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Processo: n.º 253/94.
1ª. Secção.
Relator: Conselheiro Monteiro Diniz.
Acordam no Tribunal Constitucional:
I — A questão
1 — No Tribunal Fiscal Aduaneiro de Lisboa, A. interpôs recurso, de um acto de
liquidação tributário, no montante de 1 271 676$00, que imputa ao Director da
Alfândega de Lisboa, alegando vício de violação de lei.
Após a verificação de diversas vicissitudes processuais cujo conhecimento é
irrelevante para a apreciação e decisão da matéria que vem posta nos presentes
autos, por sentença de 19 de Novembro de 1993, depois de se considerar que «o
segmento de norma constante do Decreto-Lei n.º 455/80, de 9 de Outubro, na
redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 212/84, de 2 de Julho, que exige a
titularidade de carta de condução para fruição dos benefícios fiscais aí
previstos, é inconstitucional por ofensa do princípio constitucional da
igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição» teve-se o acto de
liquidação impugnado como ilegal, concedendo-se, em consequência, provimento ao
recurso.
Para tanto, no essencial, aduziu-se a fundamentação seguinte:
(…) quando o legislador, perante dois emigrantes proprietários de veículos
isenta um de direitos de importação, imposto sobre venda de veículos, sobretaxa
de importação e imposto de transacções, e outro não pela simples razão de aquele
possuir a carta de condução, parece existir discriminação em função da
instrução.
Então, o segmento da norma que faz essa exigência deve considerar-se
materialmente inconstitucional por ofensa do disposto no artigo 13.º, n.os 1 e
2, citado.
............................................................
Ora, temos para nós, que o que se pretendeu com o Decreto-Lei n.º 455/80 (e com
o Decreto-Lei n.º 212/84 que alterou alguns artigos daquele, bem como com todos
os outros diplomas atrás citados) foi permitir aos emigrantes proprietários de
veículos a sua importação para Portugal quando aqui regressarem a fim de aqui
fixar a sua residência.
E isto com benefícios fiscais.
Ora, ao exigir-se a titularidade de carta de condução como requisito de redução
ou isenção de direitos, está a introduzir-se discriminação de direitos, está a
introduzir-se discriminação entre os que a possuem e os que não a possuem.
E o legislador nunca justificou a razão da exigência desse requisito, que,
aliás, até está em contradição com o facto de o veículo poder ser conduzido pelo
cônjuge e parentes em 1.º grau do beneficiário.
Como já se referiu, pode-se ser proprietário de um veículo e usufruir do mesmo
sem necessidade de carta de condução.
Então nenhuma razão existe para tal benefício fiscal ser atribuído em função de
titularidade de carta de condução.
Como, também referimos, o Direito Comunitário considera os veículos automóveis
de uso privado como bens de uso pessoal afectos ao serviço do agregado familiar.
Assim não fazia sentido uma discriminação como a constante do diploma atrás
referido.
Embora não em vigor à data da importação em Portugal, cremos que os argumentos
retirados do Direito Comunitário são relevantes em ordem a concluir que a
exigência de titularidade de carta de condução não tem qualquer justificação
quando o que se pretende é facilitar e tornar menos onerosa a transferência de
bens do agregado familiar de um país, comunitário ou não, para Portugal.
Concluímos então no sentido de que, não tendo o legislador apresentado qualquer
razão válida para distinguir entre proprietários de veículos, titulares de carta
de condução ou não, podendo os veículos ser conduzidos em Portugal pelo cônjuge
do beneficiário e parentes em 1.º grau, desde logo se vendo que o beneficiário
nem precisa de saber conduzir para usufruir do veículo, que pode ser conduzido
por esses familiares, a distinção feita no Decreto-Lei n.º 455/80 (na redacção
do Decreto-Lei n.º 212/84) é discriminatória em relação aos emigrantes
proprietários de veículos que pretende importá-los para Portugal, desde que
obedeçam aos demais requisitos exigidos por lei.
2 — Desta decisão, em obediência ao disposto nos artigos 280.º, n.os 1, alínea
a), e 3, da Constituição e 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.º 3, da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, na redacção da Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, trouxe
o Ministério Público recurso obrigatório ao Tribunal Constitucional.
