obscurantista.
Os tribunais são chamados a pronunciar-se “a priori” quanto a obrigações
naturais, em regra sobre a irrepetibilidade, mas podendo antes e até em acção
para tal intentada qualificar a obrigação como natural ou civil (cf. Prof.
Manuel de Andrade – “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, 79 ss; o
Acórdão do STJ de 10 de Maio de 1983 – 070707).
Ainda o Prof. Manuel de Andrade apontava para “as circunstâncias do caso” e para
o “reconhecimento pelo direito natural, que só cura do justo” (in “Direito Civil
– Teoria Geral das Obrigações”, 1955, n°14).
“Para que haja obrigação natural é necessário que exista como fundamento da
prestação, um dever moral ou social específico entre pessoas determinadas cujo
cumprimento seja imposto por uma recta composição de interesses (ditames da
justiça)” – cf. Prof. A. Varela, “Das obrigações em geral”, 9ª ed., I, 748).
Quem decide sobre a existência (objectiva) do dever no caso em controvérsia é o
julgador baseado na consciência colectiva (Oppo in “Adempimento e liberalità”,
n°52).
Dir-se-á, ainda, que a obrigação natural não se restringe a prestações
pecuniárias, ou avaliáveis em dinheiro, mas a qualquer tipo de prestação ainda
que não remuneratória.
2.2- Aqui chegados, e concluindo-se da matéria de facto que os recorridos
tiveram, até certa altura (mudança de fechadura do gavetão) contacto directo com
o interior (aí colocando objectos) e assim prestando o seu culto à memória do
filho; verificando-se que esse tipo de culto faz parte da tradição cultural,
para, nas palavras de Virgílio Ferreira, procurar ‘justificar a vida em face da
inverosimilhança da morte”, o dever de não impedir esse contacto assume a
natureza de um dever de justiça.
Estão presentes os pressupostos da obrigação natural.
Só que, e de acordo com o citado artigo 404° do Código Civil não há
coercibilidade do vínculo obrigacional, por a obrigação ser imperfeita ou de
juridicidade reduzida.
Este é o traço mais saliente das obrigações naturais, ou seja o seu cumprimento
não é judicialmente exigível por ausência da coercibilidade jurídica sendo que
tratando-se de prestações financeiras entregues ocorre a irrepetibilidade.
Há, em consequência, plena liberdade de incumprir por o direito do credor não
ser accionável.
São, pois, arredadas todas as disposições das obrigações civis conectadas com a
realização coerciva da prestação.
“E a necessidade de preservar a incoercibilidade da obrigação natural tem ainda
como consequência, quanto às prestações periódicas, que a realização da
prestação relativa a certo período não vincula o devedor ao cumprimento das
prestações correspondentes aos períodos subsequentes.” (Prof. A. Varela, ob.
cit. 1, 758).
A falta de possibilidade de impor coactivamente o cumprimento desse dever de
justiça, que resulta do artigo 402° do CC, inviabiliza a procedência desta acção
de condenação.
Mas sente-se, ainda que como mera observação lateral e parafraseando Alexandre
O’Neill, que quando a morte nos dá todas as razões de amarmos sem reservar
sentimentos, bem andaríamos se pudéssemos partilhar esses sentimentos autênticos
com grande paz interior.
3- Conclusões.
Pode concluir-se que:
a) Ninguém pode ser privado da possibilidade de prestar o culto aos seus mortos,
de conviver com a sua memória e com a sua saudade sendo que a exteriorização
desse recolhimento varia com os usos da comunidade, as tradições familiares ou
de grupo, os ritos religiosos ou, enfim, a personalidade de cada um.
b) A Constituição da República, o Código Civil e o direito mortuário – DL n°s
433/82, 422/98, 5/2000 e 138/2000 – não consagram expressamente o direito ao
culto dos mortos.
e) São pressupostos das obrigações naturais o basear-se a obrigação num dever
moral ou social e o seu cumprimento corresponder a um dever de justiça. E
requisito negativo a sua não coercibilidade.
d) Privar os pais da proximidade possível do túmulo do filho é incumprir um
dever social ou moral, não permitindo que, no recolhimento intranquilo, chorem a
sua perda.
