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Processo n.º 628/2012
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A. intentou contra o Instituto da Segurança Social, I.P., ao abrigo do disposto na Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, ação destinada ao reconhecimento da titularidade do direito a obter prestações sociais por óbito, ocorrido em 6 de agosto de 2008, de B., beneficiário da Segurança Social, com quem vivia em união de facto desde 1997.
Decidiu o Tribunal de Primeira Instância, por sentença de 5 de julho de 2011, julgar a ação improcedente, por não ter a autora feito prova da situação de necessidade de alimentos e da impossibilidade de os obter dos familiares previstos no artigo 2009.º, n.º 1, alíneas a) a d), do Código Civil, sustentando que disso legalmente dependia, entre outros factos, o reconhecimento judicial do invocado direito.
O Tribunal da Relação de Lisboa, no recurso de apelação dela interposto pela autora, confirmou o julgado, considerando que o artigo 6.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, na redação introduzida pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto, que deixou de exigir, como condição de reconhecimento do invocado direito, a necessidade de alimentos do membro sobrevivo da união de facto, não se aplicava aos casos em que, como o presente, o óbito ocorreu antes da entrada em vigor do novo regime legal, pelo que, não tendo a autora feito prova desse facto, o que, nos termos da lei aplicável, lhe era exigível, não se verificavam os pressupostos do reconhecimento judicial do direito invocado em juízo, como decidido pela primeira instância.
A autora, ainda inconformada, interpôs recurso de revista, tendo o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por proposta do conselheiro relator, determinado o julgamento ampliado da revista nos termos do n.º 2 do artigo 732.º-A do Código de Processo Civil (CPC).
O Ministério Público emitiu parecer, nos termos do n.º 1 do artigo 732.º-B do CPC, onde, além do mais, excecionou a incompetência material do Supremo Tribunal de Justiça para conhecer da questão colocada ao respetivo plenário. Pediu, ainda, em requerimento ulterior, fossem as partes notificadas do seu parecer, antes da realização do julgamento, para, querendo, se pronunciarem sobre tal questão prévia.
Os autos prosseguiram para julgamento do recurso, tendo o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão do plenário de 15 de março de 2012, julgado não verificada a exceção dilatória de incompetência material do Supremo Tribunal de Justiça, reconhecendo à autora, na procedência do recurso, o direito de obter do réu as peticionadas prestações sociais, embora com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2011, e uniformizando jurisprudência no sentido de que «[a] alteração que a Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto, introduziu na Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, sobre o regime de prestações sociais em caso de óbito de um dos elementos da união de facto beneficiário de sistema de Segurança Social, é aplicável também às situações em que o óbito do beneficiário ocorreu antes da entrada em vigor do novo regime».
O Ministério Público veio, então, arguir a nulidade do acórdão, nos termos da primeira parte do alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, por omissão de pronúncia quanto à questão, suscitada em requerimento autónomo, da omissão processual de notificação do seu parecer às partes, arguindo, ainda, a nulidade da decisão sobre a excecionada incompetência material do Tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 3.º, n.º 3, e 201.º, n.º 1, do CPC, por proferida sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre ela se pronunciar, como oportunamente requereu.
Também o Réu arguiu a nulidade do acórdão de uniformização de jurisprudência, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 3.º, n.º 3, e 201.º, n.º 1, do CPC, por nele se ter apreciado questão da competência material do Supremo Tribunal de Justiça sem prévia audição das partes, como imposto pela primeira das invocadas disposições legais.
Por Acórdão de 5 de junho de 2012, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça indeferir ambos os incidentes, considerando, no que respeita ao deduzido pelo Ministério Público, que este carecia de legitimidade para suscitar questões de natureza processual relacionadas com a tramitação que precedeu o acórdão proferido, ou com o respetivo teor, atentos os limitados objetivos a que, nos termos do n.º 1 do artigo 732.º-B do CPC, está sujeita a sua intervenção processual, sendo que, ainda que assim não fosse, o incidente deduzido carecia de fundamento legal, porquanto não se verificavam, no caso, quaisquer das nulidades arguidas.