Nas alegações depois oferecidas pelo senhor Procurador-Geral Adjunto
sustentou-se o provimento do recurso e a reforma da decisão impugnada,
rematando-se com o seguinte quadro de conclusões:
1.º A exigência legal de titularidade de carta de condução ao emigrante,
proprietário de veículo automóvel, que pretende, ao retornar definitivamente ao
país, beneficiar do regime fiscal previsto nos Decretos-Leis n.os 455/80 e
212/84 funda-se na circunstância de o legislador condicionar os benefícios
fiscais que admite e prevê ao facto de o veículo importado se destinar a uma
utilização estritamente pessoal pelo seu proprietário.
2.º Nesta perspectiva, a exigência de que o requerente, proprietário do
veículo, se encontra legalmente habilitado para o conduzir não constitui solução
legislativa arbitrária ou discricionária, discriminatória dos cidadãos não
titulares de cartas de condução relativamente aos demais; não ofendendo,
consequentemente o princípio constitucional da igualdade.
Por seu turno, a recorrida fez suas as considerações desenvolvidas na sentença
impugnada resumindo-as assim no quadro conclusivo que formulou:
a) A norma constante do artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 455/80,
de 9 de Outubro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 212/84, de 2 de Julho, a
qual exige a titularidade de carta de condução para fruição dos benefícios
fiscais aí previstos, é inconstitucional por ofensa do princípio constitucional
de igualdade de todos os cidadãos perante a lei consagrado no artigo 13.º da
Constituição da Republica Portuguesa.
b) Sendo inconstitucional a referida norma nessa parte por estabelecer
tal condicionalismo, a alegante beneficiava de isenção das imposições aduaneiras
referidas nesse diploma, pelo que o acto adicional de liquidação é ilegal.
Passados os vistos de lei cabe agora apreciar e decidir.
II — A fundamentação
1 — A sentença recorrida considerou como provada a seguinte matéria de facto
relevante para a decisão da causa:
a) Através da declaração de importação n.º 20 326, de 23 de Março de
1985, da Delegação Aduaneira do Jardim do Tabaco, a recorrente importou um
veículo automóvel, modelo 240 D, ao qual foi atribuída a matrícula JC-22-24.
b) O referido veículo foi importado com isenção de direitos e de
imposto V. V. Automóveis, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 455/80, de 9 de Outubro.
c) Entretanto, a Alfândega detectou que a carta de condução utilizada
na instrução do processo de autorização da importação do veículo com isenção de
direitos e do imposto sobre a venda de veículos automóveis era falsa.
d) Com efeito, notificada para apresentar o original da carta de
condução cuja fotocópia fora junta ao processo de importação, a recorrente
declarou nunca ter tido carta de condução.
e) Pelo facto atrás referido correu contra a recorrente o processo de
contra-ordenação n.º 9/87, apenso.
f) Tal processo, conforme resulta de fls. 97 e 98, acabou por ser
arquivado por se ter entendido que, tendo a infracção sido eliminada por diploma
posterior do número das infracções aduaneiras haveria que aplicar o princípio do
regime mais favorável consignado no n.º 2 do artigo 2.º do Código Penal.
g) Todavia, por considerar que a recorrente, ao tempo da importação da
viatura, não se encontrava nas condições exigidas por lei para beneficiar de
isenção de direitos concedida, a entidade competente ordenou a liquidação dos
direitos e demais imposições (fls. 98 do apenso).
h) Em consequência, foi liquidada a importância global de 1 277 243$00
correspondente a 26 116$00 de direitos de importação, 500$00 de selo, 5067$00 de
emolumentos — artigo 10.º, e 1 245 560$00 de I.V.V.A. (fls. 83 do apenso).
i) Através do ofício de fls. 5 dos autos principais, a recorrente foi
notificada para pagar a importância de 1 271 676$00 (ou seja a importância de 1
277 248$00 referida na alínea anterior, deduzida do montante de 5567$00
referente a selo e artigo 10.º já pago na declaração de importação).
Ora, não obstante a recorrente não haver preenchido o requisito da titularidade
de carta de condução de que a norma do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 455/80, de
9 de Outubro, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º
212/84, de 2 de Julho, faz depender a atribuição dos benefícios fiscais ali
previstos, acabou por lhe ser concedido ganho de causa mercê da rejeição daquele
específico segmento normativo com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Será que as razões aduzidas pelo recorrente em sentido contrário ao da decisão
impugnada, devem prevalecer sobre aquele entendimento?