e) O dever de consciência assume a natureza de dever de justiça quando não é um
mero dever social de cortesia ou uma liberalidade mas corresponde a uma situação
tão socialmente relevante que merece certa tutela do direito, embora não se
transforme em dever jurídico gerador de obrigação civil.
f) Cumpre aos tribunais decidir, após apreciação casuística, e com apelo ao
sentir social e às razoáveis concepções dominantes, se um determinado dever
moral ou social tem ínsito um principio jurídico de natureza geral e merece
alguma tutela, por reconhecimento pelo direito natural.
g) Da obrigação natural, que não se limita a obrigações pecuniárias, mas a
qualquer tipo, ainda que não remuneratório, estão arredadas as disposições das
obrigações civis conectadas com a realização coactiva da prestação.”
e) Os recorrentes interpuseram recurso deste acórdão para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, por
requerimento do seguinte teor:
“2. Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 402.°
do CC ou, mais rigorosamente, a sua interpretação e aplicação ao caso concreto e
que conduziu ao resultado constante da decisão recorrida do mesmo passo que
afasta da Constituição, do Código Civil e do direito mortuário, o direito ao
culto dos mortos, premissa (al. b) das Conclusões) que inculca a opção, prévia,
formal e dedutiva, pela aplicação da “noção” de obrigação natural e uma
interpretação normativa que, erigida como foi (ou pode vir a ser) em critério
jurisprudencial, no pressuposto de uma vocação de generalidade e abstracção, se
mostra inconciliável com a Constituição. – Cfr. Lopes do Rego, Jurisprudência
Constitucional, n°. 3, págs. 7 a 10.
3. Com efeito, a interpretação e a aplicação daquele preceito violam, na medida
em que arredam e excluem a aplicação destes, o art.º 70°. n°. 1 do Código Civil,
que consagra o direito geral da personalidade (dos Recorrentes) que é um direito
fundamental materialmente constitucional (art.° 16°. n°. 1 da CRP), que assenta
no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e da vontade popular
(art°. 1º) e do princípio do estado de direito democrático (art.° 2.°); – Cfr.,
naquele sentido, Capelo de Sousa, Direito Geral da Personalidade (Cap. IV, 15°.,
3.) pág. 620, Coimbra Editora, 1995, que cita, em apoio dessa sua tese, G.
Canotilho e V. Moreira, in CRP Anotada, agora 4ª edição Coimbra Editora, 2007,
pág. 366, e Jorge Miranda, desde Constituição de 1976, Formação, Estrutura,
Princípios Fundamentais, Liv., Petrony, 1978, pág. 351.
Assim como violam, o art.º 71°. n°. 1 e 2, ainda do CC, na medida em que “os
direitos de personalidade” gozam igualmente de protecção depois da morte do
respectivo titular fazendo-lhe corresponder “providências adequadas”, e
especificando quem tem legitimidade para as requerer. A tal ponto que se pode
falar, para além de direitos especiais de personalidade de pessoas falecidas
expressamente regulados, de uma tutela geral da personalidade do defunto, de
natureza ontológica já que a personalidade cessa com a morte e o que resta dela
se traduz em bens jurídicos imateriais – Cfr. Capelo de Sousa, obra citada, pág.
193.
4. Para além disso, a interpretação normativa e aplicação do art°. 402.° pela
forma excludente em que o foi ao concreto, tendo em conta o art.º 16°, n.º. 2,
da CRP, que manda interpretar e integrar os preceitos constitucionais e legais
relativos aos direitos fundamentais de harmonia com a Declaração Universal dos
Direitos do Homem (designadamente art°. 7.º, 18°. e 26°. n°.2) viola esse
preceito quando conjugado com a liberdade de culto (art°. 41°. da CRP), com a
integridade moral garantida às pessoas (art.º 25°. N.º 1) e com a protecção
legal contra quaisquer formas de discriminação (art°. 26.°, 1, in fine), no caso
os Recorrentes, enquanto pais do marido da Recorrida.
5. Tal interpretação normativa e o seu resultado plasmado na decisão, viola
também o próprio direito à vida já que, “o cadáver, enquanto suporte da vida
mesma, não deixa assim de beneficiar de uma tutela legal que se filia, ainda de
que de forma remota e não exclusiva, no direito consagrado no art°. 24°. da
Constituição... - Cfr. Jorge Miranda, Constituição Portuguesa Anotada, pág. 245,
Coimbra editora, 2005.