O Ministério Público, notificado deste último acórdão, dele interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), para apreciação das seguintes questões:
a) inconstitucionalidade da «norma constante do segmento final do n.º 1 do art. 732.º-B do CPC, tal como interpretada no acórdão recorrido, no sentido de que do parecer do Ministério Público, quando nele fundadamente seja suscitada questão prévia (questão prévia relevante), não tem de ser dado conhecimento às partes, anteriormente à decisão», por violação do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, na sua dimensão do direito ao contraditório e de proibição de decisões-surpresa;
b) inconstitucionalidade dos artigos 3.º, n.º 3, e 201.º, n.º 1, do CPC, interpretados «como não aplicáveis ao caso», por violação dos mesmo direito e princípios constitucionais;
c) inconstitucionalidade do segmento final do n.º 1 do artigo 732.º-B do CPC, «interpretado no sentido de que o Ministério Público, ao pronunciar-se sobre a ‘questão que origina a necessidade de uniformização de jurisprudência, está processualmente impedido de criticamente examinar os respetivos pressupostos, designadamente no que respeita à própria competência do Tribunal, desde que tempestivo tal exame e não coberto por caso julgado formado no processo», por violação do direito a um processo equitativo, consagrado no citado artigo 20.º, n.º 4, da Constituição; e
d) inconstitucionalidade das «disposições conjugadas dos arts. 732.º-B, n.º 1, 203.º, n.º 1, 668.º, n.º 1, e 680.º, todos do CPC, interpretadas no sentido de que o Ministério Público, após proferir o parecer previsto na primeira disposição considerada, logo fica absolutamente impedido de poder vir suscitar quaisquer ‘questões de índole processual’ com aquele relacionadas», também por violação do direito a um processo equitativo, consagrado no citado artigo 20.º, n.º 4, da Constituição.
O Tribunal recorrido, por despacho do relator de 29 de junho de 2012, rejeitou o recurso, por falta de legitimidade do Ministério Público, cuja intervenção processual, regulada nos estritos termos do n.º 1 do artigo 732.º-B do CPC, não lhe confere a qualidade de parte principal (ou parte acessória direta e efetivamente prejudicada pela decisão), sendo que disso depende a legitimidade para se interpor o recurso previsto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, como tem vindo a entender o Tribunal Constitucional, em diversos acórdãos, ao não reconhecer legitimidade ao Ministério Público, para esse efeito, quando intervenha como parte acessória.
O Ministério Público, inconformado, reclamou do despacho de rejeição do recurso, nos termos do artigo 76.º, n.º 4, da LTC, invocando o entendimento vertido na decisão sumária n.º 184/2009 do Tribunal Constitucional, que reconhece legitimidade para recorrer, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, a todo e qualquer interveniente processual que, mesmo sem estatuto de parte, tenha legitimidade para suscitar perante o tribunal a quo a questão da inconstitucionalidade da norma aplicada na decisão recorrida, que é o caso, no entendimento do reclamante.
A reclamação, liminarmente admitida pelo Tribunal recorrido, foi com vista ao Ministério Público no Tribunal Constitucional, que emitiu parecer no sentido do seu deferimento, porquanto a intervenção processual do Ministério Público no julgamento ampliado de revista para uniformização de jurisprudência, tal como está legalmente definida, o legitima a interpor o presente recurso de constitucionalidade, pelas razões invocadas na decisão sumária n.º 184/2009.
Sendo que, mesmo assumindo como válida a jurisprudência constitucional contrária firmada nos arestos invocados no despacho em reclamação, não é ela diretamente aplicável ao caso vertente, pois que, enquanto em todos os casos aí apreciados a questão de inconstitucionalidade suscitada pelo Ministério Público, enquanto parte acessória, tinha por objeto normas aplicadas na resolução da questão de mérito, objeto da ação, nos presentes autos a questão de inconstitucionalidade incide sobre as próprias normas que regulam a competência e a legitimidade do Ministério Público para intervir processualmente no recurso ampliado de revista, pelo que, quanto a elas, dúvida não pode haver de que o Ministério Público é “parte interessada” ou “parte vencida’”, implicando a decisão de rejeição do recurso para o Tribunal Constitucional a insindicabilidade da decisão que julga tal questão de inconstitucionalidade, o que o sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade claramente não admite.