2 — O princípio da igualdade começou por ser entendido no constitucionalismo
liberal do século xix em termos de exclusiva incidência no domínio da aplicação
da lei por forma a impedir diferenças de tratamento ainda provenientes da ordem
feudal ou do Estado estamental.
Esta perspectiva exclusivamente formal, segundo a qual a igualdade se
concretizava através de uma igual aplicação da lei a todos os cidadãos — através
da generalidade da lei, alcançava-se a igualização dos cidadãos — traduzia-se
numa pura exigência de generalidade da lei, apresentando-se o princípio da
igualdade como um mero princípio de prevalência da lei.
Todavia, pouco a pouco, o princípio evoluiu na sua essência estruturadora do
regime geral dos direitos fundamentais e do próprio sistema constitucional
global, apresentando-se como princípio oponível ao próprio legislador.
Hoje em dia, a igualdade perante a lei não é mais uma mera igual aplicação da
lei a todos os cidadãos, afirmando-se, sobretudo, como uma igualdade na lei ou,
se se quiser, uma igualdade através da lei.
A sua base material é a igual dignidade social de todos os cidadãos, que, por
seu turno, representa um corolário da igual dignidade humana de todas as
pessoas. Trata-se pois de um valor judicializado que preside a todos os actos
jurídicos, a começar pelo acto legislativo. O legislador não pode introduzir
diferenciações na estatuição sobre facti species essencialmente idênticas, isto
é, o princípio da igualdade veda-lhe que trate desigualmente aquilo que é
essencialmente igual e que trate igualmente aquilo que é essencialmente
desigual.
Mas porque a semelhança nas situações da vida nunca é total visto que por
natureza tais situações não se reproduzem integralmente, importará, numa prévia
definição, encontrar o atributo que, retirado do todo, permite o estabelecimento
da igualdade, isto é, delimitar quais os elementos de semelhança que, para além
dos inevitáveis elementos diferenciadores, devem estar presentes para se poder
afirmar a igualdade de duas situações em termos de merecerem o mesmo tratamento
jurídico.
Sendo a igualdade em sentido material um conceito relativo entre duas situações,
importa que o elemento relacionador, como elemento característico de tais
situações, nelas se encontre presente. Tais situações serão consideradas iguais
(ou desiguais), merecendo por isso um tratamento jurídico igual (ou desigual),
consoante o elemento relacionador que se elegeu como critério de comparação,
nelas se verifique ou não verifique.
Mas a definição do critério a que se reporta o juízo de igualdade pressupõe uma
prévia valoração da realidade, apresentando-se com um conteúdo
indissociavelmente ligado aos fins que se pretendem alcançar com o
estabelecimento da igualdade. «A qualificação de uma situação como igual a
outra inclui, necessariamente, a razão pela qual ela deve ser tratada de certo
modo».
O princípio da igualdade reconduz-se assim a uma proibição de arbítrio sendo
inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação
razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente
relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente
desiguais.
A proibição de arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação
ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como
princípio negativo de controle.
Mas existe, sem dúvida, violação do princípio da igualdade enquanto proibição de
arbítrio, quando os limites externos da discricionariedade legislativa são
afrontados por ausência de adequado suporte material para a medida legislativa
adoptada.
Por outro lado, as medidas de diferenciação hão-de ser materialmente fundadas
sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da
solidariedade, não devendo basear-se em qualquer razão constitucionalmente
imprópria (cfr. sobre a matéria, por todos, os Acórdãos do Tribunal
Constitucional n.os 44/84, 425/87, 39/88 e 231/94, Diário da República, II
Série, de, respectivamente, 11 de Junho de 1984 e 5 de Janeiro de 1988, e I
Série, de, respectivamente, 3 de Março de 1988 e 28 de Abril de 1994, e ainda
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
1993, pp. 127 e segs.; Jorge Miranda, «O regime dos direitos, liberdades e
garantias», Estudos sobre a Constituição, vol. iii, pp. 50 e segs., e Manual de
Direito Constitucional, tomo iv, Coimbra, 1993, p. 219; Maria da Glória Ferreira
Pinto, «Princípio da Igualdade — Fórmula Vazia ou Fórmula Consagrada de
Sentido?», Separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, Lisboa, 1987;
Lívio Paladin, Il Princípio costituzionale d’equaglianza, Milão, 1965).