6. A questão de inconstitucionalidade não foi, nem razoavelmente o poderia ter
sido, suscitada nos autos não tendo os Recorrentes disposto de oportunidade
processual para levantar a questão antes de proferir o douto acórdão.
Com efeito, a interpretação e a aplicação do art.° 402.° do CC ao “casus
decidendum”, tem de considerar-se, na economia do processo, totalmente
imprevisível e inesperada e, logo por isso, violadora do princípio da confiança
dos destinatários das normas legais recorrente ao outro princípio constitucional
estruturante que é o do Estado de direito democrático (art°. 2°.). – Cfr. ACTC
n°. 509/2006, de 26/06/2006, n°. 336, de 6/03/96, nº 432, de 7/04/94, 188, de
3/03/93, n.º 473, de 10/12/92, n.° 261, de 23/07/86.
É que as partes discutiram a questão e as instâncias decidiram-na, tanto na
providência cautelar apensa como na acção principal, à luz do direito de
propriedade do gavetão do jazigo ou, inversamente, do seu exercício abusivo por
ofensa do direito a praticar o culto ao cadáver do filho, causando moléstia ou
prejuízo aos Recorrentes, herdeiros para este efeito, da personalidade moral e
do seu direito ao repouso eterno, da sua memória, do sítio em que repousa o
supremo e degradado objecto dela, e do culto a essa memória, direitos
imateriais, ínsitos no direito geral da personalidade dos Recorrentes, cuja
protecção e defesa lhes compete.”
f) O recurso não foi admitido, tendo sido proferido despacho do
seguinte teor:
“O recurso a que se referem os artigos 280.º n.º 1, alínea b) e n.º 4 da
Constituição da República e 70.º, n.º 1 alínea b) e n.º 2 da Lei n.º 28/82
depende da verificação simultânea dos seguintes requisitos: aplicação de norma
após a sua submissão a um juízo de inconstitucionalidade; suscitação da
inconstitucionalidade no decurso do processo pela parte que recorre;
inadmissibilidade de recurso ordinário para esgotamento dos que ao caso
caberiam.
Ora, não se mostra, desde logo, aplicada qualquer norma que, no decurso do
processo, os recorrentes tivessem assacado de desconformidade à Constituição,
quer em si mesmo, quer na interpretação que o Tribunal lhe deu.
Daí que a aventada inconstitucionalidade não seja de conhecer por não se tratar
de norma cuja inconformidade com o diploma fundamental tenha sido, antes,
suscitada pela recorrente e não ter a norma, assim impugnada, sido objecto de
aplicação.
No tocante a oportunidade, o Acórdão do TC n.º 153/93 (DR II, 16 de Março de
1993) sedimentou jurisprudência admitindo que se excepciona a regra – em sentido
funcional, que não formal – da suscitação da constitucionalidade em situações
anómalas “em que o interessado não disponha de oportunidade processual para
levantar a questão antes de proferida a decisão” (cfr. ainda o Acórdão do TC de
19 de Junho de 1991 – BMJ 408-616).
Serão em regra situações de interposição de uma lei nova ou quando não é
exigível um “juízo prévio de prognose relativo à aplicação (da norma ou da
interpretação questionada) em termos de se antecipar ao proferimento da decisão,
suscitando logo a questão da inconstitucionalidade”.
Como tal não se verificou “in casu” – designadamente quanto a qualquer
interpretação do artigo 402.º do CC conectada com a CRP – não admito o recurso.
Ademais, o recurso para o Tribunal Constitucional destina-se a clarificar a
aplicação de norma, um segmento ou uma interpretação, desconforme à lei
fundamental, que não a impedir, ou protelar, o trânsito de um decaimento, o que
cada vez mais (e não é apodíctico no caso vertente) acontece.
Custas pelos recorrentes, com 6 UCs de taxa de justiça.
Notifique.”
3. É este o despacho reclamado que assenta em dois passos
essenciais de raciocínio: os recorrentes não suscitaram a questão de
constitucionalidade que querem submeter a apreciação do Tribunal Constitucional
e não se trata de uma situação em que o cumprimento desse ónus deva
considerar-se não exigível, de acordo com a jurisprudência do Tribunal
Constitucional.