O reclamante Ministério Público, convidado pelo relator a pronunciar-se sobre a possibilidade de não conhecimento do objeto do recurso com fundamento no seu caráter não normativo, no que respeita à questão de inconstitucionalidade enunciada em b), e na inutilidade do recurso, no que respeita às demais, pronunciou-se pela verificação dos correspondentes pressupostos processuais.
2. Cumpre apreciar e decidir.
O Tribunal recorrido defende que o Ministério Público não tem legitimidade para interpor o recurso previsto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, quando, como sucede no caso vertente, intervenha nos autos como parte acessória, tal como o Tribunal Constitucional tem considerado em diversos arestos (Acórdãos nºs. 636/94, 368/97 e 1187/96), atento o disposto no n.º 2 do artigo 72.º da LTC, que apenas reconhece legitimidade para o efeito a quem assuma a posição de parte principal no processo.
O Ministério Público sustenta, em contraponto, que, tendo legitimamente suscitado, no processo em causa, a inconstitucionalidade de certa norma, como o Tribunal recorrido expressamente reconheceu, tem legitimidade para interpor recurso perante o Tribunal Constitucional da decisão que, apesar disso, a aplicou, ainda que nele não assuma o estatuto de parte, como o Tribunal Constitucional defendeu na sua decisão sumária n.º 184/2009, em desvio do entendimento maioritário sufragado nos referidos acórdãos.
Afigura-se, contudo, que, sendo a legitimidade um conceito de relação, também para efeitos de interposição do recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, a aferição desse pressuposto processual deve ter por referência prioritária as concretas questões de inconstitucionalidade que integram o respetivo objeto e o interesse processual que, em relação a elas, o recorrente justificadamente tenha na sua apreciação e decisão.
Cumpre, pois, atentar no objeto do presente recurso, em ordem a verificar se, em relação às concretas questões de inconstitucionalidade que o integram, assiste ao recorrente Ministério Público, ora reclamante, legitimidade para ver reapreciada, pelo Tribunal Constitucional, a decisão que, sobre tal matéria, o Tribunal recorrido explícita ou implicitamente proferiu.
Ora, analisando o recurso de constitucionalidade rejeitado pela decisão ora em reclamação, verifica-se que todas as questões de inconstitucionalidade que o Ministério Público pretende ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional têm por objeto comum, sob diferentes variáveis ou perspetivas interpretativas, a própria delimitação normativa dos poderes processuais que lhe assistem, enquanto parte acessória, no recurso ampliado de revista.
Com efeito, mesmo as questões de inconstitucionalidade que materialmente parecem descentradas desse eixo normativo comum, como sucede com aquelas que versam matéria atinente à audição prévia das partes e às consequências processuais dessa omissão, no que respeita a questão prévia invocada pelo Ministério Público no parecer a que alude o referido n.º 1 do artigo 732.º-B do CPC, continuam a ter por referencial normativo essencial este preceito legal e as leituras que dele se extraem quanto ao poderes de intervenção processual do Ministério Público, enquanto parte acessória, e ao impacto, na dinâmica do processo, de uma intervenção que, na perspetiva interpretativa adotada, exorbita o respetivo enquadramento legal.
Ora, não se questionando o caráter acessório da intervenção do Ministério Público consentida pelo n.º 1 do artigo 732.º-B do CPC, o certo é que, estando em causa questões de inconstitucionalidade que se reportam à própria latitude com que a lei, ou interpretações dela extraídas, delimitam essa intervenção, condicionando os termos em que ela se deve processualmente desenvolver, por delimitação dos poderes que integram o respetivo estatuto processual e inoperância dos que são exercidos fora desse enquadramento estatutário, parece claro que ao Ministério Público assista legitimidade para, mesmo intervindo nos autos como parte acessória, questionar a constitucionalidade de norma, ou interpretação, que restrinja os poderes de atuação processual inerentes a essa mesma qualidade, sindicando decisão que, explícita ou implicitamente, consagre entendimento normativo que afete ou condicione, em termos que reputa inconstitucionais, os poderes que, enquanto parte acessória, pode exercer no correspondente processo.