À luz das considerações precedentes pode dizer-se que a caracterização de uma
medida legislativa como inconstitucional, por ofensiva do princípio da igualdade
dependerá, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente,
isto é, de falta de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico.
3 — Na sequência do exposto, há-de dizer-se que a norma desaplicada na decisão
recorrida, não dispondo porventura de um quadro de previsão tão completo quanto
possível, não se apresenta porém como uma solução de todo desrazoável e injusta,
necessariamente geradora de inconstitucionalidade.
É que a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não
elimina a liberdade de conformação legislativa, pertencendo-lhe, dentro dos
limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as
relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar
igual ou desigualmente.
Como se assinalou no acórdão da Comissão Constitucional, n.º 458, Apêndice ao
Diário da República, de 23 de Agosto de 1983, p. 120, aos tribunais, na
apreciação daquele princípio, não compete verdadeiramente «substituírem-se» ao
legislador, ponderando a situação como se estivessem no lugar dele e impondo a
sua própria ideia do que seria, no caso, a solução «razoável», «justa» e
«oportuna» (do que seria a solução ideal do caso); compete-lhes, sim «afastar
aquelas soluções legais de todo o ponto insusceptíveis de se credenciarem
racionalmente».
A norma sob controvérsia, dispõe assim:
Artigo 1.º
1 — Todo o indivíduo, maior, titular de carta de condução, emigrante nos termos
do artigo 3.º do presente diploma, que regresse definitivamente ao País poderá
beneficiar relativamente a um veículo automóvel já a ele pertencente ou que
venha a adquirir posteriormente ao regresso, de uma redução de direitos,
calculada pela pauta mínima, de conformidade com o quadro seguinte:
(…).
Mas os benefícios fiscais assim concedidos aos emigrantes pressupõem que o
veículo importado venha a ficar sujeito durante um período de 5 anos a um regime
altamente restritivo, não podendo ser emprestado, excepto ao cônjuge ou a
parente de 1.º grau, nem tão-pouco alienado ou por qualquer forma onerado
(artigo 6.º, n.º 2, do mesmo Decreto-Lei n.º 455/80, também na redacção do
artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 212/84).
A indisponibilidade assim imposta ao veículo importado no que toca ao seu uso ou
cedência, mesmo gratuita, a terceiros, denuncia, manifestamente, o propósito do
legislador de o fazer destinar ao uso pessoal do próprio emigrante, prevenindo
desde logo a utilização fraudulenta daqueles benefícios em situações não
merecedoras de qualquer redução fiscal.
E para tanto, não bastaria que o emigrante fizesse prova da propriedade do
veículo havendo ainda de demonstrar a titularidade de carta de condução,
pressuposto de que depende, na generalidade dos casos, uma normal utilização
pessoal das viaturas automóveis.
Assim, nesta prespectiva das coisas, que se configura com razão de ser da
própria solução legalmente adoptada, não pode afirmar-se que a diferenciação de
tratamento concedido aos que não se acham habilitados com carta de condução se
apresenta sem suporte material bastante, pois que a ausência daquele
titularidade é indiciadora da impossibilidade legal da utilização pessoal do
veículo, sendo certa que esta funciona como condicionante da concessão dos
benefícios fiscais correlativos.
O sistema assim instituído não representará, porventura, uma solução ideal
susceptível de responder a particulares situações de excepção que, ao menos no
domínio abstracto, é possível configurar.
Simplesmente, no específico plano de avaliação em que estes autos se situam — o
da fiscalização jurídico-constitucional de uma dada norma — haverá de
concluir-se no sentido da sua não inconstitucionalidade.
III — A decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1.º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 455/80, de 9 de Outubro, na redacção dada pelo artigo 1.º do
Decreto-Lei n.º 212/84, de 2 de Julho;
b) Conceder, consequentemente, provimento ao recurso e determinar a
reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente julgamento da
questão de constitucionalidade.
Lisboa, 19 de Dezembro de 1995. — Antero Alves Monteiro Diniz — Maria Fernanda
Palma — Maria da Assunção Esteves — Alberto Tavares da Costa — Vítor Nunes de
Almeida — Armindo Ribeiro Mendes — José Manuel Cardoso da Costa.
(1) Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 27 de Abril de 1996.