Vejamos.
Os recorrentes aceitam que não suscitaram perante o tribunal
que proferiu a decisão recorrida a questão de constitucionalidade de qualquer
norma, designadamente, daquela cuja apreciação agora pretendem submeter ao
Tribunal Constitucional. Mas sustentam que se verifica uma daquelas situações
excepcionais ou anómalas em que não é possível aplicar a regra da exigência da
arguição da inconstitucionalidade até à decisão, porque não era exigível que
antevissem a possibilidade de aplicação da norma do artigo 402.º do Código Civil
ao caso concreto.
Efectivamente, recai sobre as partes o ónus de perspectivar as
várias hipóteses razoáveis de selecção e interpretação do direito potencialmente
aplicável à situação e de suscitar antecipadamente as inconstitucionalidades daí
decorrentes. É que, como se ponderou, entre muitos, no acórdão nº 479/89,
publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992, 'não pode
deixar de recair sobre as partes o ónus de considerarem as várias possibilidades
interpretativas das normas de que se pretendem socorrer, e de adoptarem, em face
delas, as necessárias cautelas processuais (por, outras palavras, o ónus de
definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada). E isso –
acrescentar-se-á – também logo mostra como a simples 'surpresa' com a
interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos,
certamente, em princípio) a configurar uma dessas situações excepcionais [...]
em que seria justificado dispensar os interessados da exigência da invocação
'prévia' da inconstitucionalidade perante o tribunal a quo'.
Mas, reafirmada esta regra, como o Tribunal Constitucional tem
repetidamente afirmado, o recorrente pode ser dispensado do ónus de invocar a
inconstitucionalidade “durante o processo” nos casos excepcionais e anómalos em
que não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então
admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os
acórdãos deste Tribunal com os n.ºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados,
respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e
663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994).
Assim, já será exigência desproporcionada impor esse juízo de prognose em
situações em que determinada norma apenas é chamada à decisão do caso pelo
tribunal de último grau de recurso, sem que a discussão travada ao longo do
processo e as decisões anteriores nele tomadas tenham versado sobre tal
possibilidade, sequer pela referência a um determinado instituto ou complexo
normativo a que a norma respeita ou em que se insere, e sem que exista uma
corrente jurisprudencial ou doutrina consistente que sejam idóneas para alertar
a comunidade dos operadores judiciários, medianamente informados, cautelosos e
capazes, para essa outra perspectiva de solução do litígio. Nestas
circunstâncias, por mais pertinente que a aplicação da norma ou o sentido
normativo adoptado nessa fase processual venha a revelar-se, deve considerar-se
tal aplicação imprevisível para efeitos de, num entendimento funcional dessa
exigência, não vedar o acesso ao Tribunal Constitucional por incumprimento do
ónus de suscitar a questão de constitucionalidade de modo processualmente
adequado em termos de o tribunal que proferiu a decisão recorrida estar obrigado
a dela conhecer.
Ora, é certo que sempre esteve em discussão saber se a ré
estava ou não obrigada a abrir a porta do gavetão aos recorridos ou
facultar-lhes a respectiva chave, para que estes possam ter acesso à urna do
filho, aí sepultado, e a deixar aí permanecer certos objectos de culto. Estava
em causa determinar se os ora reclamantes podiam reclamar protecção jurídica, no
confronto com a recorrida, para um certo modo de prestar culto aos restos
mortais de seu filho. Mas a questão sempre foi discutida na acção por
contraposição ao direito de propriedade (ou equivalente para efeitos do poder de
exclusão de terceiros, de acordo com o regime jurídico dos cemitérios) e seu
exercício abusivo por parte da ré, ao inviabilizar esse modo de exteriorização
do culto, por parte dos autores, à memória do filho. A sentença de 1ª instância
entendeu que a ré se mantinha nos limites do exercício do seu direito e a
Relação que excedia os limites inerentes ao seu fim social.
Foi contra a perspectiva da Relação, de que aos ora reclamantes
assistia o direito de desenvolver o culto nesses termos e de que a ré fazia um
uso abusivo do seu direito de propriedade ao impedi-los, que esta se insurgiu no
recurso de revista, sustentando que a sua conduta não ofendia a memória do
falecido nem os direitos dos recorrentes e de que a recusa em aceder à pretensão
destes traduz um uso do seu direito de propriedade sobre o gavetão que não viola
o art.º 334.º do Código Civil. Os ora reclamantes contrapuseram o seu
entendimento quanto a essas mesmas normas que a aí recorrente considerava
violadas.