Assim, não é possível invocar, em abono de solução inversa, como o fez a decisão ora em reclamação, o entendimento, que efetivamente tem vindo a ser sufragado pela jurisprudência constitucional, segundo o qual o Ministério Público, quando intervenha como parte acessória, não tem legitimidade para interpor o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
É que, como bem salientou o Ministério Público, as questões de inconstitucionalidade que aí se pretendiam ver apreciadas tinham por objeto normas atinentes ao mérito da ação, considerando-se, nesse pressuposto comum, que a posição processualmente mais distante que o Ministério Público, enquanto parte acessória, ocupava nos autos, não o legitimava a recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, de decisões aí proferidas com fundamento em inconstitucionalidade de normas aplicadas na resolução judicial de litígio que não o envolvia diretamente (partindo, ainda que implicitamente, desse mesmo pressuposto de conexão material entre as questões de inconstitucionalidade suscitadas e o objeto da ação, cf., para além dos acórdãos citados na decisão reclamada, Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 171/95, 747/95 e 242/98).
Não é o caso.
Como acima demonstrado, as inconstitucionalidades que o Ministério Público pretende ver apreciadas no presente recurso apenas dizem respeito às normas que regulam, ou condicionam, os seus próprios poderes de intervenção no processo enquanto parte acessória, não se questionando, em momento algum, a constitucionalidade de quaisquer dos preceitos que, pertinentes à composição substantiva do litígio, regulam as condições e termos em que são reconhecidas ao membro sobrevivo da união de facto as prestações sociais por morte do beneficiário da segurança social com quem vivia em situação análoga à dos cônjuges (reconhecendo legitimidade para interpor o recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, a quem, não sendo parte na causa, questiona precisamente a constitucionalidade de norma que veda ou limita os seus poderes de intervenção processual na lide, designadamente para recorrer, cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 16/92, 17/95, 373/02 e 33/05).
E não sendo a invocada jurisprudência constitucional aplicável ao recurso de constitucionalidade ora interposto pelo Ministério Público, considerando a natureza das questões que integram o respetivo objeto, em relação às quais o recorrente, embora parte acessória, tem direto interesse em ver apreciadas, não é de concluir, sem mais, pela ilegitimidade do Ministério Público, em ponderação exclusiva dessa abstrata qualidade processual, como o faz a decisão reclamada.
Assim, pelo menos no que respeita à questão de inconstitucionalidade supra enunciada em a), que, como se reconhece na decisão reclamada, o Ministério Público, em observância do correspondente ónus, oportunamente suscitou perante o Tribunal recorrido, assiste-lhe legitimidade para interpor o presente recurso.
Sucede que, e independentemente da legitimidade do Ministério Público para, em face do disposto no n.º 2 do artigo 72.º da LTC, interpor recurso de constitucionalidade em relação às demais questões de inconstitucionalidade, que assumida e, a seu ver, justificadamente, não suscitou perante o Tribunal recorrido [cf., em particular, questões supra enunciadas em c) e d)], é indispensável para o conhecimento do recurso, como a jurisprudência constitucional tem reiteradamente sublinhado, que esteja em causa a inconstitucionalidade de norma efetivamente aplicada como fundamento jurídico determinante do julgado, atento o caráter necessariamente normativo do recurso de constitucionalidade e a utilidade que este, na perspetiva da modificação do julgado, deve revestir.
Impõe-se, pois, na perspetiva relacional adotada quanto ao pressuposto processual da legitimidade – que deve ser aferido, como acima sublinhado, por referência ao concreto objeto do recurso e não em função exclusiva da qualidade processual que o recorrente abstratamente assume no processo-base –, verificar, mediante ponderação das concretas questões de inconstitucionalidade cuja apreciação de mérito se reclama, se o recurso, por normativo e útil, reveste tais condições básicas de prosseguimento, sem as quais fica prejudicada a questão de saber se o recorrente estava desonerado de as suscitar perante o Tribunal recorrido, como alega na presente reclamação.
Ora, afigura-se, pese embora as ponderosas razões invocadas pelo Ministério Público em sentido contrário, que não se verificam, no caso, um e outro dos enunciados pressupostos processuais, como perspetivado pelo relator no seu despacho de fls. 276, o que o Tribunal Constitucional pode e deve aferir no presente incidente, atento o disposto no n.º 4 do artigo 77.º da LTC.
Vejamos.
Pretende o Ministério Público ver apreciada, além do mais, a inconstitucionalidade dos artigos 3.º, n.º 3, e 201.º, n.º 1, do CPC, interpretados «como não aplicáveis ao caso».
Porém, mesmo enquadrando tal questão de inconstitucionalidade no discurso argumentativo que imediatamente precedeu a sua enunciação, considerando, como defende o Ministério Público, que «a questão de inconstitucionalidade que se pretende ver apreciada é a (…) que consiste em considerar que não ocorre nulidade processual, quando as partes não são notificadas do parecer do Ministério Público emitido ao abrigo do artigo 732.º-B, n.º 1, do CPC, e no qual se suscita inovatoriamente uma questão prévia», o certo é que, ainda que assim seja, o que se pretende sindicar é, no essencial, a decisão que julgou não verificada, por não preenchimento dos respetivos pressupostos legais, a nulidade arguida pelo Ministério Público com fundamento na violação, nesse específico contexto processual, do contraditório imposto pelo n.º 3 do artigo 3.º do CPC, e não qualquer critério normativo, de índole interpretativa, que tenha presidido a um tal julgamento.
Na verdade, o juízo formulado quanto à validade do concreto processado em questão, considerando que não ocorre nulidade arguida pelo Ministério Público é, na sua essência, um juízo de natureza estritamente jurisdicional, que implica a prévia avaliação dos particulares contornos da instância processual, no modo como se desenvolveu, não encerrando, por meramente subsuntivo, qualquer tomada de posição interpretativa quanto ao sentido e alcance de quaisquer das normas legais conjugadamente invocadas.
Por isso, o que está verdadeiramente em causa e se reputa inconstitucional é, de facto, a não aplicação ao caso do disposto nos artigos 3.º, n.º 3, e 201.º, n.º 2, do CPC, sendo indiferente que se clarifique, nos termos em que o Ministério Público agora o faz, os específicos contornos adjetivos da situação de facto que se considerou não subsumível à previsão dos citados normativos legais, por insindicável perante o Tribunal Constitucional o respetivo juízo.
Assim, e no que respeita à questão de inconstitucionalidade atinente às disposições conjugadas dos artigos 3.º, n.º 3, e 201.º, n.º 1, do CPC, supra enunciada em b), que não assume caráter normativo, não pode o recurso ser admitido.
O reclamante Ministério Público pretende, ainda, ver apreciadas três outras questões de inconstitucionalidade: 1) inconstitucionalidade do segmento final do n.º 1 do art. 732.º-B do CPC, interpretado «no sentido de que do parecer do Ministério Público, quando nele fundadamente suscitada questão prévia (questão prévia relevante), não tem de ser dado conhecimento às partes, anteriormente à decisão»; 2) inconstitucionalidade do segmento final do n.º 1 do mesmo artigo 732.º-B do CPC, «interpretado no sentido de que o Ministério Público, ao pronunciar-se sobre a ‘questão que origina a necessidade de uniformização de jurisprudência’, está processualmente impedido de criticamente examinar os respetivos pressupostos, designadamente no que respeita à própria competência do Tribunal, desde que tempestivo tal exame e não coberto por caso julgado formado no processo»; e 3) inconstitucionalidade das disposições conjugadas dos artigos 732.º-B, n.º 1, 203.º, n.º 1, 668.º, n.º 1, e 680.º, todos do CPC, «interpretadas no sentido de que o Ministério Público, após proferir o parecer previsto na primeira disposição considerada, logo fica absolutamente impedido de poder vir suscitar quaisquer ‘questões de índole processual’ com aquele relacionadas»..
Ora, no que respeita à questão de inconstitucionalidade supra enunciada em 2), reportada ao entendimento que, baseado no artigo 732.º-B, n.º 1, do CPC, nega ao Ministério Público a possibilidade de, nessa pronúncia, examinar criticamente os pressupostos processuais da ação, designadamente no que respeita à própria competência do Tribunal, parece claro que, vindo o recurso de constitucionalidade interposto da decisão que apreciou o incidente de nulidade deduzido pelo Ministério Público – e não da decisão que apreciou a referida exceção dilatória –, nela não se aplicou o citado preceito legal, na específica interpretação ora sindicada, mas tão só as normas pertinentes à decisão daquele específico incidente pós-decisório, sejam as que regulam a legitimidade para o deduzir (em particular, artigos 203.º, n.º 1, 668.º, nºs. 1 e 4, e 680.º do CPC), sejam as que definem os respetivos pressupostos legais (artigos 668.º, ex vi artigo 731.º, artigos 3.º, nºs. 2 e 3, e 229.º -A, e, ainda que implicitamente, artigo 201.º, n.º 1, todos do CPC), ainda que perspetivadas à luz de um específico entendimento sobre a atuação processual que o n.º 1 do citado artigo 732.º-B do CPC consente ao Ministério Público.
É, pois, manifesta a inutilidade do recurso, sendo indiferente, para o julgamento da arguição de nulidade deduzida pelo recorrente, que se venha a julgar inconstitucional interpretação segundo a qual o Ministério Público, ao pronunciar-se sobre a ‘questão que origina a necessidade de uniformização de jurisprudência’, no parecer a que alude o n.º 1 do artigo 732.º- B do CPC, está processualmente impedido de criticamente examinar os respetivos pressupostos, designadamente no que respeita à própria competência do Tribunal.
E também não se descortina qualquer utilidade na apreciação do mérito do recurso quanto às duas restantes questões de inconstitucionalidade, não sendo de acolher, no caso, os argumentos que o Ministério Público invoca.
Entende o Ministério Público, em síntese, referindo-se-lhes, em particular, que o recurso assume utilidade, pois que, se é certo que a decisão recorrida parece assentar em fundamentos alternativos – o que, em regra, inviabiliza, por inútil, o conhecimento do recurso – a verdade é que, sendo nele impugnada a constitucionalidade de ambos os fundamentos, como é o caso, justifica-se a admissão do recurso, pois que, a confirmarem-se tais suspeitas de inconstitucionalidade, a sua procedência necessariamente implicará, pela invalidação das razões (principal e secundária) que o sustentam, alteração do julgado.
Contudo, admitindo-se como válidas tais premissas teóricas, não é defensável a sua aplicação ao caso sub judicio.
Considerou a decisão recorrida, no essencial, que o Ministério Público carecia de legitimidade para arguir as invocadas nulidades e, ainda que assim não fosse, o incidente deduzido sempre careceria de fundamento legal, pois que a notificação do parecer emitido nos termos do artigo 732.º-B, n.º 1, do CPC não constitui formalidade imposta nem pelo artigos 3.º, n.º 2, e 229.º-A do CPC (pois que o Ministério Público não é parte no processo), nem pelo artigo 3.º, n.º 3, do mesmo código (porquanto não se prefigurou nem materializou, no que respeita ao pressuposto processual da competência do Tribunal, qualquer decisão-surpresa), não se verificando, assim, omissão de ato que a lei prescreva, como exigido pelo n.º 1 do invocado artigo 201.º do CPC; por outro lado, não configurando a falta de notificação do parecer nenhuma das nulidades da decisão taxativamente tipificadas no 668.º do CPC ex vi artigo 731.º do mesmo código, também não se verifica a nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, arguida ao abrigo da alínea d) do primeiro dos citados normativos legais.
É, pois, inquestionável que o Supremo Tribunal de Justiça extraiu do citado complexo legal o entendimento, cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada, segundo o qual o Ministério Público, após a emissão do parecer previsto no artigo 732.º-B, n.º 1, do CPC, carece de legitimidade para suscitar questões de índole processual relacionadas com a tramitação que precedeu o Acórdão proferido ou com o teor do próprio Acórdão, ainda que reportadas ao aludido parecer.
Sucede que, invocando fundamento alternativo, considerou a decisão recorrida que, «ainda que outra fosse a solução a respeito daquele pressuposto processual, o incidente deduzido não encontraria fundamento», por razões que, em rigor, se não reconduzem àquela que o Ministério Público também reputa inconstitucional e como tal pretende ver declarado.
Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça, ao apreciar o mérito de tal incidente pós-decisório, não considerou ser inexigível a prévia notificação das partes do parecer do Ministério Público emitido nos termos do artigo 732.º-B, n.º 1, do CPC, ainda que nele fundadamente se suscite questão prévia relevante. O que se invocou, para justificar o indeferimento da arguição de nulidade baseada na correspondente omissão processual, foi que, não se tendo prefigurado e materializado uma decisão-surpresa, no que respeita à questão prévia invocada pelo Ministério Público (no caso, exceção de incompetência material do tribunal que veio a ser julgada improcedente, confirmando-se, assim, a competência do tribunal, já antes tabelarmente afirmada no despacho saneador), não se impunha, como formalidade de cumprimento obrigatório imposto pelo artigo 3.º, n.º 3, do CPC, a prévia audição das partes (contraditório vertical), sendo que, por outro lado, não assumindo o Ministério Público a posição processual de parte, também não era de dar cumprimento ao contraditório horizontal que, nesse pressuposto, os artigos 3.º, n.º 2, e 229.º-A do CPC garantem.
Assim, a ter adotado uma certa interpretação sobre a matéria, aliás extraída não apenas do n.º 1 do artigo 732.º-B do CPC, mas do complexo normativo formado por este preceito legal e os constantes dos citados artigos 3.º, nºs. 2 e 3, e 229.º-A do CPC, foi no sentido de que não tem de ser dado prévio conhecimento às partes do parecer do Ministério Público quando nele se suscita questão prévia cuja decisão, que se projeta e vem a ser proferida, não configura uma decisão-surpresa, inesperada ou surpreendente para qualquer uma das partes no processo.
E inexistindo exata correspondência entre a interpretação sindicada e aquela que efetivamente determinou, ainda que em argumentação alternativa, o sentido final da decisão recorrida, em termos que, pela disparidade qualitativa ou substancial das dimensões normativas em confronto, não pode ser suprida pela adequação restritiva do objeto do recurso, como é o caso, não pode o recurso prosseguir para apreciação de mérito, como tem vindo este Tribunal Constitucional a entender, sendo inútil o juízo de mérito que se venha a formular quanto à eventual inconstitucionalidade de norma que, tal como enunciada, não foi, em rigor, a aplicada como fundamento jurídico do julgado.
Ora, baseando-se a decisão recorrida em fundamento jurídico alternativo cuja inconstitucionalidade não está em condições processuais de ser apreciada, seja por inobservância do ónus de precisa indicação da fonte legal que baseia a interpretação sindicada, seja porque esta não corresponde exatamente àquela que, em argumentação alternativa, a decisão recorrida invocou, como se verifica no presente recurso, é inútil verificar se a norma, ou interpretação, que constitui o primeiro (ou primário) fundamento da decisão recorrida, efetivamente viola a Constituição, porquanto, ainda que assim seja, o julgado manter-se-á idêntico pelas razões secundária ou alternativamente nele invocadas.
Assim, e volvendo conclusivamente ao caso concreto, mesmo que se viesse a julgar inconstitucional a norma que impede o Ministério Público de, proferido o parecer previsto no artigo 732.º-B, n.º 1, do CPC, arguir nulidades, ainda que com aquele relacionadas, a verdade é que, tendo a decisão recorrida considerado, em argumentação alternativa, que não era de notificar as partes do referido parecer, ainda que nele se levante questão prévia, quando a decisão a esse propósito projetada, e que veio a ser efetivamente proferida, não configurar uma decisão-surpresa – interpretação que, com essa dimensão, o recorrente não impugnou no recurso de constitucionalidade - a sua procedência não operaria modificação de julgado.
De modo que, ainda que por diferentes razões da invocada pelo Tribunal recorrido, atinentes à utilidade do recurso (no que respeita às questões de inconstitucionalidade supra relatadas em a), c) e d)), e ao seu caráter normativo (quanto à questão de inconstitucionalidade referida em b)), é de confirmar a decisão de rejeição do recurso.
3. Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação.
Sem custas.
Lisboa, 6 de dezembro de 2012.- Carlos Fernandes Cadilha – Maria José Rangel de Mesquita – Maria Lúcia Amaral.