O Supremo Tribunal de Justiça considerou indiscutível a
propriedade do sepulcro que, independentemente do título causal, ficou assente
ser pertença da recorrente. Mas entendeu que a questão não devia ser abordada em
termos de exercício de um direito real, mas sim noutra sede. E, assim, entendeu
que a pretensão que os recorrentes querem tornar judicialmente efectiva contra a
ré quanto ao concreto modo de exercício do “culto à memória do filho” releva de
um obrigação natural, nos termos do artigo 402.º do Código Civil, não podendo
ser coactivamente imposto, face ao que dispõe o artigo 404.º do mesmo Código. É
nítida a diferença de perspectiva e a deslocação da questão para o âmbito de
outro instituto jurídico. Enquanto que até então, nas intervenções contrapostas
das partes e nas decisões judiciais de 1ª instância e da Relação, a legitimidade
da resistência da ré a satisfazer a pretensão dos autores era analisada a o
abrigo do poder exclusivo inerente ao direito de propriedade (jus excludendi
omnes allios) e, depois de considerada legítima em 1ª instância fora afastada
pela Relação, por se considerar um exercício abusivo do direito, agora o dever
de facultar aos ex-sogros as condições para esse modo de prestar culto à memória
do filho é perspectivada como consubstanciado uma obrigação natural,
insusceptível portanto de imposição coerciva.
Assim, tendo presente os termos em que tinha decorrido toda a
discussão anterior, quer em 1ª instância, quer no recurso perante a Relação, e
os termos em que a parte contrária alegara no recurso de revista, a
circunstância de as partes não terem sido previamente confrontadas com a
possibilidade desse novo enquadramento da questão não existir qualquer corrente
jurisprudencial que fizesse antever esta outro modo de encarar o enquadramento
jurídico da questão – o acórdão do STJ, de 11 de Dezembro de 2003, citado no
acórdão recorrido, versa sobre o 'culto dos mortos', mas a questão que decide é
de diferente natureza e não faz referência directa ou implícita à natureza do
dever dos 'proprietários' dos jazigos facultarem o acesso aos demais familiares
do defunto –, considera-se que a aplicação das normas respeitantes às obrigações
naturais para integrar o critério jurídico de solução da questão controvertida,
não era razoavelmente previsível. Consequentemente o Tribunal entende valorando
conjugadamente estas circunstâncias, não ser exigível que a questão de
constitucionalidade destas normas tivesse sido colocada pelos recorrentes
perante o Supremo Tribunal de Justiça, antes de ser proferido o acórdão
recorrido.
4. Mas o reconhecimento de que os recorrentes têm razão quanto
a este pressuposto do recurso de constitucionalidade não implica o deferimento
da reclamação.
Com efeito, constitui jurisprudência uniforme, fundada no facto
de a decisão que refira a reclamação constituir caso julgado quanto à
admissibilidade do recurso (n.º 4 do artigo 77.º da LTC), que, para deferir a
reclamação, ainda que não confirme o fundamento que levou à não admissão do
recurso pelo despacho reclamado, o Tribunal deve verificar se estão satisfeitos
todos os requisitos e pressupostos para que o recurso deva prosseguir. E que o
recorrente deve, se não o tiver feito antes, aproveitar a reclamação para suprir
as deficiências de que o requerimento de interposição do recurso padeça e que
possam comprometer o prosseguimento deste.
Ora, quando o recorrente questiona apenas uma certa
interpretação de uma norma, torna-se necessário que precise o sentido com que a
norma foi aplicada e sobre que deve recair a apreciação de constitucionalidade,
de modo a que o Tribunal possa verificar os respectivos pressupostos de
admissibilidade do recurso e balizar a discussão e, vindo ela a ser considerada
inconstitucional com esse sentido, o possa enunciar no juízo de
inconstitucionalidade para que a decisão recorrida seja reformada em
conformidade. Só assim se cumpre, quando a norma que constitui objecto de
recurso não é a que emerge de um dado preceito na sua simples literalidade, o
ónus, que é do recorrente, de identificar o objecto (material) do recurso (Cfr.
acórdão n.º 178/95, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Junho
de 1995, a que muitos outros se seguiram)
Assim, quando o não tiver feito no requerimento de interposição
do recurso, o interessado tem de proceder a essa precisa indicação do sentido
normativo que quer submeter a julgamento de inconstitucionalidade na reclamação
contra o despacho de não admissão do recurso – tal como tem de aproveitar essa
oportunidade para suprir as demais indicações exigidas pelo artigo 75.º-A da
LTC, porventura em falta naquele requerimento – a fim de que a decisão da
reclamação possa constituir decisão definitiva sobre o conhecimento do recurso.
Como este Tribunal tem vindo a entender, o cumprimento destes ónus não
representa simples observância do dever de colaboração das partes com o
Tribunal; constitui, antes, o preenchimento de requisitos formais essenciais ao
conhecimento do objecto do recurso (Cfr., entre muitos, acórdão n.º 430/06,
disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, é evidente que a norma do artigo 402.º do Código Civil,
isoladamente considerada e tomada na sua literalidade, não fornece o critério de
decisão adoptado pelo acórdão recorrido. Foi aplicada num específico sentido,
integrado por elementos relativos ao “culto dos mortos” e aos direitos de
personalidade e às relações entre as partes, que os reclamantes deveriam
enunciar, porque essa é que constitui a norma aplicada.
Os recorrentes aperceberam-se disso ao dizerem que pretendem
'ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 402.º do CC ou, mais
rigorosamente, a sua interpretação e aplicação ao caso concreto e que conduziu
ao resultado constante da decisão recorrida do mesmo passo que afasta da
Constituição, do Código Civil e do direito mortuário, o direito ao culto dos
mortos, premissa (al. b) das Conclusões) que inculca a opção, prévia, formal e
dedutiva, pela aplicação da “noção” de obrigação natural e uma interpretação
normativa que, erigida como foi (ou pode vir a ser) em critério jurisprudencial,
no pressuposto de uma vocação de generalidade e abstracção, se mostra
inconciliável com a Constituição'. Mas nunca procedem à enunciação desse
critério normativo mediante uma proposição com um mínimo de precisão, de modo a
poder distinguir-se da apreciação do caso concreto e poder suportar a
fiscalização de constitucionalidade, num sistema em que o que tem de ser
confrontado com a Constituição são as normas aplicadas – embora em determinado
sentido ou dimensão com que foram assumidas pela decisão recorrida – e não as
decisões judiciais que as aplicam em si mesmas consideradas. Tudo o que os
reclamantes seguidamente desenvolvem, quer no requerimento de interposição do
recurso, quer na reclamação, é para demonstrar o que, no seu entender, é o
desacerto da decisão, seja quanto à aplicação da norma, seja quanto à sua
interpretação em relação aos direitos de personalidade e outros, que consideram
(directamente) violados pela decisão recorrida, o que não cabe na competência
cognitiva do Tribunal Constitucional. Mas nunca procederam à enunciação do
sentido normativo que querem ver recusado, de tal modo que teria de ser o
Tribunal a proceder à identificação do sentido normativo do artigo 402.º do
Código Civil operante no caso concreto, o que quer dizer que teria de ser o
Tribunal a identificar autonomamente a norma que constitui objecto de
apreciação. Ora, este é um ónus que a lei põe a cargo do recorrente e cuja
omissão não pode ser ultrapassada nem, agora, suprida.
Aliás, como salienta o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, a norma
constante do artigo 402.º do CC dificilmente pode ser erigida, só por si, em
ratio decidendi do acórdão recorrido, tendo a figura e a incoercibilidade das
“obrigações naturais” de ser articuladas com o entendimento adoptado, pelo
menos, quanto ao âmbito dos direitos de personalidade, para que a pretensão de
tutela que os recorrentes reclamam cobre sentido.
Consequentemente, embora por razões não coincidentes com as do
despacho reclamado, a reclamação não pode ser atendida.
5. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a reclamação e condenar os
recorrentes nas custas, fixando a taxa de justiça em vinte unidades de conta de
taxa de justiça.
Lisboa, 12 de Março de 2007
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício